
Clara passeou pela sala, observando as paredes velhas, desbotadas. Ficou algum tempo assim com a sensação de que Dona Luisa a conduzia pela casa, indicando o caminho para encontrar o caderno e o baú envernizado. Sentia-se satisfeita na tarefa que se incumbira.
De repente, uma música tocava na vitrola. Uma daquelas canções antigas que lembravam os anos 40. Caminhou pelo corredor semelhante ao de seu apartamento, apenas com a diferença de que as paredes nuas simbolizavam um abandono natural e sóbrio, que Dona Luisa tanto prezava. Tudo para ela era desnecessário, desde que significassem a morte do passado, um passado que conservava em sua memória. Clara sabia disso, e ao mesmo tempo que lembrava destes detalhes, adaptava-se a eles, aceitando-os como seus próprios princípios.
Então, dirigiu-se ao quarto, revirou as gavetas, examinou a cômoda, o roupeiro, mas nada encontrou que facilitasse a sua busca. Subiu displicente na cama, olhando por cima do roupeiro, pesquisou no lustre, quem sabe não haveria alguma coisa escondida dentro daquele bojo de porcelana? Desatarraxou a borboleta cuidadosamente, tirando a cúpula, examinando o seu interior e, feliz pela intuição, encontrou um pequeno bilhete preso à parede do lustre com fita adesiva. Deixou-o sobre a cama e desceu ansiosa, com o pequeno papel na mão, para descobrir do que se tratava.
Aproximou-se da janela, abriu o postigo e a veneziana, deixando a luz entrar. Sem querer, olhou para fora e viu o seu próprio apartamento. Os telhados agora não pareciam tão musgosos, com fendas e contaminados por pombas ou felinos que se refestelavam ao calor do sol. Sua janela estava aberta e por um instante daqueles que não se consegue expressar a não ser com a alma doída, viu Cida descansar os braços no parapeito, olhando-a de esgueiro e sorrindo irônica. Afastou-se da janela, batendo com raiva, os postigos. Mas logo os abriu, para certificar-se se a mulher estava realmente lá. Não havia ninguém. Devia ser apenas uma ilusão de ótica. Andava aflita por estes dias, preocupada com tantas coisas, com o clandestino, com a sua vida esmiuçada no trabalho, com as ironias de Gustavo, com o amor que aos poucos ocupava seus sentidos. Empurrou os óculos, como de hábito, que lhe escorregavam pelo nariz. Suava frio. Um sentimento de estranha melancolia se apoderava dela.
Por que vira Cida em sua janela e não Nael? Por que ele tinha se afastado? Estaria recusando a sua ajuda, o seu carinho? Confusa, pensamentos obtusos, sem rumo.
Então, Clara leu o bilhete cheio de poeira. A letra era miúda, bem desenhada e grafia correta. Ela reconhecia a letra de Dona Luisa. “Se eu morrer, pegue a chave do cofre do banco. Ela está com você”.
Clara afastou-se da janela, sem tirar os olhos do bilhete, boquiaberta. Sentou-se na cama e ficou ruminando os pensamentos: — Como no cofre? O que ela queria dizer? Então, o baú era somente um despiste. A procuração estava num cofre do banco e ela insinuava que estava comigo?
Ficou tanto tempo nestes pensamentos conturbados, que nem percebera que estava anoitecendo. Pensava no quanto Dona Luisa era astuta e o quanto a usara para obter seus propósitos. Não queria que lhe tomassem o apartamento, por isso, achara uma maneira de impedir, pelos menos, atrapalhar os trâmites.
Certamente, ela teria deixado a chave no único dia em que estivera em seu apartamento e a escondera, de algum modo. Chegara de mansinho, batendo à porta, revelando uma estranha calma que a impressionara. Parecia estar disposta a contar-lhe toda a sua vida. E havia se preparado para isto. Trouxera-lhe um documento antigo, o passaporte do marinheiro. Dissera-lhe que fora o documento que mostrara à mãe, comprovando-lhe a nacionalidade.
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Moema examinava o documento, espantada, após a revelação da filha. Temia alguma punição ao marido, que na posição de funcionário público não poderia abrigar um militar foragido em sua casa.
De repente, toda a revolta contida vinha à tona, provocada pela atitude de Luisa. Como ela poderia ter tomado aquela decisão perigosa de acolher um foragido, refugiando-o em sua casa, principalmente um militar de uma raça tão odiada? Ela não percebia que, inclusive os imigrantes estavam se escondendo dentro de casa, com medo de represálias?
Fitava-a com com ódio. O rosto magro, os sulcos próximos à boca salientados, verdadeiros frisos, que lhe transformavam a fisionomia. A boca cerrada, falando entre os dentes.
— Você quer acobertar um bandido em nossa casa?
— Ele não é um bandido. É um homem que precisa de ajuda. É uma questão de solidariedade, será que a senhora não entende? Ele está muito ferido! – Luisa expressava uma indignação infantil, incitando ainda mais a raiva de Moema.
— Pois que morra! É por causa desta gente, que meu filho está enfurnado num país estranho, arriscando a sua vida, lutando por uma causa que nem conhecemos bem.
Luisa não sabia como convencê-la, mas tinha em sua alma que não o abandonaria, mesmo que a expulsassem de casa. Perscrutava cada linha do documento, tentando descobrir pormenores que indicassem o seu endereço, nome dos pais, quem sabe algum detalhe que lhe desse outras informações que ainda desconhecia. Queria investigar a mochila, encontrar outros documentos, quem sabe cartas ou um diário, mas a mãe estava irredutível.
