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sexta-feira, abril 27, 2018

Tênue limite

José cavalga pelo estreito caminho de terra vermelha. Nas bochechas, o ardente do dia, a boca seca, com um fiapo de grama no canto. Um olhar perdido no horizonte. Campos, campos e mais campos. Nos pés, chinelos de dedo arranhando a barriga do cavalo.

Quem o olhasse de perto, pensaria que tem a vida decidida. Conduta perfeita. Atitude positiva.

Na verdade, não. Ele nem sabe o que fazer além do que faz todo o dia. Busca os animais. Estão quase escondidos, próximos a um quiosque, perto da propriedade dos vizinhos e não muito longe da rodovia. Mas tem que ir.

Quem o visse, diria, que gaúcho guapo. Falta só as esporas, a bota, a bombacha.

Que nada. Está de calça rasgada no joelho e muito suja. Não é porque gostaria, mas porque não pode sujar a roupa no trabalho. Tem que trazer o gado, como faz sempre. Não são muitos, nem passam de uma dúzia. Mas também não são dele, nem de sua família. É apenas um peão, que mora numa cabana, quase casebre.

Os ventos mudam de direção, mas não ele. Quem sabe volta a estudar e aprende a ler alguma coisa. Não é tão difícil. Poderá ser chamado de gaúcho guapo, participar da Semana Farroupilha, exaltar os farrapos e comer churrasco em homenagem.

Ele é como um nômade, um pária, porque não é urbano, nem rural. Ele é ele mesmo. Como ele, milhares de gaúchos que vivem nas beiradas dos cofres alheios, tentando pegar algumas moedas.

Mas o povo levanta bandeiras, dá vivas à revolução e acredita que o Rio Grande é um país à parte.

Ele não, está neste liame, neste tênue limite, no qual não se permite a galhardia, a ousadia e a macheza do gaúcho. Aquele que vem uma vez ao campo, se veste à caráter, rompe estradas com seu 4x4 e dança nas mateadas. Este aparece na mídia.

Talvez ele seja um guasca, um índio do mato, uma mistura das três raças, nem sabe.

Negro tinha na família e índio era o avô.

Mas deixa pra lá. Melhor é caminhar quase sem rumo e seguir a vida.

Quem construiu a nação gaúcha, não foi ele. Foram os livros. E antes deles, os historiadores. Eles não mentem.

Fonte: www.pixbay.com

terça-feira, fevereiro 07, 2017

M o E d A s NaS F r E s T a S

Corri e juntei com as mãos todas as moedas. Nem pareciam de ouro, prata ou qualquer metal precioso. Eram de cobre ou estanho vagabundo, não sei. Mas faziam parte do meu mundo.

Quando as atiraste no assoalho de casa, custou-me encontrá-las, caídas algumas nas frestas quase fendas que se abriam na madeira tosca. Temia até empurrá-las mais para baixo e chegar ao inferno. Temia enfiar a mão e todo meu braço ser sugado pelo inimigo desconhecido.

A noite se formava lenta e eu sabia que precisava com urgência juntá-las e apanhá-las do chão antes que chegasses. Por certo, ririas na minha cara com aquele riso debochado que sempre se acendia nas horas de absoluta ironia.

Quantas vezes te evitei e fingi desconhecer tuas metas.

Quantas não ouvi o guizo de teu pescoço, saltitando pela floresta perto de nossa casa. Quantas vezes te esperei faminto e sonolento, com a certeza de que não virias.

Mas hoje tinha certeza de que o sangue que te alimentava, alimentava também minha solidão. O sangue que trazias em tua boca suculenta, me dilacerava as veias da alma, mas as libertava para entrar no teu mundo bolorento e sujo.

Quisera fugir muitas vezes, é verdade.

Queria recusar teus carinhos, teus afagos, teus mordazes gestos de dominação.

Mas não podia, não ousava nem tinha coragem. Sabias por certo de minhas fraquezas e zombavas disso.

Hoje porém jogaste todas as moedas fora. Deixaste de lado a única coisa que me ligava à vida passada, à vida que não era mais minha, que devia ser esquecida, mas que eu teimava em relembrar e tentar experimentar o que haviam deixado. Marcas, cinzas de um passado glorioso, expurgado pelo fogo tisnando as paredes, envolvendo em brasas o piso maciço, lambendo meus braços e pernas, retorcendo meus dentes e afundando-me o crânio. Não era mais nada, um pedaço tisnado jogado num piso dilacerado.

Sei que me salvaste, que me deste a vida, que me transformaste num brinquedo obediente e cínico. Não importa. Tinha meu visgo deixando marcas no presente. E que o passado se fodesse. Que eu me tornasse único. Um ser só, sem vida, sem perspectivas, sem passado, sem desejos, sem futuro.

