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terça-feira, junho 06, 2023

João e suas histórias

João tinha desses hábitos desajeitados: gostava das coisas às avessas. Se lhe contavam uma história, ficava imaginando a trama de trás pra frente, com o protagonista com cara de vilão, ou o vilão com cara de mocinho.

Estava sempre à cata de uma novidade, alguma coisa que despertasse a sua curiosidade. E a dos outros também. Costumava se queixar que seus pais viviam muito ocupados. Por sorte, o avô se mudara para sua casa, por andar meio solitário e doente. A família se dispersara um pouco. A avó morava num País distante, ele nunca sabia, se na Nova Zelândia ou na Austrália. Não era bom em geografia. O seu forte mesmo era a imaginação.

João gostava de histórias. Mas não as histórias contadas pelo avô. Ele, João, era o narrador, especialista em inventar as histórias mais esquisitas possíveis. Começava do final, inventava personagens, trocava as personalidades de alguns e até a aparência física.

O avô perguntava: — Ué, não era o gigante que tinha a galinha dos ovos de ouro?

Não, segundo ele, era a mãe de João, aquele do pé de feijão, não ele, que tinha a tal galinha. E pior, ela, a mãe era a vilã.

— A vilã? – o velhinho indagava intrigado, levantando as sobrancelhas sob os óculos.

— É Vô, o senhor vai ouvir a minha história ou não vai? A que eu sei é deste jeito, depois o senhor conta a sua.

— Não, você é o contador de histórias. Eu sou o ouvinte. Mas vamos lá, desfecha este imbróglio.

Imbróglio? O avô gostava de usar palavras estranhas. Ainda bem que ele sempre explicava no fim da frase – “imbróglio é confusão, mixórdia, esta bagunça que você faz com as tramas”, ou então “desfechar é abrir, concluir”. É, o avô tinha seus caprichos!

Mas João gostava do seu jeito despachado, e embora cismasse com as palavras, ele sabia que no fundo, o avô ficava feliz com a sua presença e com as suas narrativas. Por isso, continuava a inventar as histórias mais malucas que lhe vinham à cabeça. Uma série imensa de personagens e tramas que saíam de sua mente, assim, fresquinhas, criadas na hora, de improviso, prontas para deixar o velhinho de cabelos em pé. Sim, porque às vezes, as histórias eram de arrepiar, imagine, para a idade de João, que tinha apenas sete anos.

Mas, um dia João se calou. Não brotaram mais histórias de sua boca. Por mais que o avô insistisse, ele se negava a inventar histórias. Parecia triste, sem vontade de puxar pelo raciocínio, como costumava dizer. Foi então, que passou a falar quase todos os dias sobre um amigo que morrera. Chamava-se Júlio e segundo o avô, um anjo o havia levado para o céu. Mas aquela explicação não o convencia. Por que havia de morrer assim de uma hora para outra, deixando-o sozinho, sem nunca mais poderem brincar juntos? A quem contaria os acontecimentos de sua vida, a quem comentaria sobre o seu mais querido ouvinte, o avô?

Certa vez, quando João apareceu em seu quarto, daquele modo desavisado, pensando numa coisa e fazendo outra, o avô aproveitou para instigar a imaginação do neto, pedindo-lhe uma nova história. Precisava incentivá-lo, para que voltasse a ser o menino feliz de outrora. Mas que nada. João não inventava mais nada. Desandara a perguntar, parecendo querer todas as respostas do mundo! Perguntava por que a avó sumira, por que o pai estava sempre ocupado e mãe vivia tão nervosa. Embora o avô replicasse que sua ex-mulher não sumira, João, volta e meia, insistia com aquela versão. Um dia ele fez uma pergunta nova. O velhinho respondeu: — Agora, você me deixou embatucado!

João riu. Embatucado, que palavra esquisita! Mas logo percebeu, que o avô estava pensativo e atrapalhado com a pergunta. Entretanto, naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele queria uma reposta. E sabia, que somente o avô lhe daria. Por isso, insistiu:

— Então, aí, Vô, se você é meu parça, fala. O que é a morte? Por que a morte leva as pessoas, assim como levou o meu amigo. Me explica.

— Calma, João, você está muito ansioso. Uma pergunta de cada vez.

— E o senhor sabe responder?

O avô pensou, pensou, matutou e deu o troco: — Só respondo, se você prometer que voltará a me contar as suas histórias.

— Ah, não sei Vô. Pode ser.

— Pode ser, não. Você tem que me garantir que voltará a exercer a sua imaginação. Estou com saudades, sabia?

João suspirou, sério, mas disparou logo: —Vou fazer o possível. Sabe Vô, estas coisas a gente não pode garantir.

— Está bem, João. Eu entendo você. Mas prometa que fará um esforço.

— Isso eu prometo! – Adiantou, sorrindo.

— Está bem, eu confio em você.

— Então me diga, vai responder a minha pergunta?

—Como você, vou fazer um esforço.

—Por quê?

— Talvez porque eu não saiba explicar muito bem. Mas vou fazer o possível.

— Então, começa do princípio, Vô, sem enrolação.

— Como assim?

— Dizendo como tudo começou. A morte aparece assim, de repente?

—Depende.

—Depende de quê?

— Espera, acho que tenho uma maneira de mostrar pra você.— Abre a gaveta da cômoda e retira um envelope com fotografias. Escolhe uma e a entrega a João.

— Quem é?

— Um menino, assim como você.

— Mas quem é?

— Sou eu.

João caiu na risada. Não, podia ser ele. Não podia ser o avô, assim, tão diferente. Aquele não passava de um menino estranho, de uns 10 anos de idade. O avô, então, confirmou, tranquilo: _Mas sou eu. Quer dizer, este fui eu, há muito tempo atrás. Este menino da fotografia não existe mais, apenas o velho que você conhece.

Antes que João dissesse qualquer coisa, ele mostrou uma fotografia atual: — Agora olhe esta.

— Esta é o senhor.

— Pois é. Este da foto sou eu mesmo. Por que aquele menino da foto antiga não pode ser?

— Porque este é igual, o outro nem se parece com o senhor. Parece de outro mundo!

— Mas este também não existe mais. Este aqui era eu há três anos atrás, quando tirei a fotografia. Este é passado, não existe mais.

— Não tô entendendo nada, Vô. O que isso tem a ver com a morte?

— Espera, vou te mostrar outra. Para entender a morte, assim, como para entender a vida, a gente tem que aprender aos poucos, certo?

— Certo.

— Está vendo? Quem é esta?

— Não sei. É uma mulher.

