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sábado, fevereiro 10, 2018

Pensar nas nuvens

Desci lentamente a rua, uma ladeira estreita, amaciando os pés nas folhas amarelas, dobrando esquinas, pesquisando um ar mais puro. Sem saber, tinha em meu coração que coisas ameaçadoras interromperiam a minha trajetória.

Mas que fazer, se não esmagar com as mãos aquele gato pequenino, que miava insistente, que teimava em não ser afogado no tanque? Puxar o gatilho da mente, disparar as ondas elétricas do cérebro, insistir no improvável. Viver outra armadilha, muito mais densa, mais perigosa. Enroscar-me na rede como um peixe agonizante.

Olhar pelos atalhos e sentir que a dor é bem mais intensa quando se vê a alegria dos outros. Os outros que estão tão próximos, acirrando com olhos fixos nossa dor, que quase os tocamos e sentimos sua gosma grudenta, sua respiração ofegante, seu hálito sujo.

Poder fugir da armadilha, escapar da dor imensa, mergulhar no passado, pisar novamente as folhas secas, amaciar os pés na fofura verde-amarela, sentir o hálito puro do entardecer do outono, correr. Correr, correr, correr. Buscar longe uma alegria aqui, tão perto, dentro do peito. Jogar, jogar, jogar. Até cansar e deitar no chão de grama molhada, pernas para cima, barriga ofegante, coração calmo. Olhar o infinito do céu e perceber as nuvens se deslocando faceiras. Respirar fundo.Olhar para o amigo do lado e sentir-se apoiado. Saber que não se é um só, mas uma falange. Uma alegria única jamais conquistada.

Entretanto, esta quase certeza da ameaça que se aproxima. Pois as nuvens já não correm faceiras, nem posso vê-las deitado.

Que a alegria era única e o céu ficou pra trás. Vida a esmo. Pungente. Doída. Nau sem rumo, peixe quase morto, agonizante, agoniado, agonia, urro de dor.

Fechar e abrir os olhos e antever o futuro insosso, bisonho, sem luz, sem brilho, sem. Vestir-me assim, qualquer cor que faça presença. Que sobressaia na multidão de zeros, que fuja de senso padronizado de ver o mundo.

Que fuja da certeza e afunde nas incertezas, nas buscas, nas procuras insensatas, no gargalhar insano de afundar o gato no tanque.

Que se dane o gato, que se dane o seu miar horroroso. Que se dane a dor. A dor do gato. A minha dor. Libertá-lo pode ser apenas o início da prisão eterna, libertá-lo pode significar a morte. Por que deixar viver o que morto está? Por que ouvir o desespero do miado, se a constância da fome vai lhe percorrer o caminho? Por que insistir na esperança?

Contudo,pode haver uma saída. Todos os gatos são resistentes, são caprichosos, perspicazes. Sabem lutar, sobreviver.

Por que dividir o cálculo, destruir a lógica? Por que inferir uma certeza se não há nada absoluto. Quem sabe salvá-lo ou deixá-lo à própria sorte.

Gato maldito que me deixa tantas dúvidas. Interrompes meus pensamentos, invades minhas ideias, me pressionas com teus ais.

Entrar na sala, sentir os lambidos indecorosos, as súplicas nos meio olhares, os meio sorrisos, as mesmices, a mediocridade.

Conviver com elas e pensar elevado. Pensar nas nuvens com os pés atolados na lama.

Pular a cerca, correr pelos muros, subir paredes, com as pernas presas no concreto, no subir das escadas, no descer em elevadores, no respirar aflito, na ansiedade da porta que se fecha. Ouvir as risadas lá fora. Só as risadas e não ver ninguém. Não ver o amigo do lado. Nem a falange.

Quem sabe pela luz filtrada da cortina, ainda enxergo o menino esticado na grama molhada, sorrindo, escamoteando o tempo, sugando a vida sem pressa, olhando as nuvens faceiras no céu e pensando que o amigo ainda é uma falange.

terça-feira, junho 09, 2015

METÁFORAS CRUÉIS : desqualificação das mulheres e negros


Certa vez, em uma disciplina de um curso de pós-graduação em linguística, avaliamos uma série de adjetivos ou substantivos adjetivados que soam lisonjeiros para os homens e ao contrário, para as mulheres produziam conotação pejorativa, pois a própria palavra utilizada possui juízo de valor, tanto para um lado quanto para o outro. Estas distorções linguísticas são foco de vários estudos de cursos de pós-graduação e muito bem explanadas em vários artigos. Sabe-se entretanto, que a língua é apenas um instrumento que é fruto da cultura dos cidadãos de um país.

