sexta-feira, novembro 17, 2023

Quisera

Nem sei o que pensas, se no poema que teces, há alguma trama com a minha marca. Não sei. Sei que teus olhos dizem coisas que jamais falarias. Tua boca sorri, quando quer se calar e teus sentimentos se escondem, sem que se possam ocultar.  Talvez, não saibas. Um amor assim puro, não faz parte das prateleiras dos grandes filmes. Jamais podem retratar o que meu coração exalta. Quisera dizer tudo que me é impedido, quando meus sentimentos quase mergulham num infinito de procuras em tua direção. Sinto a melancolia de momentos que não vivi, de expressões que não criei, de verdades que não disse. Mas está presente, quando caminho nestas folhas que ora caem, quando me afasto em direção ao mar, quando tento ouvir de soslaio, o vento que zune próximo aos ouvidos, quando a brisa se esvai e a força da natureza me impele a seguir o caminho. Quisera apenas respirar aqui, neste ar mais puro, neste espaço marítimo, mas sei que o avanço que espero, jamais será definido, que a vanguarda que procuro, jamais será alcançada. Sinto aqui, a dor da desilusão. Vejo-te ao longe, vejo-te em meus pensamentos mais sinceros e sinto que te afastas, mesmo que te aproximes, pois a barreira social é mais poderosa e impune do que os maiores sentimentos. Quisera sentir a tua mão em meu peito, concedendo-me a cura, o consolo, o conforto, o carinho que não tive, o amor que anseio. Quisera sentir o teu olhar no meu, embora tentando ser displicente, fugindo de vesgueio, procurando o nada, não importa. Estarias perto, então. Quisera ouvir tua voz e saber que os fonemas que emites contam coisas que meu coração desperta. Quisera te ouvir. E ter a impressão de que não estou tão só. 


quinta-feira, agosto 24, 2023

Um só suspiro

Se a noite despertasse um só suspiro que não fosse o meu, se a noite me levasse a sonhos que não despertassem, se a noite dispusesse apenas o silêncio e escamoteasse o medo. Não. Ela se apodera aos poucos de meus pensamentos e sublima as dores esparsas, mas constantes, transforma as linhas da tela, os ecos das músicas, os ruídos da rua. Talvez latidos distantes, resmungos de alguém que surrupia como um mágico também as suas dores. Ali passa, ali funga, ali fuma, ali fica. Depois, quando o mundo já se estabeleceu em sua mente, afasta-se devagar, vivendo outra história. Quem sabe a realidade também mude aqui dentro, as memórias se restabeleçam, a realidade se instaure de vez. Aos poucos, os sons desapareçam e os lamentos fiquem mais lentos e escassos e a noite se reintegre em sua natureza explícita de ceder ao dia que vai nascer.

segunda-feira, julho 10, 2023

Mordaça

Queria criar um balaio de flores

Símbolo de beleza em cenários esparsos

Na esperança de criar valores

Que desfaçam laços e cadarços


Da mordaça que invade nossas vidas

Do medo que instiga os desejos

Das vitórias que não temos definidas

Das lutas que se furtam aos ensejos


Quem sabe tais flores invadam espaços

Vazios com feridas abertas

Varrendo retrocessos engessados

Numa vanguarda de ideias


E num mundo assim debilitado

Transgridam os ferrolhos das cancelas

Libertem as mentes magoadas

E desaferrem, num ímpeto, as celas.


Fonte da ilustração: autor Acedev

in www.pixbay.com

terça-feira, junho 06, 2023

João e suas histórias

João tinha desses hábitos desajeitados: gostava das coisas às avessas. Se lhe contavam uma história, ficava imaginando a trama de trás pra frente, com o protagonista com cara de vilão, ou o vilão com cara de mocinho.

Estava sempre à cata de uma novidade, alguma coisa que despertasse a sua curiosidade. E a dos outros também. Costumava se queixar que seus pais viviam muito ocupados. Por sorte, o avô se mudara para sua casa, por andar meio solitário e doente. A família se dispersara um pouco. A avó morava num País distante, ele nunca sabia, se na Nova Zelândia ou na Austrália. Não era bom em geografia. O seu forte mesmo era a imaginação.

João gostava de histórias. Mas não as histórias contadas pelo avô. Ele, João, era o narrador, especialista em inventar as histórias mais esquisitas possíveis. Começava do final, inventava personagens, trocava as personalidades de alguns e até a aparência física.

O avô perguntava: — Ué, não era o gigante que tinha a galinha dos ovos de ouro?

Não, segundo ele, era a mãe de João, aquele do pé de feijão, não ele, que tinha a tal galinha. E pior, ela, a mãe era a vilã.

— A vilã? – o velhinho indagava intrigado, levantando as sobrancelhas sob os óculos.

— É Vô, o senhor vai ouvir a minha história ou não vai? A que eu sei é deste jeito, depois o senhor conta a sua.

— Não, você é o contador de histórias. Eu sou o ouvinte. Mas vamos lá, desfecha este imbróglio.

Imbróglio? O avô gostava de usar palavras estranhas. Ainda bem que ele sempre explicava no fim da frase – “imbróglio é confusão, mixórdia, esta bagunça que você faz com as tramas”, ou então “desfechar é abrir, concluir”. É, o avô tinha seus caprichos!

Mas João gostava do seu jeito despachado, e embora cismasse com as palavras, ele sabia que no fundo, o avô ficava feliz com a sua presença e com as suas narrativas. Por isso, continuava a inventar as histórias mais malucas que lhe vinham à cabeça. Uma série imensa de personagens e tramas que saíam de sua mente, assim, fresquinhas, criadas na hora, de improviso, prontas para deixar o velhinho de cabelos em pé. Sim, porque às vezes, as histórias eram de arrepiar, imagine, para a idade de João, que tinha apenas sete anos.

