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sábado, outubro 01, 2016

Um cirurgião de almas, apenas

Às vezes, fico imaginando algumas coisas de um modo estranho que não combina com o que muita gente pensa. E me pergunto, se há alguma maneira de pensar da mesma forma. Claro que não há. Por mais que nos esforcemos em sermos semelhantes, somos muito diferentes, e por conseguinte, nosso modo de agir e de pensar.

Que bom que pensamos de maneira distinta, porque aí se dá a democracia de ideias, tão arranhada hoje em dia.

Cada um com o seu jeito, a sua história de vida, a memória que carrega consigo entrincheirada nas suas vivências e experiências com os seus e os que estão próximos.

Pensamos antes na família, depois na escola, nos amigos, mais tarde nos colegas de profissão e assim por diante.

Mas, às vezes fico pensando um pouco diferente demais, se é que é possível engendrar esta expressão assim, no nosso rico idioma.

Por exemplo, observo a maneira contraditória como as pessoas agem em relação a determinados temas, como por exemplo, a leitura da realidade que fazem através da mídia tradicional.

Se há um autor de algum romance ou crônicas ou mesmo poesias, citado em alguma cena de dramaturgia da TV, elas de imediato o consideram um excelente autor, que deve ser um dos eleitos em sua biblioteca, seguindo a opinião do personagem.

Por outro lado, se uma atriz ou um ator decide publicar um livro, embora sendo escrito por um ghost-writer, estas pessoas correm às livrarias para comprá-lo como se estivessem à frente de uma obra prima.

Entretanto, se um escritor brasileiro ganha um conceituado concurso literário e publica um excelente livro, preferem um escritor estrangeiro e de preferência, bem citado pela mídia. Se o autor é de autoajuda, aí seu sucesso é imediato.

Destacando outro tema, percebo que caso um artista, principalmente de televisão faça um plástica sem interessar de que parte do corpo seja, ela (ou ele) é aceita (o) e aliada (o) a uma série de justificativas que levam ao julgamento elogioso do mesmo.

Caso um amigo ou parente, ou vizinho ou aquele colega do outro departamento decida consertar o nariz adunco e meio torto, a censura é quase unânime.

Então reflito que na relação com os artistas ou celebridades da mídia, as pessoas não enxergam o ser humano, mas o personagem que ali está embutido. O que conhecemos do Tony Ramos, por exemplo? O que a mídia inistentemente nos mostra? A imagem de um homem honrado, educado, amigo generoso e solidário. Em parte, pelos papéis que costuma representar, na maioria e em parte porque é a maneira como ele se mostra para os telespectadores e fãs.

Pode ser que ele seja mesmo assim, até acredito que seja um bom homem. Mas quem pode garantir que ele não é ranzinza, mau colega e até negligente com a família? Não sabemos nada dele, além do que a telinha da TV, as revistas especializadas e os sites de celebridades nos mostram. Mas amamos o personagem que vemos, que nos é descrito e apresentado como um produto bom.

Há também a possibilidade de passarmos horas discutindo a separação de Angelina Jolie e Brad Pitt, quando nossos casamentos transcorrem enfadonhos e destinados a aceitar a rotina ou a indiferença. Por certo, questionar estas divisões de casais famosos expande nossa zona de conforto, sem mergulharmos em nossos problemas. É uma atitude humana que causa estranhamento, mas só para quem pensa.

Por outro lado, quando morre um artista, sofremos como uma pessoa muito íntima, ou quando ele sofre um acidente ou foi assaltado em seu condomínio de luxo, ficamos imediatamente indignados. Não percebemos, porém, as pessoas que morrem a nossa volta, às vezes um vizinho que costumamos cumprimentar quando nos detemos no elevador, ou um colega de trabalho que conhecemos há trinta anos ou o carteiro que foi assaltado quando nos levava a mercadoria à nossa porta.

Esses fatos passam como corriqueiros. São personagens bem mais apagados, sem o glamour da mídia, sem o sorriso franco de dentes de porcelana das celebridades, sem aquela presença constante em nossa casa, como se fossem parentes muito próximos, cuja conduta jamais é reticente, ao contrário, complexa e verdadeira.

É aqui que o belo personagem, com sua perfomance adequada aos nossos sentimentos, que manda. É por eles que choramos. Por eles dobram os sinos. Não o carteiro que mal conhecíamos e nem nos parecia tão simpático, ou aquele vizinho que aparecia nas horas mais impróprias nos pedindo alguma ferramenta ou aquele colega de trabalho, que apesar de convivermos tanto tempo, nunca o conhecemos tão profundamente, como o Tony Ramos, por exemplo.

