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quarta-feira, agosto 02, 2017

UM GOLPE NO OUVIDO

Juntou as chapinhas de bebida e sentou-se à sombra, olhando para o nada, mas com a certeza de que aquela árvore o acolheria para sempre. Puxou um real do bolso e pensou no que poderia fazer dali em diante. Quem sabe, voltar à oficina, juntar os seus pertences, pegar a mochila farrapada e tomar um rumo na vida. Entretanto, sentia-se impotente, até assustado com a situação. Voltar a juntar latas de alumínio, chapinhas de refrigerante, limpar as lixeiras e esconder-se embaixo de qualquer marquise era uma onda que não queria reviver.

Lembrou-se do Guto, com aqueles olhos esbugalhados e a boca aberta, o sangue escorrendo pelo chão visguento de diesel. Sentiu um arrepio. Tinha mesmo que dar o fora, antes que alguém chegasse e o acusasse de ter matado o negrão. Por que ele tinha voltado àquele lugar? Tinha passado tanto tempo e tudo ficava na mesma. A mesma galera, as bebidas de sempre, a maconha, a farra, mas nada tão pesado e difícil. Havia um líder e não era ele. Ele era um pobre coitado que se agregara `aquele pessoal que nem se interessava com a sua presença no barraco.

Melhor seria voltar para casa, pra cidade do outro lado do canal e viver a vida que não pedira a Deus. Mas não pedira aquele caos também. Não quisera participar do tráfico e hoje não era nada, mas a qualquer momento, poderia ser mais um presunto espalhado pela cidade.

Tinha que fugir, desaparecer do mapa, esquecer a mochila, esquecer as latinhas, o material pra vender e tomar outro rumo. Já pensara nisso um milhão de vezes, mas não bastava o pensamento. Precisava de ação, mas não tinha coragem. Precisava de uma coisa forte, não uma simples maconha que só o deixava ausente. Queria um crack, uma cocaína, qualquer merda que funcionasse a cabeça, que o libertasse do medo e enfrentasse o mundo.

Outros lhe vinham à mente, principalmente, o Zarão, um x-nove de primeira, aquele que podia levá-lo a ruína. Ele ia juntar as coisas: ver a mochila, as suas roupas, aquele retrato da família e acusá-lo. Não descansaria enquanto não o pegasse e fizesse justiça conforme as leis do bando.

Não, ele não queria ser torturado, trucidado, morrer feito um infeliz pedindo por clemência.

Ele que já fora um poeta, um cara que curtia compor e cantar na comunidade. Ele que sabia distinguir uma boa letra de um agrupamento de frases sem sentido, sem lirismo, sem sentimento, sem beleza.

Ele que chorava, às vezes, ao ouvir determinada melodia, ele que já fora até humano. Mas agora, precisava juntar as latinhas, vender o que podia para ganhar algum e por o pé na estrada.

Por um momento, sentiu-se atropelado por um pensamento estranho, como um golpe no ouvido. E se o Guto não tivesse morrido? E se o presumível assassino estivesse por aí, procurando-o porque ele mexeu nas coisas, investigou o cenário, certificou-se de que havia furos de balas nos carros e que a gasolina se misturava a todos os óleos que faziam parte da oficina.

Mas por que o matariam se o Guto não houvesse morrido? Por que o procurariam se não fez nada, a não ser deixar marcas pelo piso escorregadio e a maldita mochila esfarrapada, nada mais. Por que o acusariam se não poderia responder por nada?

A cabeça dóia, os cabelos grudavam pelo suor e seus olhos pareciam injetados de sangue, como se todas as drogas que usasse fizessem efeito ao mesmo tempo.

Precisava fazer alguma coisa, antes que alguém chegasse e o crucificasse ali, naquela árvore, em plena sombra numa tarde de verão.

Procurou os documentos no bolso e viu um nome que não era seu: Gustavo da Silva. Não deviam estar ali, nos seus bolsos os documentos do Guto, quem os colocara, o que estava acontecendo? Por que não o deixavam em paz?

E seus documentos, e seu nome e sobrenome que haviam desaparecido. Também ele se esquecera, também ele não sabia de quem se tratava e a cabeça doía muito quando tentava lembrar.

Foi aí que o carro da polícia parou ao seu lado. Eles se aproximaram rápidos, levantaram-no do chão e o algemaram.

O que pensam eles? O que querem dele? Não foi ele quem matou o Guto. Ele é que era o dono da boca. Apenas trabalhava na oficina, era um simples borracheiro.

Disse-lhes ainda que era cantor, que tinha sentimentos, que não estava nessa de crimes, de tráfico de drogas.

Eles sorriram e o empurraram para o camburão e o pior: insistiram em chamá-lo de Gustavo da Silva, vulgo Zarão.

terça-feira, julho 12, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 13º CAPÍTULO

Na conversa com Rosa, o detetive Júlio Ramirez descobre que ela está assustada com a onda de crimes por ingestão indevida de insulina a quem é saudável. Um crime que não deixa marcas. Confusa, Rosa está mais temerosa, porque contraiu a doença. Mas há outra expectativa de Júlio em relação a ela, o seu relacionamento com o mecânico Paulo e o assassinato da jovem Taís.

Júlio volta para o hotel refletindo sobre tudo que ouvira. A história de Rosa estava muito mal contada. Afinal, defendera o mecânico com muita firmeza, ao mesmo tempo que acusava a vítima de ser uma leviana, revelando todo o ódio que sentia. Por fim, acusara o médico, dizendo que o seu carro estava no local do crime. Mas como sabia que o carro estava lá?

Em poucos dias, conhecera uma mulher com traços completamente distintos, de acordo com a situação. Se havia alguém mais estranho naquela cidade, era a maestrina, pois um dia era uma pessoa cordata, tranquila, atendendo o pessoal do hotel com esmero e cuidado, bem como, segundo diziam, uma regente do coral com muito talento. Noutro, era uma mulher assustada e ao mesmo tempo indignada, mostrando-se rancorosa e com muitos segredos. Mas talvez estivesse aí, a chave do problema. Talvez ela estivesse assustada não pelos crimes, que segundo dissera a afetavam profundamente, em virtude de algumas pessoas terem sido assassinadas por um criminoso que injetava insulina em pessoas saudáveis. Talvez o outro crime fosse a causa de sua aflição, em virtude da presumível implicação de seu protegido. Isso ele precisava descobrir. Por isso, ligou para o médico para esclarecer sobre o carro. Segundo Ricardo o informara, ele fizera uma caminhada perto do rio. Mas teria levado o carro até lá? Se foi de carro até certo ponto, para prosseguir o caminho a pé, a menina não mentiu. Ana afirmou ter visto um carro conversível e disse que era do médico. Agora Rosa confirmava que o carro estava perto do rio, no dia do crime. Ricardo atende o celular depois de muito resistir, entretanto não havia como fugir do detetive. Era insistente, e talvez tivesse alguma novidade que precisasse saber.