Mas, um dia João se calou. Não brotaram mais histórias de sua boca. Por mais que o avô insistisse, ele se negava a inventar histórias. Parecia triste, sem vontade de puxar pelo raciocínio, como costumava dizer. Foi então, que passou a falar quase todos os dias sobre um amigo que morrera. Chamava-se Júlio e segundo o avô, um anjo o havia levado para o céu. Mas aquela explicação não o convencia. Por que havia de morrer assim de uma hora para outra, deixando-o sozinho, sem nunca mais poderem brincar juntos? A quem contaria os acontecimentos de sua vida, a quem comentaria sobre o seu mais querido ouvinte, o avô?

Certa vez, quando João apareceu em seu quarto, daquele modo desavisado, pensando numa coisa e fazendo outra, o avô aproveitou para instigar a imaginação do neto, pedindo-lhe uma nova história. Precisava incentivá-lo, para que voltasse a ser o menino feliz de outrora. Mas que nada. João não inventava mais nada. Desandara a perguntar, parecendo querer todas as respostas do mundo! Perguntava por que a avó sumira, por que o pai estava sempre ocupado e mãe vivia tão nervosa. Embora o avô replicasse que sua ex-mulher não sumira, João, volta e meia, insistia com aquela versão. Um dia ele fez uma pergunta nova. O velhinho respondeu: — Agora, você me deixou embatucado!

João riu. Embatucado, que palavra esquisita! Mas logo percebeu, que o avô estava pensativo e atrapalhado com a pergunta. Entretanto, naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele queria uma reposta. E sabia, que somente o avô lhe daria. Por isso, insistiu:

— Então, aí, Vô, se você é meu parça, fala. O que é a morte? Por que a morte leva as pessoas, assim como levou o meu amigo. Me explica.

— Calma, João, você está muito ansioso. Uma pergunta de cada vez.

— E o senhor sabe responder?

O avô pensou, pensou, matutou e deu o troco: — Só respondo, se você prometer que voltará a me contar as suas histórias.

— Ah, não sei Vô. Pode ser.

— Pode ser, não. Você tem que me garantir que voltará a exercer a sua imaginação. Estou com saudades, sabia?

João suspirou, sério, mas disparou logo: —Vou fazer o possível. Sabe Vô, estas coisas a gente não pode garantir.

— Está bem, João. Eu entendo você. Mas prometa que fará um esforço.

— Isso eu prometo! – Adiantou, sorrindo.

— Está bem, eu confio em você.

— Então me diga, vai responder a minha pergunta?

—Como você, vou fazer um esforço.

—Por quê?

— Talvez porque eu não saiba explicar muito bem. Mas vou fazer o possível.

— Então, começa do princípio, Vô, sem enrolação.

— Como assim?

— Dizendo como tudo começou. A morte aparece assim, de repente?

—Depende.

—Depende de quê?

— Espera, acho que tenho uma maneira de mostrar pra você.— Abre a gaveta da cômoda e retira um envelope com fotografias. Escolhe uma e a entrega a João.

— Quem é?

— Um menino, assim como você.

— Mas quem é?

— Sou eu.

João caiu na risada. Não, podia ser ele. Não podia ser o avô, assim, tão diferente. Aquele não passava de um menino estranho, de uns 10 anos de idade. O avô, então, confirmou, tranquilo: _Mas sou eu. Quer dizer, este fui eu, há muito tempo atrás. Este menino da fotografia não existe mais, apenas o velho que você conhece.

Antes que João dissesse qualquer coisa, ele mostrou uma fotografia atual: — Agora olhe esta.

— Esta é o senhor.

— Pois é. Este da foto sou eu mesmo. Por que aquele menino da foto antiga não pode ser?

— Porque este é igual, o outro nem se parece com o senhor. Parece de outro mundo!

— Mas este também não existe mais. Este aqui era eu há três anos atrás, quando tirei a fotografia. Este é passado, não existe mais.

— Não tô entendendo nada, Vô. O que isso tem a ver com a morte?

— Espera, vou te mostrar outra. Para entender a morte, assim, como para entender a vida, a gente tem que aprender aos poucos, certo?

— Certo.

— Está vendo? Quem é esta?

— Não sei. É uma mulher.

— Claro que é uma mulher. É minha mãe — confirmou entusiasmado.

— Sua mãe é bonita, Vô.

— Sim, muito bonita. Então veja, ela está aqui, representada nesta fotografia antiga, não está?

— Claro, Vô.

— Pois muito bem, mas minha mãe está morta. E sabe onde ela vive? Apenas na minha lembrança.

João aquietou-se, olhando embasbacado para os olhos brilhantes do avô. Teve a impressão de que havia uma lágrima brincando pelas pálpebras. Mas acha que foi só uma impressão.

– Pois a morte é assim, como uma fotografia antiga. A gente tem a imagem, a representação, mas a pessoa não está aqui. Aquele menino que você viu e riu, pensando que não era eu, não está aqui, assim como homem da fotografia de há três anos atrás e também a minha mãe. Nenhum dos três está aqui. Eu não sou mais aquele menino, nem tão pouco aquele homem um pouco mais jovem, que você afirma que sou eu, nem a minha mãe, porque morreu há muito tempo atrás.

Fez um silêncio e aproximou o rosto pintado na barba branca. João arregalou ainda mais os olhos grandes, ouvindo o que o avô tinha a dizer.

— Quando uma coisa vira passado e a gente não pode mais ficar perto, nem abraçar, nem conviver, isto é a morte. O que passou, já morreu.