Eram personagens fracos, que não nos sensibilizavam nem enfeitavam nosso mundinho cinza.

Por isso penso, que deveria haver algum cirurgião de almas. Sim, que fizesse uma plástica que rejuvenescesse, não o nosso rosto, mas a nossa alma, que a transformasse numa alma menos enrugada e insossa, menos atrofiada por preconceitos e mais apaixonada, menos iludida por personagens e mais humana.

É, um cirurgião de almas. Deveria haver, quem sabe, consertaria o mundo.

Fonte da ilustração: https://morguefile.com/search/morguefile/3/actors/pop. Autor: DuBoix

quinta-feira, junho 23, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 8º CAPÍTULO

CAPÍTULO 8


Depois desta conversa com Jairo, os dois se separaram e Júlio voltou para o hotel. Na portaria, deparou-se com outra pessoa. Certamente, não era o turno de Rosa.

No quarto, tomou um banho longo, vestiu um pijama e deitou-se um pouco. Adormecera talvez por meia hora ou mais. Estava com fome, aquela cachaça o deixara faminto. Ligou para a recepção, perguntando se serviam jantar. Não era hábito do hotel, até porque era um estabelecimento de pequeno porte, mas adiantariam o lanche da manhã para ele, com alguns ovos fritos e talvez, até acrescentassem um copo de vinho.

No restaurante do hotel, apenas algumas luzes foram acesas, iluminando principalmente a mesa onde Júlio se encontrava. Tomara o restante do vinho e observara a rua pela vidraça. Era uma avenida estreita, com pouquíssimas residências. Sabia que a alguns quilômetros apenas ficava o rio que dividia a cidade, mas cuja região mais desolada ficava após a ponte. Talvez meia hora dali. Recordou a sua infância, a vida pacata na pequena cidade, os pais trabalhadores rurais que com dificuldade lhe possibilitaram estudar e afastar-se em definitivo para a capital. Pouco os viu desde que saiu da região até que faleceram e desde então, nunca mais havia voltado.

Agora, entretanto, sentia falta dessa simplicidade em encarar os fatos de maneira tão objetiva e ao mesmo tempo estranha do povo da região. Praticamente todos se conheciam, falavam de tudo e de todos e um acontecimento trágico mexia com a comunidade. Talvez por isso, seu amigo Jairo e o próprio dono do bar estivessem tão envolvidos com o assunto do assassinato ou suicídio da filha do farmacêutico. Era razoável.

Estava tão entretido em seus pensamentos que nem percebera o garçom ao seu lado, perguntando se precisava de alguma coisa. Logo avisava que fechariam o restaurante para se preparem para o outro dia. Júlio percebera que devia retirar-se e se afastou, cumprimentando o rapaz e dirigindo-se ao elevador, porém foi obrigado a voltar, informado de que alguém o esperava no saguão. Surpreso, perguntou de quem se tratava. Seria o seu amigo Jairo? O garçom mostrava-se nervoso ao dizer a Júlio quem queria falar-lhe naquele momento. Júlio o olhava, intrigado. O outro, completou:

— Não, não é seu amigo Jairo, senhor, que quer falar-lhe. Trata-se de Golias. Desculpe, é como todo mundo chama o farmacêutico da cidade.

Farmacêutico? Então o pai da moça assassinada queria falar com ele. Mas não teria nada o que conversar. O que poderia querer… -– Nisso, o homem a quem o garçom se referia, irrompe na sala e dirige-se a Júlio revelando intensa ansiedade. – Por favor, preciso falar-lhe. Preciso da sua ajuda.

Júlio pensou em seguida que não poderia ajudá-lo em nada, mas ficou quieto. O homem insistiu:

– Sei que o senhor já morou nesta cidade, meu pai que era enfermeiro, conhecia muito bem a sua família. Se não se importa, eu gostaria de falar-lhe.

Como não tinha como recusar, Júlio pediu que o acompanhasse até o quarto.

Júlio abriu a porta com dificuldade. Sua mão tremia, mas não estava temeroso com a presença do homem. Já enfrentara centenas de casos difíceis, homens traídos, políticos presos em falcatruas, mulheres que investigavam a vida de maridos no auge do ódio doentio, mas estava especialmente confuso com aquela presença. Talvez não estivesse preparado para a visita, queria descansar, aproveitar a aposentadoria, escrever o seu livro, rever os poucos amigos da cidade, encontrar o ritmo há tanto esquecido daquele povo. Contudo, aquele homem parecia disposto a falar-lhe uma coisa muito importante. O que pretendia contar-lhe?