— Claro que é uma mulher. É minha mãe — confirmou entusiasmado.

— Sua mãe é bonita, Vô.

— Sim, muito bonita. Então veja, ela está aqui, representada nesta fotografia antiga, não está?

— Claro, Vô.

— Pois muito bem, mas minha mãe está morta. E sabe onde ela vive? Apenas na minha lembrança.

João aquietou-se, olhando embasbacado para os olhos brilhantes do avô. Teve a impressão de que havia uma lágrima brincando pelas pálpebras. Mas acha que foi só uma impressão.

– Pois a morte é assim, como uma fotografia antiga. A gente tem a imagem, a representação, mas a pessoa não está aqui. Aquele menino que você viu e riu, pensando que não era eu, não está aqui, assim como homem da fotografia de há três anos atrás e também a minha mãe. Nenhum dos três está aqui. Eu não sou mais aquele menino, nem tão pouco aquele homem um pouco mais jovem, que você afirma que sou eu, nem a minha mãe, porque morreu há muito tempo atrás.

Fez um silêncio e aproximou o rosto pintado na barba branca. João arregalou ainda mais os olhos grandes, ouvindo o que o avô tinha a dizer.

— Quando uma coisa vira passado e a gente não pode mais ficar perto, nem abraçar, nem conviver, isto é a morte. O que passou, já morreu.

E prosseguiu, com mais ênfase, concluindo a explicação: — Isso mesmo. O minuto atrás já morreu. Só não morre, quando a gente lembra, quando a gente não esquece. Por exemplo, esta mulher que um dia existiu e que era a minha mãe, sempre viverá na minha lembrança, bem aqui, ó – e apontando com o indicador para a cabeça, em seguida, para o coração – aqui, na minha mente e no meu coração. Você entende, João, as coisas só morrem definitivamente, se a gente deixar de pensar nelas.

— Mas Júlio morreu!

— Como a imagem da fotografia antiga, a qual você jamais poderá saber quem é, no futuro, se esquecer completamente. Por outro lado, você pode guardar no coração. Preservar é uma maneira de existir. Neste caso, não morre definitivamente.

O avô suspira, aliviado. Talvez com saudade. Depois, convida: — Quem sabe, vamos viver a vida, e você me conta uma história nova.

João, porém, fez outra pergunta: – Mas então, por que o senhor guarda as fotografias?

— Ah, porque recordar é viver de novo aquilo que já passou. Se foi uma coisa, boa, por que a gente não lembrar, não é mesmo? A vida ficou ali, escondidinha na fotografia e cada vez que a gente olha, lembra de outras histórias que aconteceram naquele tempo — e com os olhos brilhantes de emoção, conclui – e a gente vive tudo novamente.

— O senhor lembra de alguma?

— De muitas. Mas se você for bastante esperto, vai lembrar do seu amigo como uma fotografia antiga e vai lembrar de histórias que passaram juntos. Ou vai inventar uma.

João juntou as fotografias e guardou-as no envelope, como se tivesse alguma coisa nova na cabeça para por em prática. Pediu que o avô o esperasse, correu até seu quarto e trouxe o notebook, já com a página de um site aberto. Mostrou-a para o avô.

— Quem é esse?

— Júlio, meu amigo. Tava nessa rede social, viu? Um dia ele resolveu criar uma comunidade só dele. Deixou então este montão de fotos e juntou todos os amigos, até eu to aqui! Só que um dia o site saiu do ar e ele não pode mais incluir nenhum post.

— E o que ele fez?

— Um backup de tudo e entregou para o seu melhor amigo continuar a sua comunidade.

— E como se chamava a comunidade que ele criou?

— Vida. Mas aí, já é outra história.

O avô sorriu e ajeitou-se na poltrona, satisfeito. Parece que tinha uma outra história acontecendo. E nem era adaptada. Mas certamente, seria às avessas.

quinta-feira, agosto 04, 2022

A fronteira dos pensamentos

O que me pedes do alto de teus argumentos? O que exiges da fronteira de teus pensamentos dispersos e esparsos? O que defendes de um sistema de morte, de guerra, de armas e dor? O que permites em tuas condescendências mais simples? A quem desejas a vida e a paz? Quem merece teu brilho, tua alegria e tua contemplação? Por certo, os de tua classe, os que pensam como tu, os que zelam por teu pensamento único de família, propriedade e este deus ao qual veneras, quando vela apenas por teu grupo. Sei que há muito, excluíste os que pensam de modo diverso, sei que defendes a estranheza para amalgamar a homogeneidade de tuas ideias. Sei que o mundo pra ti é de uma cor apenas, um fastio de diversidade, de alegria e poder, que me dá preguiça.

Sei que enxergas os demais de acordo com a tua ótica semelhante, na qual apenas os que estão na tua bolha são os eleitos. Parece que teu deus os acomoda assim e os aparta dos maus. A bondade que revelas é útil apenas para locupletar os teus desejos de poder, de tradição e conservadorismo. Talvez, a evolução do mundo e das ideias não te interessa, porque temes balançar essa planície que está tão bem cimentada em tua perspectiva. E os demais, que fiquem se contorcendo nas escarpas dos precipícios, segurando-se para não se depararem com o fim, encontrando caminhos, refúgios que não permitam o acesso. E o ideal, que se destruam e desapareçam para sempre.

Mas o mundo não é assim. A natureza comporta as evoluções e o homem faz parte deste liame progressista que une anseios de vanguarda aos desafios da existência.

Torço que mudes, um dia, que não destruas o poder da natureza, que despertes para a vida mais ampla, mais plena e com mais diversidade. Torço que a ótica com que julgas, sirva para observares o outro lado da lente e assim, te vejas, tão diferente e estranho, quanto os demais. Quem sabe, quebres o paradigma e encontres o verdadeiro sentido universal, que pensas pregar.


Ilustração do texto: https://pixabay.com/pt/illustrations/pessoas-smilies-emoticons-máscaras-1602493/Café

sexta-feira, dezembro 01, 2017

A bolha

Quisera contar coisas felizes. Quisera imaginar uma cerca brilhante, arrebatada por uma luminosidade paralela que me permitisse ultrapassá-la sem os medos normais.

Quisera antecipar-me à dor e vencer a morte. Quisera saber viver, como os príncipes.

Quisera participar. Usar todos os verbos em todos os tempos para explicar o que já nem tem sentido. Ultrapassar a cerca, pular a dor, liberar o ódio, alavancar o amor. Deve ser possível, não neste momento.

