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VIDA DE GADO

VIDA DE GADO

Desci do ônibus enfrentando aquela pequena multidão envolta na bruma. Vestiam roupas pretas. Esfregavam as mãos, tiritavam de frio. Uns fumavam, absortos, aquecidos na garganta pelo poder da chama. Pigarreavam às vezes. Meu pai puxava-me o braço, ansioso. Não se sentia bem entre eles. Parecia querer fugir do lugar. Ouvi as badaladas ao longe. Seria hora da missa? Senti a mão pesada de meu pai em minha cabeça. Que queria ele? Abrigar-me da cerração, proteger-me do frio, apressar-me o passo?

Caminhamos rápidos, pela rua pavimentada em cinzas de carvão. Ele, passos largos, pernas compridas. Eu, aos tropeços, pernas curtas. A pequena multidão já se desfazia ao longe. Quase não os víamos e já nem sabia se era noite ou tempo ruim. O frio congelava o nariz. Dei mais uma volta na manta, ajeitei o casaco nos ombros, puxei a gorra para os olhos. Meu pai também acertou o chapéu, que custava-lhe ficar à cabeça. Minhas botinas estavam gastas. Sentia na planta dos pés, os pedregulhos da rua, me espetando. Olhei para os pés enormes de meu pai. Não tinha problemas. Aqueles coturnos deviam ser herança de guerra, tão reforçados estavam. Se houvesse qualquer ser vivo por ali, ele esmagava impunemente. Não tinha o hábito de olhar para o chão. Principalmente, quando estava ansioso, como agora.

Na primeira esquina, guarnecida por casas maiores, ele parou, olhou para os lados e disse aliviado: – é ali.

Tentei ficar feliz, mas não estava. Não queria ficar naquela casa antiga, cheia de lembranças dos mortos, sempre citados por tia Clotilde. Só a viagem me interessava. Entrar naquele ônibus velho, atravessando os campos, vendo as luzes da cidade se apagando aos poucos ante meus olhos. Isso me bastava. Por que será que ele viajara sem minha mãe? Ainda lembro seus olhos brilhantes, querendo dizer qualquer coisa que não se atrevia. Talvez tivesse chorado. Agora estávamos ali, os dois, como dois homens, enfrentando as lembranças de tia Clotilde.

Quando chegamos, a escuridão era quase absoluta, não fosse a luz fraca do lampião de querosene, cuja chama se via pela janela. Ela chegou, apertou a mão de meu pai, que sorriu polidamente, sem muito entusiasmo. Em seguida, ela o abraçou, chorando e ele quase não retribuiu o abraço. Ficou assim, meio parado, sem saber o que fazer com as mãos e percebi que ele olhava para mim, como se pedisse socorro. Ela o deixou, abaixou-se até mim e apertou-me com força as bochechas, já recuperada pelo desafogo. Franzi a testa de dor. Ela sorria, satisfeita. Mandou que entrássemos, apresentou três amigas que estavam junto à mesa, quase às escuras. Elas mal levantaram os olhos, quando muito as sobrancelhas. Não arredaram pé. Ficaram mexendo em rendas, linhas, agulhas. Parece que costuravam. Tia Clotilde sentou entre elas. Pediu que nos acomodássemos a sua frente. Foi até o fogão de lenha, trouxe a chaleira tisnada e serviu um café aguado, sem perguntar se queríamos. Na cesta de vime, bolachas duras. As três mulheres nem olharam para o café. Continuaram na labuta e pelo que pude ver melhor, já com o olhar acostumado, desenredavam fios. Ou quem sabe, faziam novelos? Meu pai serviu-se de açúcar mascavo, gosto de rapadura. Olhei para tia Clotilde e vi que ela ensopava a bolacha no café. Depois, sorvia o mingau, fazendo um barulho estranho, um chiado, quase um assobio.

Bati no braço de meu pai, querendo falar alguma coisa. Estava apertado. Precisava ir ao banheiro, mas temia falar na frente daquela gente toda. Meu pai empurrou-me o braço e perguntou: – como vão as coisas?

Antes que ela respondesse, puxei a manga da camisa, pedindo ajuda. Ele não respondeu, continuou o assunto. Depois, explicou porque viera. Ela o interrompeu, rápida. – Não me diga, não me diga. Eu sei porque veio e ainda não sei, não sei se quero fazer isso.

Depois, como se uma luz a iluminasse a mente, chamou a atenção de meu pai. – Escuta o menino. Vai ver que quer se aliviar. Aliviar? Bem que ela tinha razão, se não fosse agora, tudo iria por água abaixo. Literalmente. Quando ele perguntou o eu queria, já tinha levantado da cadeira de palha.

Ele me seguiu. Saímos para a rua. Nem cheguei ao banheiro que ficava lá fora. Fiz o que precisava ali mesmo, próximo à soleira da porta, vendo meu pai encobrindo-a quase que completamente com o corpo. Ao longe, avistava movimentos escuros de vacas que pastavam, pacientes. Perguntei: – aqui não tem pia?