Ao entrar, ofereceu-lhe a poltrona próxima à cama. Sentou-se numa pequena cadeira ao lado da cômoda, em seguida.

—Então, o senhor queria falar comigo?

—Peço desculpas pelo adiantado da hora, aqui na cidade, a gente costuma dormir antes das dez.

– Quanto a isso, não se preocupe. Eu durmo muito tarde.

—Bem, o meu nome é Lucas, como o rapaz do hotel disse, sou o farmacêutico da cidade.

— Sim?

—Pois é. Por ironia, me chamam de Golias, veja você, com a minha baixa estatura, isso é até uma piada, além de ser bastante franzino.

Júlio fez uma pausa, como se medisse as palavras. Por fim, disparou:

– Mas o senhor não veio me procurar para me falar sobre a sua estatura, não?

O homem levantou-se, enquanto falava.

– Não, claro que não! – E se dirigiu a janela que dava para a frente do hotel. Olhava para baixo, um ar desolado. Os olhos miúdos, algumas rugas permanentes e as olheiras davam um ar de desamparo, como se houvesse passado muitas horas sem dormir, nem se alimentar.

Júlio ficou observando-o, na espera de que falasse alguma coisa. Penalizou-se com a figura que devia ser um resquício do homem que era, tão desconsolado e triste parecia. Não lhe saía da cabeça a tragédia da filha.

Neste momento, ele voltou da janela e correu ao seu encontro, quase gritando.

– Preciso da sua ajuda, Sr. Júlio, preciso da sua ajuda!

Júlio também levantou-se e tentou conduzi-lo à poltrona.

— Por favor, se acalme. Seja o que for que precisa de mim, tem que me contar com calma. Não se desespere.

O homem começou a chorar convulsivamente. Segurava a cabeça, em prantos. Júlio não interveio e esperou que se acalmasse.

Aos poucos, o homem se recompôs, respirando fundo, olhando para o nada.

—Quer beber alguma coisa?

— Tem um copo d’água?

Júlio entregou a água e voltou a sentar-se, desta vez, na própria cama.

—Desculpe o meu desabafo. Eu não poderia ter feito isso, foi um constrangimento enorme pra mim, mas estou muito nervoso, entende?

— Não se preocupe com isso, eu entendo que esteja passando por momentos difíceis.

—É sobre isso que vim lhe falar. O senhor sabe do assassinato de minha filha.

—Foi a primeira coisa que soube quando cheguei. Estava no bar conversando com um amigo meu e ele contou-me o ocorrido.

— Sim, Jairo, foi ele que me convenceu a falar com o senhor! Júlio irritou-se com o amigo. Como ele foi capaz de dar aquela sugestão infeliz ao homem. Agora compreendera, porque ele lhe contara a história com uma riqueza de detalhes, já estava com o objetivo formalizado.

—Bem, sei que é detetive, e que pode me ajudar.

— Eu sou aposentado.

—Melhor assim, tem mais experiência. Por favor, eu lhe suplico. A minha filha foi assassinada por aquele miserável, aquele médico maldito que veio só pra destruir a nossa família, a nossa vida! Um homem da cidade, cheio de salamaleques, cheio de bossa, minha filha se encantou e deu no que deu! Ela se apaixonou por ele, acabou fazendo o que não devia. Ele até prometeu casar com ela, ela acreditava nisso! Mas ele tinha outra na cidade, na capital. Ele tinha noiva ou namorada, não sei, só que estava decidido a acabar com tudo. Como ela insistiu, como disse que estava grávida e contaria para a noiva dele, ele acabou matando-a! Ele matou a minha filha!

O homem falou tudo de um supetão. Não havia como interromper, nem argumentar. Finalmente, quando conseguiu, Júlio perguntou:

– Mas me diga uma coisa, essa história de gravidez, eu não sabia. E depois, pelo que saiba eles se conheceram há pouco menos de um mês.

— Ela teve a triste ideia de inventar esta bobagem e o pior é que ele acreditou. Deu no que deu!