Tomara que eu durma e acorde levitando, pois aí verei lá de cima, o mundo que deixei para atrás. Um mundo de intolerância, racismo, fascismo, ódio.

Um mundo onde grassa a ignorância de mãos dadas com o retrocesso.

Quem sabe desço e desmancho a bolha que ainda me impede de lutar?

quarta-feira, novembro 29, 2017

EMBLEMA DA MORTE EM VIDA

O conto a seguir,

Emblema da morte em vida
, foi publicado na Antologia Metamorfoses, como um desafio de se criar um diálogo intertextual com Kafka reescrevendo a frase inicial de sua novela Metamorfose "Quando certa manhã, Gregor Sansa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso". O meu conto está na páginas 53-57 da antologia, que está à venda no site da editora: www.editorametamorfose.com.br.

Quando certa manhã Lauro Sampaio acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num cadáver. Tinha consigo que a vida passava rasante ante seus olhos, mas não argumentava. Percebia as olheiras do médico de plantão e as enfermeiras que ciscavam em suas roupas disformes. Ouvia as vozes de raspão. Ora sumiam e um peso terrível abalroava suas pernas. Afinal, onde estava? No hospital? Sentia-se aprisionado em seu corpo, mas ouvia o que diziam.

Uma das enfermeiras enfiou-lhe um tubo na boca. Tudo parecia em diapasão extremo. Lauro tinha certeza de que o médico imputava a condenação definitiva. O filho, cabisbaixo, temia encará-lo. Voltou-se para a nora, ao seu lado, que transpirava certa náusea. Ela observou-lhe o rosto afinado, a boca torta, os olhos abertos para o nada. Recuaram e conversaram em segredo. O médico observava a cena, enquanto as enfermeiras acabavam o serviço e se afastavam.

Lauro tentava ouvi-los. Percebia os perfis ao longe. O médico expressava-se em parábolas. Quem sabe desenhasse o que restou dele? Lauro aguçou os ouvidos. Era tão bom quando somente ouvia o que queria. Um homem de bem, o mais esperto de sua geração. Elegante, ternos italianos e relógios suíços. A mulher o considerava um tanto brega. Onde estaria ela? Talvez fugindo da figura asquerosa em que se tornou. Mas ele sabia discernir quando o vento soprava a seu favor. Era um senador da República e sabia locupletar-se à custa dos idiotas que o cercavam. Agora, porém, nem conseguia contestar sobre a sua vida. O filho e a nora aqui, mas distantes. E sua mulher? Onde andaria? O que este filho da puta dizia que os deixava transtornados? Precisava ficar no hospital? Por que não faziam outros exames? Por que não conseguia se comunicar, embora os entendesse tão bem? Aneurisma, era isso?

Se tinha um aneurisma cerebral, como o médico vaticinara, estaria em coma. Não era um cadaver. Não ainda. Falava em seu futuro incerto, mas não havia mais futuro. Era só uma questão de tempo. Iriam nutri-lo, acionar seus movimentos vitais até que não houvesse mais reação. O medico afirmou que Lauro Sampaio não podia vê-los, nem ouvi-los, e que as suas reações eram apenas reflexos. Mas não era verdade!

Lauro podia ouvir tudo, podia vê-los, descrever cada ladrilho daquele quarto. Como chamar a atenção, como sinalizar que os vê, que os ouve, que os entende? E a mulher, onde andava que não o ajudava? Onde está sua mãe, Júnior? , pensava. Por que não se aproximavam? O que havia de tão repulsivo que os afastava? Temiam a morte? Temiam o cadáver que se deterioraria cheio de escaras? Por que não o examinavam novamente e descobriam que ele não estava em coma e podia ouvi-los? Era apenas um corpo aprisionado. Devia ser algum tipo de doença que permite ao paciente ver e ouvir.

Observava uma teia próxima à lâmpada. Um ponto preto ameaçado por outro na caça iminente. Como ele, um inseto atacado pelo aracnídeo fatal. Uma aranha nefasta que se disfarçava na negligência para prendê-lo em sua trama. Como fugir, se tudo conspirava para a prisão definitiva? Se o filho se conformava, e a nora o observava com repulsa, considerando-o um corpo falido.

As horas passaram, o filho e a nora se afastaram. No banho, subtraíam-lhe a dignidade com fraldas. Por que tinha que mijar e defecar sem perceber? A menos que a aranha gigante o tivesse caçado na teia que o envolvia, uma gosma que cospia em seus músculos e o mastigava com fúria determinada, a ponto de não saber mais o que era, se apenas um visgo que sujava o teto. Quem sabe, era isso: a morte o engoliu e ele, um espectro que se metamorfoseava para transitar livre para o outro lado. É disso que a nora tinha nojo. Um olhar sem vida, o pescoço esticado nos fios que sustentavam a teia, a gosma escorrendo pelos lábios e o crânio esmagado como um feto malformado. A morte era um regurgitar de humores putrificados e odores de comida junto a medicamentos e doença.

Tentava reagir. Bastava que alguém o visitasse. Quem sabe a mulher, Filipa, percebesse que não estava em coma, nem em estado terminal, e o salvasse. Afinal, já o protegera com uma conta na Suíça, em seu nome. Sim, ela poria aquele hospital de ponta-cabeça.

No dia seguinte, Filipa chegou com uma amiga e aproximou-se do leito de Lauro. Ele observou como estava bonita, usando o colar com que a presenteara no ano anterior. Ela, entretanto, afastou os olhos, assustada. Enojada. Voltou-se para a amiga e segredou: “não passa dessa noite”. Esta concordou, condoída. Filipa comentou, aliviada, que o caso com Jorginho ia ficar na surdina. “Jorginho? Que merda é essa?”, pensou Lauro. A amiga concordou, embora achasse deprimente o estado do senador. “Não se esqueça que ele é um sacana”, retrucou Filipa.

Lauro se desesperou. Queria fazer um sinal, unzinho que fosse pra chamar a atenção daquelas vagabundas, que saíam do quarto.

Com o passar do tempo, viu que suas chances reduziam. Morreria dali a alguns dias, perfurado por sondas, coberto de escaras e o pior, ouvindo o que falavam dele. A vida desandava, como se os telões do Senado anunciassem os votos de sua cassação. A mosca que pululava na merda de todos agora era presa fácil da aranha traiçoeira. Era um ser grotesco que resistia aos estertores da agonia, o emblema da morte em vida. Nem Dora, a ex-mulher que surgia na porta, podia ajudá-lo. Muito menos ela, uma mulher de poucos atributos físicos e que se informava com As Seleções. Não, ela derramaria lágrimas nojentas sobre a sua cara. Não precisava de seu espírito solidário.