– Então, detetive, quer saber alguma coisa ou tem alguma novidade para mim?

– Por enquanto, não tenho nenhuma novidade, que valha à pena, dr. Ricardo. Queria fazer-lhe uma pergunta. Naquela tarde-noite, você disse que caminhou pela beira do rio para se acalmar. Me diga uma coisa, você foi de carro?

– Claro que não, o meu carro estava na oficina.

– Na oficina Silva, naquela em que trabalha Paulo?

– Essa mesma. É a única na cidade.

– Mas então, alguém usou o seu carro naquele dia.

– Como assim?

– Deixa pra lá, me diga, quando entregaram o carro pra você?

– Se bem me lembro, logo no dia seguinte. Não era nada grave, apenas a bateria que estava fraca. Mas por que pergunta? Quem andou com meu carro?

– Não se preocupe com isso. Obrigado pela informação. Grande abraço, doutor. Descanse.

– Espere, o senhor não me respondeu…

– Passe bem, doutor Ricardo.

Júlio senta-se numa pequena escrivaninha em seu quarto e começa a fazer um esquema. Faz ligações entre os envolvidos e pensa numa maneira de acareação, embora este seja um procedimento policial. Jairo havia dito que segundo a perícia, a moça havia sido realmente assassinada. Então não tinha porque conjecturar sobre suicídio ou acidente. Ela foi jogada no rio e os ferimentos revelam que foram feitos antes da queda. Além disso, provavelmente tenha sido empurrada para a ribanceira após a ponte, onde as águas são mais profundas e com muita força, além de ser haver muitas pedras submersas. Precisava falar com o delegado para que conseguisse juntar as pessoas. Ficou muito tempo fazendo verdadeiras acrobacias mentais, por fim, resolvera deixar tudo para o dia seguinte. Os esboços já estavam de tamanho suficiente para que se desenvolvessem mais tarde. Decidiu dar uma navegada na internet e depois leria um livro, para cair no sono. Deitou-se só de cuecas na cama, pois fazia certo calor, no quarto. Não fez nada do que se propusera e caiu num sono intenso. Começou a sonhar com o passado, a pequena casa que morava não tão distante do rio, os pais, os irmãos que partiram para longe, a mulher que o deixara há pouco tempo, o livro que gostaria de escrever. Estava assim mergulhado em sonhos entremeados com pesadelos, porque alguma coisa o deixava angustiado nas imagens que seu cérebro produzia, na impossibilidade de discutir os problemas que envolviam a pequena cidade natal.

quinta-feira, julho 07, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 12º CAPÍTULO

No capítulo anterior percebemos que as tramas se desenvolvem de modo a comprometer várias pessoas e parece que todos se acusam sem a menor preocupação. Embora alguns sejam reticentes, como um dos Silva, o dono da oficina, algum detalhe sempre é revelado, como o fato de Rosa ter um caso com o mecânico que trabalha com eles. Por outro lado, Júlio conseguiu algumas revelações de Ana, que vira o carro do médico no dia do assassinato de Taís. Aproveite o 12º capítulo de nosso folhetim policial.

CAPÍTULO 12


Rosa, a maestrina e porteira do hotel teria realmente alguma relação com o tal mecânico chamado Paulo? E o que ele estaria fazendo na capital? Teria a ver com a tragédia da filha do farmacêutico? Júlio não consegue parar de pensar no que ouvira, do homem da oficina, de Taís, do médico e da própria Sara, que o havia contratado e também acusara Rosa. Todos pareciam saber de tudo e falavam à meia boca. A não ser Ana, a jovem, que se revelava bem objetiva nas respostas. O que havia de tão misterioso nesta cidade? O que todos queriam esconder?

Júlio decidiu fazer o lanche habitual para depois dirigir-se à casa de Rosa, que hoje não viera ao hotel.

O garçom se aproximou amistoso.

– Então, gostou do lanche?

– Tanto quanto ontem. Perfeito.

– Acho que na alta temporada, o patrão vai aceitar a sua sugestão de lanche e começar a servir todos os dias para todos.

– Hum, boa ideia.

– Só que pra ser sincero, não acredito que dê certo. Aqui neste fim de mundo, nem no verão vem muita gente. Uma meia dúzia de gatos pingados.

– Você… Como é o seu nome mesmo?

– Anderson.

– Anderson, você sempre morou aqui?

– Eu nasci aqui, morei uns meses na capital, mas não me adaptei. Acabei voltando.

– É, a vida é dura. Na cidade grande, a gente tem que ter uma boa estrutura.

– O senhor falou tudo.

– Anderson, eu gostaria de saber onde mora a senhora que trabalha aqui no hotel, a da portaria.

– Ah, a Rosa? Sim, claro. Mora nessa mesma rua, umas seis quadras adiante.

– Ela é a mãe de Paulo, o mecânico?

O rapaz sorri, irônico:

– Dizem que é mãe dele, mas é o que a cidade quer ouvir. Ela é uma mulher madura e o povo não aceita.

– Não aceita o que?

– Que ela seja amante dele.

– Amante?

– Sim, preferem que seja mãe. É uma gente muito tacanha.

– Mas como vão dizer que é mãe se no passado, nunca a conheceram como mãe dele.

– Vai pensar o quê? Essa gente é maluca. Preconceituosa e louca, isso sim. Pra eles, o que vale é a aparência. Não importa se a pessoa é puta ou ladra, o que vale mesmo é como ela se apresenta na sociedade. Mas falando do Paulo, o que dizem, que o verdadeiro problema é que ele veio pra cá, procurando a mãe que não via desde pequeno. Encontrou essa tal de Rosa e ela o ajudou alugando um dos seus apartamentos. Dizem por aí, que ele nunca pagou nada e para completar, todos passaram a dizer que ela era a mãe dele.

– Que coisa absurda, você não acha?

– Tudo nesta cidade é absurdo, doutor.