E prosseguiu, com mais ênfase, concluindo a explicação: — Isso mesmo. O minuto atrás já morreu. Só não morre, quando a gente lembra, quando a gente não esquece. Por exemplo, esta mulher que um dia existiu e que era a minha mãe, sempre viverá na minha lembrança, bem aqui, ó – e apontando com o indicador para a cabeça, em seguida, para o coração – aqui, na minha mente e no meu coração. Você entende, João, as coisas só morrem definitivamente, se a gente deixar de pensar nelas.

— Mas Júlio morreu!

— Como a imagem da fotografia antiga, a qual você jamais poderá saber quem é, no futuro, se esquecer completamente. Por outro lado, você pode guardar no coração. Preservar é uma maneira de existir. Neste caso, não morre definitivamente.

O avô suspira, aliviado. Talvez com saudade. Depois, convida: — Quem sabe, vamos viver a vida, e você me conta uma história nova.

João, porém, fez outra pergunta: – Mas então, por que o senhor guarda as fotografias?

— Ah, porque recordar é viver de novo aquilo que já passou. Se foi uma coisa, boa, por que a gente não lembrar, não é mesmo? A vida ficou ali, escondidinha na fotografia e cada vez que a gente olha, lembra de outras histórias que aconteceram naquele tempo — e com os olhos brilhantes de emoção, conclui – e a gente vive tudo novamente.

— O senhor lembra de alguma?

— De muitas. Mas se você for bastante esperto, vai lembrar do seu amigo como uma fotografia antiga e vai lembrar de histórias que passaram juntos. Ou vai inventar uma.

João juntou as fotografias e guardou-as no envelope, como se tivesse alguma coisa nova na cabeça para por em prática. Pediu que o avô o esperasse, correu até seu quarto e trouxe o notebook, já com a página de um site aberto. Mostrou-a para o avô.

— Quem é esse?

— Júlio, meu amigo. Tava nessa rede social, viu? Um dia ele resolveu criar uma comunidade só dele. Deixou então este montão de fotos e juntou todos os amigos, até eu to aqui! Só que um dia o site saiu do ar e ele não pode mais incluir nenhum post.

— E o que ele fez?

— Um backup de tudo e entregou para o seu melhor amigo continuar a sua comunidade.

— E como se chamava a comunidade que ele criou?

— Vida. Mas aí, já é outra história.

O avô sorriu e ajeitou-se na poltrona, satisfeito. Parece que tinha uma outra história acontecendo. E nem era adaptada. Mas certamente, seria às avessas.

sexta-feira, maio 26, 2023

Eu quero

Ilustração: RoySnyder in:pixbay.com



Eu quero ter a dúvida dos fracos, do que ter as certezas definidas. Eu quero ter os sonhos dos oprimidos, do que a realidade indolente dos vencedores. Eu quero sentir o cheiro dos pobres, dos mendigos, dos marginalizados, dos solitários das ruas, do que o perfume falso dos poderosos.

Eu quero sentir o sereno da noite, o vento fustigando o rosto, os olhos doendo, a fumaça dos becos, a melancolia das ruas, do que o ar refrigerado das mansões, as bocas fervilhando de questões com convicções, verdades absolutas, mãos que se tocam sorrateiras sem sentimentos ou empatia.

Eu quero saber que estou vivo, mesmo entre a morte, do que viver enclausurado em medos do outro e não de mim mesmo. Quero ter empatia para amar o próximo, mais próximo, aquele que avisto nas ruas, quase invisível, mas que de algum modo, alguma centelha de olhar, me toca, do que negar a sua existência e carimbar de algum modo seu passaporte para a morte. A morte do cancelamento, do não existir, do não ver, do não assumir, do não aceitar.

Prefiro o bafo quente e livre de seus desejos, do que o hálito artificial e embranquecido dos quereres ponderados. Prefiro a revolta dos que habitam um mundo que não é seu, nem meu, nem de ninguém, do que a submissão dos apáticos.

Enfim, prefiro viver, do que assistir, imaginando ser protagonista. Talvez a ribalta seja aqui, dentro de minha cabeça.

terça-feira, maio 02, 2023

Trajetórias

Para ir à escola, eu devia pegar três ruas, a Av. Pelotas, a João Manoel e seu seguimento, a Dr. Nascimento. No meio de tudo isso, ficava a Praça Saraiva, que era parte de minha rotina, a qual fazia questão de atravessar. Nela, os sentimentos sempre despertavam de algum modo, geralmente sensações conhecidas das manhãs outonais ou das longas tardes de inverno. Na verdade, gostava daquela sensação de frescor, mesmo em manhãs frias, dos assobios incessantes dos bem-te-vis, que se misturavam nas folhas dos imensos eucaliptos e de outros pássaros, dos quais desconhecia o nome, do sereno que ainda restava na grama, até às 7 e meia, mais ou menos, os caminhos de areia e saibro vermelho. Era um mundo especial, o meu mundo matutino na ida à escola.

O São Francisco ficava logo ali, indo pela Nascimento, mas me parecia tão longe! Antes, devia ir pela João Manoel até o canalete. Lembro das calçadas irregulares, do silêncio da rua que parecia não morar ninguém, do sol que despontava meio longe, através das árvores ralas que contornavam os canteiros. Depois, na Nascimento, já conhecia algumas casas que faziam parte de minha rotina. Uma casa pequena, com um jardim acanhado, à esquerda de minha trajetória, onde sempre encontrava um senhor que transitava por ali, ora em direção ao centro, ora ficava apenas parado, observando a paisagem. Não tinha certeza se já me conhecia, mas tinha essa impressão. No outro lado da rua, uma casa enorme, com jardins imensos e muitas árvores. Às vezes, imaginava-a como uma fortaleza, guardando uma imensa biblioteca, outras vezes, achava apenas que estava abandonada. Coisas de minha cabeça.

