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terça-feira, abril 04, 2017

Dessolidões

Meu vizinho sofria de uma doença estranha. Foi ao médico, ao curandeiro, ao pastor, leu todos os livros de autoajuda, e nada. A tal da moléstia não o deixava em paz. Era um vazio no peito, uma fome de não sei o quê, um vagar assustado pela casa, um temor de qualquer coisa que não se parecesse com movimento e folia. Não tinha o que se queixar, sua vida era perfeita, muito amado nas redes sociais, vivia em noitadas, antecipada aos happy-hours cercados por amigos. Mas o que acontecia que o aporrinhava tanto? Não passava um minuto sozinho, não tinha nada que o aborrecesse de verdade, até no trânsito costumava se divertir: carro potente, som atordoante, quase um trio elétrico.

A vida se lambuzava de prazeres e o mundo nada mais era do que o seu portal de acesso. Estava sempre entre os melhores, aparecia com as mulheres mais lindas, era conceituado como um grande executivo, um homem de negócios e de valor. Até que apareceu aquela dor no peito, aquela quase falta de ar, aquela opacidade no olhar que às vezes se revelava no espelho, aquele murmúrio no meio da noite, com um ah abafado de quem sofre. Mas ele não sofria, era feliz e bem sucedido. Que diabo de doença o acometia?

Até que um dia, sem querer uniu-se a uma turma muito diferente da sua. Um pessoal que costumava flertar com leituras, com estética, com natureza, com vida ao ar livre, com família, com pequenos prazeres jamais considerados por ele.

No meio do papo, à beira da praia, já anoitecendo, começou a se questionar. Perguntou-se o que fazia no meio daquele grupo. Entretanto, deixou-se ficar, já que parecia agradável, uma sensação ímpar, que nunca tinha experimentado. Então, começou a falar de si, de suas vitórias na escalada social, nos grandes negócios, as conquistas as mulheres mais lindas e invejáveis do país. Não houve muito interesse. Em seguida, começou a se queixar. Não entendia o sofrimento do qual era passível. Afinal, a casa era sempre cheia de gente, onde ia, se reunia com as pessoas mais glamorosas, e mesmo assim, sentia este vazio, esta dor no peito, este desconforto que o atormentava. Até que um deles, um barbudo que parecia um guru oriental concluiu que ele sofria de dessolidão.

O prato estava cheio demais, de interesses perdulários, de objetivos materiais e muita, muita aparência. Não gostou do que ouviu, mas à noite refletiu.

É, meu vizinho sofria de dessolidão. Mata mais do que a solidão bem vivida.

sexta-feira, janeiro 08, 2016

O cliente na cadeira elétrica

Cortar o cabelo, via de regra não é uma tarefa fácil, principalmente quando os fios no alto da cabeça já são esparsos. É necessário todo um gerenciamento de medidas para que o desenho fique uniforme e a cabeça não destoe do desejo do dono do cabelo.

A bem da verdade, os barbeiros e cabelereiros parecem ter as suas regras já estabelecidas, a ponto de não se preocuparem com as urgências dos clientes. Concordam com os pedidos, fazem uma espécie de desapropriação de qualquer estética ou algum resquício de vaidade. Já tem seu repertório próprio.

Mexem os fios para cá, para lá, invadem a humilde moleira, levando-os para trás e fazendo verdadeiras manobras para encontrarem o estilo ou mesmo para se encontrarem no presumível corte.

Não se importam com o olhar arredio e até apavorado do cliente. Ao contrário, fazem questão de cometer pequenas inconfidências, de preferência que o público presente ouça e até interaja com o pobre coitado que está lá, na cadeira elétrica.

Perguntam de soslaio, como se agissem de uma forma natural e que deveria ser acompanhada pelo interlocutor. A sua tinta é nacional? Como está seco o seu cabelo! Vai precisar de uma boa hidratação!

Mesmo que o cliente faça sinais, senhas, ponha a mão na boca e se recuse a falar, eles continuam implacáveis. Se eu fosse você fazia um upgrade.

Upgrade? Do que ele fala? De informática? Um alongamento na franja seria o ideal. Já que o senhor é um homem vaidoso (quem disse que é vaidoso?), seria bom colocar um bom chumaço aí pra esconder a careca. (Que careca? São apenas entradas um pouco mais abastadas).Na verdade, se tivesse dinheiro ( agora o chama de pobre), o melhor seria fazer um implante. Mas acho que não vale à pena. Vai ver que um dia o senhor resolve parar de pintar o cabelo e fica aquela mancha preta pra toda a vida. Muito artificial.

Depois de uns bons minutos de papo, ele se cala. Suspira depressivo. Resmunga consigo. Mas ainda assim, os demais o escutam.

Com este cabelo, vai ser difícil fazer um bom corte. Quem cortou pela última vez? Ta todo despontado? Caso o cliente afirmasse que teria sido o próprio, seria sempre uma inverdade e não adiantaria nada. Certamente uma desculpa viria em seguida.

Uma falta de cuidado geral, quem sabe o senhor usa uma pomada para reparar os fios, lava com um bom shampoo, usa um creme e deixa secar naturalmente. O secador queima muito as pontas, principalmente cabelo tingido.

Eu finjo ler o jornal, levanto por um segundo os olhos. Tento ser solidário, pois a minha vez vai chegar. Abro a boca para perguntar alguma coisa, mas sou interrompido pelo cabeleiro no mesmo momento.

– O senhor vai lavar e cortar ? – sim, seria o certo, mas no fundo, quem decide é ele –  ah, porque seco do jeito que está, o melhor mesmo seria condicionador com profundidade, uma boa massagem e um tratamento capilar adequado.

Antes que repita que está seco por causa das tintas, melhor insistir em abrandar a situação. Quem sabe falar em shampoo, um tonalizador apenas para minorar a brancura que cobre a cabeça. Não, sem pintura, apenas um shampoo. Não percebeu? Sabe, aquele cinco minutos? Eu também detesto tintas, fica muito artificial em homem, e depois, não fica bem, só para os artistas. A gente fica mais velho e os tons ficam muito diferentes.

Eu, ainda na plateia, deixo o jornal de lado e decido perguntar, enquanto os outros três que estavam quietos nas poltronas defronte do espelho, levantam as cabeças quase em uníssono. – Certos cortes atenuam as entradas, não?
Sem respostas. Impossível concluir ou mesmo começar. O cabelereiro tem a plenitude do poder ditatorial e perene. Insiste no tema: nem pensar! Nada vai disfarçar isso aqui! É tinta da grossa! E o pior, é daquelas compradas em supermercados, as mais vagabundas!

Contra fatos não há argumentos.

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