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terça-feira, junho 06, 2023

João e suas histórias

João tinha desses hábitos desajeitados: gostava das coisas às avessas. Se lhe contavam uma história, ficava imaginando a trama de trás pra frente, com o protagonista com cara de vilão, ou o vilão com cara de mocinho.

Estava sempre à cata de uma novidade, alguma coisa que despertasse a sua curiosidade. E a dos outros também. Costumava se queixar que seus pais viviam muito ocupados. Por sorte, o avô se mudara para sua casa, por andar meio solitário e doente. A família se dispersara um pouco. A avó morava num País distante, ele nunca sabia, se na Nova Zelândia ou na Austrália. Não era bom em geografia. O seu forte mesmo era a imaginação.

João gostava de histórias. Mas não as histórias contadas pelo avô. Ele, João, era o narrador, especialista em inventar as histórias mais esquisitas possíveis. Começava do final, inventava personagens, trocava as personalidades de alguns e até a aparência física.

O avô perguntava: — Ué, não era o gigante que tinha a galinha dos ovos de ouro?

Não, segundo ele, era a mãe de João, aquele do pé de feijão, não ele, que tinha a tal galinha. E pior, ela, a mãe era a vilã.

— A vilã? – o velhinho indagava intrigado, levantando as sobrancelhas sob os óculos.

— É Vô, o senhor vai ouvir a minha história ou não vai? A que eu sei é deste jeito, depois o senhor conta a sua.

— Não, você é o contador de histórias. Eu sou o ouvinte. Mas vamos lá, desfecha este imbróglio.

Imbróglio? O avô gostava de usar palavras estranhas. Ainda bem que ele sempre explicava no fim da frase – “imbróglio é confusão, mixórdia, esta bagunça que você faz com as tramas”, ou então “desfechar é abrir, concluir”. É, o avô tinha seus caprichos!

Mas João gostava do seu jeito despachado, e embora cismasse com as palavras, ele sabia que no fundo, o avô ficava feliz com a sua presença e com as suas narrativas. Por isso, continuava a inventar as histórias mais malucas que lhe vinham à cabeça. Uma série imensa de personagens e tramas que saíam de sua mente, assim, fresquinhas, criadas na hora, de improviso, prontas para deixar o velhinho de cabelos em pé. Sim, porque às vezes, as histórias eram de arrepiar, imagine, para a idade de João, que tinha apenas sete anos.

Mas, um dia João se calou. Não brotaram mais histórias de sua boca. Por mais que o avô insistisse, ele se negava a inventar histórias. Parecia triste, sem vontade de puxar pelo raciocínio, como costumava dizer. Foi então, que passou a falar quase todos os dias sobre um amigo que morrera. Chamava-se Júlio e segundo o avô, um anjo o havia levado para o céu. Mas aquela explicação não o convencia. Por que havia de morrer assim de uma hora para outra, deixando-o sozinho, sem nunca mais poderem brincar juntos? A quem contaria os acontecimentos de sua vida, a quem comentaria sobre o seu mais querido ouvinte, o avô?

Certa vez, quando João apareceu em seu quarto, daquele modo desavisado, pensando numa coisa e fazendo outra, o avô aproveitou para instigar a imaginação do neto, pedindo-lhe uma nova história. Precisava incentivá-lo, para que voltasse a ser o menino feliz de outrora. Mas que nada. João não inventava mais nada. Desandara a perguntar, parecendo querer todas as respostas do mundo! Perguntava por que a avó sumira, por que o pai estava sempre ocupado e mãe vivia tão nervosa. Embora o avô replicasse que sua ex-mulher não sumira, João, volta e meia, insistia com aquela versão. Um dia ele fez uma pergunta nova. O velhinho respondeu: — Agora, você me deixou embatucado!

João riu. Embatucado, que palavra esquisita! Mas logo percebeu, que o avô estava pensativo e atrapalhado com a pergunta. Entretanto, naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele queria uma reposta. E sabia, que somente o avô lhe daria. Por isso, insistiu:

— Então, aí, Vô, se você é meu parça, fala. O que é a morte? Por que a morte leva as pessoas, assim como levou o meu amigo. Me explica.