Prosseguia o caminho com a pasta pesada, devido aos livros de cada disciplina e respectivos cadernos, além de lápis, caneta, régua, transferidor (alguém ainda usa?), esquadro, borracha, bloco sem pauta, etc., além dos gibis, que vez que outra, trocava com colegas. Sempre que atravessava o Canalete, naquelas pequenas travessas, sentia o frio vindo da lagoa, que parecia desembocar bem ali, na esquina que passava. Na volta, era como se o caminho fosse outro. O sol era mais forte, as ruas mais cheias, os carros rápidos na direção das casas, levando filhos da escola, voltando do trabalho no intervalo do almoço. O meu íntimo não era tão festivo como as ruas, embora fosse tão intenso quanto.

sábado, abril 29, 2023

A tormenta

O silêncio dos passos na casa. O silêncio das vozes, das falas, dos risos. O silêncio das ondas, dos mares, dos pássaros. O silêncio das corujas na areia fria das dunas. O silencio dos ventos. Por que tudo é silêncio, quando o meu coração grita profundo, como a tormenta? Talvez porque as flores que vi, já não migram pelos mesmos caminhos, seus pólens não mais transitam entre os canteiros, e suas pelugens brancas não adornam meus ombros.

Quisera ouvir mais vozes, sentir mais aromas, perceber novos avanços, alcançar outras conquistas. Jamais ouvir o ribombar dos mísseis, mesmo que sejam apenas ecos que repercutem como lamentos em meus ouvidos.

Quisera ter a boca seca por gritar, usar a revolta dos oprimidos para bradar as falas mudas dos que morrem nos escombros, como animais submersos na poeira das tragédias. Quisera ser ouvido. Mas o silêncio me impede de falar. O silêncio dos que suportam as dores alheias e subornam a realidade. A dor que carregam é sempre mais pesada do que a do vizinho. Precisam fingir que nada além de suas fronteiras acontece. E tem razão nesse pensamento. Mas há razão num mundo em guerra? Por que tenho que sorrir, falar coisas alegres e vazias, se meu coração também sangra como os pedaços humanos arremessados à poeira das ruas destroçadas?



Ilustração: www.pixbay.com/johnhain

quarta-feira, abril 26, 2023

Esperar

Esperar. Estar à espera de algo, ter esperança. Há tantos significados para o verbo, além destes citados. Há, no entanto, a possibilidade da espera ser somente uma espera, nada mais. Um atentado à lógica, ao senso estabilizado, ao padronizado, ao comum.

Que fazer, se não esperar pela aventura de ser feliz? Que fazer, se não esperar pela ausência do medo, da incerteza do acolhimento, da dúvida do sentir? Que fazer, se não aguardar o momento em que o sentimento revele alguma certeza, embora restrita nas verdades relativas? Que fazer, se não olhar para o nada e perceber a distância tênue que nos separa do sonho e da realidade? Que fazer, se não parar, como uma estátua, quando a vida se esvaí num único momento? Que fazer na hipótese da dor, da solidão, do olhar canhestro da desilusão? Não sei. Talvez ninguém encontre qualquer solução, apenas se liberte das expectativas e viva tudo na média.


Ilustração: https://pixabay.com/pt/illustrations/possível-impossível-oportunidade-2499888/

terça-feira, março 21, 2023

Um mergulho

Um mergulho significa muito, mergulho nas ideias, na observação das pessoas, nas trajetórias cotidianas. Um mergulho no mar, bem assim, no finalzinho do verão. Absorver cada gota em nosso corpo sedento. Sentir o revirar das ondas, o vai e vem das correntezas, o repuxo e, de vez em quando, a calmaria, uma pausa para respirar, olhar as dunas e voltar ao processo do enxague, de percepções quase etéreas dos respingos no rosto ou densas, espalhando-se pelo corpo e derrubando-nos as pernas.

Os mergulhos se dão sem que nos demos conta, mergulhos em pensamentos, que descontrolados, vão e vem das mais distintas intuições ou sentimentos. Como as ondas, eles crescem desordenados, embora tenham um objetivo intenso e final, que é o de nos alertar de alguma coisa que nos incomoda, um perigo iminente, real ou imaginário, um perigo talvez ao ato de viver plenamente. Mas é preciso apaziguá-los, como a pausa das ondas, deixar que o repuxo se desvaneça e espumas se produzam, desenhando traços e abrindo brechas na areia. Assim, nossos pensamentos acalmam e aos poucos, se tornam apenas reflexões sem muita importância, sem atropelamentos, sem medos ou aflições.

Um mergulho significa muito, mas é preciso vir à tona, devagar, assimilando o ar que nos restaura, deixando que a água nos lave e purifique, que nossa alma se restabeleça e nossos céus se abram em cores diversas. Que a ele, nossos pensamentos se unam, pois não desaparecem nunca, estão ali, absortos, escondidos, naquele arsenal de água e espuma, num túnel que se desvanece, também em nossa mente. Cabeça molhada e mente intacta. Mais uma vez, as águas do fim do verão deixem espaços vigorosos e fantásticos para o outono que se aproxima.

Ilustração:https://pixabay.com/pt/photos/ondas-mar-espuma-do-mar-5720916/

sábado, março 11, 2023

Quase um arco-íris

Observar as árvores ao longe, o cheiro da grama tão próxima, os raios da roda girando, girando e uma sensação plena de felicidade. Andar, andar, andar. Voltar para a praia, descer na areia, deixar a bicicleta no chão e olhar o céu, apenas o céu. As luzes, aos poucos se dissipando e longe, bem longe, luzes refletidas da lua ou próprias das estrelas, não sei. Um vento, uma brisa, mais aromas. Suaves aromas. Aquele perfume patichouli, pura canabis, que passa nas pernas lentas do menino e se dispersa na areia, em direção ao trapiche. Um perfume suave e profundo. A sensação de que o mundo para, por um segundo, e o céu nem mesmo está tão distante, ao contrário, está aqui, se fundindo com o mar, tão próximo que posso segui-lo. Mas fico aqui, na areia, usufruindo os últimos raios do sol, o crepúsculo que me confunde e anima.

