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As rádios locais e as tvs regionais, os sonhos e as mudanças culturais

Quando crianças, via de regra, temos um mundo interno muito rico, e um tanto dissonante com a realidade. As crianças vivem num mundo imaginário e interagem de acordo com a interpretação que estabelecem para si mesmas. Para os dias de hoje, é absurdo se pensar que alguém, até mesmo uma criança, possa imaginar que uma rádio local possa ter um elenco refinado de artistas, cantores, atores e atrizes que lá permancem para executar suas obras, fazer suas perfomances e encantar os ouvintes. Sabe-se que atualmente, tudo é gravado e a maioria dos programas vem dos grandes centros, principalmente do eixo Rio-São-Paulo onde a dramaturgia e os grandes shows musicais acontecem. Onde a música tem realmente importância comercial e os grandes artistas se salientam a partir destas “trincheiras" de arte e marketing. Por essa cultura dos grandes centros, as crianças de hoje e as pessoas em geral, sabem que a maioria dos sucessos vem de lá, que a arte regional é praticamente esquecida, com rarís

A FUGA DE MEU CÃO

Chamava-se Chacrinha. Nem sei por que cargas d’água dei este nome ao cachorro. Era um cusco preto, com uma pata branca, destoando das demais, meio peludo. Tinha um olhar atilado, uma boca enorme que se mantinha presa a trapos que eu puxava, segurando-o, levantando para o ar, dentes presos, respiração ofegante, peito saltando, olhar atento ao pano pendurado, sem descuidar para não perder a presa. Estava sempre assim, ao nosso lado. Corria comigo pelas ruas, enveredava por esquinas, metia-se em becos, quintais, ladrava com altivez e fugia no momento certo. Num destes dias, em que as coisas acontecem sem que tenhamos qualquer intervenção ou pressentimento, fui à aula, pela manhã, com a pasta embaixo do braço, uniforme limpo, calças azul-marinho, frisadas, um lanche para o intervalo. Estava no horário de rotina à espera do coletivo que me levava até à escola, quando inesperadamente despontou na esquina, à toda velocidade, Chacrinha, correndo ao meu encontro, sem que eu pudesse detê-lo.

UM NATAL DISTANTE

Há quem se lembre dos natais da infância e são estes os que realmente preenchem a nossa memória, trazendo de volta a fantasia, a alegria e a recordação da família naqueles momentos intensos. Tenho comigo que os natais são todos bons, a menos que tenhamos tido algum sofrimento marcante e as coisas, aí, trilhem caminhos mais estreitos e tortuosos. Lembro de muitos natais da infância e acho que na maioria foram muito felizes. Entretanto, há um em especial, em que eu não era criança, nem adolescente, nem vivenciava aqueles momentos de encantamento em que somos pais com filhos pequenos. Tinha meus 20 e poucos anos e o Natal se resumia a um pequeno encontro de família, com os pais e irmãs, a missa do galo e no máximo, alguma festa maior à noite, em que houvesse danças e namoricos. Nada que se compare às baladas explosivas de hoje em dia. E este natal começou muito cedo. Na véspera, numa tarde de sábado. Um desses sábados à tarde em que as pessoas já fizeram as suas compras ou ainda permanec

DESENHOS, HISTÓRIA E CASTIGO

As horas passavam lentamente, naquela manhã. Meu espírito irônico se evidenciava nas pequenas coisas, nas orelhas de abano do colega ao lado, na boca imensa e dentes desaparelhados do que ficava na fileira à direita, no cabelo sempre envolto em um generoso laço rosa da menina da frente e principalmente, cansava-me a atitude enfadonha da professora a conjugar os verbos interminavelmente. Estava na quarta serie primária, no tempo em que obedecíamos regiamente aos professores, pais, diretores, enfim, quaisquer pessoas superiores em hierarquia e em idade a nós. No entanto, havia uma pequena brecha que surgia a cada momento em nossas mentes, onde a ocupávamos com imaginação ou brincadeira, para atenuar a rigidez que nos era imposta. Nem o sabíamos, mas fazíamos de forma inconsciente, embora não raras vezes sofrêssemos as consequências. Naquela manhã, não conseguia ouvir uma palavra do que a professora dizia, mas observava o seu jeito engraçado, a sua voz rouca, o seu olhar instigante, c