Dora, porém, o observava atentamente. Por que o chamava de coitadinho? Por que acariciava a sua testa e pousava delicada os dedos em sua boca? Pelo menos, esta doença maldita também aboliu o tato!

Os pensamentos de Lauro se dispersavam rápidos, pois Dora alertava a enfermeira: “moça, ele mexeu a pupila”.

– Impressão sua. O senador está morrendo com uma hemorragia no cérebro. Também, dizem que abusava da cocaína. Queria morrer, não é?

“O que esta vagabunda sabe da minha vida!”, Lauro gritava em pensamentos, Dora tem razão, se eu movi a pupila, é porque tenho chances – é outra doença, meu Deus, essa gente não se convenceu ainda?

– Moça, depois que soube do Lauro, eu li na Seleções sobre uma doença que paralisa os músculos e a pessoa não se mexe.

– Hum?

– Uma tal de Síndrome do Encarceramento, uma doença rara, com paralisação dos músculos do corpo, menos dos que movimentam os olhos e as pálpebras. Temos que fazer alguma coisa!

Lauro explodiu de alegria. Dora e sua cultura das Seleções: de quem menos imaginava, surgia uma esperança.

A enfermeira permaneceu irredutível: minha amiga, se é rara, pode esquecer. Esse cara tá no fim, parece que já morreu faz tempo, só vai dar trabalho pra família. E tem outra, era bem sacana no Senado. Nem sei se deve viver.

Dora acenou a cabeça, desconsolada.

A outra ainda perguntou: “o que a senhora é dele?”.

Anti-heróis: contos/ organizado por William Moreno Boenavides. - Porto Alegre. - Porto Alegre: Metamorfose, 2017.

sexta-feira, julho 14, 2017

Uma saída para o nunca

Todos corríamos pela sala, excitados. Ríamos sem sabermos bem o motivo, talvez impulsionado pela adrenalina de sermos felizes.

Quando a professora chegou, o burburinho custou a desfazer-se, até que nossas almas se acomodassem nos corpos agitados.

Ela parecia mais severa do que de costume, mas de uma seriedade estranha, como se alguma coisa terrível houvesse acontecido. Os cabelos escondidos atrás de um lenço colorido, preso ao pescoço. Os óculos pesados e embaçados, um certo vermelho nos olhos parecendo conjuntivite.

Mas não demos muita importância. Estávamos demasiadamente felizes para nos preocuparmos com a fisionomia de Dona Glória.

Ela permaneceu parada num canto da sala, talvez esperando o momento adquado para dar a notícia.

Mas que notícia seria tão importante a ponto de nos fazer cúmplices de sua angústia.

Alguém gritou do fundo da aula, quase em desafio, perguntando se não teríamos aula, ao que ela, talvez aproveitando a brecha, rapidamente, respondeu que ele estava certo. Confirmou que não haveria aula porque Dona Agripina, a benemérita e devotada às causas nobres da comunidade, havia morrido.

Na verdade, nem a conhecíamos muito bem. Ouvíamos falar dela, sem qualquer deferência que a qualificasse perante a outras pessoas consideradas importantes pela paróquia.

Estudar naquela escola religiosa era participar ativamente da comunidade, mas não para nós, encantados que estávamos com a vida que se desenrolava dentro de nossa imaginação, sem refletir o que significavam todos os demais acontecimentos que não se coadunavam com nossos objetivos ligados ao nosso prazer.

A turma silenciou, colaborando ingenuamente com a professora.

Aí se sucedeu uma etapa nova, principalmente em minha vida.

Organizou-se uma fila e nos dirigimos à igreja, que ficava ao lado do pátio da escola.

Já o silêncio dera lugar aos rumores, cada um falando o que lhe vinha à mente, que lhe aprouvesse, tentando atrasar ao máximo os pensamentos tristes.

Eu estava acabrunhado. Mexia no cabelo rebelde, que me caía aos olhos. Fungava e vez que outra, dava uns espirros que me arrepiavam os pelos ralos dos braços.

A professora pedia silêncio, compungida.

Entramos na igreja e ficamos meio esparsos, entre as pessoas, certamente parentes e outros amigos, que se acotovelavam na fila, entrando rápidos, querendo avistar o que eu insistia em não ver.

Fiquei quieto, entre os colegas, que conversavam, aproveitando a balbúrdia da entrada.

Dona Glória insistiu no silêncio, desta vez irritada.

Todos silenciavam, mas por pouco tempo.

Logo voltavam às conversas ordinárias, preocupados em que estavam com o que fariam após saírem da missa, como o filme da TV, o jogo de futebol na pracinha ou as corridas de bicicleta.

Para mim, não havia estas preocupações, pois tudo se nublava ante meus olhos, que somente os levantava por absoluta curiosidade.

E só avistava os pés de Dona Agripina, sapatos que brilhavam, voltados para a saída da igreja, dividindo o corredor.

A missa parecia interminável e eu não conseguia afastar o olhar daqueles sapatos bem lustrados, enfeitados por rendas, sinalizando a saída que parecia longa demais, quase eterna. Pés que ficavam na minha memória, que se alternavam em meus pensamentos angustiados, que abrangiam um sentimento mais profundo, envoltos que estavam em aflição e medo.

Não entendia muito bem o que acontecia comigo, mas aqueles símbolos mexiam com minha estabilidade emocional.

A tampa do caixão, encostada na parede, com uma cruz dourada em alto relevo, as mulheres de preto fazendo coros de choro intermitente, o cheiro das velas, os paramentos fúnebres, as frases diferentes do ritual, onde se falava constantemente em descanso eterno.

E os pés de Dona Agripina, que apontavam inertes, fortes, mensageiros de uma saída para o nunca, um lugar que eu teimava em desconhecer.

Acho que naquele dia, eu tive a consciência da morte.

O dia que se exibia ensolarado lá fora, lançando rastros de luzes pelos vitrais coloridos, me parecia nublado e triste.

O jogo com os amigos, o passeio de bicicleta, a chegada em casa, numa rotina que agora perdera subitamente a graça, era um presságio de que as coisas mudaram e que eu, aos sete anos, acordara para a vida.

Ou para a morte.

Os pés de Dona Agripina foram os culpados.

terça-feira, novembro 29, 2016

A fotografia da vida de Santa -CAP. 24

NESTA TERÇA-FEIRA 29 DE NOVEMBRO, PROSSEGUE O NOSSO FOLHETIM DRAMÁTICO, AGORA COM O CAPÍTULO 24.