— Mamãe, ele deve discordar desta guerra absurda, tanto que se atirou ao mar, desertando.
— Não seja idiota! Como pode imaginar uma ingenuidade dessas?
— Porque estava abandonado no porto, num vagão de carga, como uma mercadoria indesejável. Além disso, alguém do porto deixou que ele entrasse no circuito de radioamador, para que o ajudassem. Alguém o apoiou, não o entregou à justiça.
— Pois então a coisa fica ainda pior. Você está encrencada, está metida nesta história até a raiz dos cabelos. Você arriscou o emprego de seu pai, arriscou a nossa própria segurança! Precisamos nos livrar deste homem!
Luisa desesperou-se. Tentou voltar para o porão, mas Moema segurou-a pelo braço, alterando a voz.
— Fique aqui, não pense que vai ficar sozinha com este infeliz.
— Mas então, o que vamos fazer?
— Não sei, preciso pensar. Temos que dar um jeito, antes que seu pai volte.
— Não podemos deixá-lo morrer, é uma questão humanitária, mamãe, de amor ao próximo.
— O próximo é meu filho, que está longe por causa desse povo maldito. Este homem não significa nada para mim. Ou melhor, significa a ameaça, o perigo, o ódio que eu tenho por toda a descendência dele. Eu o quero longe daqui!
Luisa analisou o documento detidamente, cada minúcia, cada carimbo que trouxesse alguma identificação. Avaliava as linhas falhadas, o mau estado da tinta por ter sido molhado, a dificuldade da língua, o amarfanhado do papel em precárias condições. Por fim, deparou-se, em linhas disformes, a palavra Tchecoslováquia.
Sentiu-se especialmente feliz. Talvez, se não se tratasse de um militar alemão, a mãe aceitasse que ele permanecesse ali. Sabia que a Alemanha invadira a Tchecoslováquia, embora isto não provasse que ele era um deles.
Aproximou-se da mãe, elucidando esta expectativa que a deixava feliz, mas Moema nem a ouviu.
Luisa, então decidiu por em prática a última parte de seu plano. Correu até o banco onde o pai trabalhava, colocando-o a par do fato.
Lucas, a princípio, não levou a sério, achando que tudo não passava de uma pilhéria. Mas aos poucos, rendeu-se às evidências. Fechou as portas do gabinete, preocupado, tendo em vista as implicações que o ato impensado da filha lhe traria. Estava desconcertado, apreensivo, incapaz de tomar qualquer atitude.
Sentou-se à mesa, passando a mão pelos cabelos, desorientado. Pediu que repetisse a história e ao final, exigiu segredo absoluto. Ponderou sobre o documento que ela lhe mostrara, ficando muito tempo refletindo sobre a situação, até que o gerente o chamou para determinar alguma tarefa.
Quando a filha se retirou, tentou se concentrar no serviço, porém, durante todo o dia, andou numa roda-viva, em que as atividades se tornavam ínfimas, em relação à inquietação e medo que o atormentavam.
*****
Clara leu várias vezes aquele bilhete. Seus olhos brilhavam, estimulados. Guardou-o com cuidado, na bolsa e desistiu de procurar o caderno e o pequeno baú.
Deu uma última olhada em torno, afastou-se do quarto, enveredou-se pelo corredor, atravessando a sala e saindo definitivamente.
Lá fora, respirou fundo, como se houvesse realizado uma verdadeira odisseia.
Em casa, correu para o escritório e ficou às escuras, observando agora, a janela do apartamento de Dona Luisa.
A atmosfera era outra, estranha. Não havia aquela distância peculiar entre uma casa e outra, na qual cada qual tem seus usos e costumes.
Ao contrário, tinha a impressão de que o apartamento de Dona Luisa era a extensão do seu. Que a vida dela significava a continuidade da sua.
Ficou assim, um bom tempo, sentindo-se naquele mundo novo, que na verdade, não lhe parecia tão diferente.
Saiu pelo corredor, dirigindo-se aos quartos, à pequena sala de leitura, organizando a velha estante de mogno, guardando com carinho os objetos de outrora, folheando as páginas do álbum de fotografias, examinando minuciosamente as cartas e documentos, guardando no baú os velhos rolos de filme, que nunca haviam sido revelados.
Estava assim, absorta, que nem percebeu a presença de Nael.
Surpreendeu-se, quando ele, carinhoso, a enlaçou pela cintura.
Voltou-se como se o visse pela primeira vez, desfazendo rapidamente o laço. Ligou o interruptor do abajur sobre a escrivaninha, iluminando a peça. Ele desculpou-se por tê-la assustado. Por fim, disse que estava preocupado por ela ter desaparecido por tanto tempo e nem ter ido ao trabalho.
— Trabalho? Não, tenho outra atividade muito mais urgente para cumprir. Por favor, Nael, me deixe sozinha. – respondeu em português, aparentando preocupada com alguma coisa. Emendou a frase em inglês, entediada.
Ele quis saber do que se tratava. Queria ajudá-la, participar de seus problemas.
Clara o olhou demoradamente. Sorriu, limitando-se a permanecer calada. Nael compreendeu o recado e afastou-se.
Sozinha, suspirou sentindo-se livre da presença inconveniente. Tirou o bilhete da bolsa e pôs-se a pensar onde poderia estar escondida a tal chave.
Deixou-se ficar algum tempo, reflexiva. Depois, abriu a gaveta, pegando o maço de fotografias de Dona Luisa.
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