Júlio voltou para o quarto para tomar um banho e trocar de roupa, quando recebeu uma ligação no quarto. Esperava que fosse seu amigo Jairo justificando ter dado o seu nome ao farmacêutico para investigar o caso. De todo modo, foi uma boa medida. Afinal, seria recompensado e cobraria uma bela quantia ao pobre homem. Não poderia é ser desonesto com a tal Sara Soares e deveria rescindir o contrato. Por outro lado, havia um caso concreto, um homem que precisava encontrar o assassino da filha ou pelo menos, saber o que tinha acontecido. Quanto à Sara, tudo o que dissera parecia ser uma justificativa para vingar-se de Rosa. Ele precisava esclarecer o crime, pois os fatos transcorriam de modo a condenarem uma pessoa inocente, como o médico ao qual o farmacêutico acusava com tanta veemência. Até que provasse o contrário, qualquer um seria o culpado, até mesmo a própria maestrina, como alguns suspeitavam. Também havia a hipótese da jovem ter se suicidado. Ou quem sabe, fora um acidente? O telefonema, porém não era de seu amigo e Júlio surpreendeu-se em saber que Rosa estava ligando para ele. Não pretendia sair àquela hora, deixaria a conversa com a mulher para o dia seguinte, mas ela demostrava muito interesse em falar-lhe. Na verdade, não se pode perder a oportunidade quando aparece assim, pensou o detetive. Talvez fosse um fato novo e se a maestrina queria tanto falar com ele, é porque havia alguma coisa a ser investigada.

Algum tempo depois, Júlio estava na frente do portão de grade, esperando ser atendido. Observou que uma luz se acendeu bem ao fundo, no interior da casa, deixando um pequeno foco para a calçada de lajotas. Olhou em torno e percebeu os olhos de um cão que o observava em silêncio. Tocou a campainha novamente e o animal rosnou sem mover-se. Rosa, em seguida apareceu, pedindo que o detetive aguardasse que ela levaria o cão para uma área, ao lado da casa. D’tartagham era um cachorro tranquilo, mas não se pode confiar, informou Rosa sorrindo.

Júlio voltou-se para o carro, que deixara sob o holofote de um poste e ficou esperando por Rosa. Por um momento, pensou o que estava fazendo ali. Um homem de sua experiência, de repente, atender o chamado de uma mulher, que poderia se configurar numa cilada. Respirou fundo. Ajeitou a gola rolê, cobrindo ainda mais o pescoço, fechou o paletó e aguardou que ela voltasse, com certa ansiedade. Em seguida, tentou desvencilhar-se daqueles pensamentos que imaginava serem absurdos, afinal, quem era Rosa, uma professora, maestrina do coral da igreja e em alguns dias da semana trabalhava na portaria do hotel. Como poderia pensar em alguma cilada de uma mulher como aquela? Por outro lado, jamais poderia imaginar numa história tão absurda com o mecânico da oficina, contudo, sempre fica a dúvida, afinal quem pode entender a psicologia humana? Cada um é como é, pensou. Nisso, Rosa apareceu, abriu o portão de ferro e pediu que entrasse. Júlio sentou-se numa poltrona próxima à área onde estava o cachorro e mesmo na escuridão podia ver os olhos do animal pela vidraça da janela, o qual parecia à espreita de algum movimento. Ao mesmo tempo, talvez pela área desembocasse alguma brisa, pois sentia o ar escasso no ambiente. Ela entendeu a dificuldade de Júlio, pois perguntou se queria que abrisse a janela.

–Se acha que não ficará muito frio, preferiria sim. - Respondera, agora mais tranquilo.

Ela abriu um pouco a persiana, depois sentou-se no sofá a sua frente. Antes perguntara se ele não gostaria de uma bebida.

–Não, não, obrigado. Acabei de fazer um lanche substancioso. Bem, parece que você queria falar comigo, Rosa.

– Pois é, pensei inclusive que o senhor não viria. Deve ter tantos compromissos e eu incomodando-o uma hora dessas. Mas é que não gostaria de falar-lhe no hotel, muito menos na igreja, onde temos o coral. Lá há sempre muita gente, principalmente neste horário.

– Não se preocupe, Rosa. Se eu não pudesse, diria na hora em que me convidou. Parece que você está preocupada com alguma coisa.

– Pra falar a verdade, estou sim. O senhor sabe que eu sou maestrina do coral da igreja.

– Sim, e pelo que me consta tem um bom grupo lá.

– Sim, por isso tenho muitos conhecidos, alguns amigos de algum tempo.

Júlio aquietou-se, esperando que ela falasse. Percebeu que Rosa estava disposta a contar-lhe alguma coisa muito grave, mas não poderia apressar os fatos.

Rosa levantou-se, foi até a janela que ficava na outra extremidade da sala e observou a pouca luminosidade do jardim. Perguntou, displicente:

– O senhor reparou com o meu jardim é escuro? Já mandei trocar as lâmpadas várias vezes, mas os marginais que passam por aqui jogam pedras e acaba nisso, nessa escuridão. Já estou desistindo, sabe?

– Mas é uma cidade tão pequena. Não reconheceram os vândalos?

– Ninguém dá a mínima para o que acontece com a gente, nessa cidade. Eu posso ser assassinada, posso morrer a qualquer momento e ninguém faz nada.

– Você parece muito nervosa, Rosa.

Rosa voltou a sentar-se e pôs as mãos na cabeça, como se fosse chorar, num gesto que parecia de desespero. Num segundo, porém, se recompôs e após um longo suspiro, levantou a cabeça, encarando Júlio de um modo bastante grave. A seguir, perguntou, disfarçando o nervosismo:

– Tem certeza de que não quer alguma coisa, detetive? Posso servir um suco.

– Não, não, como lhe disse, Rosa, para mim está de bom tamanho. Quero apenas conversar com você, saber o que lhe aflige, por isso vim aqui.

Ela permaneceu em silêncio, como se temesse prosseguir no assunto. Júlio então, a encorajava:

– Você me disse que tem muitos conhecidos no seu grupo, alguns amigos. E então, queria falar sobre isso, não?

– Sim, entre os meus amigos está o Pe. João. Ele é uma pessoa boníssima, tem os seus defeitos, como todo mundo, mas tem se mostrado um grande amigo.

– Há outras pessoas que considera amigas, dentro do coral?

– Eu tinha uma grande amiga, a esposa do Seu Domingues.

– E ela deixou de sê-lo?

– Infelizmente, ela morreu. Não sei se o senhor teve a oportunidade de conhecer o Seu Domingues? – Júlio acenou negativamente e ela prosseguiu. – É um velhinho muito querido aqui da cidade, o senhor vai encontrá-lo sempre jogando damas na praça ou então sentado tomando sol. Também passa muitas horas na loja de conveniência, onde trabalha uma nossa colega do coral, Marília.

– Por que ele fica lá?

– Aquela loja era dele há muitos anos. Tinha um posto de gasolina, a loja e até uma farmácia. Quando a mulher morreu acabou vendendo tudo, vive sozinho num apartamento, mas gosta de ficar na loja, tomando um café e conversando. Isso, quando está de bom humor, porque de uns tempos pra cá, anda muito amargurado.

– Pela morte da mulher?