Trouxeste as moedas e jogaste na minha mesa.

Puseste tuas mãos peludas e rudes nos meus frágeis frangalhos de braços e mãos, beijaste minha boca com lascivo desejo. Me possuíste com fúria e poder.

Depois, jogaste tudo pro alto. Lambeste o chão, como um verme que vomita o próprio lastro, para marcar presença. Fugiste de mim, volúvel, me deixaste só.

Ouço teu uivo ao longe, nas cercanias, mas longe, só porque o som ecoa. Sei que não virás.

As moedas que jogaste trouxeram a sina que carrego para sempre. As moedas são foscas, velhas e amassadas. Passaram de gerações e não valem nada, nem o valor da substância que as constituem. Sei que foi o símbolo de tua ida e nunca-mais volta. Sei que quiseste afirmar que o guizo anunciará cada vez mais longe e que talvez o teu ciclo acabe e não voltes mais como lobo sedento e amante, mas homem alienado nas rotinas do mundo.

Quisera que fosses assim, como sempre foste. Um mundo à parte, um mundo que se desenrola entre paredes de sangue e paixão. Uma paixão eterna, num lobo deformado e velho. Quisera que teus dentes apodrecessem e teu coração se degringolasse em meu colo. Serias meu. Seria teu. E num lapso de tempo, morreríamos do mesmo mal.

Mas jogaste as moedas e não posso buscá-las, porque o assoalho está cada vez mais podre, tudo em ruínas, o mundo em ruínas, o outro não existe na minha percepção, só o lobo que me persegue. Quisera sentir tuas garras no meu pescoço, teu lombo em minhas costas e teus dentes em minha boca.

Quisera reviver o fascínio da morte em vida.

Agora o silêncio entre árvores milenares, o instante do último sinal, tudo parou, se aquietou.

O vidro da janela se estilhaça no chão. Recolho os cacos devagar e por um momento, me olho, imaginando no espelho. Não reconheço o outro que vejo, não reconheço a diferença em meu entendimento e razão. Não é aquele que sou. Por isso não o quero.

Volto-me para as moedas. Já não ouço nada, nem o eco de teus vagidos. Enfio o meu braço nas fendas do assoalho, devagar, levo a mão direita tateando pelos cantos, sentindo pequenas fricções de penas de pássaros, algumas teias de aranha, tudo muito tranquilo, nada peçonhento, nem monstros me segurando.

Fico cada vez mais curioso e enfio o braço atingindo o chão gosmento de lama.

Enfio os dedos no que suponho a lama encharcada dos esgotos que vazam dos rios. Procuro as moedas, vou de um lado para o outro até me doer o braço direito.

Ouço um leve tilintar, como se encontrasse as moedas na escuridão.

Procuro ansioso e não encontro nada, o ruído aumenta cada vez mais. Sinto que meu braço mergulha naquele aterro sem vida, amorfo e medíocre.

Se Deus que criou esse desejo medonho, porque não me deixa chafurdar na lama com prazer? Por que me reprime e me despe da paixão.

Se amar tem um preço, por que não o valor das moedas que tinha em mãos?

Retiro a mão num ímpeto.

Levanto-me e tropeço numa tábua que se solta.

Meu braço se confunde com a tisna de meu corpo.

O barulho aumenta e se aproxima; o tilintar absurdo que me rasga os tímpanos. Corro para a janela estilhaçada.

Olho para a escuridão e um brilho de chocalho cega meus olhos.

É ele, com o guizo sacudindo no pescoço, como animal desenfreado num estouro da boiada.

É ele que se aproxima fazendo barulho, me procurando para acabar, por certo, com a nossa ruína.

quinta-feira, dezembro 22, 2016

Isto é Natal

Hoje, acordei, nem sei porquê, tendo como imagem a presença de um buraco ou talvez, a ausência da areia, que ao ser retirada, para constituir a cavidade, aumente cada vez mais a lacuna.

E me veio à mente, o que é natural, que cada vez que se retira a areia, ou a terra, ou a lama, ou o entulho, o buraco fica maior, vira cratera e parece invencível, com sua boca enorme, pedindo mais.

Na verdade, quanto mais se tira, mais se precisa e nos parece que a cavidade que estamos produzindo, nunca chega ao seu termo.

Então, relacionei a areia retirada com os prazeres, que ao serem desfrutados, cada vez mais se precisa de outros maiores, mais intensos e complexos para satisfazer o vazio que se forma.