—Então este médico é um idiota, convenhamos! Não seria mais fácil ele abrir o jogo, dizer que não casaria, e depois contaria para a noiva, se fosse o caso? Afinal, nos dias de hoje, uma gravidez não é garantia de nenhum casamento. E depois, se era mentira…

— O problema todo é que a tal moça da cidade, a namorada é filha de um grande empresário no ramo hospitalar. Isto significa o futuro dele, entende? Por isso a matou, eu não tenho dúvidas!

— Após contar-lhe toda a história e descrever posteriormente em detalhes o que julgava o encontro do médico com a filha, ele perguntou se Júlio aceitava o caso.

Júlio experimentou uma certa euforia que costumava sentir em frente a um caso novo, quando estava na ativa. Por um momento, sentiu-se mais vivo do que nunca e muito produtivo. A biografia, o livro que ficasse para trás. Entretanto, havia um porém.

— Espere, Lucas, eu vim para cá com um objetivo. Na verdade, uma mulher chamada Sara quer falar comigo, quer me contratar para alguma coisa. Eu preciso saber antes do que se trata, entende? E depois, pode haver outra possibilidade em relação ao caso de sua filha.

—Como assim?

— Não lhe garanto, mas dependendo da situação, talvez eu aceite o seu caso, mas isso não quer dizer que você terá uma resposta satisfatória. Eu posso encontrar outro assassino, ou talvez, provar que foi apenas um suicídio.

—Isso não acontecerá, porque eu tenho certeza de que aquele canalha a matou! Você então aceita o caso?

Quando o homem retirou-se, Júlio elaborou um esquema dos procedimentos que teria a partir daquele dia. Não estava certo de que pegaria o caso, mas e se os outros crimes estivessem relacionados? E se Sara o havia chamado exatamente para falar sobre isso? Um dos primeiros passos, seria o que deveria ter feito desde o primeiro momento em que pisara na cidade, falar com a mulher que o chamara. Foi isso o que planejou para o dia seguinte.

terça-feira, março 22, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XXII

HOJE, TERÇA-FEIRA 22/03/2016, APRESENTAMOS A SEGUIR AS EMOÇÕES FINAIS DE NOSSO FOLHETIM RASGADO, O 22º E ÚLTIMO CAPÍTULO DE PÁSSARO INCAUTO NA JANELA. OBRIGADO PELOS LEITORES QUE ACOMPANHARAM A HISTÓRIA.

Capítulo 22

Úrsula ouviu barulho no elevador e alertou os ouvidos, na espera de que o alvo fosse o seu endereço.

Atualmente, vivia sempre esperando que alguém chegasse, e a convidasse para tomar um chá, passear pelo parque, ou quem sabe, sobreviver numa dose de uísque.

Provavelmente Dulcina voltava para a faxina, quando bateram na porta, entretanto, seu coração bateu acelerado. E se fosse Susana, se o tribunal do júri a tivesse absolvido e ela estivesse pronta para acompanhá-la na maior pesquisa de sua vida.

Com algum esforço, antecipou-se até a porta. Abriu-a rapidamente, machucando a mão na maçaneta.

Não conseguiu evitar a decepção, quando um homem a aguardava com uma calma indefinida no olhar. A barba crescida, totalmente branca, o cabelo alinhado, embora ralo, com uma leve caída desenhando o perfil.

Úrsula percebia alguma coisa familiar naquela figura, mas não conseguia identificar o quê.

Seu coração estava aflito, apertado e por um momento, estremeceu completamente. Teve a ilusão de que Jaime estava ali, a sua espera, talvez para acusá-la de não ter participado como ele do movimento contra o regime, ou por não ter colaborado na sua biografia.

Sentiu-se fraca e temendo cair, acomodou-se na coluna próxima à porta e ficou ali, paralisada, como se estivesse à frente do espectro do marido. Ou do carrasco.

Um suor intenso inundava-lhe as têmporas e nem o sorriso afável do homem a afastava do torpor que sentia. Ele, percebendo que alguma coisa desagradável acontecia, apressou-se em apresentar-se.

–Úrsula, não está me reconhecendo? É normal, faz tanto tempo. Mas olhe, você é a mesma de quando a conheci.

Ela não reagiu. Nenhuma palavra articulava. Quem era aquele homem? O que queria dela? Como sabia o seu nome e lhe falava com tanta intimidade que a deixava ainda mais apavorada?

– Desculpe, acho que não vim num bom momento. Eu sou Gregório Bastos, o professor de português, lembra, amigo de seu marido.

Gregório Bastos, sim, como ela poderia esquecer. Era ele, um ativista que fora torturado durante muitos meses, tendo que se exilar do Brasil e que participara de todos os movimentos ao lado de Jaime. Além disso, eram extremamente amigos.