– Pela idade, pelas dificuldades que possui como todo idoso, naturalmente e claro, sim, pela morte da mulher.

– É normal, você não acha?

– Até certo ponto, sim, mas é que segundo ele, tem outros motivos.

– Outros motivos?

– Bem, dizem que a mulher morrera em virtude de um erro médico. A coitada tinha diabete e parece que o médico deu uma dose errada, sei lá, uma coisa meio absurda, sabe?

– Este médico que atualmente é residente no hospital?

– Sim, o dr. Ricardo. Mas isso não aconteceu agora, foi no tempo em que ele era apenas um estagiário. Tinha se graduado, mas ainda não havia passado na prova de residência, por isso ficara estagiando por dois anos na cidade. Pelo menos, é isso que dizem.

– Esta história é comentada na cidade ou apenas pelo tal de Seu Domingues?

– Dá na mesma, detetive. Todo mundo sabe o que acontece. Seu Domingues deve ter comentado com alguém, e certamente passou de um para outro e todos acabam falando a mesma coisa.

– É, falam de todo mundo. Mas me diga, Rosa, o que a deixou preocupada, além das histórias de seus amigos, deve haver alguma coisa que diga respeito a você?

– Por exemplo?

Júlio pensou em disparar rapidamente, a palavra Paulo, o mecânico, mas se conteve. Não era o momento de abrir o jogo. Precisava saber mais, descobrir o motivo do chamado de Rosa. Então, deu meia volta e remendou:

– Por exemplo, pessoas do seu grupo que a importunam. Pensei que um desses a incomodasse, ou que a deixava apreensiva.

– Bem, acho que o senhor tem razão. Mas falei na mulher do Seu Domingues, chamava-se Lorena, sabe, era uma criatura dócil, amiga. Isso me deixou apreensiva, sim, porque é o caso da diabete. O senhor deve saber que há casos de pessoas que morreram envenenadas com insulina, nem sei se se pode afirmar assim, chamar de envenenamento, mas aconteceu de pessoas que não tinham a doença, morreram por terem sido injetadas nelas o medicamento.

– Isso foi provado?

– A polícia está investigando. Alguns casos foram arquivados. Não há como provar, sabe.

– Você acha isso possível?

– Eu fiquei pensando neste caso da Lorena. E depois me falaram de outros casos semelhantes, não de erro médico, mas relacionados à insulina. Para encurtar o caso, detetive, eu estou com medo, porque hoje fui ao médico, fiz uns exames e descobri que estou com diabete. Eu estou com medo de morrer doutor!

– Rosa, você se deu conta que há dois tipos de crimes na cidade e que um determinado grupo de pessoas chama a atenção e dá muita importância a um tipo de crime e outro grupo está muito preocupado com o outro.

– Como assim, detetive?

– Há estes crimes que você descreveu, sobre pessoas que foram, segundo o que se comenta, injetadas com insulina e morreram por não possuírem a doença, não é isso? Há outras pessoas que falei, como Sara Soares e parece que seu filho também foi vítima disso, embora não tenha conversado com ele ainda.

– O senhor se refere a Raul.

– Sim, parece que ele faz parte do coral e é muito amigo seu, não?

Rosa parecia desconsertada. Caminhava de um lado para o outro da sala, como se não soubesse o que dizer.

Júlio concluiu:

– Mais tarde, eu faço questão de falar sobre ele, mas quero completar o meu pensamento. Falei no primeiro tipo de crimes que estão acontecendo aqui, mas há um outro, que se refere a uma moça que foi assassinada ou se suicidou, não sabemos, mas é um caso que envolve alguns suspeitos e muita dúvida pela polícia. Há um pai em absoluto desespero, que quer justiça. Há um médico, este mesmo que é residente na cidade, que está sendo acusado e ninguém fala, a não ser algumas pessoas interessadas no assunto. Você entendeu o que eu quero dizer, Rosa?

–Eu soube sobre o crime sim, mas para mim, a polícia está investigando e vai chegar a uma conclusão. Mas no primeiro tipo, como o senhor diz, a coisa está muito obscura. Por isso, eu estou com medo. E quanto ao médico, ele me parece envolvido nos dois tipos.

– Mas vamos falar sobre o seu amigo Raul.

Rosa respirou fundo. Não gostaria de falar em Raul. Como dizer-lhe que a presença de Raul a deixava feliz, que era uma pessoa muito bem integrada no curso, o único que não professava a religião católica, mas que gostava do que fazia. Estava sempre pronto a aprender novos acordes, aceitava as críticas, era um participante que ajudava ao crescimento do grupo.

– E você Rosa, eu lhe peço que seja sincera, já que pretende que eu possa ajudá-la de algum modo. Você gostava de Raul? Quero dizer, sentia alguma atração por ele, como homem?

Rosa rapidamente corou, sentindo-se pouco à vontade com a pergunta de Júlio, mas tentou responder com firmeza.

– Eu sou uma mulher madura, detetive, ele é um homem que talvez tenha os seus trinta e poucos anos.

– Mas e daí, isso interfere em alguma coisa?

– Não sei, pode ser que não, mas em se tratando dessa cidade…

– Deixemos a cidade de lado e o que o povo pensa desse tema. Responda objetivamente a minha pergunta, por favor.

– De modo algum! - Responde categórica. - Ele foi um bom amigo, apenas. Sentia uma atração por ele, não vou negar, mas não fisicamente. Era uma coisa de carência, de querer ajudá-lo, talvez até meio materna, mas nunca passou disso.

– Você disse que ele era um bom amigo, então deixou de sê-lo?

– É uma longa história. Raul andou me apresentando, sabe? Começou a fumar maconha, talvez tenha sempre usado, mas ficou meio irresponsável. Certa vez, entrou em minha casa com a minha chave, drogou o meu cachorro, a partir daquele dia, fiz tudo para que saísse do coral. Só que nesse meio tempo, segundo o que dissera, tentaram matá-lo, injetando insulina, como nos outros. Só que ele não morreu, porque tinha a doença e os criminosos não sabiam.

– Então a coisa é mais séria do que pensamos. Precisamos fazer um relatório, vou tentar pegar informações com a polícia sobre esses casos. Entretanto, estou muito preocupado com o outro caso.

– Antes detetive, me diga, não acha que estou com razão por ter medo? Se descobrirem que sou diabética, poderão me matar também!

– Mas quem faria isso? Qual seria o motivo para matar todo mundo que tem diabete, embora pelo que entendi, só morre quem não tem a doença. Então, não tem sentido tentarem matar quem está doente.

– Sei lá, talvez alguém que quisesse se vingar.

– Alguém como o Sr. Domingues que você falou? Afinal, a mulher morrera por um erro médico. Ela tinha a doença. Vai ver que ele queira se vingar do médico, fazendo morrer todos que não tenham a doença e talvez jogando a culpa nele.