— Calma, João, você está muito ansioso. Uma pergunta de cada vez.

— E o senhor sabe responder?

O avô pensou, pensou, matutou e deu o troco: — Só respondo, se você prometer que voltará a me contar as suas histórias.

— Ah, não sei Vô. Pode ser.

— Pode ser, não. Você tem que me garantir que voltará a exercer a sua imaginação. Estou com saudades, sabia?

João suspirou, sério, mas disparou logo: —Vou fazer o possível. Sabe Vô, estas coisas a gente não pode garantir.

— Está bem, João. Eu entendo você. Mas prometa que fará um esforço.

— Isso eu prometo! – Adiantou, sorrindo.

— Está bem, eu confio em você.

— Então me diga, vai responder a minha pergunta?

—Como você, vou fazer um esforço.

—Por quê?

— Talvez porque eu não saiba explicar muito bem. Mas vou fazer o possível.

— Então, começa do princípio, Vô, sem enrolação.

— Como assim?

— Dizendo como tudo começou. A morte aparece assim, de repente?

—Depende.

—Depende de quê?

— Espera, acho que tenho uma maneira de mostrar pra você.— Abre a gaveta da cômoda e retira um envelope com fotografias. Escolhe uma e a entrega a João.

— Quem é?

— Um menino, assim como você.

— Mas quem é?

— Sou eu.

João caiu na risada. Não, podia ser ele. Não podia ser o avô, assim, tão diferente. Aquele não passava de um menino estranho, de uns 10 anos de idade. O avô, então, confirmou, tranquilo: _Mas sou eu. Quer dizer, este fui eu, há muito tempo atrás. Este menino da fotografia não existe mais, apenas o velho que você conhece.

Antes que João dissesse qualquer coisa, ele mostrou uma fotografia atual: — Agora olhe esta.

— Esta é o senhor.

— Pois é. Este da foto sou eu mesmo. Por que aquele menino da foto antiga não pode ser?

— Porque este é igual, o outro nem se parece com o senhor. Parece de outro mundo!

— Mas este também não existe mais. Este aqui era eu há três anos atrás, quando tirei a fotografia. Este é passado, não existe mais.

— Não tô entendendo nada, Vô. O que isso tem a ver com a morte?

— Espera, vou te mostrar outra. Para entender a morte, assim, como para entender a vida, a gente tem que aprender aos poucos, certo?

— Certo.

— Está vendo? Quem é esta?

— Não sei. É uma mulher.

— Claro que é uma mulher. É minha mãe — confirmou entusiasmado.

— Sua mãe é bonita, Vô.

— Sim, muito bonita. Então veja, ela está aqui, representada nesta fotografia antiga, não está?

— Claro, Vô.

— Pois muito bem, mas minha mãe está morta. E sabe onde ela vive? Apenas na minha lembrança.

João aquietou-se, olhando embasbacado para os olhos brilhantes do avô. Teve a impressão de que havia uma lágrima brincando pelas pálpebras. Mas acha que foi só uma impressão.

– Pois a morte é assim, como uma fotografia antiga. A gente tem a imagem, a representação, mas a pessoa não está aqui. Aquele menino que você viu e riu, pensando que não era eu, não está aqui, assim como homem da fotografia de há três anos atrás e também a minha mãe. Nenhum dos três está aqui. Eu não sou mais aquele menino, nem tão pouco aquele homem um pouco mais jovem, que você afirma que sou eu, nem a minha mãe, porque morreu há muito tempo atrás.

Fez um silêncio e aproximou o rosto pintado na barba branca. João arregalou ainda mais os olhos grandes, ouvindo o que o avô tinha a dizer.

— Quando uma coisa vira passado e a gente não pode mais ficar perto, nem abraçar, nem conviver, isto é a morte. O que passou, já morreu.

