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sábado, junho 03, 2017

DIA DE LIMPEZA

Dei alguns passos pela calçada suja, enlameada pela enxurrada, sem imaginar que fugiria dali tão rapidamente. Modo de dizer, meus pés doíam e meus passos tinham a medida certa de fugir das poças.

Sacos plásticos entulhavam-se nas bocas de lobo. Carros passavam próximos à calçada, aumentando ainda o caos que se alimentava de nós, mendigos, pedintes, marginais, prostitutas, acostumados a fazer da deformação geral, o nosso modo de vida.

Mas chegar àquele ponto de ser chamuscado, quase queimado, quando uma mão sinistra com isqueiro se aproximou do banco em que estava e tacou fogo como pôde, foi o portal do inferno.

A sorte foi a chuva.

A sorte foi estar acordado.

A sorte foi ter forças ainda para levantar, examinar a cara do bandido e esborrifar nele um cuspe que me vinha da alma.

Ele fugiu, dando risada da minha cara. Eu fiquei, ali sentado, ali sozinho, ali maldizendo o que não tinha pra maldizer.

O que não tinha que esperar. Quem sabe morrer ali, na rua, queimado, transformado em cinzas não era a saída?

Mas ficar assim, humilhado, era pior.

Ainda me sentia assim. Ainda tinha brios que desconhecia.

Agora estou aqui, com fome, procurando um café pra aquecer o estômago. Mexo nos bolsos, agitado. Parcas moedas tilintam nas mãos.

Oh, amigo, quer encostar o carro? Puxa pra cá, arreda pra lá. A gente se acerta.

Mas é difícil participar da vida dos outros. Eles não querem intimidade. Têm medo da gente. Medo de bandido, como eu.

Talvez, um dia, procure uma saída.

Talvez saia desta vida, faça a barba, corte o cabelo e procure alguém que ficou pra trás. Lá longe, bem distante, quase no infinito do paraíso.

Uma velha mãe escondida na costura. Uma mulher que mudou de vida, para esquecer o marido bêbado. Levou os filhos, levou os móveis, os poucos agasalhos. Levou a vida.

Mas só o café não basta.

Um trago forte vinha a calhar.

Quem sou eu, me pergunto. Lavo os para-brisas dos carros em busca de alguns trocados. Procuro uma vaga nos estacionamentos. Se não existem, invento.

Tenho raiva de fazer isso. É o que me toca. Não tem jeito. Quem sabe, ainda arranho o carro deste cara, que esqueceu de me dar o que mereço.

Aturar a cara emburrada, enfiar um sorriso, tentando argumentar do meu jeito e depois ser jogado pro lado, como quem empurra um traste qualquer, interrompendo o caminho.

Quando a noite chega, o frio aumenta.

Voltar pro buraco é tentar conhecer o túmulo antes da morte. Empurrar os pés na laje e fingir que se encosta no baú, aos pés da cama.

O frio enrijece os músculos. Os pensamentos ficam mais demorados, mais confusos.

A melancolia avança noite adentro, sem convite.

Tenho tosse, dor de cabeça. Pés gelados.

Ouço barulhos lá fora, risadas, choros, gritos quase uivos ao longe.

Alguém que morre, leva porrada ou vai preso.

Ainda tenho este canto do túnel pra me agasalhar.

Os companheiros não vieram. Certamente estão enfiados nos albergues para passar a noite. Aquecer a garganta com uma sopa quente, submeter-se ao banho.

Sinto que não vou dormir.

Uma luz forte invade meu espaço, sem pedir licença. Vozes de homens, ganidos de cães.

Um grito mais forte nos meus ouvidos, o cano de um fuzil apontado para minha cabeça.

O mundo mergulha em desespero, não por mim, não pela minha pele frágil e suja. Mas pela dor tangente na alma dos homens.

Um dia os sinos tocarão em regozijo e eu serei, quem sabe, amado por alguém.

Aquela velha na costura deve estar lá me esperando, talvez a gente se encontre.

Puxam-me os pés, empurram-me o corpo, usam expressões rasteiras.

Olhos brilham na noite, como corujas alertas. Me encaram de perto. Cães farejam. Sentem meus humores. Procuram meus pertences. Examinam meus bolsos. Nada que procuram encontram, mas o que acham lhes basta para completarem o gozo: meu corpo frágil e oprimido.

