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A CASA OBLÍQUA - CAPÍTULO XI

Aquele sentimento de paz a reportava há alguns anos atrás quando ainda conhecera Bruno e passara a descobrir a experiência da vida de Dona Luisa. A princípio, acercando-se devagar, talvez revelando uma carência mais intensa do que a dela. Sempre se julgara a amiga que provinha, que ajudava, que apoiava em sua solidão e não que esperasse dela qualquer conforto. Luisa, ao contrário, sentia-se cada dia mais confiante. Encontrava na vizinha, uma amiga a quem podia expressar seus sentimentos e suas verdades mais recônditas, no recordar o passado, aflorando as emoções como se fossem atuais. Estava assim, naquele entardecer, servindo um chá para Clara e finalmente tendo a coragem de contar a sua história. Clara encostava-se no sofá confortável. Olhos atentos, observando cada gesto, cada emoção que brotava, como se fosse uma terapeuta. Percebia que o passado de Luisa estava presente em sua vida, como se tivesse existido um impedimento, uma falha para o desfecho de sua história. Como se faltassem respostas que ela nunca tivera e que talvez não descansasse até esclarecê-las. Quando Luisa começou, Clara tinha a certeza de passar um filme ante seus olhos. Corria o ano de 43, a segunda guerra estava em seu auge. Luisa dava aulas de gramática numa escola próxima a sua casa. Naquele ano, havia falta de alimentos, em virtude da guerra, que se espalhava por todo o país. Seu pai era bancário e radioamador e ao pé do rádio, passava horas à noite, tentando encontrar frequências que possibilitassem ajuda aos familiares dos soldados brasileiros, a partir do intercâmbio com os colegas, transmitindo notícias ou informações mais específicas das regiões onde se encontravam. A mãe acumulava as tarefas de costureira e dona de casa, mergulhando no trabalho de uma maneira doentia, na tentativa de passar o tempo, de forma a esperar a volta do filho são e salvo da guerra. Luisa participava ativamente daquele rodízio de sentimentos: por um lado, o pai, orgulhoso, mantendo contato com outros aficionados da atividade, divulgando as prováveis façanhas do filho, por outro, a mãe angustiada e revoltada com a sua ausência. Luisa procurava especialmente ajudá-la, apoiando-a em suas queixas e amenizando suas feridas. Mas quando podia, investia nas conexões com o rádio, participava dos debates, das conversas, das ajudas humanitárias, da divulgação de promoções para angariar fundos às famílias pobres, alijadas de seus filhos enviados ao front. Geralmente, invadia as ondas amadoras altas horas da noite, após a correção dos cadernos, quando o pai já dormia a sono solto, pois acordava cedo, apto ao trabalho no dia seguinte. Uma dessas noites, em que o céu parecia em paz, Luisa espiava pela janela, fitando absorta o infinito. No aparelho de rádioamador, ocorreu uma estranha ligação. Inicialmente ela não deu importância aos ruídos da onda que subia e descia, numa frequência que parecia desabilitar-se a qualquer momento. Continuou olhando pela janela, de vez em quando, avistando o plátano que se prateava com a luz natural, sem mexer uma folha. Sentia-se um pouco melancólica àquela noite. Nem sua mãe permanecera na costura. Ao contrário, continuava mexendo em louças, panos de pratos, ajeitando toalhas, na cozinha, como se fosse a última tarefa que fazia em sua vida. De vez em quando, descia ao porão, mas fazia-o em silêncio. Apenas o arrastar depressivo dos chinelos, de um lado para o outro, subindo novamente a pequena escada e parando por alguns minutos, para fumar às escondidas, na porta que dava para o quintal. Pegara este vício desde que o irmão partira para a Itália. Não era de bom tom, uma mulher como ela, fumar daquele jeito. Mas que fazer? Era uma válvula de escape, que encontrara para permitir que os pensamentos não se tornassem tão vulneráveis, quanto o coração fraco que palpitava pelo filho. Ficava assim, horas, às vezes, até o amanhecer. Quando estava no porão, gostava de arrumar os brinquedos antigos do filho, organizá-los em prateleiras, como patinetes, trenzinhos de metal, um cavalo de gesso, ou mesmo a bicicleta, que lustrava, como uma relíquia preciosa, guardando-a com cuidado sob a escada. Clara não se permitia interromper-lhe os silêncios. Já tentara aproximar-se, convencê-la a esquecer um pouco aquela situação, mas só recebera em troca impropérios indignados. Deixava-a assim, com a sua dor. Doía-lhe também vê-la sofrer, vê-la definhar lentamente, emagrecendo como uma doente terminal. Naquela noite de abril, também para ela, o mundo parecia ter tomado um rumo diferente. Sua rotina era sempre a mesma, a vida na escola, o convívio na casa, um fim de semana com baile no clube, a conversa