A areia é fria e suave, a bicicleta jaz quieta, voltada pra mim, como se me aguardasse, cúmplice. Talvez surja mais alguém neste fim de verão e crianças corram atrás de bolas, baldinhos de água, seguidos de mães atentas e preocupadas. Talvez este perfume adocicado permaneça como sensação duradoura e possa ainda desfrutar deste enlevo de final de tarde, início de noite. A bermuda molhada, os chinelos ao lado, as mãos à espreita de alguma onda recalcitrante que se aproxime ousada. Um leve assobio do vento, fustigando de leve o peito nu. Não precisava de mais nada, talvez de uma vodka com tônica, gelo e uma rodela de limão. Mexer delicado no fundo do copo e o mundo girar, girar, confundindo-se com a mente, a ponto de perceber muito mais do que a natureza. O céu gira, a lua, a praia, o horizonte, o crepúsculo, o coração. Tudo gira e a natureza é uma só, num grande sonho quase arco-íris.

sexta-feira, fevereiro 24, 2023

Duas sensações jamais serão iguais

Às vezes, pensamos que podemos repetir o passado e viver aqueles momentos que julgamos felizes e únicos. Entretanto, nada pode ser revivido, nada volta. Não voltam os momentos felizes, nem quaisquer lembranças se tornam acontecimentos novamente.

O pensador Heráclito dizia que ninguém pode entrar no mesmo rio, pois quando nele se entra, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou. Seguindo o raciocínio de Heráclito, podemos afirmar que ao mergulharmos na praia, jamais teremos as mesmas partículas de água, os mesmos movimentos, as mesmas marolas. Nem mesmo o ar, os ventos e o calor do sol serão os mesmos. É uma outra praia, um outro mar, um outro rio, um segundo depois de termos entrado. Quando se caminha na areia e retornamos no mesmo espaço, as pegadas nunca mais serão as mesmas. Nem as ondulações da areia, nem os grãos que mascaram os pés, nem o sol que as aquece. Nem os animais visíveis e invisíveis, nem a poeira que se estabelece a nossa passagem, nem a deformação produzida. Será outro momento, outro viver.

Quando a chuva cai inesperada num dia de verão e passamos pela rua, sentindo o cheiro da terra molhada e os pingos derramando-se pelos cabelos, escorrendo sobre os olhos, encharcando a camiseta; um pequeno mundo só nosso, ali acontece. Outrossim, voltemos pelo caminho escolhido, recebamos toda a água da chuva e esta jamais será a mesma. Nunca aquele momento se repete. Será sempre um novo momento. O mundo não se repete, mesmo que os pensamentos regridam, até mesmo estes, terão outros insights que denotam novas formas de contemplar aqueles mesmos contornos retrógrados. Por isso, usamos a palavra neo, um elemento de composição, que significa novo, uma nova maneira de ver.

Por outro lado, não se pode afirmar que aquela pegada na areia anterior foi melhor do que a segunda, porque elas têm elementos diferentes para se construírem e vai depender de quem as produziu. Quem sabe, o segundo momento foi o melhor para determinado grupo ou pior para outro? Dependerá exclusivamente da sensação de cada um. Não há um padrão, não há uma lei imperativa que decida o que foi melhor, se a pegada do passado ou do presente. Aqueles movimentos nas águas, o mergulho no rio, o sentir a água gelada contornando nosso corpo, transformando-o para aceitar o frio e se tornar viável, a ponto de não mais sentirmos o frio e apenas o prazer que inunda nossos sentidos. Há quem se apodere desses sentimentos de prazer e há os que se afastam, não percebendo a presença da água, da mesma maneira. E estes, podem apreciar melhor as águas do presente, não daquele momento. Até porque, são outras águas, outros sentidos, outras percepções. Como dizia Heráclito, nem mesmo o rio, será o mesmo. Ele terá outro destino, outras águas, outras espécies que não se manifestarão naquela circunstância.

Melhor então, que tenhamos os sentidos apenas com o despertar da alma, com o eleger o instante, sem comparações, sem pensar que o somente o passado era exemplar, porque os instantes e seus fatos e até as suas lembranças, jamais serão os mesmos. Ficam em nossa memória as lembranças boas, que não impedem de vivermos outros momentos, embora parecidos, pois eles serão sempre distintos. Mas que os lembremos, no futuro, com o mesmo amor e cuidado, como fazemos com os antigos.

quinta-feira, janeiro 26, 2023

A barbárie

Dói o coração quando se situa longe de seu ambiente ideal, onde a dor do outro não vale nada. É como a lanterna que cai no chão, estilhaça a luz, o celular não filtra mais e a escuridão se escala. Não importa o artefato, basta apenas o poder de utilizá-lo. O homem parece deixar, aos poucos, o poder da empatia para experimentar apenas a indiferença e o interesse individual, descendo rapidamente a escala da involução.

Em meio a tudo isso, a vida oscila, as costelas doem e seus ossos tangem, num pedido de socorro. Mas quem os ouve? Quem tem a capacidade de absorver sons tão ínfimos, quase inaudíveis? Entretanto, o mundo tange de dor. Doem as entranhas da terra, , o minério regurgita, o fogo se alastra, a selva padece, a natureza clama e o homem morre. Poucos veem, poucos sabem, poucos assumem.