Capítulo 24

Santa estava muito nervosa com o sofrimento de Linda. Afinal, o sobrinho havia sido assassinado. De repente, as situações revelavam um caminho bem diferente do que Santa tinha imaginado. Ela agora, arrependia-se por ter pedido ao rapaz que descobrisse o que Linda estava tramando contra ela em conluio com o próprio marido. Precisava provar aos filhos que o seu objetivo era torná-la uma incapaz. Mas não era essse o caminho que queria para a família, ao contrário, queria o bem para todos. Por que tudo desandara dessa maneira? Até ela se envolveu nessa intriga. Por que não foi clara com Sandoval, com os filhos, por que não abriu o jogo. Isso tudo a deixava mortificada. Não era o que a Virgem lhe indicara, ao contrário, afastava-se cada vez mais dos objetivos de união e credenciamento de novos rumos para a família.

Estava assim, perdida em seus pensamentos, quando Sandoval entrou na sala. Observou que ele estava com um ar cansado, como se não tivesse dormindo toda a noite. Por um momento, lembrou das jogatinas, das festas longe de casa, mas poderia ser outro motivo. Quem sabe, ele também não estava triste pela morte do jardineiro.

Ele aproximou-se e sentou-se ao seu lado. Santa pensou em falar tudo que estava pensando. Naquele instante, sentiu uma certa ternura pelo marido, uma coisa antiga, que já não sentia há muito tempo. Entretanto, reprimiu o sentimento. Sandoval não lhe despertava confiança, como antes.

Ele a olhou amargurado e perguntou:

– O que está acontecendo nesta casa Santa? O que está acontecendo com nossa família?

– É isso que me pergunto Sandoval, a todo momento. Mas você estava tão bem, afinado com a família, fazendo uma reunião sem a minha presença. Parece que tudo está nos conformes, não?

– Não diga isso, Santa. E por favor, não vamos brigar, eu preciso conversar com você, com calma.

– Eu sei, eu também estou muito aflita com tudo que está acontecendo. A morte desse rapaz…

– E você sabe que Alfredo foi chamado para depor?

– Alfredo? O que você está dizendo, Sandoval? Por que meu filho teria que depor sobre a morte de Fernando?

– Não sei. Só sei que as câmeras da rua registraram o carro dele ou um vizinho chamou a polícia, coisa assim.

– Mas o que Alfredo estava fazendo lá?

– Ele encontrou o rapaz morto. E tem mais, depois chegaram Letícia e Tavinho. Por enquanto, a polícia não os chamou, mas não vai demorar muito, porque as câmeras pegaram a imagem de outro carro, certamente o deles.

– E como você sabe de tudo isso?

– Acabei de chegar do escritor de Letícia, ela está muito nervosa. Daqui a pouco, tenho certeza, vão começar os interrogatórios.

Santa não consegue conter as lágrimas.

– Meu Deus, como pode chegar a esse ponto. Não era isso que eu queria que acontecesse para a nossa família.

– Sinto muito lhe dizer isso, Santa, mas você foi a culpada. Foi você que veio com esta história de dividir o nosso patrimônio com aquela gentalha da ilha isolada, e esse desejo de modificar as nossas vidas. você começou com essa loucura!

– E o que isso tem a ver com o pedido de Nossa Senhora?

– Letícia me contou, que foi pedir ajuda ao rapaz. Ela e Tavinho estavam desesperados, porque você os instruiu contra mim. Mas você sabe, Letícia é estômago frio e acabou me contando tudo.

– Eu pedi que eles descobrissem o que você está tramando contra mim. Você induziu a família a pensarem que estou louca!

– E isso não é uma loucura? Acabar com o patrimônio da nossa família, dar dinheiro para essa gente, se misturar com eles, sei lá que insanidade você está planejando.

– Cale a boca, Sandoval! Cale a boca! Porque você ia muito mais longe, você queria me deixar uma incapaz, uma mulher que não pode decidir nada. Não pense que sou uma idiota, eu sei de tudo.

Sandoval tenta acalmar-se. Sabe que precisa de tempo para convencer a mulher e muito mais do que tempo, paciência. Talvez seja necessário mostrar-se arrependido do que fizera e até pedir-lhe perdão. Santa prossegue, indignada. Decidiu dizer tudo o que sabe, às claras, chega de mentiras, de meias-palavras. Chegou o momento da verdade.

– Eu sei que você fez um acordo com Linda.

– Como assim, de onde você tirou essa bobagem?

– Eu percebi quando ela começou a me tratar como se eu fosse uma demente, que esquecesse o passado, que esquecesse por exemplo que não tem um filho com você. Ela queria me fazer acreditar que eu estava fantasiando e me trazia chás com calmantes, eu tenho certeza disso. Um dia escondi os comprimidos e mostrei-os ao doutor Oliveira. Ela não deve estar fazendo isso sozinha, Sandoval. Você está nisso.Não tente me enganar, pelo amor de Deus.

Sandoval percebe que precisa fazer da mulher uma aliada. Então, decide contar-lhe toda a verdade. Levanta-se, fecha a porta da sala e volta a sentar ao seu lado. Fala em tom mais baixo.

– Santa, você tem razão. Eu vou contar-lhe toda a verdade.

– Eu sabia que você seram cúmplices!

– Mas agora, você precisa me ouvir, com calma. Temos que nos unir contra esta mulher, principalmente agora, que ela está fragilizada. Precisamos agir de uma maneira, que ela fique encrencada com a polícia e vá embora desta casa!

– Mas o que vocês estavam tramando contra mim?

– Começou com você, quando a mandou gravar a nossa reunião.

– E o que você queria que eu fizesse. Uma reunião que não teria a minha presença. Você acha justo isso?

– Santa, agora não é mais momento de pensarmos se é justo ou não. O fato é que ela gravou, mandou a gravação por mensagem para alguém para se assegurar que eu não tiraria dela a tal prova.

– A prova de que você convenceria os meus filhos a me considerarem louca.

– Não fale nestes termos.

– Mas é verdade. Não foi isso que foi tratado naquela reunião?

– Sim, foi, mas olhe. Vou ser sincero com você Santa, todos acabaram concordando comigo. Os nossos filhos pensaram bem e viram que eu tinha razão.

Santa emudece. Uma lágrima corre rápida dos olhos. Sente-se desolada. Os filhos concordaram que ela não deveria decidir sobre mais nada em sua vida.

– Sinto muito Santa, mas não posso omitir nada de você. Bem, quero falar de Linda. Ela fez uma chantagem comigo, disse que mostraria a gravação para você se eu não fizesse o que ela queria.