com as amigas. Geralmente o assunto resvalava para corações aflitos, na expectativa da volta de noivos, namorados ou mesmo aqueles soldados, os quais se amava platonicamente, sonhando com o seu regresso, coração aos pulos, passos desencontrados, encontros de mãos e olhares fixos, bocas que se tocavam. Mas tudo era sonho. Ela não tinha nada disso. Nem um namorado em risco de vida. Nem um corpo que voltasse para que chorasse como viúva desconsolada, tal como nos filmes. Nem um amor para descansar a cabeça, sentindo o coração bater forte no peito. Não, ela não tinha ninguém, nem tempo para sonhar, porque a sua realidade era difícil. Um pai alienado ou fingindo-se forte, orgulhoso do filho pracinha. Uma mãe sofredora, solitária em sua dor, domesticando o ódio a cada dia e escondendo a desesperança, assim como ocultava o vício de fumar, às escuras, nas noites vazias. De repente, um vento benfazejo sacudiu as folhas de plátano por um momento, produzindo redemoinhos que pareciam incitar um novo acordo com a vida: transformar o que era rotina pesada e morna, em trilhas diferentes, moldadas em novas esperanças. Era o que instintivamente esperava, ainda com seus olhos curiosos por novas caminhadas. A mãe silenciara no porão. Certamente, estava exausta e por isso, decidira deitar-se. Luisa não conseguia desligar-se dos sons que vinham nas estranhas frequências do rádio. De repente, uma voz se antecipava aos ruídos e pedia socorro, em inglês. E repetia, como se estivesse agonizando. Era a voz de um homem. Tentou entrar na freqüência e dialogar com a pessoa. Investiu em outras, na tentativa de comunicar-se com outros companheiros de seu pai. Mas o silencio era absoluto. Parecia que todos haviam abandonado a atividade. A voz insistia, pedindo socorro. Por um instante, Luisa então conseguiu conectar-se. Perguntou de quem se tratava o pedido de ajuda. Não houve resposta. Então, perguntou arranhando um inglês acadêmico, onde a pessoa se encontrava. Após a oscilação do som, uma voz hesitante também respondia num inglês sofrível, que estava ferido e se encontrava numa região próxima ao porto. Foi a única informação que Luisa obteve. Logo a seguir, o silêncio foi total. Ela tentou se comunicar inúmeras vezes, mas foi inútil. Coração aos saltos, à espera. Não sabia o que fazer diante daquele pedido de socorro. Não poderia sair por aí, àquela hora da madrugada, num estado de emergência em que se encontrava o país. Mas seu coração não se aquietava. Precisava fazer alguma coisa. Caminhava de um lado para o outro pelo gabinete, temerosa de cometer uma loucura e ao mesmo tempo angustiada por impedir-se a si mesma de salvar alguém que talvez estivesse morrendo. Poderia acontecer com qualquer um, inclusive com seu irmão. Na própria Itália, ferido, num lugar distante, perdido após uma campanha. Por que não ajudar um estranho? A luz amarela piscava. Piscavam seus olhos castanhos, examinando por momentos a mariposa que entrara desavisada, investindo contra a lâmpada, atraída pela luz. Ela estava assim, como aquela mariposa, fascinada pelo acontecimento, com a mente conturbada, dando voltas, sem sair do lugar. Lembrou-se de Padre Antônio, o diretor do grupo escolar. Quem sabe, num ato de solidariedade e compaixão, ele não a ajudaria? Mas àquela hora da noite, como chegaria até lá, atravessando ruas desertas, expondo-se a riscos, inclusive de ser parada por alguma patrulha. Havia o velho carro de seu pai, mas como tirá-lo da garagem sem que um deles ouvisse. O pai poderia acordar com o barulho, a mãe talvez ainda estivesse com os olhos abertos, olhando o teto, observando as figuras disformes de seus pensamentos. Não, não poderia sair com o carro. Não poderia? Era o único procedimento viável. Foi o que fez, antes porém, espiou rapidamente o quarto, pela porta entreaberta. Seu pai virava-se para o lado, cabeça enterrada no travesseiro, mexendo-se como de costume, talvez sonhando com o filho. A mãe parecia adormecida, quase desfalecida. A pele muito branca, boca cerrada, olhos fechados e as mãos entrelaçadas, como se estivesse rezando. Luisa afastou-se pé ante pé, suando frio. As mãos tremiam tanto, que mal podia destravar o trinco que liberava a porta da garagem. Ligou o automóvel, esperou alguns minutos para esquentar a máquina. Coração batendo forte, boca seca, engolindo ar. O automóvel saiu aos solavancos, expelindo um cheiro forte de gasolina e uma fumaça branca que inundava a peça. Na rua, desceu do veículo e fechou a porta. Pressentiu uma brisa forte, levantando-lhe a saia. Os joelhos batiam um no outro, o salto do sapato fechado comprimia a grama molhada. Voltou para o carro e disparou em busca de seu destino.

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