Pelo menos, aqui, têm uma resposta a suas indagações.

Um isqueiro brilhou próximo aos olhos de um deles.

Estremeci, não pelo fulgor dos olhos, mas pelo clamor da chama.

Baixei a cabeça e vi cair perto dos coturnos o palito quase cinza.

Mas a visão daquela chama ainda abala meu ser, como se os alicerces enferrujados afrouxassem pela força do vento. Vento que agora zune forte, esfriando ainda mais o ambiente.

Levaram-me com eles, sem dizer o destino.

Tinha de concordar, quieto, calado. Era dia de limpeza.

A cidade aguardava um influente evento internacional.

Tinha de tomar o meu rumo.

quarta-feira, julho 31, 2013

A CINZA EM QUE ARDI

Sempre a vira expor-se de maneira ridícula. Pelo menos para os padrões da época. Tinha lá seus quase oitenta anos e se vestia como uma mulher de trinta. Um vestido godê preto, que ao vento lhe subia nos ombros, aos meus olhos espantados de 10 anos. Na boca, um batom vermelho delineando os lábios sumidos. Um sorriso largo, de dentes miúdos, com falhas inevitáveis. Gostava de sentir-se assim, livre e talvez a sensibilidade aflorada na pele revelasse apenas o desejo de felicidade. Uma brisa, um aroma, um sopro de vida. Todos ou quase todos a chamavam de louca. Ou senil. Ou velha destemperada. Não lhe permitiam explosões em seus pensamentos, nem alfinetadas nas ideias que não se constituíssem um dedal. Mentes torpes, endurecidas pelo hábito higiênico e padronizado da maioria. Eu, como criança, talvez a seguisse no que tinha de melhor. E o melhor eram os livros que me oferecia. Livros tão antigos quanto à coluna que se comprimia nas vértebras enferrujadas. Livros amarelecidos, capas andrajosas pedintes de leituras, folhas finas, às vezes rasgadas. Pedaços de livros. Frangalhos de histórias. Mas que me faziam beber da fonte inesgotável da aventura, de trajetórias distintas das que seguia, dos vôos altos em que avistava outros prados.

Ela não arrefecia em mostrar-me este novo mundo, talvez porque visse em mim uma sagacidade desconhecida aos demais de sua família. Um desejo de ir mais longe ou de descobrir o que estava tão perto, mas tão perto, que nem fazia sentido.

Ela era assim: alegre, divertida, faceira, estranha. Um estranho absurdo, que talvez a lançasse aos limites da loucura. Mas esta insanidade voraz e desconhecida talvez a tornasse um ser humano íntegro em sua relação peculiar com a vida.

Claro que nem todos a entendiam, nem eu. Apenas não a julgava com o olhar de adulto. Por certo, encontrava em sua imaginação fértil uma afinidade com o universo interior de um pretenso escritor. Tudo que eu escrevia num papel encardido de embrulho era devidamente analisado, anotado e compreendido. Quando muito, uma nova visão, um ponto de vista próprio, difícil de atingir, mas que anunciava uma entrega desavisada com cheiro de sonho e gosto de felicidade.

Morava com um irmão tão velho quanto ela e os três sobrinhos. Todos a consideravam amalucada, rótulo vencido.

Eu sentia um certo constrangimento em me aproximar, tal era o preconceito que expressavam sobre ela.

Certa vez, ela me chamou pelo muro. Estendeu seus braços finos, com um caderno na mão, tão amarelo quanto os livros. As unhas vermelhas apertavam a capa cerzida na restauração improvisada. Percebi que havia uma espécie de tule ou renda branca empoeirada, revelando o guardado num daqueles baús imensos que tinha ao lado da cama. Espichei o meu braço, arrastando-o no reboco rugoso e peguei o caderno. Ela fez um sinal cúmplice com a boca, produzindo mil ruguinhas entre os lábios, pedindo que não o abrisse logo, apenas quando estivesse em casa, engendrando minhas histórias. Obedeci. Guardei o caderno embaixo do travesseiro para lê-lo à noite, sem muito tempo para decifrar o que havia nele. Fui para a escola, de lá para casa, o banho, um pouquinho de tv, o sono e esqueci o presente.

