O conto a seguir,
Emblema da morte em vida, foi publicado na Antologia Metamorfoses, como um desafio de se criar um diálogo intertextual com Kafka reescrevendo a frase inicial de sua novela Metamorfose "Quando certa manhã, Gregor Sansa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso". O meu conto está na páginas 53-57 da antologia, que está à venda no site da editora: www.editorametamorfose.com.br.
Quando certa manhã Lauro Sampaio acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num cadáver. Tinha consigo que a vida passava rasante ante seus olhos, mas não argumentava. Percebia as olheiras do médico de plantão e as enfermeiras que ciscavam em suas roupas disformes. Ouvia as vozes de raspão. Ora sumiam e um peso terrível abalroava suas pernas. Afinal, onde estava? No hospital? Sentia-se aprisionado em seu corpo, mas ouvia o que diziam.
Uma das enfermeiras enfiou-lhe um tubo na boca. Tudo parecia em diapasão extremo. Lauro tinha certeza de que o médico imputava a condenação definitiva. O filho, cabisbaixo, temia encará-lo. Voltou-se para a nora, ao seu lado, que transpirava certa náusea. Ela observou-lhe o rosto afinado, a boca torta, os olhos abertos para o nada. Recuaram e conversaram em segredo. O médico observava a cena, enquanto as enfermeiras acabavam o serviço e se afastavam.
Lauro tentava ouvi-los. Percebia os perfis ao longe. O médico expressava-se em parábolas. Quem sabe desenhasse o que restou dele? Lauro aguçou os ouvidos. Era tão bom quando somente ouvia o que queria. Um homem de bem, o mais esperto de sua geração. Elegante, ternos italianos e relógios suíços. A mulher o considerava um tanto brega. Onde estaria ela? Talvez fugindo da figura asquerosa em que se tornou. Mas ele sabia discernir quando o vento soprava a seu favor. Era um senador da República e sabia locupletar-se à custa dos idiotas que o cercavam. Agora, porém, nem conseguia contestar sobre a sua vida. O filho e a nora aqui, mas distantes. E sua mulher? Onde andaria? O que este filho da puta dizia que os deixava transtornados? Precisava ficar no hospital? Por que não faziam outros exames? Por que não conseguia se comunicar, embora os entendesse tão bem? Aneurisma, era isso?
Se tinha um aneurisma cerebral, como o médico vaticinara, estaria em coma. Não era um cadaver. Não ainda. Falava em seu futuro incerto, mas não havia mais futuro. Era só uma questão de tempo. Iriam nutri-lo, acionar seus movimentos vitais até que não houvesse mais reação. O medico afirmou que Lauro Sampaio não podia vê-los, nem ouvi-los, e que as suas reações eram apenas reflexos. Mas não era verdade!
Lauro podia ouvir tudo, podia vê-los, descrever cada ladrilho daquele quarto. Como chamar a atenção, como sinalizar que os vê, que os ouve, que os entende? E a mulher, onde andava que não o ajudava? Onde está sua mãe, Júnior? , pensava. Por que não se aproximavam? O que havia de tão repulsivo que os afastava? Temiam a morte? Temiam o cadáver que se deterioraria cheio de escaras? Por que não o examinavam novamente e descobriam que ele não estava em coma e podia ouvi-los? Era apenas um corpo aprisionado. Devia ser algum tipo de doença que permite ao paciente ver e ouvir.
Observava uma teia próxima à lâmpada. Um ponto preto ameaçado por outro na caça iminente. Como ele, um inseto atacado pelo aracnídeo fatal. Uma aranha nefasta que se disfarçava na negligência para prendê-lo em sua trama. Como fugir, se tudo conspirava para a prisão definitiva? Se o filho se conformava, e a nora o observava com repulsa, considerando-o um corpo falido.