E prosseguiu, com mais ênfase, concluindo a explicação: — Isso mesmo. O minuto atrás já morreu. Só não morre, quando a gente lembra, quando a gente não esquece. Por exemplo, esta mulher que um dia existiu e que era a minha mãe, sempre viverá na minha lembrança, bem aqui, ó – e apontando com o indicador para a cabeça, em seguida, para o coração – aqui, na minha mente e no meu coração. Você entende, João, as coisas só morrem definitivamente, se a gente deixar de pensar nelas.

— Mas Júlio morreu!

— Como a imagem da fotografia antiga, a qual você jamais poderá saber quem é, no futuro, se esquecer completamente. Por outro lado, você pode guardar no coração. Preservar é uma maneira de existir. Neste caso, não morre definitivamente.

O avô suspira, aliviado. Talvez com saudade. Depois, convida: — Quem sabe, vamos viver a vida, e você me conta uma história nova.

João, porém, fez outra pergunta: – Mas então, por que o senhor guarda as fotografias?

— Ah, porque recordar é viver de novo aquilo que já passou. Se foi uma coisa, boa, por que a gente não lembrar, não é mesmo? A vida ficou ali, escondidinha na fotografia e cada vez que a gente olha, lembra de outras histórias que aconteceram naquele tempo — e com os olhos brilhantes de emoção, conclui – e a gente vive tudo novamente.

— O senhor lembra de alguma?

— De muitas. Mas se você for bastante esperto, vai lembrar do seu amigo como uma fotografia antiga e vai lembrar de histórias que passaram juntos. Ou vai inventar uma.

João juntou as fotografias e guardou-as no envelope, como se tivesse alguma coisa nova na cabeça para por em prática. Pediu que o avô o esperasse, correu até seu quarto e trouxe o notebook, já com a página de um site aberto. Mostrou-a para o avô.

— Quem é esse?

— Júlio, meu amigo. Tava nessa rede social, viu? Um dia ele resolveu criar uma comunidade só dele. Deixou então este montão de fotos e juntou todos os amigos, até eu to aqui! Só que um dia o site saiu do ar e ele não pode mais incluir nenhum post.

— E o que ele fez?

— Um backup de tudo e entregou para o seu melhor amigo continuar a sua comunidade.

— E como se chamava a comunidade que ele criou?

— Vida. Mas aí, já é outra história.

O avô sorriu e ajeitou-se na poltrona, satisfeito. Parece que tinha uma outra história acontecendo. E nem era adaptada. Mas certamente, seria às avessas.

terça-feira, dezembro 06, 2016

Um amor de avó

Esperei que ela abrisse o manto da proteção e o estendesse sobre mim. Foi em vão. Fitei-a inseguro, olhos de súplica. Pedi perdão.

Olhava-me com frieza, distanciada de meus sentimentos. Orgulhosa. Onipotente.

Esperei que ensaiasse uma atitude, tomasse qualquer decisão. Falei em minhas culpas. Do mal que lhe causara: agruras devidas a preocupações, brincadeiras ofensivas, aborrecimentos inoportunos de menino levado.

Que nada. Não me ouvia. Resolvera agir assim, friamente, numa pedagogia autoritária.

Estava ali, sentada na poltrona de brocado, com novelos entre as mãos, olhar distante, comprido, para a janela. Minha avó.

Olhando-a assim, sentia pena. De mim, dela, de nós. Por sermos o avesso de suas aspirações: cheios de vida, astutos, perspicazes, briguentos, barulhentos, perturbadores.

Ela quieta, silenciosa, solene. Não nos queria por perto. Às vezes, achava que nos odiava.

Tão diferente de meu avô, suave, doce, amigo, franco, feliz.

Ele, no auge da alegria, satisfação com a vida, afeito aos pequenos prazeres, fortalecido na dor, tranquilo, sereno.

Ela, forte, resoluta, uma rocha.

