Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o 3º capítulo
A vara verde
Quando a mãe chegou já passavam das quatro horas. Lúcia havia desistido de procurá-la, de telefonar aos conhecidos, procurar nas farmácias próximas, arriscar-se fisicamente. Afinal, uma mulher sozinha, como ela, andando pelas ruas, altas horas da noite, poderia sofrer um assalto, tomar parte numa batida policial, exigirem seus documentos, desconfiarem de suas atitudes. Sua mãe não deveria sair sem avisar-lhe. Foi um despropósito, uma desconsideração.
Agora estava estirada na cama, resguardada pelos anjos, sonhando sabe lá Deus com quê, e ela, Lúcia, acordada, incapacitada de dormir, tão agitada se encontra. Tinha vontade de acordá-la, impedir-lhe o sono tranquilo intercalado de roncos assustadores, interceptar-lhe a paz. Mas nada resolveria, a não ser prolongar o seu sofrimento, a sua raiva. Além disso, viera com a desculpa infantil que precisava ir à farmácia, que o remédio da pressão acabara e que se esquecera do tempo conversando com o balconista. Que ela estaria fazendo àquela hora, uma mulher que não se afasta um milímetro de seus bordados, de sua poltrona, de seu olhar distante do mundo.
Esta noite prometia um verdadeiro suplício. Uma noite interminável. Ouvir os pingos grossos que aumentavam, o fustigar do vento nas frestas das janelas, o prenúncio de um inverno adiado e demorado. Se ao menos pudesse passar um tempo longe daquela cidade fria, daquelas pessoas insípidas, daquela gente mesquinha e medíocre. Se pudesse encontrar alguém que a levasse dali, a qualquer preço, mesmo que o indivíduo fosse insuportável, não importa. Seria alguém que a tiraria daquele inferno.
De repente, ouviu um barulho estranho no quarto. Olhou pela janela e só avistou as figuras sombrias das árvores agitadas pelo vento, ora pra lá, ora pra cá, vergando-se como se fossem quebrar a qualquer momento. Alguns relâmpagos dispersos iluminavam vez que outra a rua íngreme, de paralelepípedos que se desvendava ante seus olhos assustados. Afastou-se da janela com um arrepio, com uma premonição de que alguma coisa desandava muito perto de si, um desequilíbrio que talvez significasse um mergulho no nada, no caos, no desconhecido. Ela costumava pressentir estas coisas.
Sentou-se na cama, as pernas trêmulas, os joelhos batendo um no outro. E de repente, teve a impressão de que o lençol onde estava sentada se erguia e uma varinha verde riscava lentamente a sua perna direita. Ficou paralisada. Terror intenso. Pânico. Sentia que havia alguém no quarto, alguém embaixo de sua cama e que a provocava lenta e despudoradamente para atingir-lhe até as raias da loucura. Não sabia o que fazer, o que pensar, a não ser ficar quieta, quase sem respirar. Então pensou em rezar, mas nem uma prece lembrava, tão perturbada estava. Começou a resfolegar, a voz tornar-se pastosa, arrastada, como se fosse ter uma síncope. Percebeu que a varinha voltava a esconder-se sob a cama, retraída, à espera de uma reação, pronta para dar o bote fatal. Era uma vara verde, delgada, cheia de pequenos brotos, tinha certeza. Bastara um relance de olhar para avistá-la ali, tão próxima, provocando-a. Então teve uma ideia, que considerou brilhante. Se alguém estava ali, esperando-a para atacá-la, com certeza o fariam de qualquer modo, mas esperariam que voltasse, se por acaso fingisse que não nada havia percebido.
Então, embora com a voz trêmula e insegura, falou gritando: “Vou tomar um copo de leite e volto pra dormir de vez”.
Antes de levantar-se, sentiu a varinha subir novamente e roçar-lhe levemente o tornozelo. Puxou o pé, descontrolada. Taquicardia acelerada. Pulsação doentia. Mesmo assim, levantou-se e deu alguns passos em direção à porta, ainda afirmando que estava com sono. Tomaria o copo de leite e voltaria em seguida.
