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domingo, outubro 11, 2015

A MENSAGEM

Camilo tinha esta desagradável mania de não gostar do que tinha ou do que havia para fazer. Se levava merenda de casa, para a escola, preferia a comprada, de preferência a dos amigos. Se havia futebol, preferia jogar dama, num canto do pátio e para isso, incitava um de nós a ficar com ele, possessivo que era, fingindo sempre precisar de um amigo. Caso tivéssemos educação física, a malfadada ginástica, dava um jeito de investirmos num futebol de salão, convencendo o professor, seja em que pé estivessem os seus humores.

Mas ele era assim, alegre, persuasivo, companheiro. Gostávamos de andar juntos, dar boas risadas de tudo e de todos, imaginar a professora assustada, puxando a saia godê, ao passar na esquina, fugindo do vento insolente que insistia em desafiar a sua paciência. E agradar nossa fantasia.

Tínhamos prazer em assistir o filme que a escola proporcionava nos finais de semana, especialmente, nos domingos, como continuidade da educação religiosa, obrigando-nos desta forma a participar da missa.

Camilo, entretanto, além de extrovertido e alegre, era um pouco cínico. Ele sabia como agradar aos padres, às professoras, ao diretor da escola. Tinha um jeito especial de se comunicar e deixar tudo tranquilo, leve e solto para o seu lado. Eu, ao contrário, gostava das coisas todas no lugar, muito bem esclarecidas, apesar de que fazia das minhas, sem me importar contudo em agradar a ninguém. Temia ser descoberto, pego em flagrante, como nas diversas vezes em que fugíamos na hora do recreio, pelo simples prazer de fazermos um lanche num bar, fora da escola. Apenas comer um queque e tomarmos refrigerante. Voltar depois, sorrateiramente, coração assaltado, boca seca, passarmos pelo porteiro, escondidos sob a portinhola que separava o balcão de entrada e que conduzia ao pátio, para entrar na sala de aula, como se nada houvesse acontecido.

Na verdade, o porteiro fazia vistas grossas para nossas escapulidas, mas esta condição amistosa jamais nos vinha à tona, felizes que estávamos em nossa arrogância de enganar os superiores. Nada restituía nossa liberdade, nada a interrompia nem desempenhava qualquer atenuante para nossa felicidade, que nos enchia os corações e disso nem nos dávamos conta.

Nunca me deparara com o lado triste da vida. Nossa infância era povoada de sonhos e certezas absolutas, que nos deixavam tão cansados que nada víamos, à noite, a não ser dormir para acordar no dia seguinte e recomeçar tudo de novo. Novas risadas, novas estripulias, novas escapadelas, novos confrontos com o porteiro, novas explicações. E finalmente a saída triunfante de quem vence todo e qualquer obstáculo.

Mas naquele dia, nada disso aconteceu. A não ser uma mensagem em casa, um outro colega anunciando uma tragédia, uma coisa triste, palavra que não havia em nosso vocabulário. A morte chegara, assim de improviso, sem pedir licença ou antecipar a sua vinda com um presságio qualquer. Viera exclusivamente para Camilo, dotado de uma doença qualquer que levara consigo a alegria que sentíamos e da qual eu não dispunha de meios para me afastar. Por isso, olhei para o colega, elucidei como pude a mensagem, irritei-me com a riqueza de detalhes, bordados de curiosidade e desliguei a cena. Não fui ao enterro. Não vi Camilo pela última vez. Acovardei-me. Pelo menos, de Dona Agripina, eu vi os pés no meio do corredor da igreja, na missa de corpo presente. Foi a minha primeira e tênue visão da morte. Mas de Camilo, guardei o jeito alegre de se portar, de sorrir, de fingir-se solícito e brilhante, de ser o que era e o que queria ser. Não foi desta vez que enfrentei a morte. Deixei-a passar, covarde, sentido, dizendo para mim mesmo que tudo continuava como antes.

