Pular para o conteúdo principal

De reputação ilibada

Quando a via pelas vitrines, sentia um certo frisson ao vê-la assim, tão bem vestida, geralmente de um vermelho vivo ou mesmo um cinza apagado, mas que por detrás daquelas cores, certamente havia grande conteúdo. Por vezes, tinha a esperança de que alguém a trouxesse até mim, mas era apenas sonho. No tempo, em que elas iam de casa em casa, e muito bem consideradas por sua reputação ilibada, geralmente eram aceitas e passavam a fazer parte da família. Naqueles tempos, em que não se tinha internet, a sua chegada era como a visita esperada, a companheira para todas as horas, o cultivo da sabedoria, do conhecimento e da curiosidade. Era como se viesse de um grande centro, de uma metrópole e após horas de viagem, trouxesse toda a bagagem de erudição, ciência e saber e nos revelasse enfim, o ápice de toda a informação armazenada pela humanidade.

Às vezes, eu a via em bibliotecas, consultórios médicos, casa de amigos ou mesmo em livrarias. Parecia chamar a atenção entre os demais, insinuando-se pela roupagem e pela enorme sabedoria que continha. O tempo passava e ela aos poucos, se tornava um sonho distante. Até que em dado momento, veio até mim. Aproximou-se devagar; bateram à porta. Eu vi apenas seus retratos, folders e folhetos com relatos de suas experiências. Era como uma ferramenta eficaz, um instrumento apto às maiores ambições e nada parecia menos importante do que ela. Esperei quieto, acomodado até que meu pai a avaliasse. Não a via ao vivo, ali, em nossa sala, apenas recortes imprecisos do que era. Para mim, não interessava. Queria-a perto, próxima, de tal modo que pudesse tocá-la, observá-la, admirá-la e aguardar que me revelasse o mundo. Mas parecia difícil, o encontro.

As horas passavam, as conversas se acumulavam, o mundo ruía e se reconstruía em segundos. Até que acerto daqui, acordo dali, promessa cumprida e ela estava a passos da porta de entrada. A casa a recebia de braços abertos. Estava assim, de vermelho, com um cinto dourado que lhe circundava o corpo. Sentia o seu cheiro, um aroma suave e novo, que poucas vezes eu havia sentido. Esperei um pouco para aproximar-me e chegar a vez de ter um contato mais próximo, real, verdadeiro. Era francesa, embora estivesse no Brasil, desde 1960. Podia adivinhar um “la vie rose”, ou “non, je ne reggret rien” para lembrar Piaf ou “no me qui pass”. Talvez encontrasse ali uma Brigite Bardot ou o Louvre ou Orsay, mas muito além da França, o mundo à minha espera. O Brasil inteiro à mão. A história sob todos os temas, o presente, o passado e o futuro. A vida pulsando nas capitais ou a mansidão das pequenas cidades, os grandes vulcões, as catástrofes, a guerra, as religiões, a política, o medo, a fome, as pragas, as ilusões, o amor, a vida, a morte. A esperança. Tudo estava ali, a um passo, bastava aproximar-me, sentir aquele cheiro suave, tocar-lhe delicadamente e admirar a sua majestosa possibilidade de sonhar. Foi quando a vi instalar-se na única estante da casa. A nossa Delta Larrouse.


Fonte:https://pixabay.com/pt/photos/paris-montmartre-caminho-calçada-3193674/

Comentários

PULICAÇÕES MAIS VISITADAS

Estranha obsessão : um filme de muitas perguntas e poucas respostas

Estranha obsessão (2011), ( pode haver alguns "spoilers" ) em francês “Le femme du Vème” ou em inglês “ The woman in the fifth” é uma produção franco-polonesa, dirigida por Pawet Pawlikowski. Ethan Hawke e Kristin Scott Thomas formam o estranho par romântico na trama de mistério. O protagonista é Tom Richs (Ethan Hawke), um escritor norte-americano que se muda para Paris, para se aproximar de sua filha. Já em Paris, depois de ser roubado, se hospeda em um hotel barato. Numa livraria, é convidado para uma festa, onde conhece uma viúva de um escritor húngaro (Kristin Scott Thomas), tradutora de livros, com a qual mantém um romance. Por outro lado, mantém um romance no hotel, com uma linda polonesa (Joanna Kulig, atriz polonesa). Por fim, é acusado de suspeito por um crime, pois seu vizinho de quarto é assassinado. Para livrar-se da acusação, tem como álibi o encontro com a viúva, em sua casa, porém, a polícia descobre que a mulher havia cometido suicídio em 1991. Mas toda es

Trabalho voluntário no Hospital Psiquiátrico: uma provocação para a vida

Participávamos de um grupo de jovens religiosos, no início da década de 80. Era um grupo incomum, porque embora ligado à igreja católica, recebia participantes sem religião definida, sendo um deles, inclusive, espírita. Formava um caldo interessante, porque os argumentos, ainda que às vezes, estéreis, produziam alguns encaminhamentos para discussão. Era realmente um agrupo eclético e ecumênico. A linha que nos norteava era a solidariedade com o próximo. Queríamos inconscientemente modificar o mundo, pelo menos minorar o sofrimento dos que estavam a nossa volta. Diversos temas vinham à pauta, tais como moradores de vilas pobres, desempregados, idosos do asilo, crianças sem acesso a brinquedos ou lazer. Era uma pauta bem extensa, mas houve um tema que foi sugerido por mim. Tratava-se de algum tipo de trabalho com os pacientes do hospital psiquiátrico. Houve de imediato, uma certa aversão e pânico pelos integrantes do grupo. Classificavam os transtornos mentais a partir da ag

Lascívia

Este conto é um desafio de uma oficina online, sobre a elaboração de um conto erótico com o protagonismo masculino. Carlos estava sentado na poltrona, ao lado da janela, entediado. Quem diria que ficasse assim, depois da reunião com os estagiários e as modelos excitantes que participaram da aula de pintura. Entretanto, nem a aula ou as mulheres faziam-no esquecer o homem que se atravessara na frente do carro, obrigando-o a parar quase em cima da calçada. Por um momento, imaginou tratar-se de um assalto, apesar da aparência de executivo. Mas quem poderia confiar num homem de terno e uma maleta embaixo do braço, hoje em dia? Dera uma desculpa, dizendo-se interessado em saber sobre as suas aulas. Carlos não respondera. Estava irritado demais para explicar qualquer coisa. Levantou-se, pegou um café e voltou a sentar-se, olhando o deserto da rua que se alongava além da vidraça. Não chegava ninguém, era o que pensava. Entretanto, não demorou muito e bateram na porta. Espiou