– Mas isso é um absurdo.

– É um absurdo, mas os criminosos estão aí para provar que cometem absurdos.

–Talvez o senhor tenha razão, mas me diga, como pode ajudar-me, detetive?

– Esperando que você me conte tudo o que sabe, Rosa.

– Como assim? Eu já lhe contei tudo o que sei, esteja certo.

– Você conhece o ex-namorado da jovem assassinada, Taís?

Rosa estremeceu. Deu um salto para trás, como se fosse atingida por um projétil vindo da janela. Lá fora, D’tartagham ladrou com extrema fúria, que impressionou Júlio. Rosa então aproximou-se de um pequeno móvel que tinha algumas bebidas e serviu-se de um licor. Ofereceu-o ao detetive, que recusou mais uma vez. Tomou-o de um só gole e comentou, distraída:

– Não sei exatamente a quem o senhor se refere.

Júlio foi categórico:

– Refiro-me ao mecânico que trabalha na oficina dos Irmãos Silva. Pelo que me consta, você o conhece.

– Sim, devo conhecê-lo, como o senhor sabe, todos conhecem a todos nesta cidade. - Respondeu ansiosa.

– Mas pelo que um dos Silva me afirmou, você o conhece muito bem, até o tem ajudado desde que veio para cá, à procura da mãe. Se não me engano, você até alugou um apartamento em troca de alguns favores.

– Do que o senhor está falando detetive? A maneira como fala está me ofendendo. Estes miseráveis Silva nem sabem o que estão dizendo.

– Na verdade, fui irresponsável, agora. O Silva disse que o mecânico a conhecia e que você o tinha ajudado, mas não me contara tudo isso que relatei. Eu confundi as fontes.

– Qual foi o vagabundo que lhe informou isso?

– Não interessa agora, Rosa. Quero saber se é verdade, se você conhece o mecânico Paulo e se tem alguma relação com ele. O que significa este rapaz para você?

Ao ouvir a pergunta sobre Paulo, Rosa emudeceu. Ele então mudou de tática.

– Está bem Rosa, então vou tornar a perguntar sobre a filha do farmacêutico. O que você tem a me dizer sobre o crime?

Rosa o olhava intrigada. Parecia que as coisas estavam por demais confusas, para enveredar por aquele assunto. Afinal, não foi para isso que chamou o detetive. De súbito, respondeu, irritada.

– Eu acho que ninguém a matou, ela devia estar tomando um daqueles banhos que costumava e despencou rio abaixo.

– Como assim?

–Ela tomava banhos a qualquer hora do dia e da noite e nua, como veio ao mundo! Era uma leviana! Ou o senhor pensa que era uma santinha?

– Disso eu não estava informado. Ninguém comentou. Viu que não é tudo que falam na cidade?

–É, talvez só falem o que interessa para eles, para agredir alguém.

– Você a considerava uma leviana por isso?

– Só por isso, não. Ela era uma jovem muito atirada, dava em cima de qualquer homem que lhe passasse à frente. E não pense que eu é que achava isso, toda a cidade comentava!

–E quanto a Paulo?

Rosa prosseguia no mesmo tom enfático, diferente da mulher tranquila e ponderada que demonstrava ser.

–O que eu tenho a dizer, é o que todos dizem por aí. Taís era namorada dele e o traiu com aquele médico. Não tinha compostura. Era uma desequilibrada. Além disso, fumava maconha e bebia como uma viciada!

– Meu Deus, tudo isso! Mas namorou Paulo durante muito tempo?

– Uns dois anos. Ele pretendia até casar-se com ela, contra a minha vontade é claro. Mas ele gostava muito dela, estava encantado e passava a mão por cima de todos os seus defeitos. Ela fazia qualquer coisa para conseguir as drogas, até se prostituir. Era uma infeliz!

Júlio percebia que os olhos de Rosa brilhavam, como se estivesse falando com a própria vítima. Então, perguntou, oportuno.

– Rosa, quer dizer que você odiava esta moça.

– Com todas as forças de minha alma. Ela era capaz de tudo e ia acabar com a vida de Paulo.

– Você ama muito este rapaz.

Ela fez um silêncio pesado. Então, levantou-se do sofá e aproximou-se de um balcão escuro, onde pegou um maço de cigarros. Retirou um, deixou entre os dedos, mas não o acendeu. Encostou-se no balcão. Quando falou, o fez quase numa súplica, encarando fixamente o detetive.

– Dr. Júlio, eu lhe peço, esqueça esta história. Volte para a sua cidade, essa moça, pobre coitada, a gente sabe, não merecia isso. Veja bem, não vai resolver nada. Nem o senhor nem ninguém vai trazê-la de volta.

– Por que quer que eu esqueça o caso? Fui contratado por Lucas, o pai da moça.

– Lucas, aquele maldito! Por que não deixa a filha descansar em paz?

– Mas qual é o motivo de querer deixar tudo como está? Não é melhor resolver o problema?

– Não, doutor, não é melhor. - E quase chorando. - Tenho certeza de que vão acusar o Paulo, só porque ele é um pobre coitado. É a parte mais fraca. Jamais vão acusar aquele doutorzinho de merda, o senhor pode ter certeza.

Júlio a ouvia surpreso. Fez uma pequena pausa e logo argumentou:

– Você sabe que na condição de detetive, preciso saber algumas coisas, como por exemplo, qual é a sua verdadeira relação com este rapaz.

Ela largou o cigarro sobre o balcão, desistindo de fumar e voltou a sentar-se no sofá. Enxugou algumas lágrimas e tentou parecer mais calma.

–Ele não é nada meu, mas me considera como uma mãe e diz para todo mundo que sou a mãe que procura há muito tempo. Eu, apenas lhe dei guarida, um dia. Ajudei-o quando precisou e foi ficando aqui, num apartamentinho que tenho para alugar. Sabe, doutor, ele tem a cabeça fraca, não é muito inteligente. Mas para mim, todos são iguais, por isso, eu o considero muito. Não quero que sofra por causa daquela desmiolada!

– Sinto muito, Rosa, não posso ajudá-la neste sentido. Não posso fazer nada. E depois, se acharem o verdadeiro culpado, ele será isento de tudo, se for realmente inocente.

– Não, vão fazer tudo para colocá-lo na prisão, tenho certeza!

– Mas afinal, por que motivo? Quem está mais enrascado, na minha opinião, é o médico. A menos, que existam outros fatos que eu desconheça.

– Não, não há nada. Só posso dizer que ele é inocente.

– Pois se ele é inocente, não tem por que se preocupar, precisa só responder algumas perguntas, como por exemplo, onde ele estava no dia da morte da moça.