Agora percebia aquele mesmo olhar tranquilo, a voz clara, a linguagem correta, como se estivesse sempre dialogando com os alunos.

Não havia dúvidas, era ele. Apenas mais velho, com os cabelos e a barba branca, mas os mesmos olhos claros na pele avermelhada, o mesmo jeito brando e agradável de segurar a mão com firmeza num cumprimento demorado. O mesmo tom seguro ao dizer o que pensava.

A repressão o teria transformado? Quem era aquele homem após tantos anos?

– Bem, acho que realmente estou importunando você, mas não se preocupe. Eu voltarei outro dia.

– Não, por favor, fique – respondeu com voz sumida. Ele sorriu:_agora me reconheceu, Úrsula?

– Sim, Gregório. Eu o reconheci.

– O tempo passou e a gente se afastou demais. Mas há um momento para o encontro, quem sabe é agora, não é mesmo?

Ele tinha esta mania de instigar uma atitude, mesmo que não se quisesse. Além disso, sempre tinha uma solução para tudo. Um conciliador. Um homem de bem.

– Entre, Gregório. Pode acreditar, estou muito feliz que esteja aqui. É que ainda não me recuperei do susto.

– Pensou que eu estivesse morto?

– Não, é que faz tanto tempo e há muitas lembranças deste passado.

– Não vamos ficar falando em tempo, porque ele só existe porque falamos nele. O tempo é o que vivemos, registramos. Se não fazemos nada, nada significa. Não é tempo. Que nos interessa a ampulheta desandando aquela areia, nos deixando malucos? Interessa-nos a vida que vivemos no dia a dia, na cumplicidade dos gestos simples e solidários, do viver parelho, não paralelo. Você também não pensa assim, Úrsula?

Ela sorriu, ainda um pouco zonza. Confessa que ficara meio confusa com a conversa, mas pede que entre.
Gregório prossegue, entusiasmado. Segura as suas mãos e acrescenta, carinhoso : – desculpe se a embaracei Úrsula, juro que não era minha intenção. Ela afasta as mãos e recua um pouco o corpo, num recato que nem sabia que ainda experimentava. Um leve fulgor invadiu a face.

Gregório entra e instala-se no sofá, sem antes observar o velho piano em que recorda Úrsula tantas vezes, ali sentada, tocando suas eternas canções, embalando os sonhos de todos que se reuniam naquela sala.

– Você se lembra, Úrsula? Enquanto nós ficávamos horas discutindo estratégias para atingir o inimigo, você ficava no seu piano, um pouco distante, enchendo nossos ouvidos, pelo menos de alguma poesia.

– Não me lembre isso, me sinto tão culpada.

– Que isso, não se sinta culpada. Você deixava o ambiente menos tenso. Nós gostávamos muito.

–É verdade?

–Claro. Jaime nunca lhe falou?

–Jaime dizia tantas coisas para me agradar.

Os dois silenciam por um breve momento. Úrsula então decide oferecer-lhe uma bebida.

–Não se preocupe comigo, Úrsula. Já não bebo como antigamente, acho que nenhum de nós, não é mesmo? De qualquer maneira, o que eu gostaria mesmo é de um cafébem forte. O café aguça a mente.

Úrsula se esquiva, indecisa. Dulcina não está, teria que ir à cozinha, deixá-lo ali e não conseguia entender a si mesma, mas sentia-se impedida, os gestos imprecisos. Estava ainda perturbada.

Ele percebe a hesitação.

– Se você não se importa, eu lhe ajudo a fazer o café.

–Não diga isso.

–Digo sim. Vamos para a cozinha que eu mesmo preparo. Nestes anos todos sozinho, eu aprendi tudo nesta minha vida.

–Você está sozinho?

–Há mais de dez anos que Berta me deixou. E não tivemos filhos, você sabe.

Ela não sabia. Na verdade, não sabia nada sobre o seu passado recente. Enquanto se dirigem à cozinha, ele conversa com uma energia que a surpreende.

Uma pergunta não lhe sai da mente: qual é o motivo da visita.

Enquanto tomam o café, Úrsula fica mais à vontade. A mesa, às vezes, une as pessoas, talvez pela proximidade, por estarem no mesmo nível, por partilharem do mesmo prazer. Não sabe. Ele parece adivinhar a indagação.

– Não lhe disse que o café aguça a mente, deixa a gente mais solto, mais vibrante? Você me parece bem melhor.