Estes adjetivos constituem metáforas que desquafilicam o sujeito feminino e qualificam o masculino. Se não, vejamos alguns exemplos, que foram exaustivamente avaliados em vários trabalhos, mas que cabe aqui, identificá-lo en passant. O adjetivo vadia, para a mulher tem a ver com promiscuidade, assim como vagabunda. No caso do homem, o termo vagabundo ou vadio, tem a abordagem do trabalho, mas pode incluir também um significado positivo, como garanhão, altamente elogioso na nossa sociedade. No caso de se chamar um homem de cão, ou cachorrão, pode haver uma conotação negativa, mas nunca no aspecto sexual. Inclusive, ser um "cachorrão"", infere aspectos positivos, dependendo do contexto. Mulher chamada de cadela, no entanto é considerada uma prostituta. A desqualificação feminina se dá sempre no âmbito da sexualidade. Mulher aventureira, pistoleira, da vida ou galinha (puta). O homem aventureiro, que viaja, que arrisca, pistoleiro, um matador, homem da vida, que adquiriu sabedoria, o galo é aquele que tem um orgasmo rápido e certeiro. O adjetivo puto pode vir, além da conotação sexual, com vários significados como nervoso, irritado, bravo. Fulano está puto da vida. No caso feminino, esta última conotação é menos usada. Chamar um homem de cavalo, pode designar um indivíduo grosseiro, sem educação. No caso da mulher, chamá-la de égua, designa meretriz. O homem que é um touro, é aquele forte, bravo, fogoso e robusto. Uma mulher vaca é a mulher leviana, aquela que aceita qualquer homem. O homem chamado de lobo é o considerado sanguinário, a mulher loba é uma meretriz, o mesmo caso de mariposa. Piranha designa uma mulher de vida licenciosa, meretriz. Estas metáforas zoomórficas são destacadas por E. V. Leitão, em 1988, no livro " A mulher da língua do povo" (LEITÃO, E.V., 1988).

Mas esta desqualificação da mulher ocorre também em relação às pessoas de etnia negra (homens e mulheres), em virtude da cor, através de uma herança cultural que sempre marginalizou os negros. Para tanto, observa-se, não adjetivos, mas metáforas produzidas por expressões cotidianas que constroem um verdadeiro dicionário. Outro dia, li um texto de Setephanie Ribeiro, no site do Pragmatismo Político, que emumerava 13 expressões que ela considerava formadoras do racismo contemporâneo. Vou descrever algumas aqui, na tentativa de relacioná-las com a desqualificação feminina observada anteriormente. Umas delas, é "serviço de preto” expressão utilizada para associar a um trabalho desleixado. Remonta ao passado escravocrata, quando afirma que o negro era malandro, negligente e seu trabalho era ruim. Outra expressão é “morena, mulata“ seguidos de "tipo exportação”. Neste caso, embraquece-se a pessoa, transformando-a em morena ou mulata, e o pior "tipo exportação", no meu ver, seria sugerir uma aceitação da mulher negra pelo estrangeiro. Uma venda do material humano, como um objeto no mercado. Uma terceira expressão é aquela “não sou tuas negas”. Neste caso, a frase deixa explícito que com as negras, tudo é possível, e com as demais não se pode fazer o mesmo, lembrando o comportamento de assédio e estupros com as mulheres negras escravizadas. “Cabelo ruim, cabelo duro, etc.”para designar características do cabelo afro como algo pouco estético, fora dos padrões europeus. “Nasceu com o pé na cozinha”, neste caso, a expressão indica as origens das mulheres negras, associadas aos serviços domésticos, já que as escravas podiam ficar na cozinha e, inclusive, segundo a autora, dormiam ali mesmo.

Percebemos enfim, que vale a regra do poder reacionário, escravagista, machista e branco sobre as categorias analisadas. Tanto a mulher quanto a etnia negra, tem a desvantagem de apresentar estereótipos que os desqualificam como sujeitos. Não se pode dizer que há preconceito em relação à mulher, mas sim que todos os adjetivos são frutos de cultura machista e retrógrada que sempre privilegia o homem, principalmente no aspecto sexual, no qual a mulher é sempre inferiorizada. No caso das expressões que investem contra o negro, percebe-se aqui um franco racismo, muitas vezes disfarçado na terrível expressão “alma de branco”, que o autor também destaca. Para estes, lembro daquela música “alma não tem cor” de André Abujamra, cantada por Chico César, Zeca Baleiro, pelo grupo Perota Chingo, entre outros.

"Alma não tem cor

Porque eu sou branco?

Alma não tem cor

Porque eu sou preto?

Você conhece tudo

Você conhece o reggae

Você conhece tudo

Você só não se conhece”
Fonte: LEITÃO, E. V. A mulher da língua do povo. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.
PEREIRA, Edilene Machado; RODRIGUES, Vera. Amor não tem cor?! Gênero e raça/cor na seletividade afetiva de homens e mulheres negros(as) na Bahia e no Rio Grande do Sul. In: https://www.abpn.org.br/Revista/index.php/edicoes/article/viewArticle/87
RIBEIRO, Stephanie. 13 expressões racistas que precisam sair do seu vocabulário. In: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/05/13-expressoes-racistas-que-precisam-sair-do-seu-vocabulario.html
http://blogueirasnegras.org/author/stephanie/
ZAMPARONI, Valdemir D. Os estudos africanos no Brasil. In: Dhttp://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=522


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