Crianças, adultos, idosos

, que povos são esses que se evadem de seus territórios? Que povos são esses que estranhos assumem seus lugares, seus espaços, produzem suas dores, doenças, fome e mortes?

Como olhar o horizonte, quando as vidas se perdem, escoam fluídas ao encontro do nada, deixando rastros de miséria e decadência humana? Como olhar mais perto, fixar bem os olhos do outro e perceber a humanidade também se dissipando. Causar a tragédia dos Yanomanis é identificar-se com a barbárie e o declínio do ser humano.

sexta-feira, novembro 11, 2022

Um certo despertar

Seguia pela Av. Portugal numa dessas tardes primaveris, um tanto outonais, atualmente. Um pouco de frio, um sol que aquece à tarde e parece indicar uma proximidade real com o verão. Que nada, daqui a pouco, retorna o ciclo de calor e frio. A natureza tem suas regras e talvez uma delas seja apenas nos preparar aos poucos, para a mudança que transcorre lentamente.

Mas olhando ao longe, embora de carro, pude ver um céu muito azul, de vez enquanto, entrecortado pelas árvores que se debruçavam distraídas em suas copas pela avenida. Meus olhos acostumados com o nosso céu, no entanto, parecia encontrar nele e naquelas ocorrências de cores, nos caminhos da Cidade Nova, um certo despertar, que há tempos não experimentava. Como se gerasse uma nova era e um vento suave, quase brisa, soprasse devagar novos ares, novas descobertas, novas esperanças. Então, meu coração deu uma sacudida, de leve, delicado com meu corpo há tanto calejado, nestes últimos tempos, com meus olhos sem muita iluminação e minha vida vacilante.

Então, parei o carro ali mesmo, observando os espaços entre as árvores, as pessoas em atividade física ou seguindo seus caminhos entre crianças, brinquedos e bicicletas. Na minha playlist, ouvia a música “Lâmina de amor” de Chico Salem e a letra realçava exatamente este meu sentimento, da salvaguarda da esperança. “Quanto tempo até isso virar um país e o navio negreiro incendiar vazio?” “Quanta munição vai querer dinamitar nosso cancioneiro e nosso refrão?” “Não vou cansar, nem desistir, meu canto é lâmina de amor”. Que preservemos esses novos tempos, como inspiração e resgate de uma vida mais digna e amorosa.



fonte da ilustração: https://www.freeimages.com/pt/photo/world-photo-file-vii-1163456

sexta-feira, outubro 21, 2022

Quando não cabemos no mundo

“O mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele.”

Esta frase de Clarice Lispector nos remete a vários significados dentro do panorama social e político que vivemos no mundo e no Brasil. Parece-me que o mundo interior das pessoas, aquilo que pensam e professam durante toda a sua vida, independente do que realmente praticam, desemboca nas suas articulações políticas e sociais. Talvez mesmo, uma coisa não se possa separar da outra. E falo tanto no aspecto conservador, de costumes e práticas sociais, quanto no aspecto de vanguarda, de mudança de uma sociedade que avança gradualmente, quer queiramos ou não. Que avance para a melhoria do ser humano, no seu significado e significante em relação à vida atual, ou retroceda conforme o pensamento conservador extremo e neste caso, há uma luta de comportamento de modo estrutural e articulado. Explico melhor: o homem nasceu para crescer, evoluir em ambição à liberdade de se expressar, de se distinguir em diversos aspectos, de ser apenas. Isso talvez o leve ao que chamamos humanidade e nos aproximemos, conforme a crença de cada um, de Deus.

Entretanto, há sentimentos muito controversos que se chocam com estas mudanças previsíveis e inevitáveis. Por quê? Quando nos identificamos com este pensamento ultraconservador, em que a pauta dos costumes é rígida e nos agasalha numa presumível segurança, tudo que diverge destes parâmetros, torna-se uma ameaça, seja na sexualidade, no casamento normativo, na própria individualidade que não reconhece a diferença. Numa sociedade conservadora e repressora como a nossa, aquilo que não se submete ao nosso controle e a ideia de que tais costumes divergentes do padrão conservador sejam liberados, o processo se torna extremamente ameaçador. Isto acontece, porque o próprio desvio pode ser reconhecido, sentindo-se o sujeito alijado do grupo que o protege e com o qual se identifica.

Certa vez, perguntei a uma professora de literatura, num curso de escrita criativa, por que as histórias de Nelson Rodrigues nos incomodam tanto, transmitem um estranhamento e uma sensação de desamparo em relação àqueles conteúdos. Então, refletiu que se ocorre um incômodo é porque há a expressão de um sentimento muito próximo ao qual não queremos ou fingimos não existir dentro de nossa realidade íntima ou em nosso círculo social. Quanto mais nos conhecemos, mais entendemos as mazelas humanas. Não é necessário que aceitemos todas, mas que entendamos que existem e que, identificando-as, as olhemos de frente sem que signifiquem qualquer ameaça.

Voltando à Clarice, ou o mundo inteiro se molda para que caibamos nele, ou o encaremos sem medo, com a certeza de que podemos reconhecer as diferenças e entendamos o outro que pode estar também no nosso convívio.

quinta-feira, agosto 04, 2022

A fronteira dos pensamentos

O que me pedes do alto de teus argumentos? O que exiges da fronteira de teus pensamentos dispersos e esparsos? O que defendes de um sistema de morte, de guerra, de armas e dor? O que permites em tuas condescendências mais simples? A quem desejas a vida e a paz? Quem merece teu brilho, tua alegria e tua contemplação? Por certo, os de tua classe, os que pensam como tu, os que zelam por teu pensamento único de família, propriedade e este deus ao qual veneras, quando vela apenas por teu grupo. Sei que há muito, excluíste os que pensam de modo diverso, sei que defendes a estranheza para amalgamar a homogeneidade de tuas ideias. Sei que o mundo pra ti é de uma cor apenas, um fastio de diversidade, de alegria e poder, que me dá preguiça.