Úrsula irrita-se com a observação. Quem é ele para julgar o seu estado de espírito. Ele então, complementa.

–Eu também sou assim. Quando alguma coisa me incomoda, quando recebo uma visita inesperada, às vezes, até desagradável, convido para um café. Assim, fica-se mais perto da pessoa e se desenvolve melhor o raciocínio. Esta bebida sagrada também ajuda.

–Então é um estratagema seu. Você pediu o café de caso pensado.

–Sim e não. Na verdade, eu gosto muito de café e pensei que você também gostasse. Por outro lado, é uma boa desculpa para ficarmos mais próximos, você não acha, Úrsula?

–Não sei, Gregório. Até agora, eu não descobri o motivo da sua visita. Tem um motivo, não tem?

–Naturalmente. Desde que eu conheci o Vinícius, tenho pensado muito em você.

–Vinícius?

–Você não o conhece?

–Nem imagino de quem se trata.

–Ah, então me desculpe. Acho que fui indelicado. Mas pelo que ele me falou, eu tinha certeza de que vocês se conheciam, inclusive porque ele está trabalhando na biografia do Jaime.

–Trabalhando? Como assim? Quem está fazendo a biografia do Jaime é Susana Medeiros, a jornalista do Diário de Hoje.

– Ah, exatamente. Não se inquiete, Úrsula, não há equívoco nenhum, nem ninguém está roubando o trabalho da sua jornalista. É verdade, ele me falou sobre ela. Inclusive, pensei que fosse me procurar, porque segundo ele, sou uma fonte privilegiada.

–Mas quem é este tal de Vinícius?

–É o editor do jornal, o chefe dela. Está muito interessado na biografia. Pretendem fazer uma série de reportagens revelando ao público o período de exceção que o Brasil viveu. Querem mostrar a cicatriz, revelar a ferida, sem esconder nada. Espero que ajude à sociedade a analisar o movimento como um período histórico que deve ser discutido, aprofundado, sem medo. Não há mais motivo para se esconder mais nada neste País, você não acha? Devem abrir os porões da ditadura. Você não acha isso, Úrsula?

–Gregório, você tem essa mania de querer sempre a minha opinião. Eu não sei de nada.

Ele a fita, afetuoso. Fala pausado.

–Você tem razão, Úrsula. Eu não devo questionar nada, nem ninguém. Mas como lhe disse, tenho pensado muito em você, desde que conheci o Vinicius. Agora, você já sabe o motivo. É porque quero ajudar esta moça a concluir o seu trabalho, quero que além das reportagens, ela publique um excelente livro, em que a verdade venha à tona. Que a história de Jaime seja um exemplo, para que nunca mais em nosso País, aconteça algo semelhante ao que lhe aconteceu. Você não concorda? Espere, espere, não vou perguntar nada.

–Mas eu concordo, Gregório. Eu concordo e juro que vou ajudá-lo. Jaime será o protagonista que exemplificará toda a saga de horrores que a nossa geração vivenciou e lutou contra. Ou pelo menos, a geração mais nova do que a minha, que foi muito atuante. Jaime e você foram quase exceções. Já eram homens maduros, estabilizados em seus empregos que resolveram compartilhar suas ideologias, lutar por suas ideias. Pensar um País diferente para nossos filhos e netos. O que eu não fiz naquela época, o que omiti, vou fazer agora, de uma outra maneira, é claro, mas vou tentar participar.

Jaime segura-lhe as mãos com carinho. Percebe que uma lágrima escorre rápida pela face de Úrsula.

–Você fez, Úrsula. Você fez muito. Você o amou.

Ela levanta a cabeça e por um momento seus olhares compartilham da mesma visão, vendo um no outro, o que seus corações balbuciam baixinho, indecisos, à espera.

Úrsula desfaz-se do enlevo, soltando-se as mãos e levantando-se, dirige-se à sala, sendo seguida pelo olhar afetuoso de Gregório.

Ela dá alguns passos, tamborila levemente as teclas do piano, aproxima-se da janela, mas não olha para a rua. Como um pássaro incauto se debate na vidraça. Mas só por um instante.

Agora desfruta a quietude da alma.

Instintivamente, levanta a cabeça em direção ao quadro de Rita Rayworth. Volta-se rapidamente e torna a olhar, porque tem a impressão de que ela piscou o olho, maliciosa.

FIM


terça-feira, fevereiro 09, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IX

HOJE, TERÇA-FEIRA 09/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 9º CAPÍTULO.