Acordamos pela manhã, eu e meus pais com os gritos. Uma ambulância e um olhar de desespero cercado entre braços fortes que a empurravam para dentro do veículo, como se pudesse resistir a não ser com gritos. Um cheiro de fumaça, de papel queimado, de lixo armazenado no fundo do quintal.

Meu pai perguntou ao sobrinho mais velho o que estava acontecendo, mas não houve tempo para respostas, a sirene já se ouvia forte, abrindo caminho na rua onde se formavam pequenos grupos. Todos comentavam, produzindo explicações que convinham. Alguns meninos no caminho da escola, paravam intrigados, observando a cena. Cenário perfeito para uma investida na imaginação por mais acanhada que fosse. Tudo conspirava para o senso comum se estabelecer: dispensar a tia louca para o sanatório.

Meu pai afastou-se do lugar enquanto minha mãe já tomava as últimas da vizinhança. Entramos, a hora se adiantava. A vida continuava. O mundo girava no mesmo ritmo. Um ritmo desordenado em nossa vida caótica. Lembrei de seu irmão mais velho, que nem aparecera. Devia ter ficado lá, constrangido pela covardia em não lutar contra um destino que mais cedo ou mais tarde seria o seu.

Não me contive e desviei do cuidado de meus pais e pulei o muro, pelos fundos do quintal. Atravessei o pequeno alpendre e passei pela cozinha, dirigindo-me ao quarto dela: reduto pouco visitado, embora lá havia conhecido e ganho os meus primeiros livros. Percebi que o irmão estava encostado no parapeito da janela que dava para o nosso pátio, um cotovelo apoiado, com a mão no queixo, amaciando a barba mal feita e na outra mão, um cigarro de brasa esquecida.

Afastei-me pé ante pé e abri a porta do quarto, lentamente. Observei a cama de mogno desarrumada, a cômoda com os porta-retratos atirados, uns sobre os outros como em efeito dominó, alguns livros rasgados. Mas meus olhos se detiveram espantados na velha estante de madeira que emoldurava toda a parede do lado esquerdo, oposto à janela. Estava vazia, uma estante em que moradores notáveis fizeram historia, um Kafka, um Machado, um Guimarães Rosa, um Joice, um Goethe, um Dostoevisk. Demandaram em derradeira missão, talvez desconhecida e definitiva, jamais almejada.

Corri para os fundos do quintal, segui a cortina que se antecipava aos meus olhos e um pequeno visgo de fumaça, como uma serpente que se insinuava, mostrava o caminho.

Ali estavam os livros, com suas brochuras à mostra como esqueletos restantes do incêndio homicida, costuras desalinhadas, pedaços de folhas em desenhos disformes com olhos negros produzidos pelo fogo, marcas indeléveis, transmutando o que era saudável em feridas fatais. Sangue negro escorrido nas cinzas, fome de vingança jamais aplacada.

Ainda salvei das últimas chamas, alguns farrapos que resistiam aos pingos de sereno. Parte de um livro de Almeida Garret, que li sujando as mãos na página quente, que me doíam os dedos: restos mortais de uma vida que se dissolvia na intolerância.

Seus olhos - se eu sei pintar

O que os meus olhos cegou

Não tinham luz de brilhar.

Era chama de queimar;

Vivaz, eterno, divino,

Como facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave


Ao mesmo tempo: mas grave


E de tão fatal poder,


Que, num só momento que a vi,

Queimar toda alma senti...


Nem ficou mais de meu ser,

Senão a cinza em que ardi.

Nunca mais a vi. À noite, abri o caderno de capa cerzida e passei a viver assim, embasbacado, até descobrir o sentido das coisas que avistara. Ela teria feito um apanhado de minhas histórias, como incentivo a prosseguir no desvendar incessante da imaginação. Um dia, seria talvez um aprendiz de um daqueles escritores consagrados. Mais tarde, porém percebi que aquelas narrativas não eram minhas, a não ser a semelhança pela ingenuidade e a descoberta prenhe da vida. Eram histórias de há muito tempo atrás, talvez de seis ou sete décadas, quando ela era tão criança quanto eu e assim, iniciara também seus contos num caderno, hoje cerzido de linha azul, para preservar o sonho. E talvez, a lucidez.

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