Mas, ao chegar na porta, correu pela casa, gritando desmedida, pedindo por socorro em profundo desespero. Quando se deu conta, estava na porta que dava para o imenso quintal, no meio de uma chuva desproporcional que desabava céu abaixo, procurando ajuda, de forma insana. Os vizinhos não a ouviam, os quintais separados por muros elevados, verdadeiras fortalezas, um prédio de vários andares aos fundos, além do barulho ensurdecedor da chuva, que a estas alturas se mesclava aos ventos fortes e trovoadas sucessivas.
Mas o que fazer? Lúcia sentia-se acuada. Pensava na mãe, talvez corresse perigo, tanto quanto ela, nem tivera tempo de pegar o celular que devia estar na escrivaninha, muito menos de chamá-la, já que estava no quarto a sono solto, exausta de seus afazeres estranhos e impróprios em plena madrugada. Se ao menos pudesse pular o muro, afastar-se dali, investir pela casa do vizinho, pedir socorro. Se gritasse, o bandido da varinha a ouviria certamente e a estas alturas, já estaria procurando-a. Quanto mais pensava, mais se sentia acuada e desorientada. Estava encharcada da raiz dos cabelos à ponta dos pés.
Então, lembrou-se das ferramentas de jardim que a mãe guardava num quarto aos fundos, sob a escada que dava para o terraço. Titubeando entre as calçadas enlameadas e a penumbra acrescida da chuva intensa, aproximou-se do tal quarto e forçou a porta para abri-la. Seus dedos doíam, suas mãos sangravam, as unhas quebradas, a impressão perene de que havia alguém atrás de si, à espreita, pronto para atacá-la. Era o terrível medo do desconhecido. Colocou toda a sua diligência no objetivo de abrir a porta e entrou, estremecida, mãos tateando, à cata do interruptor, tentando ver alguma coisa naquela escuridão absoluta. Acionou a luz, respirando ofegante e encontrou pás, enxadas, ancinhos, foices, materiais de jardinagem. Pegou a pá e ficou na porta, de vigia, investigando algum movimento, alguma figura humana que se desenhasse na bruma que se dissipava cada vez que relâmpagos riscavam o céu. Agora tinha a certeza de que reagiria, que mataria se preciso fosse, mas que tomaria uma atitude. Não seria atacada em vão, não morreria sem que enfrentasse o inimigo. Alguns minutos que pareciam séculos passaram e nada acontecia: silêncio total. Ela até desconfiava de que houvesse sonhando, mas era impossível, era tudo muito real, aquela varinha verde, cheia de brotos e pequenas nódoas arranhando a sua perna, o lençol levantando-se levemente, como num truque circense, a espera calculada para confrontá-la e partir para o ataque. Não, tudo era muito real e verdadeiro. Ela não estava ficando louca, apenas confusa e assustada. Mas por que não apareciam? Será que o alvo seria a mãe? Imaginava-a ensanguentada, como uma porca sacrificada para a ceia de Natal. Os olhos arregalados, acusando-a de não pedir ajuda, de não lhe prestar socorro.
Por que esta noite tinha sido tão cruel para ela? O que fizera para merecer isso? Sentia que a chuva amainava um pouco, o vento até quase cessara. Pode ver com mais transparência as árvores que ainda balançavam, com seus galhos magros, seus ramos partidos pela tempestade, suas folhas debilitadas pela ação do inverno. Podia ver o caminho, que levava até a parte interna da casa. Percebia que as lajotas, antes enlameadas e alagadas, agora já surgiam mais visíveis, a água escoando.
Então percebeu que uma luz forte se acendeu dentro de casa e seu coração disparou novamente, desta vez, temendo a investida derradeira. Já avistava em seu interior, o espectro do assassino aproximando-se, envolvendo-a com a vara provocadora, o sinal indecente e perturbador que emitia para atingi-la. Abriu bem os olhos, esforçando-se para identificar a imagem que surgia à porta e nem se atrevia a pensar que fosse a mãe, na sua gordura desleixada, no seu jeito despreparado de viver, na sua pasmaceira deliberada. Será que ela estava na condição de refém? Será que o bandido a espetara primeiro com a vara, para depois, aproveitar-se dela? Porém, o que ouviu, não podia acreditar: uma gargalhada insensata, quase demente, um riso descontrolado, um resfolegar de vozes inaudíveis, a pança sacudindo sob a camisola, que mais parecia um saco de farinha. Queria perguntar o que estava acontecendo? Teria ela enlouquecido? Mas não tinha coragem, temia ouvir a verdade, temia saber que a própria mãe estava ensandecida, talvez drogada ou aliciada pelo bandido. Entretanto, o que ela gritava da porta, esclarecia a história de torpor e aflição por que passara.