AS VÍRGULAS DE ANTÔNIA

Para que servem as vírgulas. Se nos detivermos com atenção nas minúcias, observamos que há dezenas de usos, nos quais extraímos da mente, como apêndices desnecessários da linguagem, a não ser para respirarmos com mais tranquilidade. Entretanto, gramaticalmente, poderíamos falar em intercalações, tais como as do adjunto adverbial, da conjunção, ou de expressões explicativas, bem como nos apostos ou no uso após o vocativo, e o que é mais corriqueiro, nas enumerações. E aqui elas se fazem valer, altivas, imponentes, revelando aos incautos a força de seus significados e significantes, mostrando o porquê de suas inserções. Mas na verdade, estas funções gramaticais não despertam curiosidade em nosso discurso cotidiano, ao contrário, nem percebemos a sua localização, seu uso adequado ou indiscriminado. Via de regra, respiramos saciados, no linguajar afoito de quem, quase sempre, tem pressa absoluta. E lá vai vírgula. Ao menos que sejamos especialistas em linguística, damos conta de suas funç

Na fazenda

Ajeitou os documentos velhos e ficou olhando pela janela, perdendo os olhos nas montanhas, observando os cascos dos animais, mastigando os campos sem vida. Melhor fugir da fazenda e desaparecer pra sempre das lidas rotineiras. Bambaleando pernas, perseguindo alemoas nos salões de outono, pisoteando as terras vermelhas rachadas pelo vento. Pudera varrer consigo as lembranças, os pequenos achaques nas contas do bar, os muitos acessos de cólera na imensidão das noites vazias. Melhor seria escolher apenas as estrelas pintadas no céu, descobrir as vida faceira nos açudes de banhos gelados, afujentando a saudade sem dor, abrilhantando o que sobrara de ar. Mas não, as lidas na fazenda, o velho passeio de botas engolindo bombachas, o peitoril amassado da janela esperando conserto, o fustigar dos cavalos nos açoites  de mãos violentas. Deveria persistir na mesma ladainha dos tempos idos, do despertar na cidade e amanhecer no campo. Tal como na época em que pensara crescer dentro de si a forç

PEQUENA CRÍTICA SOBRE O FILME A VIDA NO PARAÍSO (Så som i himmelen)

Certamente há centenas de críticas e resenhas sobre o filme “A vida no paraíso”, dirigido pelo sueco Kay Pollak, mas há sempre um aspecto a explorar e nunca é demasiado se falar de um bom filme. A vida no paraíso é um destes filmes em que os personagens são envolvidos na trama existencial de suas vidas, tão pacatas, mas borbulhantes de problemas e confrontos numa sociedade machista da pequena cidade em que vivem. É para lá, que o maestro famoso volta, Daniel, o protagonista, retomando uma busca que sempre se propusera, talvez de forma inconsciente. Uma retomada ao passado, à vida simples e também cheia de contradições desse lugarejo, aliás, o lugar onde nascera. Lá vivera os primeiros anos de sua vida e logo se mudara para a cidade grande, para tornar-se um grande maestro. Após uma transformação física e espiritual, volta à cidade natal, aos costumes, aos velhos conflitos. Não há nada aqui relatado que possa tirar a surpresa do filme, pois logo no início da película, surge a causa pr

APONTAMENTOS NO SÓTÃO

Passei a noite descobrindo coisas novas. Percorri o corredor imenso da casa, subi as escadas e parei no sótão. Como toda peça meio escondida, não passa de um buraco com teias de aranha. Queria achar um livro antigo, de meu pai, um tipo de atlas, mas que tenho certeza, além de mapas, havia anotações lá. São elas que procuro. Anotações provavelmente a lápis, meio apagadas, rasgando a folha do outro lado, amarelada e fina, puída ou furada por traças. Sei que devo achá-las. Anotações. Anotações que contam histórias, talvez muito mais profundas dos que as contadas nos livros. Verdadeiros registros, quase certidões de nascimento. As anotações de meu pai. Mas as horas escoam rapidamente e minhas pernas estão cansadas. Por que não coloquei as malditas meias elásticas. Por certo, teria pelo menos duas horas sem as terríveis dores da circulação. Pernas que envelhecem, que incomodam e impedem meus gestos. Mas nada me fará desistir, nem esta cãibra que insiste em retorcer os dedos do pé. Numa

José: um homem de fé

Quisera ser como tu, José. Tiveste a vida devassada pela sociedade patriarcal e machista da época. Carpinteiro que eras, carregaste pedra, para sobreviver. Lutaste contra as injúrias, o preconceito, o ciúme, a dor. Lutaste contra teus sonhos. Mas tua integridade justificou-se no amor por Deus. Um homem de fé. Um homem que superou os preconceitos e derrubou a maledicência. Que honrou a mulher. Que soube ser fiel, quando todos o julgavam, quando ele mesmo temia e a incerteza rondava seus pensamentos; quando a morte da dúvida avassalava seu ser. Um homem de fé. Que soube vencer os medos e discernir entre o que a sociedade lhe tirava e o que a vida lhe entregava de galardão. Mas como enfrentar tudo isso, se não pelo amor? Tu amaste, José. E por este amor, sobrepujaste qualquer temor, qualquer discórdia em teu coração. Quantas vezes choraste, José. Turbulências na vida, somente aplacadas pelo anjo a ti enviado. Até que a calma chegou e a mansidão de tua alma alternou a dor com a ale

QUAL SERIA O ACONTECIMENTO MAIS IMPORTANTE DA SEMANA?