Sempre nos seguia com o olhar e quando não gritava, falava com aspereza e dor. A dor lancinante dos que não aceitam o sofrimento, dos que invejam a vida que aflora, que se tinge de cores douradas, luzes flamejantes, fogos ardentes.

Tinha em seu íntimo uma vontade extrema de nos ensinar, de moldar a sua imagem e semelhança, de nos fazer crescer.

E por isso, nos diminuía, achincalhava nossas misérias, desconsiderava nossas descobertas, nossos progressos, nossos sonhos.

Mesmo assim, eu percebia no seu olhar uma certa fragilidade, uma pureza escondida, uma ingenuidade que temia emergir.

Se pudesse mergulhar naquela alma, por certo, veria muito mais do que aparentava.

Aquela mulher forte, guerreira, autoritária tinha uma doçura e sensibilidade que insistia em ocultar.

Sabia que me amava, mas a sua maneira. Querendo ensinar a todo momento, transmitir uma aprendizagem contida, fabricada, padronizada aos conceitos que internara em seu subconsciente. Uma disciplina autoritária.

No fundo, percebia isso e me dava um alento. Quem sabe um dia, encontraria a verdadeira face daquela mulher sofrida.

Não naquele momento, em que me submeti aos seus caprichos, desvendando minha própria alma, mostrando-me assim, indefeso, fraco, implorando o perdão por pecados tão infantis.

Não naquele momento em que assumi uma mistura de sentimentos, inferioridade e ódio, evitando pensar desta forma, não entendendo como poderia odiar minha avó.

Não naquele momento, quando avistei a mulher enorme, que se agigantava ante meus olhos e se diminuía ante meu coração.

Custou-me entender que a fortaleza ruía a qualquer momento e que mais cedo ou mais tarde, vislumbraria um afeto, um gesto de carinho, mesmo pequeno, tímido e incerto.

Era uma forma de amar, talvez como ela tenha apreendido em toda a sua vida e dela ter feito o seu método de vida.

Um amor de avó.

quinta-feira, outubro 20, 2016

Pai na bicicleta: uma acrobacia de alegria

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/bicicleta-sombra-desporto-hispânico-233379/


Houve tempo em que te vi sorrindo, orgulhoso, satisfeito, encontrando nos filhos a certeza inabalável da vida, do se fazer pai e amigo.

Houve tempo em que me puseste no colo e abriste a página do jornal, ensinando-me a ler. Ali conheci o valor das palavras, da leitura e mais ainda, o prazer de ser amado e protegido.

Houve tempo em que te vi assim, cabisbaixo, olhando pros lados, insatisfeito. Talvez refletisses o que fazer diante dos problemas: da chamada do professor em casa, da briga costurada com o colega, da ordem desobedecida ao cruzar a rua e ver a bola picando, campo à fora, meninos ruidosos, na luta aguerrida do futebol. Sei, que na verdade, me querias na escrivaninha, pequeno troféu, que criaste, mais perto dos estudos e bem distante dos chamados “guris de rua”, daquela época. Benditos guris, nada semelhantes aos de hoje.

Houve tempo em que te vi desconfiado com a política, com os homens do poder, com a autoridade e autoritarismo. Houve o tempo do silêncio.

Houve tempo em que te vi criança, deslizando matreiro nas calçadas vazias de um feriado deserto da semana-santa, bamboleando o corpo numa coreografia imaginada para me mostrar outra face: a da alegria.

Houve o tempo em que me mostraste o cinema de rua, filmes do Sesi azulando as paredes das casas, enchendo-nos de euforia e imaginação.

Houve tempo em que me levaste à igreja, em que me mostraste o sacrário, em que dobraste teus joelhos nas noites de adoração. Houve tempo em que não se ligava o rádio, quando a sexta-feira anunciava a morte de Cristo, mas neste tempo, também eu procurava no Cine Real os clássicos da paixão.

Houve tempo em que te vi torcendo, solitário, por um time que evitavas mostrar preferência, mas via nos teus olhos um matiz diferente quando o vermelho entrava em campo.