– Lúcia, era eu com a varinha. Como é que não pode perceber? Fui eu que assustei você - e desatou a rir desbragadamente.
Lúcia assumia um olhar sinistro, e sua voz embargou de raiva. A mão estremecia segurando a pá, sentia uma força inabalável a impulsioná-la em direção à mãe e talvez, para acabar de uma vez por todas com aquele martírio. Mas não teria coragem. Só uma ódio absurdo, incontrolável.
Laura argumentava que perdera o sono e resolvera fazer a brincadeira, mas Lúcia já não a ouvia. Só a convulsão de seus próprios pensamentos. Doía-lhe a mão sangrenta segurando a pá. Não conseguia soltá-la, como se fosse um prolongamento de seu braço. Então afastou-se do quarto de ferramentas, e caminhou em passos lentos em direção à porta, onde estava a mãe, segurando cada um dos marcos, como se necessitasse se ajustar à estrutura. Lúcia se aproximava, as pernas doloridas, os pés encharcados, os cabelos escorridos sobre o rosto e um frio repentino invadindo-lhe o corpo.
Laura, assustada, parou de rir, percebendo o olhar estranho da filha. Um olhar ausente, como de um zumbi. Não teria medo, ela não faria nada que lhe causasse mal, mesmo assim, pediu que largasse a pá; não havia nenhum bandido, apenas ela, a sua mãe, que estava apenas fazendo um agrado às duas, como quando ela era pequena e costumava assustá-la. Fazia parte do jogo: ela fingia assustar e Lúcia fingia temer. Mas Lúcia não concordava com seu argumento e de maneira precipitada, acertou-lhe a pá, com tamanha fúria, que a derrubou de uma só vez. Laura caiu atabalhoada ao chão, batendo com grande estardalhaço a cabeça na calçada molhada e um fio de sangue jorrou pela boca entreaberta.
Lúcia parece ter voltado à razão, gritando e punindo-se desesperada: – meu Deus, o que eu fiz? Matei a minha mãe! Matei a minha mãe!
O telefonema. A ambulância. O caminhar pelo corredor do hospital, segurando o soro. A espera na cadeira fria, de assento descascado, riscado por unhas nervosas, pedaços de fórmica marrom extirpados dos encostos. Talvez com raiva, aflição, medo. Vândalos, pensou. O frio aumentava e um calor no couro cabeludo contrastava com o ensopado dos cabelos. Sentia-se horrível, daquele modo desalinhado, displicente. Colocara um casaco de lã sobre a roupa de dormir que ainda vestia, um calça de pijama, surrada, quase um trapo. Parecia uma indigente. E indigentes é o que não faltavam naquele hospital nefasto, infestado de gente miserável, estirada em macas pelos corredores, velhos de boca aberta, desdentados, abrindo-as e fechando-as como pássaros, regurgitando a comida da mãe. Tosses horríveis, ensurdecedoras que amedrontam. Engasgos, saliva, mucos escorrendo pelas bocas, narizes, olhos sem vida, opacos. Braços magros, assolados por agulhas, hematomas, curativos. E ela sofrida, doída, vendo a mãe afastar-se para a ala cirúrgica, com a cabeça rachada, quase agonizante, por sua culpa.
Duas pessoas que perdia na mesma noite: Irmã Dolores, a pobre e frágil Irmã Dolores e agora, provavelmente, a mãe. Que destino terrível a traía tão descaradamente, não bastavam os sofrimentos, a procura de emprego, o infortúnio de ser demitida? Caiu num choro convulsivo. O frio aumentava. Ouvia o barulho da chuva nas vidraças, nas áreas internas do hospital, nos telhados oblíquos. Alguém se aproximou, tocou-lhe no ombro com carinho. Era uma das pessoas que estavam em situação semelhante, à espera de respostas que não vinham, em súplicas que não eram atendidas. Uma mulher idosa tentava transmitir-lhe algum conforto, consolo que talvez tivesse exaustivamente procurado para si. Lúcia enxugou as lágrimas, parou de chorar e fixou a mulher com um olhar frio, quase implorando que se afastasse, que a deixasse sozinha. Sentia arrepios, como uma ameaça ao sentir o toque daquelas mãos magras e manchadas.