– Isso, o senhor terá que perguntar pra ele. Eu não posso lhe dizer nada.

– E ele foi fazer o que na Capital?

– Ele foi lá buscar uns documentos. Foi assaltado certa vez na capital e agora os documentos foram encontrados.

– E quanto a você?

– Quanto a mim? O que quer dizer? Eu não tenho nada a ver com esta história.

– A mesma pergunta clássica: onde estava no dia do crime?

– Eu não sei. Como vou me lembrar? Nem sei o que comi no jantar ontem! Mas o senhor devia pesquisar o tal médico, porque o carro conversível dele estava parado por lá, bem na outra margem do rio, próximo à ponte. Já soube disso?

– E como você soube? Rosa, já percebeu que de repente, passou a incriminar o médico sobre um crime que você nem estava interessada? Parece que este rapaz é odiado nesta cidade, porque é culpado de tudo.

– Não sei, ouvi falar. Todo mundo fala tudo nesta cidade, lembra? Eu não tenho nada contra o médico, nem contra ninguém. Como lhe disse, estou assustada.

– Em todo caso, é bom você tentar lembrar o que fazia naquele dia, porque você demonstrou que odiava esta moça.

– O senhor não vai querer me acusar, detetive?

– Eu não acuso ninguém, Rosa. Procuro provas, só isso.

– Bem, acho que nosso assunto se esgotou. O senhor em vez de tentar me ajudar, acabou me acusando.

– Como lhe disse, não acuso ninguém. Mas há de convir que a sua reação foi muito estranha. Defendeu este rapaz, o tal mecânico com unhas e dentes, como se eu estivesse acusando-o de alguma coisa.

– Eu já lhe disse, doutor, estou muito nervosa e Paulo é uma pessoa muito boa, não merece que o acusem. Sei que mais cedo ou mais tarde, vão fazer alguma maldade contra ele, só porque ele andou com esta moça. Mas tenho certeza de que tem muito mais gente envolvida.

– Isso nós vamos descobrir!

segunda-feira, julho 04, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 11º CAPÍTULO

No capítulo anterior, o detetive Júlio tomou informações com o médico Ricardo, que é acusado de matar uma jovem, que segundo o que dissera, se aproximara dele com uma intenção possessiva, a ponto de persegui-lo até mesmo no trabalho. O detetive também ficou sabendo que ela abandonara um presumível namorado, chamado Paulo, um mecânico da cidade, o qual tentara agredir o médico, mas que acabara entendendo que ele não era o culpado da situação. Por outro lado, havia uma jovem chamada Ana, de aproximadamente 14 anos que sabia alguma coisa sobre o crime. Júlio Ramirez então, prossegue a sua investigação no 11º capítulo a seguir. Divirtam-se com o nosso folhetim policial.

CAPÍTULO 11

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/ponte-grade-água-rio-1038830/

Júlio voltou para o hotel. Quem diria que estaria novamente na ativa, depois de ter afirmado tantas vezes para si mesmo que este era um tempo passado. Depois do almoço, a tarde se alongava e ele precisava seguir a investigação. Detestava as tardes, detestava os dias que se prolongavam como os de hoje e só se sentia bem à noite. Esta sim, poderia levar mais tempo do que o normal, poderia se estender infinitamente.

Decidiu então dar uma volta perto do rio, quem sabe não descobriria algum fato novo, que a polícia não houvesse encontrado?

Pegou o carro e atravessou a cidade. Não demorou muito pela área limitada. Em seguida, passeava pelas margens do rio, que hoje parecia um pouco mais calmo. Um vento fino fazia parte do cenário. Olhou para a pequena ponte ao longe e percebeu que uma menina estava encostada no parapeito, falando ao celular. Aproximou-se e ficou por ali, pensando tratar-se de alguém conhecido. Quem sabe um parente de sua família. A menina parou de falar e o olhou, um pouco assustada.

– Você costuma andar por estas bandas? Não é perigoso? – Perguntou, mostrando-se confiável.

– Aqui todo mundo se conhece. – Ela respondeu, displicente. Olhava para longe, os olhos grandes fixos no nada. Ele insistiu:

– Mas eu por exemplo, cheguei agora na cidade.

– Eu sei quem é. O senhor é o detetive que nasceu aqui, não é?

Desta vez, ela o encarou com um sorriso irônico.

– Acho que você tem razão. todo mundo sabe tudo de todo mundo, nesta cidade.

– Isso é ruim?

– Tem os dois lados.

– Você então sabe o que aconteceu com a filha do farmacêutico.

– Sim, eu estava aqui quando ela deu um grito, depois desapareceu.

Júlio abriu mais os olhos, satisfeito e engatilhou a exclamação:

– Ah, foi você. Que coincidência!

– Não é não. Eu venho todos os dias aqui.

– Ah, sim.

– Gosto de ficar aqui. Daqui a pouco, meus amigos virão também.

– Então, você a ouviu gritar, pedir por socorro?

– Não, foi um grito de dor.

– E onde você estava naquele momento, quero dizer, bem aqui, na ponte?

– Não, estava do outro lado, na fronteira da cidade. Aqui é o quase o limite, sabia?

– E naquele momento, você viu alguém passar aqui, perto?

– Na hora do grito, não. Uns quinze minutos antes, eu vi um carro parar no outro lado do rio. Depois desceu um homem e caminhou por lá. Não demorou muito, porque não o vi mais.

– Você reconheceu este homem?

– Pelo carro, era o médico, o dr. Ricardo.

– Você o viu?

– Com certeza, não. Estava uma neblina forte. Naquela noite, era impossível identificar alguém. Até mesmo eu, se alguém me olhasse do outro lado da ponte, só veria um vulto.

– Poderia ser outra pessoa, a noite vinha caindo, estava com neblina, como você mesma diz, então como pode afirmar que era o médico?

– Não posso afirmar nada, mas sei que era ele, porque o carro era dele. Um conversível desses importados. Ninguém tem um carro desse porte aqui na cidade.

– Está bem, mas quer dizer que você ouviu o grito e a queda na água?

– Acho que sim. Na água não da pra ter certeza, era muito barulho, ali tem a correnteza, o senhor sabe.

–Alguns minutos mais tarde, você viu o corpo flutuar, é isso?

– Eu achei que era, mas ele sumiu, foi parar quase no outro distrito. Então corri pra pedir ajuda.

– Não viu alguém por perto?

– Sim, meus amigos que vinham chegando. Contei tudo para eles e fomos até o centro.

– Me diga uma coisa, quantos anos você tem?

–Vou fazer quinze.

– O que você faz com seus amigos neste lugar deserto, posso saber?