As horas passaram, o filho e a nora se afastaram. No banho, subtraíam-lhe a dignidade com fraldas. Por que tinha que mijar e defecar sem perceber? A menos que a aranha gigante o tivesse caçado na teia que o envolvia, uma gosma que cospia em seus músculos e o mastigava com fúria determinada, a ponto de não saber mais o que era, se apenas um visgo que sujava o teto. Quem sabe, era isso: a morte o engoliu e ele, um espectro que se metamorfoseava para transitar livre para o outro lado. É disso que a nora tinha nojo. Um olhar sem vida, o pescoço esticado nos fios que sustentavam a teia, a gosma escorrendo pelos lábios e o crânio esmagado como um feto malformado. A morte era um regurgitar de humores putrificados e odores de comida junto a medicamentos e doença.
Tentava reagir. Bastava que alguém o visitasse. Quem sabe a mulher, Filipa, percebesse que não estava em coma, nem em estado terminal, e o salvasse. Afinal, já o protegera com uma conta na Suíça, em seu nome. Sim, ela poria aquele hospital de ponta-cabeça.
No dia seguinte, Filipa chegou com uma amiga e aproximou-se do leito de Lauro. Ele observou como estava bonita, usando o colar com que a presenteara no ano anterior. Ela, entretanto, afastou os olhos, assustada. Enojada. Voltou-se para a amiga e segredou: “não passa dessa noite”. Esta concordou, condoída. Filipa comentou, aliviada, que o caso com Jorginho ia ficar na surdina. “Jorginho? Que merda é essa?”, pensou Lauro. A amiga concordou, embora achasse deprimente o estado do senador. “Não se esqueça que ele é um sacana”, retrucou Filipa.
Lauro se desesperou. Queria fazer um sinal, unzinho que fosse pra chamar a atenção daquelas vagabundas, que saíam do quarto.
Com o passar do tempo, viu que suas chances reduziam. Morreria dali a alguns dias, perfurado por sondas, coberto de escaras e o pior, ouvindo o que falavam dele. A vida desandava, como se os telões do Senado anunciassem os votos de sua cassação. A mosca que pululava na merda de todos agora era presa fácil da aranha traiçoeira. Era um ser grotesco que resistia aos estertores da agonia, o emblema da morte em vida. Nem Dora, a ex-mulher que surgia na porta, podia ajudá-lo. Muito menos ela, uma mulher de poucos atributos físicos e que se informava com As Seleções. Não, ela derramaria lágrimas nojentas sobre a sua cara. Não precisava de seu espírito solidário.
Dora, porém, o observava atentamente. Por que o chamava de coitadinho? Por que acariciava a sua testa e pousava delicada os dedos em sua boca? Pelo menos, esta doença maldita também aboliu o tato!
Os pensamentos de Lauro se dispersavam rápidos, pois Dora alertava a enfermeira: “moça, ele mexeu a pupila”.
– Impressão sua. O senador está morrendo com uma hemorragia no cérebro. Também, dizem que abusava da cocaína. Queria morrer, não é?
“O que esta vagabunda sabe da minha vida!”, Lauro gritava em pensamentos, Dora tem razão, se eu movi a pupila, é porque tenho chances – é outra doença, meu Deus, essa gente não se convenceu ainda?
– Moça, depois que soube do Lauro, eu li na Seleções sobre uma doença que paralisa os músculos e a pessoa não se mexe.
– Hum?
– Uma tal de Síndrome do Encarceramento, uma doença rara, com paralisação dos músculos do corpo, menos dos que movimentam os olhos e as pálpebras. Temos que fazer alguma coisa!
Lauro explodiu de alegria. Dora e sua cultura das Seleções: de quem menos imaginava, surgia uma esperança.
A enfermeira permaneceu irredutível: minha amiga, se é rara, pode esquecer. Esse cara tá no fim, parece que já morreu faz tempo, só vai dar trabalho pra família. E tem outra, era bem sacana no Senado. Nem sei se deve viver.
Dora acenou a cabeça, desconsolada.
A outra ainda perguntou: “o que a senhora é dele?”.
Anti-heróis: contos/ organizado por William Moreno Boenavides. - Porto Alegre. - Porto Alegre: Metamorfose, 2017.
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