Ela parece ter entendido, pois retirou-se devagar, resmungando, antes porém, ergueu alguma coisa do chão, um papel que caíra da bolsa de Lúcia e o entregou. Lúcia agradeceu com um gesto de cabeça e percebeu que se tratava da carta de Irmã Dolores. Então começou a lê-la, a princípio, agitada, trocando as frases, pulando linhas, mas aos poucos se concentrou e reconheceu nela uma narrativa estranha e ao mesmo tempo muito familiar. Parece que Irmã Dolores conhecia muitos detalhes de sua vida.
“Querida Lúcia.
Sei que estranhará esta carta e tudo que nela for descrito, mas é uma necessidade quase premente que ao lê-la, você elabore um plano que possibilite um encontro. Um encontro que deve ser construído aos poucos, com carinho e amizade, para que no futuro, todas vocês estejam juntas e felizes. Dirijo-me a você, porque há alguns meses vem me visitar e revela ter muito carinho por mim. Quero falar-lhe de três amigas muito queridas de sua infância, amigas estas que foram muito importantes na sua vida e principalmente, na minha.”
Lúcia parou a leitura por um instante. Então tudo o que Irmã Carlota lhe relatara sobre as colegas de infância, o fato de terem uma amizade muito estreita, eram os motivos da carta. Ou pelo menos o motivo de um presumível encontro. Afinal o que pretendia esta mulher, reunir pessoas que não se encontram há dez ou doze anos. Certamente, quando planejou estas estultices, devia estar esclerosada. Se ela nem ao menos a conhecera na infância, e como sabia de detalhes de sua vida, se jamais lhe fizera confidências. Devia estar maluca, mesmo. Mas já que começara, a curiosidade aumentava, principalmente, porque eram pessoas com as quais convivia na escola, nas festas, ou que moravam em sua rua. Resolveu ler os nomes e ver de quem se tratava: Bárbara, Ana e Madalena. Pouco sabia delas, apenas que uma estava no exterior. Talvez Bárbara, que pelo que lembrava, conseguira uma bolsa para estudar num país do leste europeu, a Polônia ou Rússia.
Lúcia sobressaltou-se e esquivou-se rapidamente da leitura, deixando cair o papel no colo, estremecida pelo susto. Um grito de dor, quase um uivo, lancinante, arrebatado, em surto. Era a mulher que havia lhe falado há poucos minutos, que chorava inescrupulosamente, revelando explicitamente a sua dor pela morte de um parente. Lúcia levantou-se da cadeira onde estava, guardou a carta na bolsa, segurou-a com as duas mãos e afastou-se devagar, evitando constranger-se com a dor alheia. Não queria ser solidária, não queria intrometer-se, não queria apoiar ninguém. Queria afastar-se dali, daqueles gritos que aos poucos se transformavam em gemidos, aliados a outras vozes de outras pessoas que se aproximavam e se agrupavam, como jogadores no meio do campo, pactuando a jogada. Voltou-lhes as costas, alegando a si mesma uma fragilidade para a miséria humana. Tropeçou numa cadeira de rodas, onde um homem balbuciava frases desconexas, à espera de exames ou diagnósticos, enfrentou enfermeiros correndo de um lado para o outro, num verdadeiro caos, vozes em alto-falantes chamando médicos e tentou esquecer tudo aquilo.
Aproximou-se da porta que dava para um jardim e ficou olhando por muito tempo a chuva escorrer tranquila sobre as calçadas, os contornos dos canteiros, os bancos de pedra, os monumentos, as luzes tênues das janelas dos quartos opostos ao corredor, do outro lado do jardim, a cruz iluminada da capela. E pensou em Bárbara. Onde andaria Bárbara, para que país realmente havia ido? Era a sua melhor amiga, a que dera certo na vida. Então, abriu a bolsa novamente e retornou à carta. Somente naquele momento, se dera conta que havia um endereço correspondente à Bárbara. Uma cidade chamada Minsk. Onde diabos seria aquilo? Devia ser na Rússia.
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