Sei que enxergas os demais de acordo com a tua ótica semelhante, na qual apenas os que estão na tua bolha são os eleitos. Parece que teu deus os acomoda assim e os aparta dos maus. A bondade que revelas é útil apenas para locupletar os teus desejos de poder, de tradição e conservadorismo. Talvez, a evolução do mundo e das ideias não te interessa, porque temes balançar essa planície que está tão bem cimentada em tua perspectiva. E os demais, que fiquem se contorcendo nas escarpas dos precipícios, segurando-se para não se depararem com o fim, encontrando caminhos, refúgios que não permitam o acesso. E o ideal, que se destruam e desapareçam para sempre.

Mas o mundo não é assim. A natureza comporta as evoluções e o homem faz parte deste liame progressista que une anseios de vanguarda aos desafios da existência.

Torço que mudes, um dia, que não destruas o poder da natureza, que despertes para a vida mais ampla, mais plena e com mais diversidade. Torço que a ótica com que julgas, sirva para observares o outro lado da lente e assim, te vejas, tão diferente e estranho, quanto os demais. Quem sabe, quebres o paradigma e encontres o verdadeiro sentido universal, que pensas pregar.


Ilustração do texto: https://pixabay.com/pt/illustrations/pessoas-smilies-emoticons-máscaras-1602493/Café

quarta-feira, julho 27, 2022

É suave a noite

Quando observavas as luzes esparsas da noite, por certo, vias estrelas tão suaves e distantes, que quase sumiam na visão etérea de nossos sentimentos. Era só nossa, como a daquela versão antiga de “Tender is the night”. “É suave a noite, a noite é de nós dois.” Sabias que o amanhecer era a fronteira entre nossos encontros, mas nossos beijos permaneceriam para sempre, em nossos lábios sedentos, mentes melancólicas e pensamentos afetuosos. Lábios que se tocavam suavemente na brisa de verão, embora tudo passasse tão rápido, desafiando o tempo.

Era nossa última noite. Agora, quem sabe, nem a lembras mais. Pode ter ficado apenas em minha memória, em minha sensação, meus sentimentos. Talvez tenhas vivido outras noites, outros momentos, outros verões. “Ternuras de luar, a brisa a murmurar sua canção. Tudo tem suave encanto, quando a noite vem”. Nem percebes perdida no tempo, que as brumas da noite não são as mesmas que vivíamos, cujos encantos jamais seriam compartilhados por outros. “A noite é só nossa, no mundo não há mais ninguém”. Ou não? Ainda tenho nas mãos a doçura do encontro, o silêncio da noite, a plenitude do amor. Ainda tens? Quem sabe, noutro universo, ainda nossas mãos se toquem e os lábios confirmem nosso sonho.


Ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/oceano-via-láctea-barco-navegando-3605547/Jplenio

terça-feira, julho 19, 2022

O SEGREDO

Quando avistou a mãe no velho espelho do quarto, pensou que chegara a hora. Olhar enviesado, taciturno. Precisava de coragem, isso sim. Coragem que nunca tivera na vida. Era um fraco, diziam seus irmãos, truculentos e pouco amistosos. A própria mãe se preocupava com aquela passividade que sempre o caracterizara.

Mas, enfim, era chegada a hora. Como contar porém, que à noite, não ia para a casa de amigos, mas apenas circular por vielas escuras. Um impulso indefinido. Talvez sentir-se vivo. Impulso, pulsão, compulsivo. Tudo que havia ouvido de centenas de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas e até autores de autoajuda. Sabia, entretanto que precisava seguir o ritual. Um sentimento de busca, uma verdade inconteste que latejava no peito e respondia no sexo, o degrau inferior que percorria pensamentos, mas que o impelia a se sentir alguém. Talvez fosse um louco, destes que andam às escuras, escondidos nas brumas das árvores dos parques, prontos a atacar ou serem atacados. A praça o seduzia; uma atração tão forte, que não ousava fugir. Lembrava-lhe brinquedos, dias ensolarados, o avô ao seu lado, o carinho seguro, a liberdade vigiada e a certeza de que a vida se resumia na firmeza da mão. Nada os separaria, estariam sempre juntos, ele, ouvindo suas histórias enfadonhas, que o transportavam a sua vida rural: um modelo tão estranho e diferente do seu.

Viver pelos becos sombrios, atravessar as vielas sórdidas, ícones de seus desejos escondidos, produzia um prazer muito maior do que o gozo que procurava. No entanto, o vazio que se instalava no peito, refletia o suor gelado através das roupas grossas de lã, sob a camiseta de algodão, frio de bater joelhos, parceiro nestas buscas intermináveis. Via em cada olhar entre as sombras, uma provável fonte de prazer, mais forte do que o medo de ser atacado ou humilhado. Em todos, talvez avistasse os meninos que o desprezavam, inclusive seus irmãos truculentos e fortes, e talvez por isso, quisesse agradá-los, para se sentir um igual. Ou talvez, as imagens disformes traduzissem a rudeza do avô, que mesmo no ensolarado do sol, carregasse com ele, a crueza de um mundo marginalizado que o atraía. Olhos passeavam nas sombras agitadas, rumos diferentes, que se cruzavam a todo momento, que se aproximavam, se tocavam, pedindo sexo. Homens, mulheres, prostitutas, vadios, mendigos, ladrões, traficantes, drogados, policiais, travestis, garotos de programa, todos à espera de um beijo seu. Uma confirmação que finalmente cedera a sua sina.