– Ela quer o quê? Acabar comigo?

– De certo modo, sim. Ela quer que eu assuma o nosso filho, que lhe dê o meu nome, que divida a fortuna com ele também. Ela quer ser a dona desta casa!

– Então quer me matar realmente.

– Não, o combinado era deixar você cada vez mais incapaz. Ela sugeriu isso, até você não ser mais nada nesta casa, até… bem quem sabe, se afastar daqui, de uma vez por todas.

– E você concordou com isso?

– Claro que não, eu fiquei louco, mas acabei concordando, pedi um tempo de 6 meses para poder por em prática o plano, até conseguir fazer o que ela queria.

– Até me enlouquecerem! Você é tão cruel quanto ela! Você é um criminoso, Sandoval!

– Mas eu não faria isso.

– Seja sincero. Você deixaria que ela tomasse as rédeas, como tentou fazer e me enlouquecer, me deixar tão fraca que acabaria pensando que estava louca realmente.

Sandoval não responde e Santa percebe que está em plena solidão, naquele vendaval de mentiras e planos criminosos.

– Seu miserável! Você é tão indigno quanto ela! Eu o odeio! E odeio aquela mulher!

– Santa, Santa, por favor, eu mudei de ideia, você está vendo. Eu não quero mais fazer isso, precisamos acabar com esta mulher, mandá-la embora. Por isso estou aqui, com você, ao seu lado.

– Nunca mais você estará ao meu lado, como não está agora Sandoval. Você está no seu lado. Você está com medo desta mulher, porque apesar de tanta covardia e sujeira, você nào queria que tudo viesse à tona, que nossos filhos soubessem e principalmente, você não quer dar nada a ela. Pois eu lhe digo, só há uma solução: você legalizar a situação do seu filho, dar-lhe algum dinheiro e a mandar embora. Você não precisa casar com Linda para fazer isso, então não se preocupe tanto com a situação.

– Mas você acha justo? E se este rapaz não for meu filho realmente?

– Faça o DNA. Vá para a justiça. Ela existe para isso.

– E quanto ao sobrinho? Ela tinha algum plano contra nós através dele?

– Sim, naquele dia em que um homem apareceu em nossa casa e deu um susto em você, foi tudo arranjado por ela. Era o tal sobrinho, que se fez de estranho para assustar todo mundo.

– Mas e o bilhete do bispo Martin?

– Linda o tinha pego no dia da reunião o e deu para ele, para parecer mais real.

– Então esta mulher é muito perigosa.

– Sim, por isso, precisamos nos unir, Santa.

– Eu já lhe disse o que fazer. Faça a coisa legal. Quanto a ela, não temos provas de que esteja tramando coisas contra nós, contra mim, principalmente. Não podemos chamar a polícia. Mas o que interessa agora é quanto aos nossos filhos, que parecem implicados com este crime. Afinal, por que mataram o rapaz? Você sabe alguma coisa Sandoval?

sexta-feira, julho 15, 2016

MORTE LENTA

Cai a noite. Por certo, os meteorologistas se preparam para as últimas informações sobre o clima. Nada do que palmilhar os mapas da mente e descobrir o clima interior, este tão próprio, tão intimo, tão vulnerável.

Pudera seguir o caleidoscópio da paixão. Sentir o calor que se abrasa em meu ser frágil.

Pudera ver as novas vertentes das cores que se abrem, misturadas às múltiplas facetas do mundo que se explora.

Mas está frio aqui dentro. Lá fora também.

A noite é intolerável.

A noite é uma mulher má, austera, fria. Sem consolo. Nem lágrimas derretem seu coração. Meu coração, certamente se derrete mais no gelo do que no calor.

Mais um dia, ou melhor, uma noite, em que me coração ficará sozinho, disforme no sofá rasgado da sala.

Por que não tenho um gato para se aninhar nos meus pés e aquecer meus tornozelos? Um gato submisso, quedme espia atrás da poltrona, enlaça seu rabo de leve no pé da mesa e passeia pela sala ao meu encontro.

Não, não tenho gato. Não gosto de gatos, nem de crianças, nem de cachorros.

Mas que faria um cachorro aqui, numa noite vazia a não ser ganir de frio ou de fome e solicitar a noite inteira o meu carinho?

Eu é que preciso de cuidado, de carinho, de atenção.

Pudera sair pela noite fria, pisar meus pés no sereno quase geada e afundar na lama das enxurradas. Ali, não teria mesmo ninguém para me aquecer. Talvez os marginais das esquinas ou os mendigos que se aquecem com chamas de papel queimado.

Quisera atravessar as praças escuras, palmilhar com cuidado os degraus da catedral e me sentar ao relento, esperando que a noite passasse e que o dia despejasse os frágeis raios de inverno. Por que o inverno é tão duro, tão inóspito para pessoas sozinhas como eu? Por que não fico me aquecendo ao pé da lareira ou mesmo no aquecedor barato que vez que outra se desliga da tomada, produzindo pequenas faíscas, anunciando o excesso de energia. Energia que não tenho, que não se acumula num corpo que se aniquila.

Cai a noite. Cai devagar, lenta, preguiçosa. Mas ela sabe o quanto dura: uma eternidade. Ela sabe que o espaço que ocupa foge das zonas geográficas da cidade, e se limita ao meu peito, aos meus braços quase inertes, às minhas pernas magras, ao meu coração estático.

Pudera fugir da noite e avançar dia após dia, sem esperar que a noite venha. É a pior espera. Um solitário como eu não pode se dar ao luxo de esperar a noite. Ela é fria, é cruel. E traz consigo sombras que subjazem nas calçadas, nos viadutos, sob as marquises.

Quem sabe, hoje, o sangue flua generoso de minha boca, num só golpe, num único esforço e jorre pela casa toda, pela calçada, pelos túneis e eu definha como um vampiro faminto. Será a morte lenta de quem não tem um sol para se recompor.

quinta-feira, junho 23, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 8º CAPÍTULO

CAPÍTULO 8


Depois desta conversa com Jairo, os dois se separaram e Júlio voltou para o hotel. Na portaria, deparou-se com outra pessoa. Certamente, não era o turno de Rosa.

No quarto, tomou um banho longo, vestiu um pijama e deitou-se um pouco. Adormecera talvez por meia hora ou mais. Estava com fome, aquela cachaça o deixara faminto. Ligou para a recepção, perguntando se serviam jantar. Não era hábito do hotel, até porque era um estabelecimento de pequeno porte, mas adiantariam o lanche da manhã para ele, com alguns ovos fritos e talvez, até acrescentassem um copo de vinho.