terça-feira, março 19, 2013

CLARISSA

 


Sair à procura de algo que não se sabe, muitas vezes do que se trata: uma viagem no pequeno diário, um caderno colorido, de páginas desenhadas, margens de arabescos ou uma caneta especial, de ponta fina, da marca tal, que tinha na loja tal, naquela livraria onde compraste o teu livro. Quase sempre assim, exigente, disciplinada, austera para a idade, com atitudes impensadas para os mais velhos. Era assim, mandona, talvez autoritária, uma espécie de Mônica, amiga do Cebolinha, ou a Mônica forçuda, como a chamavam, os mais destemperados. Tinha sempre um argumento na ponta da língua, afiada, ferina, mas amiga, afetuosa e sincera. Por vezes, deixava-se levar pela ilusão e fantasia: tinha um cão imaginário, o mar, a lagoa, as árvores da praça eram entidades com vida própria (e atitudes), às quais costumava cumprimentar, relacionar-se e compartilhar com a natureza, como se suas histórias fossem tão presentes e atuais, que fizessem parte do seu cotidiano, não apenas de seu imaginário.  Não sofria nenhum desses males da mente: ao contrário, era de uma lucidez e entendimento da vida inabalável, mas sabia cultivar o sonho, a beleza de viver, pelo menos por alguns momentos, a liberdade que só os que alimentam suas mentes com a grandeza da ilusão, apreedem. Por fim,  esta fantasia se desenvolvia nas leituras que se acumulavam em dezenas de livros que costumava dissecar, tentando encontrar um sentido em cada tema, em cada trama, em cada conflito. Talvez, eu tenha grande parcela de culpa nesta maneira de ver o mundo, que aos poucos se solidificou e a fez, tenho certeza, fugir do senso comum, do mundo padronizado, das verdades absolutas e enfrentar a vida de frente. Talvez a tenha induzido, não sei se seria a palavra certa, a encontrar outros caminhos e principalmente através da leitura, e, enquanto criança, na possibilidade deste encontro com a natureza, de cultivar o amor pelas pessoas, pelo mar, pelos animais, mesmo que imaginários e cumprimentar a todos, como se cumprimenta e se deseja um bom dia, quando amanhece e se vai ao trabalho, ou no caso, para a escola. Até mesmo o sol era saudado, no caminho para a aula. Eram coisas nossas, de pai e filha, uma certa cumplicidade que me deixava feliz. Este processo se complementava também através das histórias infantis, nas quais nem sempre o vilão era o mau, ou a princesa era a protagonista. Muitas vezes, o lobo mau era um pobre coitado, perseguido por um lenhador antiecológico, acuado por uma menina egoísta, acobertada por uma velha que se fazia de doente. É, talvez assim, ela tenha conhecido a diversidade da vida e introjetado que nem todo ser é integralmente bom ou mau, que esta dicotomia do mocinho e do vilão só leva a criar rótulos,  e por aí vão tantos conceitos e preconceitos que não levam a nada. 
Ah, teve o balé com sua disciplina intensa, além das leituras e estávamos sempre ao seu lado, mesmo nos primeiros passos, nos primeiros bailados, o que para nós significava passos de primeira bailarina do Muncipal. E tudo seguindo seu trajeto: a escola, o cursinho para o vestibular, a vitória para o curso de medicina e dai por diante. 
Pois,  esta é Clarissa. Acho que ainda tem um pouco de bailarina, de leitora incansável, de fantasia, até mesmo de Monica forçuda. Mas tem o discernimento da vida em suas atitudes e relacionamentos com os amigos ou com as pessoas que encontra no dia a dia; tem a sensatez das escolhas, tem as atitudes nas quais valoriza o afeto,  o sentimento, o carinho, a verdade, o amor às causas nobres, a certeza dos que sabem aprender com as adversidades e tomar fôlego para seguir em frente. Esta é minha filha. Hoje, uma doutoranda do 5º ano, amanhã, uma médica. 

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