Houve tempo em que assumias o Natal e revelavas o prazer de viver em família e sorrir e presentear, participando do que era doce e afável.

Houve tempo em que te vi amigo, solidário e irmão, acolhendo pessoas em casa, pleiteando vagas a amigos no trabalho, cuidadoso e responsável, acalentando as feridas e dores de meus avós em sua jornada final, sensibilizado e sensibilizando.

Houve tempo em que te vi feliz e reconhecido, profissional disciplinado, sendo laureado como operário padrão. Aí, o salto de qualidade estava além do padronizado, do igual, porque expressava na alma a gratidão dos colegas, resultado do desempenho intenso e honesto no que fazias.

Houve tempo em que te vi mais velho, marido, pai, avô. Houve tempo em que o te vi chorar, ressaltando tua humanidade intrínseca, um pedaço de ti te faltava, produzindo uma mágoa silenciosa.

Houve tempo em que te vi brilhar na finitude da vida, convivendo na família em plena lucidez, sobrevivendo aos percalços naturais da idade e apontando uma centelha de luz, mesmo que não o demonstrasses concretamente, víamos em teu olhar assim, tão intenso, dizendo coisas que às vezes não expressavas, mas que tua alma plena identificava.

Sei pai, que vivesses com dignidade até o fim. Sei que não deixaste mágoas, porque não permitiste desunião, desacordo ou preferências.

Sei que soubesses tão bem amar em toda a tua existência, que assumiste a família como dom maior e absoluto em tua opção de vida.

Sei que deixaste o exemplo, pedra fundamental de tua personalidade generosa.

Só não te tenho aqui, agora, mas te carrego comigo em todos os momentos nas ladeiras em que deslizo, tal como tu, na bicicleta de meus sonhos, te vejo ali, na bagageira, indicando os caminhos e rindo do meu medo absurdo das acrobacias que fazias.

Um dia desprendo o pé da roda, pai e faço como tu, sigo em frente e levo apenas a alegria simples de viver.

Mas por certo, te sinto mais intensamente, toda vez que te imito no papel que desempenhaste tão bem: o de pai.

sábado, janeiro 09, 2016

SEDUÇÃO

Saiu à noite, pelas vielas escuras. Um impulso indefinido. Talvez sentir-se vivo. Impulso, pulsão, compulsivo. Tudo que milhares de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, até autores de autoajuda já tinham informado. Sabia, entretanto que precisava seguir o ritual. Um sentimento de busca, uma verdade inconteste que latejava no peito e respondia no sexo, o degrau inferior que percorria pensamentos, mas que o impelia a sentir-se alguém.

Talvez fosse um louco, destes que andam às escuras, escondidos nas brumas das árvores dos parques, prontos a atacar ou serem atacados. A praça o seduzia; uma atração tão forte, que não ousava fugir.

Lembrava-lhe brinquedos, dias ensolarados, o avô ao seu lado, o carinho seguro, o passo certo e a certeza de que a vida se resumia na firmeza da mão. Nada os separaria, estariam sempre juntos, ele, ouvindo suas histórias enfadonhas, que o transportavam a sua vida rural: um modelo tão estranho e diferente do seu. Aos dez anos, tinha poucos amigos.

O pai, distante, executivo sempre temeroso da falência aviltada eternamente a seus ouvidos, a mãe envolvida na sua vida social e decadente.

Nada mais restava a não ser o avô, um velho marginalizado pela pouca cultura, narrador de histórias rudes, baseadas no manuseio dos animais, cercado por gente simples como ele, considerada desprezível pelo pai e por toda a família. Também não se importavam com a sua presença, desde que se mantivesse contida no elo familiar do menino. Este aprendera quase tudo sobre cavalos, éguas no cio, vacas prenhes e caças proibidas. Mas o que mais o fascinava não era o enredo inverossímil das histórias, mas o ambiente lúdico da praça, que ficava próxima a sua casa, onde tudo acontecia, onde elas se desenrolavam em narrativas fantásticas. O que o encantava era a intimidade com o avô, naquele espaço de liberdade e paz, onde pombas sobrevoavam, atrevidas, e palhaços produziam publicidade dos circos que chegavam à cidade. Onde percebia nos olhos do avô um certo ar de inocência.