Capítulo 9


Susana temia demonstrar o caos que estava sua mente e em seu coração. Quantas vezes viera à clínica, quantas vezes entrara naquele quarto de reflexos nas paredes, um quarto despido de vida, de sensibilidade, de sensações. Um quarto nu.

Entrou devagar, passos imprecisos, falseando o salto, como se obstáculos ocultos a impedissem de avançar, de se aproximar do homem que vivia distante, alienado, transbordando de dor e mágoa, ou apenas inerte, como uma poça dágua inatingível, escondida sob o alpendre, se deteriorando dia a dia.

Estava lá, na cadeira isolada na sala branca, de sombras esparsas na parede, como se o sol de vez em quando aparecesse entre as nuvens e produzisse figuras que passeavam indiscretas, incontestes sem qualquer censura. Figuras que não significavam nada, apenas a solidão, a apatia, o desapego dos vivos.

Ele a olhou como quem avista um objeto qualquer, um móvel, um livro já lido, um brinquedo velho, uma roupa usada. Logo desviou o olhar e se deteve nas mãos, examinando-as com cuidado, observando-lhes talvez as reentrâncias das veias que modelavam mapas frágeis, quase apagados. Mãos brancas, descarnadas, transparentes. Assim como a face, na qual Susana observava as veias azuladas, os olhos fundos, claros, com um brilho aquoso, disperso. A boca entreaberta, com falhas de dentes, o nariz saliente, vermelho, contrastando com a palidez do rosto. Examinava as mãos em direção à luz da janela, ora uma, ora outra. Às vezes, juntava-as em gesto de prece e punha-as no queixo, por alguns segundos. Logo desistia e prosseguia na posição anterior. Quando muito, cansava-se e abandonava-as sobre as pernas, vestidas em pijamas de algodão. Tão finas, tão frágeis, que escapavam da cadeira, os pés vez que outra, desandavam ao solo, caindo do suporte e assim, perdendo os chinelos de couro. Seus pés também tinham veias azuis e eram tão brancos e transparentes quanto as mãos.

Susana aproximou-se mais e pousou delicada, a mão nos cabelos raros, brancos sobre o couro róseo e talvez se observasse atenta, também veria veias azuis, como pequenos fios na iminência de serem rompidos.

Ele sorriu, reflexo do carinho inesperado. Mas ela não se animou: sabia tratar-se de reação instintiva. Doía ainda mais aquele sorriso desdentado, aquele olhar enfermo, quase infantil. Uma larva que se soltava do casulo, lentamente, metamorfoseando-se, despedindo-se da vida medíocre; quem sabe alcançando outra dimensão, tal como a borboleta, cujas asas pousam perpendiculares ao corpo, mostrando ao mundo o equilíbrio jamais acessado.

Em seguida, esqueceu o carinho. Voltou-se para a janela que jogava luz do pátio, fabricando sombras e deixou-se ficar, absorto, alheio a tudo, sem lembranças, sem passado, sem futuro.

Susana ficou ali, tentando lembrar a imagem do pai, no passado e carregar consigo apenas aquela, que lhe transmitia segurança, integridade, virtuosismo. Um homem que emancipara mentes, que programara padrões de comportamento, que nunca prescindira da realidade, que tratara os pacientes como indivíduos, revelando neles as capacidades que temiam enxergar. Agora estava ali, como um trapo inerte, um objeto obtuso, sem qualquer valor, a não ser deixar o tempo passar e consumir os momentos conclusivos de sua existência.

Afasta-se alguns passos e enxuga as lágrimas com o dorso da mão. Sente-se vergar como bambu ao vento, arremessado pela força invisível, cujas estratégias e comandos desconhece. Um peso que não consegue carregar com dignidade. Uma dor que corrói, avassala, destrói.

Suspira e passeia pela sala, tentando ver o que seu coração não admite: o mundo particular em que o pai se escondeu e dali não encontra saída, labirinto execrável, que também a envolve, que a esconde do passado, que a afasta do presente. Um mergulho irreal no cotidiano, vivendo do jeito disforme, estranho, de quem perde a fé, a esperança, o amor. De quem desconhece o sabor do carinho, do afeto, da chegada. De quem só avista partidas, cujas voltas nada significam a não ser o desvio da realidade para uma vida virtual que não é a sua. Nem a dele.

