O conto "O projeto de lei" foi finalista do 2 º Concurso de Contos de Santo Ângelo (RS), promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Santo Ângelo. Faz parte de uma antologia de contos (prêmio).
Estava a poucos metros da tribuna. Coração assaltado. A
camisa ajustada no corpo esquálido. A boca ressequida, o ar faltando. De
repente, ela apareceu, elevou-se numa névoa, atravessando o corredor estreito
que desembocava no púlpito. Todos os olhares se voltaram, um zum-zum se ouviu,
quase alarido a sua passagem. Uns riam, piscavam o olho, irônicos, outros
acenavam uma dúzia de pedidos e a distribuição insana de favores. Eu continuava
convicto, confiante nas propostas, nas ideias e em sua escalada a um posto tão
alto. Vivia lá, com minhas rabugices e meu cavalo acompanhante. Vez por outra,
o via pela janela do sonho: pobre coitado, tão raquítico quanto eu, pelo
desbotado, sem vida, puxando o resto das gentes de bem. Eu ali, domando a vida,
dominando e dominado por ele. Às vezes, me ouvia, quieto, abanando as orelhas,
sem discussão. Noutras, fincava pé, engatava o casco nos paralelepípedos
irregulares, levantava a cabeça arrogante e me olhava de soslaio. Não tinha
Cristo que o convencesse. Via de regra, me seguia paciente. Andávamos pelas
ruas ensolaradas ou frias e chuvosas, tanto faz. Pra nós não tinha dia ruim. Só
a a cata insensível do lixo. E cada vez se amontoava mais, aos nossos olhos:
latas de alumínio, garrafas plásticas, vidros, até livros. Ele tinha os seus
caprichos. Houve ocasiões em que se recusou a carregar certas coisas. Não
atinava, o bobo. Na cabeça dele, eu ia carregar vira-latas mortos, crianças
abandonadas, comida bolorenta. Difícil explicar-lhe. Uma, que ele não entendia.
Outra, que era teimoso feito burro, se o fosse! Até que a encontramos, os dois:
estava na esquina, com um megafone fazendo publicidade e fantasiada de … bem,
nunca descobrimos de quê, mas era uma coisa estranha, mistura de carnaval, com
prenda, coisa difícil de assimilar. O chapéu amarelo na cabeça definia o visual
e um cartaz com o nome do partido. Então não tivemos dúvidas. Nosso voto foi
pra ela. Tanto que estamos aqui, hoje. Ela não convenceu todo mundo, mas todo
mundo fez questão de votar nela! Acho que pra fazer um teste ou para brincar de
votar. Coisas do povo! Nós, ao contrário, demos o voto consciente. Eu e ele. A
partir daí, a família, os parentes próximos, os vizinhos.
Ela não faz figura
entre seus pares; riem, mascam as palavras quando pronunciam o seu nome,
tentando engolir em seco a fatalidade de dividirem a mesma mesa. Mas agora
estava lá, atravessando a cerca de madeira envernizada, que divide os
vereadores da plateia. Aplaudimos sem cessar. Meu companheiro lá fora, contava
as pedras da rua, batendo as ferraduras, esperando o resultado. Estava aflito,
tanto quanto eu. Padecia sozinho, o pobre. Que fazer, se não esperar? Era nosso
destino e agora, estamos prestes a construir aos poucos o caminho que
alicerçamos. Antecipar o que já era certeza nos sonhos. Alguns olhavam
enviesado, outros cochichavam e o riso resumia o sussurro desavisado do
ambiente. O presidente solicitou silêncio. Percebi que o fazia, esgueirando-se
entre a conivência com a plateia e as normas da casa. Sorria com o canto da
boca e seus olhinhos miúdos perfilavam outros olhares que entendiam o recado.