Agora, aos trinta anos, o velho já enterrado há mais de dez, não lhe importavam as luzes da praça, nem o ensolarado dos recantos, nem a mágoa ressentida de se afastar dos meninos mais corajosos, que se arriscavam na gangorra, em pé, ou na roda gigante, da qual se avistava o topo das árvores. Nem a humilhação de se sentir confortável apenas no carrossel, com a certeza de que colocaria os pés em terra firme. Bobagem. Nada disso causava qualquer emoção, apenas lembranças distantes, nos quais a verdade se escondia em seu coração e o refúgio maior era o coração do velho.

Viver pelos becos sombrios, atravessar as vielas sórdidas, envoltas no negrume dos desejos mais recônditos produzia um prazer muito maior do que o gozo que procurava. No entanto, um vazio imenso se instalava em seu peito, que sentia o suor escorrer gelado através das roupas grossas de lã, um frio intenso de bater joelhos, parceiro nestas buscas intermináveis. Via em cada olhar entre as sombras, uma provável fonte de prazer, mais forte do que o medo de ser atacado ou cruelmente humilhado. Em todos, talvez avistasse os meninos que o desprezavam, e por isso, quisesse agradá-los, para se sentir um igual. Ou talvez, as imagens sombrias e disformes traduzissem a rudeza do avô, que mesmo no ensolarado do sol, carregasse com ele, a crueza de um mundo marginalizado, que o atraía intensamente. Olhos passeavam nas sombras agitadas, de rumos diferentes, que se cruzavam a todo momento, que se aproximavam, se tocavam, pedindo sexo. Homens, mulheres, prostitutas, vadios, mendigos, ladrões, traficantes, drogados, policiais, travestis, garotos de programa, todos em fila, à espera de um beijo seu. Uma confirmação que finalmente cederia a sua sina. Coração alerta, as pernas trêmulas, doente de frio.

Noite límpida. Só estrelas no céu e a lua se inseria entre aqueles galhos retorcidos, desenhando imagens absurdas. Ali, próximo, seres que se esgueiravam no ambiente insípido, molhados de sereno e suor, bocas úmidas que procuravam outras bocas e outros corpos. E ele, ali, como um malabarista entre os galhos secos e disformes, meio escondido, obedecendo à hierarquia da sedução, temeroso de ceder também, de se sentir um igual, tão igual que jamais voltasse a ser o que deveria. Alguns sorriam, outros se masturbavam indecentes, na noite vazia de sonhos e ilusões, outros se locupletavam com as moedas que proviam a miséria de seus cofres sem dono. Ladrões de corpos e almas. Ladrões de si mesmos, de suas vidas, seus destinos, desafiados a cada momento no brilhar de facas, no tilintar de faróis oficiais, no disparar de pistolas.

Se pudesse fugir, mas estava preso ao chão, realizando o ritual que ousava repetir.

Foi assim, que percebeu um olhar mais forte, a voz que não se produzia na boca, mas no corpo inteiro, que o deixou tão atraído que pensou que fosse morrer. Até sorriu, quando a beleza se alternou entre a miséria humana e pensou ser um dos seus. Com sonhos, esperanças, ideais, quem sabe, um dia evadir-se daquela vida e se transformar num novo homem, esquecer este universo avesso à realidade dos outros de bem. Então o acompanhou, tropeçando, a voz embargada, o coração aos pulos, a boca estremecida. Excitado. Sua chance. Só uma vez. Um homem como ele não se atreveria jamais a prosseguir naquele caminho. Bastava ser feliz, por alguns momentos e esquecer para sempre. Seguiu-o para uma touceira, desfiou o blusão nos nódulos do tronco, entorpeceu os braços, estendido no alto e, sem ação, enlevou-se em frases bonitas, gestos sedutores que certamente outro homem não faria, pelo menos não um como o avô. Sentiu-se apalpado, invadido. Foi beijado com lascívia e aflição. Suas pernas aconchegavam o sexo vigoroso e deixou-se ficar quieto. Manteve-se como o menino à procura de amigos, frustrando-se por ser covarde, agarrado na figura firme e segura do avô. Não precisava mais dele, porém. Estava seguro, quando o encarou, seduzido na voz sussurrante. Até quando avistou a arma brilhar e pairaram exigências rápidas, como cartão de crédito, dinheiro ou chave do carro. Nada dizia, pois nada acreditava. O torpor impediu a voz. A mãe sorria, afirmando que a página policial não era para a sua família; o pai por sua vez não acreditava na exiguidade da hora, no confronto da conversa, no contra-argumento e por isso se afastava, acenando a cabeça, enfadado.