Os prazeres precisam alimentar a fome que se tem da vida, esse enorme buraco que se forma, pedindo mais, tornando-se o vácuo maior, como uma grande boca sedenta ou faminta.

É o que frequentemente se faz no Natal, queremos tapar esta boca imensa, essa cratera que temos através de presentes, compras de todos os tipos, tamanhos e matizes, para fomentar o imenso monstro que se apega a nossos pés, a nossos corpos, puxando-nos para suas entranhas, sugando o que talvez nem tenhamos para oferecer.

Os pequenos prazeres, no entanto, aqueles que cumprimos à mesa com os nossos, o viver o Natal no dia a dia, enfeitando nossas árvores, puxando um galho daqui, enlaçando o outro ali, cercando-nos de carinho e afeição, um sorriso afetuoso, um olhar denso, terno e sincero, uma oração tranquila, um aperto de mão: estes acalmam a alma. Destronam o monstro que nos cerca, engole o vazio.

Somos assim, plenos, verdadeiros e fortes.

Os menores prazeres ou os mais simples, os que vivemos nos trezentos e tantos dias do ano, estes rotineiros e esquecidos, esses sim, preenchem nossos momentos, afagam o coração, aquecem o espírito.

Basta pouco, basta que vivamos o Natal durante todo o tempo, se possível, lembrando que o Aniversariante busca em nossas almas o melhor de nós mesmos: esta simplicidade que acomoda e aquieta. Esta vida que corre límpida, ordeira e franca. Esta vontade de ser assim, um pouco melhor, cada dia.

Isso basta. Isto acolhe. Isto é Natal.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/natal-sonho-santa-felicidade-1881708/PeteLinforth

sexta-feira, julho 15, 2016

MORTE LENTA

Cai a noite. Por certo, os meteorologistas se preparam para as últimas informações sobre o clima. Nada do que palmilhar os mapas da mente e descobrir o clima interior, este tão próprio, tão intimo, tão vulnerável.

Pudera seguir o caleidoscópio da paixão. Sentir o calor que se abrasa em meu ser frágil.

Pudera ver as novas vertentes das cores que se abrem, misturadas às múltiplas facetas do mundo que se explora.

Mas está frio aqui dentro. Lá fora também.

A noite é intolerável.

A noite é uma mulher má, austera, fria. Sem consolo. Nem lágrimas derretem seu coração. Meu coração, certamente se derrete mais no gelo do que no calor.

Mais um dia, ou melhor, uma noite, em que me coração ficará sozinho, disforme no sofá rasgado da sala.

Por que não tenho um gato para se aninhar nos meus pés e aquecer meus tornozelos? Um gato submisso, quedme espia atrás da poltrona, enlaça seu rabo de leve no pé da mesa e passeia pela sala ao meu encontro.

Não, não tenho gato. Não gosto de gatos, nem de crianças, nem de cachorros.

Mas que faria um cachorro aqui, numa noite vazia a não ser ganir de frio ou de fome e solicitar a noite inteira o meu carinho?

Eu é que preciso de cuidado, de carinho, de atenção.

Pudera sair pela noite fria, pisar meus pés no sereno quase geada e afundar na lama das enxurradas. Ali, não teria mesmo ninguém para me aquecer. Talvez os marginais das esquinas ou os mendigos que se aquecem com chamas de papel queimado.

Quisera atravessar as praças escuras, palmilhar com cuidado os degraus da catedral e me sentar ao relento, esperando que a noite passasse e que o dia despejasse os frágeis raios de inverno. Por que o inverno é tão duro, tão inóspito para pessoas sozinhas como eu? Por que não fico me aquecendo ao pé da lareira ou mesmo no aquecedor barato que vez que outra se desliga da tomada, produzindo pequenas faíscas, anunciando o excesso de energia. Energia que não tenho, que não se acumula num corpo que se aniquila.

Cai a noite. Cai devagar, lenta, preguiçosa. Mas ela sabe o quanto dura: uma eternidade. Ela sabe que o espaço que ocupa foge das zonas geográficas da cidade, e se limita ao meu peito, aos meus braços quase inertes, às minhas pernas magras, ao meu coração estático.

Pudera fugir da noite e avançar dia após dia, sem esperar que a noite venha. É a pior espera. Um solitário como eu não pode se dar ao luxo de esperar a noite. Ela é fria, é cruel. E traz consigo sombras que subjazem nas calçadas, nos viadutos, sob as marquises.

Quem sabe, hoje, o sangue flua generoso de minha boca, num só golpe, num único esforço e jorre pela casa toda, pela calçada, pelos túneis e eu definha como um vampiro faminto. Será a morte lenta de quem não tem um sol para se recompor.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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