–O que o senhor acha que se pode fazer numa cidade que não acontece nada, que só tem velho?

– Eu imagino, mas quero ouvir de você… Afinal, há muito o que fazer, pensando bem…

– O senhor já fumou baseado?

Júlio calou-se. Estava respondido. Observou que Ana se afastava um pouco e averiguava uma mensagem do Whatsapp, provavelmente. Foi até a ponta da ponte e esperou o grupo que se aproximava. Largou a mochila no chão e voltou a encostar-se no parapeito.

Júlio decidiu voltar para o hotel. Na verdade, o seu interesse maior era seguir adiante, ir para o centro da cidade, procurar a oficina e tentar falar com Paulo, o namorado de Taís, a moça presumivelmente assassinada. Dirigiu pensativo, lembrando das palavras da menina. Afirmava com absoluta certeza de que era o médico que andava nas redondezas da ponte, mais precisamente do outro lado da margem do rio. Talvez tivesse um encontro com a morta, quem sabe seria o último, porque precisava acabar com aquela história de uma vez por todas, segundo o que informara. Para ele, aqueles encontros organizados por Taís não passavam de uma verdadeira perseguição. Mas havia muito a pensar sobre esta história toda. Havia mais um elemento, o tal namorado chamado Paulo que trabalhava numa oficina mecânica. Era com ele que devia falar e por isso, resolveu procura-lo, antes mesmo de chegar ao hotel. Não demorou muito e estava lá. Deixou o carro na frente do grande portão e entrou no ambiente meio escuro. Parecia um galpão velho.

Um homem barbudo aproximou-se.

– Seu carro está com problemas?

– Não. Ou melhor, ele anda engasgando sim. Não sei se é o frio desta cidade.

– Faz pouco que o senhor chegou aqui?

– Só três dias.

– Vamos dar uma olhada. Por favor, levanta o capô.

Júlio olhou a placa onde estava escrito “Oficina Silva”. Perguntou ao homem, enquanto abria o capô do carro.

– Você é o Silva?

–Sou um dos. Somos sócios e somos Silva os dois. E olhe que nem somos irmãos.

–Ah, é normal. Este sobrenome é muito comum. O seu sócio é o Paulo?

–O Paulo? Não, aquele é um pé de chinelo. É nosso ajudante, só.

–E ele não está?

– Não, precisou ir na capital. Vai ficar lá uns dois dias.

– E você sabe o que ele foi fazer lá?

O homem o olhou desconfiado. Júlio explicou-se.

– Desculpe, não me leve a mal. É que estou procurando pelo Paulo, preciso falar com ele e gostaria de saber se vai demorar.

– Como eu lhe disse, uns dois dias. Foi acertar uns documentos, coisas do tipo.

–Ah, que bom. E onde ele mora?

–Mora com a mãe, uma viúva. a mãe, ou amiga, sei lá. O caso dele é complicado. Fica no final da rua principal.

– Então é a rua do meu hotel. Mas por que você disse que o caso dele é complicado?

O barbudo não respondeu. Falava sobre o carro, como se quisesse livrar-se do cliente indesejado.

– Moço, não tem nada no seu carro. Deve ter sido o frio mesmo, agora tá tudo bem. A gasolina está passando direitinho.

–Ah, obrigado. Me diga, como é o nome da mãe do rapaz?

_ Rosa.

–Rosa, a maestrina? A moça da portaria do hotel?

– Olha aqui, meu amigo, não sei se é mãe, a gente chama assim, mas é problema dele. É melhor perguntar pra ele.

– Sim, claro, só queria saber se é a mesma mulher.

– Pode ter certeza de que é, mas como eu lhe disse, é problema deles, nem sei se é verdade o que dizem.

– E o que dizem?

– Não posso lhe dizer nada. Não é da minha conta. Como lhe disse, pergunte pra ele, quando voltar!

domingo, outubro 25, 2015

PÓS-ESCRITO SOBRE O CONTO “O DILEMA DA PRIMEIRA-MINISTRA"

1. O desafio

No conto “O dilema da primeira ministra”, participei do desafio de uma oficina literária online, cuja provocação era evitar o assassinato de Indira Gandhi, de modo inusitado, através de personagens cujas existências não fossem do mesmo período de tempo. Indira Gandhi foi assassinada a tiros, em Nova Déli, diante da residência governamental, por dois agentes de sua própria guarda de segurança, no ano de 1984. Neste ambiente político que cercava a primeira ministra, deveriam se reunir o Papa João Paulo I e um emissário da Mossad, chamado Hersch.

Foi um trabalho complicado, principalmente para dar verossimilhança ao discurso dos envolvidos no conflito. Para tanto, pesquisei sobre a história da Índia, principalmente sobre a Primeira Ministra Indihra Ghandi, o partido comandado pela doutrina religiosa Sikh, sobre a morte do Papa João Paulo I e o movimento de espionagem chamado Mossad.

2. Algumas pesquisas

Desse modo, reuni no mesmo cenário, o Papa João Paulo I, que havia morrido seis anos atrás, ou seja em 29 de setembro de 1978. Segundo relatos, uma freira chamada Vicença encontrou o Papa sentado na cama com uma expressão de agonia. Num outro momento, no entanto, informou que o havia encontrado no banheiro, já morto, com as roupas papais. Com a intenção de equilibrar o clima religioso com o político, dispus na mesma cena, o Papa João Paulo I e o emissário Hersch interagindo no mesmo contexto político que cercava a primeira-ministra da Índia. Os dois estavam imbuídos em ajudá-la a safar-se da difícil situação política em que se encontrava, com risco de vida, por ter enfrentado o grupo religioso cujo principal discípulo liderava o maior partido da Índia.

O primeiro personagem interviria no destino da Índia através do resgate do perdão, que considerava a única saída para a Primeira Ministra safar-se do cruel destino que a aguardava. Por outro lado, o emissário da Mossad tem como missão a outorgada por sua organização que se ocupa em libertar judeus e capturar seus perseguidores, principalmente os nazistas espalhados pelo mundo, inclusive, os que ainda existem nos tempos atuais. Este movimento realizou perseguições na Argentina e inclusive no Brasil, quando seus representantes descobriram que o médico Joseph Mengele, responsável por experimentos macabros em Auschwitz, vivia no interior de São Paulo. Sua intenção portanto, era salvaguardar as comunidades judaicas na Índia, o único país onde os judeus não sofrem discriminações, Segundo ele. Entretanto, a comunidade mulçumana está crescendo muito e este grupo religioso não respeita os judeus. Conclui-se, portanto que esta organização de espionagem internacional se ocuparia do líder missionário Sikh, cujo poder se intensificava na Índia. Havia a intenção de os Sikhs proclamarem uma comunidade soberana que devia se autogovernar.