Apenas o avô, com suas histórias, no ensolarado da praça, contando como se sacrificava o porco e como o sangue jorrava, lavando a mesa improvisada, após gritos dilacerantes de dor. Então, sentiu o sangue correr na mão, oriundo do pescoço, como o porco sacrificado e pensou que encontraria o avô e certamente, seria novamente feliz.

sexta-feira, dezembro 04, 2015

NOITE FELIZ

Noite feliz

Meu avô, lembras, das noites natalinas, à espera daquela consagrada a Ele?

Lembras das carruagens enfeitadas com luzes, em cenários enluarados, onde fogos riscavam céus e nossos olhos encantados nos anjos vestidos de gente?

Lembras das tuas frases curiosas, tuas histórias brilhantes, teu afago em meu peito, enquanto seguravas firme a minha mão, assim, pequena, na tua tão grande? Mão de avô, firme, forte, segura. Lembras? Não, não mais lembras e se o fazes, deve ser de uma maneira diferente em que as lembranças ecoam contagiadas da mesma alegria anterior, sem esta melancolia que me atinge.

Talvez não haja mais passado para ti, nem futuro. Só o presente em que me acompanhas de longe, inspirando-me melodias e poemas, que inventas sem que eu perceba, para que seja feliz.

És bem capaz disso. Teu coração sublime, tua verdade inabalável.

Tuas histórias em que me incluías ao lado de cada herói, de cada passagem vibrante, onde a vida brotasse plena em nossas mãos. E eu ficava ao teu lado, observando o brilho que purificava o teu olhar, iluminando o teu rosto, e por vezes, revelava um ser diáfano na noite.

Noite de estrelas. Noite de luzes e vozes. Noites de alegria e paz.

Quisera te ver ainda, rodeado desses bônus que a vida, às vezes, nos proporciona. Quisera sentir a brisa leve no rosto, percebendo o friozinho gostoso do sereno, mergulhado na expectativa das celebrações, dos corais, dos anjos, das bailarinas, do presépio e do menino Jesus na manjedoura.

Quisera estar ao teu lado, experimentar a brisa suave, o abraço afetuoso e ter a certeza de que o espírito de Natal ainda permanence.

Mas esbarro numa criança, alguém que se apressa para não perder nenhum acontecimento nesta noite e me volto surpreso.

Por um momento, imaginei que estavas aqui, tão próximo, infundindo em minha alma este desejo de ser feliz, de sentir novamente o espírito sublime desta noite. Quem sabe, me inspiravas mesmo e eu compartilho também esta Noite Feliz?

segunda-feira, novembro 09, 2015

Meu avô : existir é compartilhar

Alimentava-se de nossas pequenas arruaças, brincadeiras inusitadas para quem passara a infância na labuta. Tinha no olhar uma pureza quase infantil, mas cheio de perspicácia, sagacidade e curiosidade por nossas vidas.

Corríamos pelas vielas empoeiradas, empurrando aros de bicicleta, equilibrando-os com uma pequena haste de ferro ou arame dobrado, fazendo voltas, escolhendo caminhos próximos aos seus pés, desviando, riscando o solo arenoso. Ou jogávamos bolinhas de gude, desenhando arcos no chão, ou cavando o imba.