Aproxima-se novamente e o beija no rosto. Mais um carinho na fronte, mais um olhar nos olhos. Ritual que cumpre, apenas factível e rotineiro. Não queria permanecer ali, não queria aquela lembrança do pai, não queria assistir um fantasma, um corpo quase objeto. Repetiu os passos de volta, rapidamente e abriu a porta com cautela, sem fazer barulho. Ao torcer a maçaneta, porém, teve a impressão de uma presença, como se ele tivesse reagido de algum modo. Era apenas uma impressão, sabia. Um devaneio, um delírio. Mas havia algo estranho, um som inaudito, um sussurro, um suspiro inesperado. Largou a maçaneta, esfolando os dedos afoitos, voltou-se estarrecida. Ele virava o rosto em sua direção, fixando o olhar com ternura. Sua voz soou trêmula, sumida, mas com uma verdade tão lúcida, que a fez estremecer, segurando-se à porta. Suas pernas fraquejaram, seu coração antecipou-se, batendo desordenado. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Seus ouvidos alertaram-se.

_Por favor, minha filha. Não me deixe perder a lucidez. Quando acontecer novamente, faça alguma coisa para o meu coração parar. Eu lhe peço. É um ato de amor.

Naquele momento, não conteve a explosão de soluços, como se as lágrimas se espalhassem, comportas fossem abertas, deixando evadir toda a mágoa e sofrimento. Era muito doído o que ele expressava. Mas ao mesmo tempo, muito humano e muito digno.

Não continha as lágrimas enquanto deixava o estacionamento do jornal. Naquele dia, especialmente, sentia-se desprotegida e só. O passado que revirava em virtude das conversas com Úrsula, inclusive a imagem desfocada do homem do prédio defronte, produziam em seu íntimo uma angústia que a oprimia. De repente, todas as culpas, todos os sentimentos estranhos de quem tomou uma atitude decisiva e inevitável, surgem em polvorosa, descambando por caminhos íngremes, irregulares, povoando a sua mente. Como se pisasse em charcos, moldando a lama, insurgindo-se entre ratos fugidios de bueiros ocultos, olhos reluzentes sob faróis inesperados. Sentia um arrepio estranho. Enxugava as lágrimas, tentando se recompor na presença do manobrista. Fez do pequeno espelho seu escudo, retocando a maquiagem, de modo a produzir um semblante tranquilo, escondendo o que seu coração oprimido revelava. Despediu-se rapidamente, enquanto outros colegas se aproximavam de seus veículos. O editor que havia discutido a pauta diária e ainda sugerido pressa na conclusão da biografia, correra ao seu encontro. Um homem magro, rosto fino e longo, olhos claros, argutos, de quem possui a sagacidade como instrumento preponderante de suas atitudes. Susana fingiu não vê-lo, mas o manobrista fez sinal com o apito, obrigando-a a frear o carro próximo a uma coluna.

O que aconteceu, Vinícius?

–Susana, acabei de obter uma informação importante sobre a sua biografia. Não podia deixar de avisá-la. Nem desci pelo elevador, pra poder alcançá-la mais rápido.

–Por que não ligou?

–Queria falar pessoalmente, é que se você quiser, podemos ir juntos. O lugar onde a fonte mora não é lá estas coisas de segurança. Um lugar meio mal afamado.

–De quem se trata?

–Um amigo do seu biografado. Parece que conhecia muito bem o Jaime. Pode ser até que você consiga outro viés da imagem dele.

–Você está muito interessado no meu trabalho.

–Sou o editor de reportagem, esquece? Que há com você Susana, to prestando um favor e parece não estar interessada!

–Desculpe, Vinícius. Estou muito interessada, sim. É que hoje foi um dia daqueles, você mesmo viu na discussão da pauta. Com a barafunda econômica que está o mundo, nós é que sofremos. Sim, porque atualmente, não há um especialista por área, todo mundo faz tudo, qualquer dia, um cara especializado em literatura, vai discutir economia.

–Que rebelião é esta, menina? Não se esqueça que sou o seu chefe.

–Está bem, chefe. Podemos conversar amanhã sobre a tal fonte?

–Eu pensei que poderíamos falar nisso mais tarde.

–Mais tarde, eu vou dormir. Agora, eu vou pra minha casinha e você pra sua. Só me diga o nome da pessoa, dona Úrsula pode conhecer.

–Parece que é um professor aposentado. Um tal de Gregório, se não me engano.

Quando se afastou do prédio, sentia a alma livre. Ainda observara a figura de Vinicius, conversando com o manobrista, todo sorrisos, como é do seu feitio.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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