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O OUTRO

http://kbimages.blogspot.com/url-code.jpg Estava assim à procura do tempo e o avistei sozinho. Parado que se encontrava à porta da igreja. Barba longa, desleixo involuntário. Pele escura, encardido. Sol a pino, um boné velho, virado para o lado, uma gosma escorrendo no canto da boca entreaberta com dentes falhados, amarelos, mastigando levemente a vida. Nos olhos, uma fuga estranha, um olhar para dentro, um não sei o que faço, que assustava. Por um momento, senti uma certa náusea. Olhar aquele ser humano, e poder enxergar esta condição, me apavorava. Difícil para qualquer um entender. Difícil pensar no assunto e enfrentar a situação. Aproximei-me com moedas pesadas, ajustadas na palma da mão, mergulhadas que estavam no bolso, escorregadias no tilintar dos dedos. Acho que o assustei, porque me olhou de soslaio, meio apalermado, temendo talvez uma sacudida, um pedido que saísse, ou uma ordem de evacuação do espaço. Que nada. Sorriu ao ver o brilho das moedas, bem maior para os seu

O PROJETO DE LEI

O conto "O projeto de lei" foi finalista do 2 º Concurso de Contos de Santo Ângelo (RS), promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Santo Ângelo. Faz parte de uma antologia de contos (prêmio). Estava a poucos metros da tribuna. Coração assaltado. A camisa ajustada no corpo esquálido. A boca ressequida, o ar faltando. De repente, ela apareceu, elevou-se numa névoa, atravessando o corredor estreito que desembocava no púlpito. Todos os olhares se voltaram, um zum-zum se ouviu, quase alarido a sua passagem. Uns riam, piscavam o olho, irônicos, outros acenavam uma dúzia de pedidos e a distribuição insana de favores. Eu continuava convicto, confiante nas propostas, nas ideias e em sua escalada a um posto tão alto. Vivia lá, com minhas rabugices e meu cavalo acompanhante. Vez por outra, o via pela janela do sonho: pobre coitado, tão raquítico quanto eu, pelo desbotado, sem vida, puxando o resto das gentes de bem. Eu ali, domando a vida, dominando e dominado por ele. Às

O mundo evoluiu?

Às vezes, me pergunto o que está havendo com as pessoas, com os jovens que, de certa forma, ditam as regras da sociedade em que vivem (pelo menos nos grupos que participam e nos quais exercem grande influência). Provavelmente, minha avó teria este mesmo pensamento de dúvida e estarrecimento,  na época em que todos éramos  jovens e gritávamos aos quatro ventos as nossas angústias, os nossos objetivos bem calcados em modelos distantes de sua experiência, numa vanguarda que muitas vezes assustava. Talvez coisas bem mais brandas, como deixar o cabelo comprido, a barba por fazer, um cinturão de couro na cintura, uma calça santropê, com uma nesga do lado da perna. Por outro lado, havia as discussões filosóficas intermináveis, as procuras por novos caminhos na política (para alguns), a leitura dos grandes autores e entrar de cabeça nas novas ideias, os desejos de ser livre a qualquer preço, de sair do jugo dos pais, dos professores, dos mais velhos. Não se confiava em quem tinha mais de 3

A vida andava devagar

Como morava próximo à Praça Saraiva, meu pai às vezes tomava o bonde, que saía do abrigo, via Aquidaban, dobrava na linha nova e prosseguia pela Colombo fazendo a curva na Praça. Na Bento Gonçalves, o fim da linha. Morávamos em frente à Padaria União e lembro bem, meu pai cevava o mate, apanhava a garrafa de leite da soleira da porta, comprava o pão de quilo, tomava o café e saía para o trabalho. Era o pão que nos aguardava para o café antes da escola. Recordo, certa vez em que voltava no Saraiva, com meu pai. Eu, apoiado no final do vagão, observando os trilhos que fugiam céleres ante meu olhar, escoando histórias pelas alamedas que se perdiam, homens apressados para o trabalho, crianças no caminho da escola, donas de casas afoitas para abastecer a despensa. Lembro de uma tia que estocava a tulha com cereais, pois temia uma presumível guerra mundial. Além disso, tinha por hábito, enfeitar a cozinha com artesanato em crochê. O forro do botijão que compunha o fogão Wallig

AS MENINAS DA SOCOOWSKI

São lindas, feias, morenas, loiras, negras e sararás. São pobres, jovens; jovens demais. Aparentam entre 14 e 21 anos. Não se sabe precisar ao certo. Afinal, permanecem ali, na beira da calçada, sem sonhos ou direções. Seus encantos e encantamentos se foram há tempos, na sarjeta da rua sem meio fio. Por certo, há pouco brincavam e vez que outra, ainda o fazem, na imaginação. Brinquedos usados, roupas da última campanha, dores do desfazer, do quase inexistir. Estão lá, considerando-se belas, cabelos despenteados, roupas que nem lhes cabem, botas compradas com o dinheiro da humilhação e decadência. As meninas da Socoowski*. Talvez tivessem outro destino. Talvez não se desfrutassem nas madrugadas e manhãs frias da Socoowiski, oferecendo-se nos pontos de ônibus ou aos caminhoneiros de passagem. Talvez tivessem outros sonhos, se a vida lhes fosse afável. Ou não. Buscam o que precisam, não refletem, não questionam. Seus sonhos são rasteiros e doídos, despidos de qualqu

Restauração da imagem por ser considerada feia

http://kbimages.blogspot.com/url-code.jpg A notícia sobre a restauração da   imagem de Nossa Senhora do Caravaggio, em Farroupilha, tem no mínimo, um quê de absurdo. Parece que   que conta realmente nos dias de hoje, é a aparência, até mesmo da imagem das santas. Fica de somemos importância a fé, o carisma de Nossa Senhora, a devoção dos peregrinos.   Segundo a maioria que reivindica a maquiagem na face da estátua, reitera a desproporcionalidade da imagem, identificando uma figura excessivamente feia e por isso, não compatível com a grandeza de Nossa Senhora. Mas onde está a grandeza,   se não um elo de intercessão entre os fiéis e Deus? Ou na aparência que deve incentivar o turismo? E que critérios foram discutidos para sugerir uma mudança na estrutura da escultura? Quais os critérios artísticos que comprovam que há uma desproporcionalidade na obra? Quem pode afirmar que esta condição que foge ao modelo padronizado   não induz a formas artísticas que produzam mo

SERIA A NAÇÃO DE CHUTEIRAS, A GENI?

A nação de chuteiras é dos errantes, dos pobres, marginalizados, dos quem não tem mais nada. Dos que não tem porvir. Como a Geni do Chico, dá-se assim, desde menina; é um poço de bondade mas é feita pra apanhar. Um dia surgiu a copa,   e a seleção acionada. A cidade clamou desesperada, vai Nação desenfreada, não importa o que falta, não importa o que não temos, tudo será arrumado. Vai nação e enfrenta o inimigo pra nos trazer a vitória. Não importa quem te manda, não importa quem te quer. Quem te usa é o povo. E que venha o guerreiro, tão temido, o forasteiro. Acontece que a nação também tinha seus caprichos: ao lutar com soldado tão nobre, devia superar as falhas. Arrumar a casa, fazer acessos, pontes, caminhos, para chegar ao panteão tão esperado. Mas parte do povo, gritava descompassado. Não conseguirás. Gastas onde não deves. Deixas teus compromissos e investes na competição. Joga pedra na Nação. Ela é feita pra apanhar. Ela deve sumir. E toma xingamento na Mandatária. E toma