No restaurante do hotel, apenas algumas luzes foram acesas, iluminando principalmente a mesa onde Júlio se encontrava. Tomara o restante do vinho e observara a rua pela vidraça. Era uma avenida estreita, com pouquíssimas residências. Sabia que a alguns quilômetros apenas ficava o rio que dividia a cidade, mas cuja região mais desolada ficava após a ponte. Talvez meia hora dali. Recordou a sua infância, a vida pacata na pequena cidade, os pais trabalhadores rurais que com dificuldade lhe possibilitaram estudar e afastar-se em definitivo para a capital. Pouco os viu desde que saiu da região até que faleceram e desde então, nunca mais havia voltado.

Agora, entretanto, sentia falta dessa simplicidade em encarar os fatos de maneira tão objetiva e ao mesmo tempo estranha do povo da região. Praticamente todos se conheciam, falavam de tudo e de todos e um acontecimento trágico mexia com a comunidade. Talvez por isso, seu amigo Jairo e o próprio dono do bar estivessem tão envolvidos com o assunto do assassinato ou suicídio da filha do farmacêutico. Era razoável.

Estava tão entretido em seus pensamentos que nem percebera o garçom ao seu lado, perguntando se precisava de alguma coisa. Logo avisava que fechariam o restaurante para se preparem para o outro dia. Júlio percebera que devia retirar-se e se afastou, cumprimentando o rapaz e dirigindo-se ao elevador, porém foi obrigado a voltar, informado de que alguém o esperava no saguão. Surpreso, perguntou de quem se tratava. Seria o seu amigo Jairo? O garçom mostrava-se nervoso ao dizer a Júlio quem queria falar-lhe naquele momento. Júlio o olhava, intrigado. O outro, completou:

— Não, não é seu amigo Jairo, senhor, que quer falar-lhe. Trata-se de Golias. Desculpe, é como todo mundo chama o farmacêutico da cidade.

Farmacêutico? Então o pai da moça assassinada queria falar com ele. Mas não teria nada o que conversar. O que poderia querer… -– Nisso, o homem a quem o garçom se referia, irrompe na sala e dirige-se a Júlio revelando intensa ansiedade. – Por favor, preciso falar-lhe. Preciso da sua ajuda.

Júlio pensou em seguida que não poderia ajudá-lo em nada, mas ficou quieto. O homem insistiu:

– Sei que o senhor já morou nesta cidade, meu pai que era enfermeiro, conhecia muito bem a sua família. Se não se importa, eu gostaria de falar-lhe.

Como não tinha como recusar, Júlio pediu que o acompanhasse até o quarto.

Júlio abriu a porta com dificuldade. Sua mão tremia, mas não estava temeroso com a presença do homem. Já enfrentara centenas de casos difíceis, homens traídos, políticos presos em falcatruas, mulheres que investigavam a vida de maridos no auge do ódio doentio, mas estava especialmente confuso com aquela presença. Talvez não estivesse preparado para a visita, queria descansar, aproveitar a aposentadoria, escrever o seu livro, rever os poucos amigos da cidade, encontrar o ritmo há tanto esquecido daquele povo. Contudo, aquele homem parecia disposto a falar-lhe uma coisa muito importante. O que pretendia contar-lhe?

Ao entrar, ofereceu-lhe a poltrona próxima à cama. Sentou-se numa pequena cadeira ao lado da cômoda, em seguida.

—Então, o senhor queria falar comigo?

—Peço desculpas pelo adiantado da hora, aqui na cidade, a gente costuma dormir antes das dez.

– Quanto a isso, não se preocupe. Eu durmo muito tarde.

—Bem, o meu nome é Lucas, como o rapaz do hotel disse, sou o farmacêutico da cidade.

— Sim?

—Pois é. Por ironia, me chamam de Golias, veja você, com a minha baixa estatura, isso é até uma piada, além de ser bastante franzino.

Júlio fez uma pausa, como se medisse as palavras. Por fim, disparou:

– Mas o senhor não veio me procurar para me falar sobre a sua estatura, não?

O homem levantou-se, enquanto falava.

– Não, claro que não! – E se dirigiu a janela que dava para a frente do hotel. Olhava para baixo, um ar desolado. Os olhos miúdos, algumas rugas permanentes e as olheiras davam um ar de desamparo, como se houvesse passado muitas horas sem dormir, nem se alimentar.

Júlio ficou observando-o, na espera de que falasse alguma coisa. Penalizou-se com a figura que devia ser um resquício do homem que era, tão desconsolado e triste parecia. Não lhe saía da cabeça a tragédia da filha.

Neste momento, ele voltou da janela e correu ao seu encontro, quase gritando.

– Preciso da sua ajuda, Sr. Júlio, preciso da sua ajuda!

Júlio também levantou-se e tentou conduzi-lo à poltrona.

— Por favor, se acalme. Seja o que for que precisa de mim, tem que me contar com calma. Não se desespere.

O homem começou a chorar convulsivamente. Segurava a cabeça, em prantos. Júlio não interveio e esperou que se acalmasse.

Aos poucos, o homem se recompôs, respirando fundo, olhando para o nada.

—Quer beber alguma coisa?

— Tem um copo d’água?

Júlio entregou a água e voltou a sentar-se, desta vez, na própria cama.

—Desculpe o meu desabafo. Eu não poderia ter feito isso, foi um constrangimento enorme pra mim, mas estou muito nervoso, entende?

— Não se preocupe com isso, eu entendo que esteja passando por momentos difíceis.

—É sobre isso que vim lhe falar. O senhor sabe do assassinato de minha filha.

—Foi a primeira coisa que soube quando cheguei. Estava no bar conversando com um amigo meu e ele contou-me o ocorrido.

— Sim, Jairo, foi ele que me convenceu a falar com o senhor! Júlio irritou-se com o amigo. Como ele foi capaz de dar aquela sugestão infeliz ao homem. Agora compreendera, porque ele lhe contara a história com uma riqueza de detalhes, já estava com o objetivo formalizado.

—Bem, sei que é detetive, e que pode me ajudar.

— Eu sou aposentado.

—Melhor assim, tem mais experiência. Por favor, eu lhe suplico. A minha filha foi assassinada por aquele miserável, aquele médico maldito que veio só pra destruir a nossa família, a nossa vida! Um homem da cidade, cheio de salamaleques, cheio de bossa, minha filha se encantou e deu no que deu! Ela se apaixonou por ele, acabou fazendo o que não devia. Ele até prometeu casar com ela, ela acreditava nisso! Mas ele tinha outra na cidade, na capital. Ele tinha noiva ou namorada, não sei, só que estava decidido a acabar com tudo. Como ela insistiu, como disse que estava grávida e contaria para a noiva dele, ele acabou matando-a! Ele matou a minha filha!