Qual seria o acontecimento mais importante da semana? Talvez escolhêssemos no campo político, na economia, ou na área das ciências, da cultura ou mesmo nos assuntos cotidianos mais banais. Acho mesmo que aí está a resposta a nossa pergunta. Os assuntos banais, corriqueiros, comezinhos, que fazem parte de nosso dia a dia, sem grandes brilhos, oscilar das bolsas ou vultosos negócios. É ali, na nossa rotina que acontecem os grandes temas, as grandes manifestações de sentimentos, de sensações, de usufruir o que chamamos vida, existência, o estar no mundo. E estar é muito mais do que apenas viver, sobreviver, mastigar o dia pelas pontas, levando em conta as tarefas de roldão, sem pensar nelas, sem refletir os próprios comandos ou atividades. Faz-se tudo burocrático, organizado, produzindo caminhos iguais, onde trilhemos com segurança e precisão. Sentimos então o tempo passar rapidamente, porque nos acomodamos aos grandes acontecimentos, nos detemos nas grandes realizações e estas não ocorr

O invisível e suas previsões

Chamavam-no Capitão. Era alto e magro, usava calças abanando ao vento, revelando os ossos que lhe sustentavam o corpo, mãos grandes, calejadas. Tinha um olhar estranho, enviesado e costumava ficar muito tempo no banco da praça. Alguém perguntou-lhe qual era a atividade que tomava conta. Sorria, os dentes amarelados mastigavam a saliva, engolia em seco e geralmente respondia com outra pergunta. Por que não me deixam em paz? Falava vários idiomas,  segundo alguns.  As pessoas que passavam por ele, pouco percebiam seu jeito displicente, sentado no banco, fazendo companhia às pombas que pululavam, se reproduzindo em quantidade extrema. Um dia, reparei que estava do outro lado da rua, distante alguns metros do largo onde costumava ficar. Vi que se aproximava de uma banca de revistas e examinava detidamente as capas, como se pesquisasse algum assunto interessante. Ficou ali, parado, algum tempo. Logo aborreceu-se, porque afastou-se um pouco, olhando para o chão, mão esquerda dobra

PRESO NA IGREJA

Era início de noite de outono, mas havia uma sensação térmica mais fria do que se antevia no final da tarde, sintoma de que a estação do frio se prolongaria por bastante tempo. Uma neblina envolvia a cidade. Pouco se via os edifícios ao longe e suas iluminações fracas, espalhadas no cinza aguado da atmosfera. Entrei na Igreja do Carmo (Rio Grande,RS) com o intúito de fazer uma oração breve, acompanhado de uma novena escrita, que depositaria na mesa providencial: conforto e esperança para os desanimados, acabrunhados em relação às dificuldades que a vida às vezes nos reserva ou mesmo esperançosos, eufóricos até, na certeza do atendimento das preces. Por vezes, e raríssimas exceções, apenas um momento de reflexão e agradecimento. Os que tem fé nutrem-se destes momentos de verdadeiro encontro consigo e com a Divindade, os  que por ventura se alijam destes comprometimentos, ou por terem dúvidas ou mesmo, desprovidos de qualquer entendimento no sentido da entrega total e absoluta de qu

O ESTRANHO PRIMO DO INTERIOR

Chamava-se Ismael. Veio morar conosco numa dessas tardes de inverno, quando o sol se põe tão lentamente que parece que vai desaparecer para sempre. Era forte, robusto, ideal para o quartel. Nos meus onze anos, me parecia muito velho. Era um típico exemplar de rapaz do interior. Olhos baixos, gestos miúdos, aperto de mão respeitoso aos mais velhos. Jeito de quem sabe onde pisa. Eu, ao contrário, tão acostumado a minha vida serelepe, sempre à busca de aventuras, me atirava de corpo e alma no exercício das travessuras. Estava sempre à cata de espécies que alimentassem esta gana. Ismael trazia uma mala marrom de um tom avermelhado, com alças de metal, que me deixava curioso. Foi morar no quarto dos fundos, onde passaria os próximos nove ou doze meses, não sabia bem. Percebia, de imediato que não gostava de minhas atitudes. Parecia me julgar infantil, imaturo ou qualquer coisa que lhe viesse na cabeça a respeito de meninos de minha idade. Julgava-se, provavelmente, muito adulto. Sentia