Em seguida, sentou-se, alisando a barriga na direção dos pés. Acomodou-se,
pegou uns óculos que lhe caíam na ponta do nariz e pontuou qualquer coisa no
formulário branco. Um visto qualquer. Ela bateu no microfone, que nos doeu os
tímpanos. Um alô, alô, alô infinito. A voz sonora e atravessada, tão semelhante
a nossa, sem entonação, sem timbre agradável, sem locução adequada. Tentou
falar e o fez amiúde, mas quase não disse nada e se o disse, foi daquele modo
desajeitado de falar sem dizer nada. Prolixa. Lembrou da doação de galinhas
para uma creche e todos caíram na risada, agora em alto volume, acompanhados
uns dos outros, assim, em uníssono. Eu até tentei explicar para um senhor ao
meu lado, um homem calvo, olhar disperso, que também ria como os demais e fazia
uma espécie de assobio aflito, como se lhe faltasse o ar. Não havia motivo para
rir, pois o que dissera era a pura verdade. Ele apalpou o ouvido e perguntou:
hein? Então, calei-me e voltei-me para a tribuna. Ele tornou a rir e a
assobiar. Na mesa, um vereador mais à direita, escrevia num calhamaço de
folhas. E o fazia olhando para o público, as têmporas brilhavam de suor e vez
por outra, arrumava a gravata que teimava em inclinar-se apenas para um lado.
Quando a olhava, não via nada. Apenas o que já tinha na retina. Suspirava,
passava a mãos pelos cabelos ralos e acentuava a censura através do aceno
incessante da cabeça. O outro, à esquerda, ouvia-a, preocupado com o relógio.
Divergia, por certo, da fileira de fatos distorcidos e enumerações sem sentido que
ainda ouviria, até acabar o tempo a que ela tinha direito. Quando muito,
esperar que acenasse para o projeto de lei, que tinha em mãos, do qual ela destoava
de qualquer apreciação, sem alcançá-lo nunca. O que ficava mais ao centro,
fitava patético, o auditório. Vez por outro cutucava colega e argumentava
baixinho : “Tenho certeza que alguém executou este projeto por ela. Ela nem
entende o que lê!”. Este limpava os óculos pesados, com a mão untada em álcool
gel enquanto ajeitava o fone nos ouvidos. Junto a tudo, produzia um muxoxo, sacudindo
os ombros. Eu me perguntava, como ele conseguia elaborar tantas ações
consecutivas! Desviei a cabeça daquelas caras alheias à figura na tribuna. Nem
ousei encarar a loira que se desviava entre os vereadores, trazendo papeis para
assinarem, dando pequenos avisos, informando determinadas orientações. Ela não
se furtava também em apreciar o público e esperar, talvez, que a apreciassem
também. Enviava olhares sinuosos, bocas solicitas, que prometiam coisas obscenas.
Mais tarde, soube que também era do quadro. Quem teria votado nela? Gente como
eu, pensei, que vota pela publicidade e pela mídia. Uns pela experiência,
outros pela figura agradável que aparece em todas as campanhas, em todos os
canais, em todos os palanques, em todas as esquinas (são onipresentes), outros
talvez pela esquisitice, pelo acabrunhamento das ideias, pelo favorecimento,
pelo agrado, pelo beneficio. Outros ainda, pela rotina. Habituamos à imagem. Se
morrem, choramos como se perdêssemos os mártires de nossa salvação. Se são
presos, perdoamos como uma mãe negligencia a culpa, mas não o amor ao filho.
Meu companheiro deveria estar impaciente lá fora. Talvez
imaginasse os inúmeros quilômetros que ainda restavam para atravessar a cidade.
Então, me dediquei à imagem dela e até me esqueci do discurso. Tinha o cabelo contido
pelo fixador, embora as pontas rebeldes aflorassem, vitoriosas, na arrancada
pro céu. Seus olhos eram vermelhos, afundados, os dentes grandes e
exageradamente brancos, perdidos na boca frouxa, desabitada e pouco habituada
com os novos moradores. Uma estampa estranha naquele palanque engessado. Seu discurso
vazio e mal engendrado fadado ao fracasso. Discurso que desprezei, até ouvir a
palavra “cooperativa”. Então acordei do transe e sorri. Por certo, o
companheiro recebia por telepatia, a minha gratificação. Ela disparou tudo que
sabia sobre lixo, leu um trecho qualquer sobre meio ambiente e concluiu
novamente na expressão esperada. O que a gente pedira com afinco, ela
alinhavava esperta e inteligente: uma cooperativa para os catadores da cidade.
O povo aplaudia, eu doía-me as mãos e o coração de alegria. Então, afastou-se
desalinhada e voltou ao lugar que ocupara. Fiquei ali, tantas horas que me
perdi no tempo. Houve toda sorte de discurso, todo o tipo de premissa, de
réplica e tréplica a análises e pretensas discussões. Houve quem discordasse que
o trabalho informal gerasse ganho à comunidade, houve quem imaginasse algum
tipo de extorsão, de exploração do trabalho e até destruição da fauna (??),
também eu fiquei em dúvida. Quando contar ao companheiro, nem vai acreditar.