O homem falou tudo de um supetão. Não havia como interromper, nem argumentar. Finalmente, quando conseguiu, Júlio perguntou:

– Mas me diga uma coisa, essa história de gravidez, eu não sabia. E depois, pelo que saiba eles se conheceram há pouco menos de um mês.

— Ela teve a triste ideia de inventar esta bobagem e o pior é que ele acreditou. Deu no que deu!

—Então este médico é um idiota, convenhamos! Não seria mais fácil ele abrir o jogo, dizer que não casaria, e depois contaria para a noiva, se fosse o caso? Afinal, nos dias de hoje, uma gravidez não é garantia de nenhum casamento. E depois, se era mentira…

— O problema todo é que a tal moça da cidade, a namorada é filha de um grande empresário no ramo hospitalar. Isto significa o futuro dele, entende? Por isso a matou, eu não tenho dúvidas!

— Após contar-lhe toda a história e descrever posteriormente em detalhes o que julgava o encontro do médico com a filha, ele perguntou se Júlio aceitava o caso.

Júlio experimentou uma certa euforia que costumava sentir em frente a um caso novo, quando estava na ativa. Por um momento, sentiu-se mais vivo do que nunca e muito produtivo. A biografia, o livro que ficasse para trás. Entretanto, havia um porém.

— Espere, Lucas, eu vim para cá com um objetivo. Na verdade, uma mulher chamada Sara quer falar comigo, quer me contratar para alguma coisa. Eu preciso saber antes do que se trata, entende? E depois, pode haver outra possibilidade em relação ao caso de sua filha.

—Como assim?

— Não lhe garanto, mas dependendo da situação, talvez eu aceite o seu caso, mas isso não quer dizer que você terá uma resposta satisfatória. Eu posso encontrar outro assassino, ou talvez, provar que foi apenas um suicídio.

—Isso não acontecerá, porque eu tenho certeza de que aquele canalha a matou! Você então aceita o caso?

Quando o homem retirou-se, Júlio elaborou um esquema dos procedimentos que teria a partir daquele dia. Não estava certo de que pegaria o caso, mas e se os outros crimes estivessem relacionados? E se Sara o havia chamado exatamente para falar sobre isso? Um dos primeiros passos, seria o que deveria ter feito desde o primeiro momento em que pisara na cidade, falar com a mulher que o chamara. Foi isso o que planejou para o dia seguinte.

domingo, outubro 11, 2015

A MENSAGEM

Camilo tinha esta desagradável mania de não gostar do que tinha ou do que havia para fazer. Se levava merenda de casa, para a escola, preferia a comprada, de preferência a dos amigos. Se havia futebol, preferia jogar dama, num canto do pátio e para isso, incitava um de nós a ficar com ele, possessivo que era, fingindo sempre precisar de um amigo. Caso tivéssemos educação física, a malfadada ginástica, dava um jeito de investirmos num futebol de salão, convencendo o professor, seja em que pé estivessem os seus humores.

Mas ele era assim, alegre, persuasivo, companheiro. Gostávamos de andar juntos, dar boas risadas de tudo e de todos, imaginar a professora assustada, puxando a saia godê, ao passar na esquina, fugindo do vento insolente que insistia em desafiar a sua paciência. E agradar nossa fantasia.

Tínhamos prazer em assistir o filme que a escola proporcionava nos finais de semana, especialmente, nos domingos, como continuidade da educação religiosa, obrigando-nos desta forma a participar da missa.

Camilo, entretanto, além de extrovertido e alegre, era um pouco cínico. Ele sabia como agradar aos padres, às professoras, ao diretor da escola. Tinha um jeito especial de se comunicar e deixar tudo tranquilo, leve e solto para o seu lado. Eu, ao contrário, gostava das coisas todas no lugar, muito bem esclarecidas, apesar de que fazia das minhas, sem me importar contudo em agradar a ninguém. Temia ser descoberto, pego em flagrante, como nas diversas vezes em que fugíamos na hora do recreio, pelo simples prazer de fazermos um lanche num bar, fora da escola. Apenas comer um queque e tomarmos refrigerante. Voltar depois, sorrateiramente, coração assaltado, boca seca, passarmos pelo porteiro, escondidos sob a portinhola que separava o balcão de entrada e que conduzia ao pátio, para entrar na sala de aula, como se nada houvesse acontecido.

Na verdade, o porteiro fazia vistas grossas para nossas escapulidas, mas esta condição amistosa jamais nos vinha à tona, felizes que estávamos em nossa arrogância de enganar os superiores. Nada restituía nossa liberdade, nada a interrompia nem desempenhava qualquer atenuante para nossa felicidade, que nos enchia os corações e disso nem nos dávamos conta.

Nunca me deparara com o lado triste da vida. Nossa infância era povoada de sonhos e certezas absolutas, que nos deixavam tão cansados que nada víamos, à noite, a não ser dormir para acordar no dia seguinte e recomeçar tudo de novo. Novas risadas, novas estripulias, novas escapadelas, novos confrontos com o porteiro, novas explicações. E finalmente a saída triunfante de quem vence todo e qualquer obstáculo.

Mas naquele dia, nada disso aconteceu. A não ser uma mensagem em casa, um outro colega anunciando uma tragédia, uma coisa triste, palavra que não havia em nosso vocabulário. A morte chegara, assim de improviso, sem pedir licença ou antecipar a sua vinda com um presságio qualquer. Viera exclusivamente para Camilo, dotado de uma doença qualquer que levara consigo a alegria que sentíamos e da qual eu não dispunha de meios para me afastar. Por isso, olhei para o colega, elucidei como pude a mensagem, irritei-me com a riqueza de detalhes, bordados de curiosidade e desliguei a cena. Não fui ao enterro. Não vi Camilo pela última vez. Acovardei-me. Pelo menos, de Dona Agripina, eu vi os pés no meio do corredor da igreja, na missa de corpo presente. Foi a minha primeira e tênue visão da morte. Mas de Camilo, guardei o jeito alegre de se portar, de sorrir, de fingir-se solícito e brilhante, de ser o que era e o que queria ser. Não foi desta vez que enfrentei a morte. Deixei-a passar, covarde, sentido, dizendo para mim mesmo que tudo continuava como antes.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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