Noutras vezes, corríamos organizando gangues, constituindo quadros de polícia e ladrão, onde o ladrão, na maioria das vezes era pego e massacrado com centenas de sopapos na cabeça, quase uma instituição, um dogma.

Quando havia meninas, uma ou duas, seguíamos o recatado amarelinha, que chamávamos de pula-boneco, sempre vigiado pelo olhar complacente e generoso de sua presença.

Em outros momentos, não perdíamos as chance de imitar os reis do ringue, artistas de luta-livre, que se dividiam sempre em heróis e vilões. Não passávamos de três, contando apenas os meninos, acrescidos de dois ou mais, quando partíamos para o futebol.

Mas quando intimado ao banho e execrar-me dos prazeres da rua, também era acompanhado por ele.

Caminhar dificultado pelo avc, mãos trêmulas que seguravam uma bengala improvisada, olhar aprumado para a frente, fingindo-se forte e resoluto.

Após o banho e o jantar, ficávamos juntos: eu, lendo meus livros fantásticos, com voz impostada, ele ouvindo e comentando entre sorrisos, a virtuosidade de minha dramaturgia, ante o olhar frio e reprovador de minha avó.

Mas logo, quando ela se afastava, deixando-nos a sós, entre nossas histórias, mais dele, do que minhas, voltávamos a desfazer a teia de informações compartilhadas. Falava-me da vida difícil na zona rural, da impossibilidade de prosseguir na faina em que se habituara desde pequeno, em função das deficiências da saúde e da precariedade do atendimento.

Em qualquer tema, revelava um humor constante, uma celebração à vida, o prazer de dividir aqueles momentos de companheirismo e afeto. Fazíamos bem um ao outro: não havia solidão para meu avô, nem para mim.

O quarto não era uma prisão, apenas a ante-sala de nossas conversas até a hora de dormir. Era mais um espaço de partilha de alegria.

Nos finais de tarde, numa época não povoada de novelas, assistíamos ao Bat Masterson e sua pistola que cuspia fogo, Os Waltons e seus cumprimentos noturnos, Roy Roger e as intermináveis corridas pelas pradarias do velho oeste, o túnel do tempo e o passeio frantástico pela história e assim, nos perdíamos na imaginação, de espírito elevado, só interrompidos pela novela que se antecipava e com ela o restante da família.

Meu avô retirava-se, levando consigo a alegria que ainda persistia em meu coração. Quando o acompanhava, mostrava-lhe desenhos toscos, ilustrando histórias que me permitia escrever e revelar.

Às vezes, degringolava o inglês, recitando poemas que seriam apresentados na aula seguinte, ou apenas sentava ao seu lado. Observava-lhe a face morena, o olhar tranquilo, mas inquieto, buscando dentro de si uma saída que eu não compreendia muito bem, mas que me deixava tomar parte de alguma forma.

Os cabelos totalmente brancos, finos, esparsos, caídos para o lado direito. O sorriso instantâneo, a voz forte e densa. O corpo frágil. Tão frágil, que um dia caiu da cadeira que ficava à frente de nossas brincadeiras, na rua, e nem percebemos.

Foi ali, naquele instante, que aos pouquinhos, ele foi se ausentando. Como uma flor quase etérea, que se espalha nos campos, afugentada pelo vento, levada pela brisa, enfeitando estradas, pontilhando regatos. Tais como aquelas, que se sustentam no ar, por momentos, ao sopro de uma criança. Flocos de algodão, desvanecendo-se, consumindo-se. Ficou-me, no entanto, a beleza da dança, bailarinas miúdas ensaiando nas campinas. Ficou-me o sorriso vivaz, o prazer de cantar a vida e partilhar com ela o inspirar do sonho, de se mostrar generoso e paciente, de apostar em mim, um homem como ele, rindo de tudo e de si mesmo, tentando ser feliz.

A foto à direita é de meu avô.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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