Também pudera. Ele não entende dessas coisas, embora seja teimoso que nem
burro, que ele não é, na verdade. Pertence a uma família de espécimes
vigorosas, ativas, amigas e inteligentes. Ele, entretanto, foge ao padrão, a
não ser a amizade que demonstra por mim. Mas não vem ao caso. O que me
despertava a curiosidade, naquele momento, era a conclusão dos despachos. E era
despacho pra cá, despacho pra lá, e nada da votação no projeto de lei.
Nisso, se deu o inexplicável. Retornaram as análises sobre as
leis municipais, a aplicabilidade da legislação e suas conseqüências. Também discutiram
se a coleta do lixo seria executada de modo a atender as exigências do Ibama ou
mesmo, se respeitaria os direitos dos cidadãos que se desfaziam de seus
pertences, para serem arremessados a locais inadequados, partilhando sua
história entre cooperativistas. Para alguns, cooperativa, lembrava comunismo, então
os humores se alteravam tal como as cores vivas de suas fisionomias
assombradas. E eu, perdendo o dia, que transcorria lá fora. Uma brisa suave
empurrava as cortinas de oval para o interior da sala, lambendo o meu rosto de
vez em quando, escondendo a cena brilhante do palco. Suspirei aliviado, quando
iniciou a votação. Uns avaliavam o documento após as inúmeras divagações que
enfrentavam no decorrer das falas, porém eram interrompidos pelo presidente,
que por sua vez ocupava o tempo que seria gasto pelo votante, esclarecendo que
o prazo era exíguo e somente utilizado para a votação propriamente dita.
Concordei com ele, menos com o palavrório arrastado do comentário. Um deles
interpelava o grupo, perguntando onde estava a sineta, para a interceptação do
displicente. “Era coisa de se perder o mandato!” Eu cá com meus botões, me
perguntava quando terminaria a sessão, arrependido em ter dedicado o meu tempo
a tanta prosa, sem nenhuma conclusão eficaz. Tudo produzia contornos inúteis e
como redemoinhos, juntavam o lixo daqui para colocar mais adiante e este fazia
voltas e voltas e retornava sempre ao ponto inicial. Era lixo que eu nunca
tinha visto nas minhas andanças, catando pela cidade! Mas qual, meu dever era
aguardar pela solução. Por isso, procurei desatinado pela minha porta-voz. Onde
andaria que não a avistava? Sorri, recompensado. Aquela brisa que enviava a
cortina ao meu encontro, fazia com que uma outra, tão parecida com a minha, a
encobrisse por completo. E, ela, inteligente, deixou-se ficar quieta, escondida
dos olhares curiosos e maliciosos, esperando a sua vez para dar o sim
definitivo ao projeto de lei, que nos favorecia.
Finalmente retornaram à votação e quando o presidente
anunciou o adiantado da hora, foram céleres em atingir o seu intento. Entre o
sim e o não, aconteceu o inesperado: um empate. Um empate! Meu coração vibrou,
desorientado! Faltava somente ela, ela, para colocar um fim em todas as dúvidas
e desesperanças! Ela, para ratificar o desejo dos desfavorecidos. Por fim, bradaram
o seu nome, uma duas, três vezes. “Excelência, por favor, dê o seu voto. Quis o
destino que fosse a senhora a decidir esta pendenga! Vamos, Vossa Excelência
está me ouvindo?”
A loira boazuda torceu o salto, deslizando no piso de mármore
e puxou a cortina que envolvia o rosto da vereadora. Ela acordou, exaltada:
“_Sou contra, sou contra! Bota aí que sou contra!”
A plateia em peso caiu numa risada alucinada. Algumas vozes
destacavam, que a responsável pelo projeto de lei votou contra. Nem ela acreditava
em si mesma! O homem ao meu lado, retomava seus chiados sincopados, tentando
absorver o ar que faltava, enquanto desandava a rir. Os demais acotovelam-se
nos cantos, produzindo uma farra que misturava nobres e súditos. Nunca a democracia
foi tão plena! Todos riram, sacolejando os ombros e as barrigas arfantes. Eu
chorei e pensei nas galinhas que ela tinha doado à creche. As crianças tiveram
mais sorte. Não passou pela câmara.
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