Outro trabalho importante de pesquisa foi relacionado à própria situação da Índia, no governo de Indira Ghandi, principalmente no aspecto religioso e politico dominado pela doutrina Sikh. Os sikhs são membros de uma seita religiosa que defende a fundação de um país independente no Estado do Punjab. Desde a infância os membros dessa comunidade recebem formação religiosa e militar. Muitos deles fazem carreira, ocupando postos de importância no Exército e nos serviços de segurança indianos. Esta doutrina com traços do hinduísmo e islamismo se tornou uma força política imensa, comprometendo a democracia. A intenção dos partidários Sikhs era proclamarem uma comunidade soberana que devia se autogovernar. Numa intervenção para derrotar esta rebelião, Indira Gandhi deu ordem ao Exército para irromper pelo santuário e os ocupantes recusaram-se a sair. Na luta que se seguiu houve 83 soldados e 493 ocupantes mortos, incluindo os líderes, além de numerosos feridos. A partir daí, houve um rompimento grave nas relações entre os hindus e sikhs, que levariam finalmente a seu assassinato.

Indira foi assassinada por um de seus guarda-costas de maior confiança: o inspetor Beant Singh, que exercia o cargo há dez anos, informado à AFP por um membro dos serviços de segurança que presenciou o atentado. Beant Singh e o capitão Sawant Saingh, um guarda-costas nomeado recentemente, dispararam contra Indira às 9h18 locais , quando ela se dirigia para uma filmagem com o ator britânico Peter Ustinov, que estava na Índia rodando um seriado sobre líderes políticos. Ustinov estava do lado de fora da casa num gramado onde seria feita a entrevista, junto com o secretário de Imprensa Sharda Prasad, quando os guardas atiraram. Eles presenciaram toda a cena. "Tudo estava pronto, o chá servido e ela caminhava em nossa direção, quando ouvimos três disparos", contou Ustinov à televisão francesa, acrescentando: "Por um momento pensamos que fossem fogos de artifício, mas logo após um dos guardas disparou a metralhadora contra ela". Segundo a agência France Presse, o ator teria filmado o atentado.

3. As personagens

Indira Ghandi

Examinando a figura de Indira e pesquisando a personalidade retratada nos jornais e em pesquisas embasadas em fatos históricos, desenhei com simplicidade a imagem de Indira, de acordo com as cenas apresentadas. Tentei mostrá-la como uma mulher forte, tranquila, habituada às reviravoltas políticas, mas que no momento estava desorientada. Fazia questão, porém de mostrar-se calma e segura, tendo este desempenhado completamente se transformado a partir das visitas inusitadas que recebera. Afinal, encontrava um homem que morrera um tempo atrás, e que lhe dizia coisas que pareciam um vaticínio, além de lhe mostrar outro caminho, que Segundo ele, seria o do perdão. Por outro lado, o emissário da Mossad era uma figura pouco provável em seu context politico, apesar de haver certas discriminações aos judeus em seu País, através da religião mulçumana que crescia grandemente. Tentei mostrá-la como uma pessoa forte, por sua posição política, mas ao mesmo tempo frágil por todos os acontecimentos conturbadores que ocupavam seu cenário de governo, aliados às revelações que acabava de ouvir. Embora não possuisse traços de beleza, era uma mulher que irradiava austeridade e uma certa delicadeza através dos gestos delicados e firmes. Imaginei também que fosse recatada e através de sua sobriedade, revelasse certa beleza. Possuia uma vaidade velada, que não costumava admitir. Havia naquele momento de incertezas um medo que a desorientava. Numa epifania do personagem, ao ouvir o pedido de perdão que deveria fazer à comunidade silkh, a primeira ministra se emocionou e viu através da janela os seus agentes que a protegiam. Por serem eles, silks, ela viu o quanto lhes devia pedir perdão, transferindo para os agentes toda a gama de sentimentos de arrependimento que a tomavam. Afinal, jamais fariam nada contra ela. Estavam ali para defendê-la.

Emissário Hersch

Tentei representá-lo como um homem muito seguro de si, com um olhar frio, embora complacente, embora não tivesse qualquer dúvida sobre sua missão. Tiha os olhos claros, os lábios finos, o que para mim, identificava o biotipo que se tem em mente dos conspiradores, capazes de qualquer coisa para terem a missão cumprida, como os representantes anglo-saxões. Mas aqui, seria somente uma licença poética, porque ele era um judeu. Não tinha o hábito de sorrir, mas confiava plenamente na palavra do Papa, embora o seu objetivo se limitasse ao aspecto puramente politico. O papa seria para ele uma espécie de acesso ao problema.

Papa João Paulo I

O Papa João Paulo, cabelo grisalho alinhado para a direita, cujos olhos pequenos pareciam menores sob os óculos pesados. Revelava uma fisionomia alegre, sorriso denso e uma capacidade infinita de mostrar-se o quanto era sincero. Seu interesse era resgatar a paz na Índia e salvar a Primeira-ministra através do pedido de perdão aos sikhs pela terrível chacina no templo. Segundo ele, este pedido selaria a paz e a reconciliação entre as várias facções políticas e religiosas no país. Era um homem de Deus. Um homem de bem, que justificava o seu destino pela impermanência da vida. Veio com a convicção de que convenceria a estadista e assim o fez.

Peter Ustinov

Ator inglês que faria uma entrevista com Indira, mas que somente é citado no texto.

4. Conflito

O conflito se resume na proposta de salvar a vida de Indira, através do convencimento pelos dois personagens que a visitaram. Um, considerando que a convenceria pela prudência política e diplomacia, pois através de sua atitude, ela acabaria realizando a própria missão de sua organização a favor dos judeus. O outro representante estava convicto que pela bondade do coração da estadista, chegaria a bom termo, a fim de conseguir a paz almejada, resultado de seu pedido de perdão e consequente preservação de sua vida. Afinal, ela era um mulher que lutara pelos pobres, que transformara os país numa democracia, que conseguira melhorar a economia com a nacionalização dos bancos e fôra responsável em grande parte pela vitória da Índia no conflito contra o Paquistão, além de outras medias que a tornaram querida entre os cidadãos e a classe média indiana. Entretanto, para banir as rebeliões, ela governou com mãos de aço, inclusive com poderes quase ditatoriais.

No conto, entretanto, o plot se resumia em salvá-la de um presumível ataque pelos agentes que trabalhavam em sua residencia, comandados pelos rebeldes. Os dois enviados ao seu encontro tiveram sucesso através de suas forças de convencimento e a epifania da personagem ocorreu no momento em que ela viu com olhos de compaixão os agentes que a protegiam e que pertenciam à doutrina sikh do templo que invadira.

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