Noite límpida. Só estrelas no céu e a lua brilha desenhando imagens absurdas na praça. Seres que se contorcem no ambiente insípido, molhados de sereno e suor, bocas úmidas que procuram outras bocas e outros corpos. E ele, ali, como um malabarista entre os galhos contorcidos pelo inverno, escondido, obedecendo à hierarquia da sedução, temeroso de ceder também, de se sentir um igual, tão igual que jamais voltasse a ser o que deveria. Alguns sorriam, outros se masturbavam indecentes, uns aos outros, na noite vazia de sonhos e ilusões, outros se locupletavam com as moedas que proviam a miséria de seu cofres sem dono. Ladrões de si mesmos, seus destinos curtos, desafiados no brilhar de facas, no tilintar de faróis oficiais, no estourar de pistolas.

Se pudesse fugir, mas estava preso ao chão, realizando o ritual que ousava repetir. Que o fazia viver.

Pensou em tudo isso e calou-se, quando a mãe perguntou: – Você é gay?


Ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/banco-de-parque-sentado-assento-338429/omourya

sábado, julho 16, 2022

Traço caminhos

Quando vires minha mão estremecer, não faças diagnóstico sobre meu estado físico ou emocional. Quando perceberes meu olhar flutuar, não penses que meus sonhos já se foram. Quando ouvires meus argumentos, não te surpreendas com meu desabafo dilacerado. Quando notares que mal me movimento nas noites, não julgues a falta de jeito. Não conheces minhas dores, nem meus pensamentos. Não sabes de onde venho e de meu desamparo. Não peço teu acolhimento, talvez apenas teu olhar. Pode ser assim, oblíquo e disfarçado, pode ser apenas a visão de um segundo. Pode ser um gesto perturbado de um espaço invasivo, mas que não seja hostil. Não precisas falar, nem sorrir. Talvez, apenas que reconheças a minha humanidade, como a tua.

Quando estiver em frente a tua casa, na soleira de tua porta, no toque da campainha, apenas pergunta o que quero. Saberás da minha fome como necessidade básica e também emocional. Saberás que vou além do ser, quase objeto, que perpassa a tua fronteira, sou também alma escondida em vestes precárias, mas que se assemelha a tua. Não quero a tua culpa, nem o teu medo, nem as dores que transfiguram tuas emoções. Sei que somos iguais, as dores não escolhem o sujeito, porque nossa vida é assim, mediana, só isso. A diferença entre nós, é que podes agir, de algum modo. Eu, apenas traço caminhos em círculos e às vezes, num deles, também te encontro. Vivo passivamente, esperando não sei o quê, pois se já tive passado, não tenho futuro.

Que teu ódio não faça de mim, o alvo, mas aos que controlam as armas que nos ajudam a matar.


Iustração: https://pixabay.com/pt/photos/crianças-favelas-pobreza-pobre-2876359/

quarta-feira, julho 13, 2022

Teu olhar

Leva o teu olhar ao passado, como se fosse permitido reverter o tempo. Como se o espaço em que vives, seja o mesmo em que tuas experiências deram sentido ou não a tua vida. Volta, mesmo que a saudade doa e o mar que atravessas não te permita o retorno. Lembra dos que contigo partilharam os mesmos caminhos e deles te distanciaste. Quanto desalento, quanta dor e desamparo.

Quando houve acolhimento? Nos primórdios do país, quando se matava indígenas e se introduzia uma cultura que escravizava, matava e alterava os costumes? Quando se impunha uma teoria jesuítica transformando o homem da terra num ser metamorfoseado por conceitos adversos e estranhos a sua concepção de vida e humanidade? Quando se escravizou homens e se criou castas e distinções de etnia, de cor, de gênero?

Talvez os processos de barbárie ainda prossigam nos mesmos parâmetros, apenas tingidos por tecnologias cujos avanços não se refletem na condição humana.

Mas quem sabe, voltas o olhar ao passado, sem desviar do presente, pois estes se confundem e cada vez mais nos perguntamos, em que espaço temporal vivemos, pois os instrumentos de ação permanecem os mesmos. O homem retrocedeu? Talvez ele nunca tenha evoluído em sua humanidade.


Ilustração: https://pixabay.com/pt/illustrations/gráfico-projeto-design-gráfico-933379/Ilovetigersplanes

terça-feira, julho 12, 2022

Que rompa a aurora

Nascia na floresta um momento. É como brotar do nada, sem que se dê conta. Um gota que cai lambendo o galho verde até escorregar pelo tronco. E ninguém vê, mas a natureza se renova, se reveste, se recria. Um gorjeio aqui, um zunido ali. Um voo no alto, naquela nesga de céu. Um voo raso entre galhos e folhas. Um visgo que brilha nas ervas que crescem. Um cheiro. Um cheiro doce, adocicado, um cheiro de ar. Ar que revigora e se respira. Um gota que cai. Mais uma. Um sopro de vento. Um incêndio. Uma luz, o sol que incendeia, devagarinho, queimando, alvoroçando. Folhas que caem. Tudo se regenera. Tudo vive. Vida. Um momento nunca igual ao outro. Mais um momento que não se pode alcançar. Mas que há.

Até quando experimentaremos momentos, até que o gelo chegue, que o mar, os rios, as águas se unam? O sol se enfraqueça? Ou tudo queime? Até quando viveremos nesta gangorra de respirar e esperar, que o mundo acorde e sobreviva? Que as mentes se iluminem e que se possa romper a aurora.


Ilustração: https://pixabay.com/pt/illustrations/fogo-e-água-mãos-lutar-incêndio-2354583/

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