– Não faz perguntas. Entra.

Voltamos para o café. As três já não estavam à mesa. Espalhavam-se pela casa. Uma varrendo a cozinha, outra empilhando as louças, guardando-as com cuidado. A outra ronronava pelos cantos, atirada num sofá velho. Esta tinha uma berruga bem na ponta do queixo e eu jurava que vi uns chumaços de pelos pendurados do nariz.

Os dois, meu pai e tia Clotilde sentaram-se novamente, frente a frente. Eu, do seu lado, enchi o café com aquele açúcar escuro e da calda, lambi a ponta da colher. Ouvi os dois conversando, mas não prestava a atenção. Procurava encontrar as outras que passavam pra cá e pra lá como baratas tontas, seguindo a intuição. Só uma ficara abandonada, deixando-se embeber de tédio.

Levantei-me da mesa, limpei a boca com o dorso da mão e aproximei desta. Cheguei bem perto, mas pouco via, pela luminosidade fraca do ambiente. Pela janela, distinguia a lua, triunfal, mexendo-se como elas, de um lado para o outro. Cada vez que eu olhava, achava que ela se mudava de lugar. Era possível isso? Ou eram as nuvens? Que importava agora? Quando desisti da mulher, ela me segurou pelo braço, firme. Estremeci. Senti um arrepio instantâneo. Forcei a mão, tentando me soltar, mas ela era forte e decidida. – Quem é você?


Tia Clotilde me salvou desta vez, chamando a atenção da mulher. Eram criaturas estranhas. Percebi um certo sorriso na fisionomia de meu pai.

Afastei-me um pouco, olhando para o nada que cada vez ficava mais escuro, um negrume. Se é que o nada tem cor. Ouvia sem dar muita atenção a conversa dos dois. Tia Clotilde comentava: – o Osvaldo, osso duro de roer. Mas se foi.

Meu pai indagava: – e o Sandoval? O alemão forte como um touro?

– Esse aí? também osso duro de roer, mas se foi como os outros.

Pequeno silêncio e meu pai comentou, taciturno: – do Horácio, eu soube.

Tia Clotilde levantou as sobrancelhas e posso jurar que uma lágrima correu rápida, pelos olhos. Assoou o nariz vermelho. Resmungou: – esse inventou de protestar, os milico levaram. A tal da ditadura.

E ela foi enumerando todas as faltas, todos os vazios, todos os homens fortes da terras, provavelmente irmãos, cunhados, marido, o filho. Parece que não restara nenhum. Ossos que ruíram. E concluía, resignada:– só eu to ficando, velha, encarquilhada, esquecida no mundo.

Procurei não encará-la. A chama do lampião lambia os cantos do vidro e fazia figuras no teto, bordado em picumã. Imaginava os tios, lá em cima, pairando curiosos, indagando sobre a gente. A velha do sofá esticou as pernas na minha direção, como se com eles fizesse uma forquilha para me prender. Sentia que a minha presença a irritava.

Voltei para a mesa e afundei a cabeça num travesseiro de banha. A da vassoura atravessava a sala na penumbra, sem desviar de qualquer obstáculo, já que parecia conhecer os quatro cantos. Eu não. Afastei-me depressa e sentei-me assustado, perto de meu pai. Percebi que tia Clotilde se ressentia com alguma coisa e agucei rápido os ouvidos. – Já lhe disse que agradeço a visita, mas to bem aqui.

É só para descansar um pouco.

Ela reagiu, assustada. – Não quero ficar maluca com aquela gente. Lá, não tem direito de nada. Polícia de todo o lado.

Meu pai retrucava que ela se referia ao exército, que era comum em dias de ditadura. Que ela poderia ficar tranquila. Mas pelo jeito, ela já tinha decidido tudo em sua cabeça, antes mesmo que ele perguntasse. Uma baforada bem perto do meu ouvido. A que empilhava a louça, parou um pouco afastada, ouvindo a história, não tão longe que seu cigarro não ocupasse o nosso oxigênio. Fumava e sacudia os quadris pra lá e pra cá. Balançava-se e fumava. Os dois silenciaram, acho que pela presença da fumante. Olharam ao mesmo tempo para ela, mas foi só um segundo. Meu pai quebrou o silêncio. Amanhã voltaríamos.

Então, passei a imaginar a volta, sentado ao lado da janela, observando tudo que passaria por mim. Meu pai bateu no meu ombro, exigindo que me levantasse, iríamos para o quarto. Dormir? Já? Antes de levantar, perguntei: – que é ditadura?


Meu pai abriu a boca, faltaram palavras. Calou-se. A velha concluiu: – é ir pra cidade.


A do sofá começou a dormir. Babava despudorada. A da vassoura voltou a varrer, ensandecida. E a fumante, parou, um pouco, pensando, extraordinariamente calma.


No quarto, quem desabafou foi ele: – v

ida de gado.

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