sábado, março 13, 2021

Mudez

Fico calado. Não tenho o que dizer. O silêncio, às vezes, é uma benção. Pelo menos para os que dividem, não argumentam, nem ouvem. Mas ficar calado, não impede a ansiedade e a frustração. Estas aumentam, devoram-nos e num círculo vicioso, nos fazem calar ainda mais, embora nosso coração grite de angústia e dor.

Há tanto o que dizer! Mas quem há de ouvir? Quem se interessa? Há tanto a pedir, há tanto a lutar! Mas a luta parece inglória. Perdemos sempre. As ondas virulentas se sucedem, tão fortes e resistentes quanto o ódio. Nada importa. Não importa que nossos irmãos morram, agoniados, sem ar, sem força, como animais desamparados ao relento. Não importa, que muitos passem fome, e se espalhem pelas favelas como moscas contagiosas, onde não lhes é permitido qualquer brecha de vida ou esperança. Não importa a morte porque ninguém é culpado, ou melhor, todos são, com exceção do governo. Este que lidera com intolerância e ódio genocida a uma legião de “homens de bem”, parece estar muito tranquilo com sua consciência.

Por isso, fico calado. Minha mudez talvez seja uma covardia, mas sinto que entreguei os pontos. Não por ele, mas pelo povo que o acompanha.

quarta-feira, janeiro 20, 2021

Motor estagnado

O homem sonhou que atravessava a lagoa e de repente, o barco parou bem no centro, entre as ilhas e o cais, como se fosse uma imposição dos dias atuais.

Não, não era na direção de São José do Norte, nem na direção do centro da cidade, por ali, perto do mercado público. Na verdade, era um pouco mais longe, lá pelas bandas do bosque. E o cais, que ele chamava, não passava das margens arenosas que cercavam seu quintal aramado. Estava lá, entre dois pontos. A referência da margem da casa e a ilha defronte. Talvez fosse Porto do Reino, pensou. Não, ele não pensou, ele sabia.

Ficou ali parado, pensativo, sem qualquer reação. Nada que fizesse, produzia algum movimento no barco. Motor estagnado.

E as águas também não fluíam, como o tempo. Tudo parado, quieto. Estranho. Mas estava vivo. Talvez tivesse uma iluminação, pensou, embora soubesse que era um sonho. Ele estava dentro do sonho e não conseguia acordar, mas sabia que estava dormindo.

O céu parecia aproximar-se do barco, trazendo um foco de luz que brilhava ante seus olhos, agora um tanto aflitos. Ficaria eternamente ali, naquela posição?

De repente, um pequeno movimento. Um barco que se deslocava da margem, ao longe, lá, naquela região, um tanto escura. Também vinha outro da margem oposta, bem em sua direção, tal como o primeiro, como se houvessem combinado entre si.

O homem olhava para os lados, apreensivo. A luz na sua fronte aumentava e uns pequenos raios teciam arcos-íris nas leves ondas em formação. Sim, porque tudo agora se mexia lentamente.

De repente, outros barcos foram surgindo do nada e aos poucos, se cruzavam como se estivessem numa procissão esperando a santa padroeira. E no movimento dos barcos, o barco do homem começou a se mover também, embora sem sair do lugar. Apenas o movimento resultante dos demais. E vários foram tomando conta e chegando perto, cada vez mais perto, até emparelharem com o dele e fazendo uma aglomeração de barcos enfileirados.

Quem os visse através da visão de um drone, por certo achariam interessante aquele cenário.

O homem compreendeu então que sua missão chegara, enfim, e ele começou a rezar e a agradecer a presença dos barqueiros. Todos abaixavam a cabeça quando ele, sem perceber que tinha uma ótima oratória, fazia um discurso convincente e produtivo. Só então percebeu que naquele barco sozinho e triste, havia luz e esperança. E agora, que estavam todos juntos, a luz diminuía aos poucos e uma neblina surgia, assim como nuvens escuras toldavam o céu. E ele nunca mais viu aos que se referia. Do sonho? Entubado, nunca mais acordou.


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/pôr-do-sol-oceano-barco-humano-mar-3689760/


Se o Natal chegar

Se o Natal chegar e eu não estiver preparado. Ele vem de mansinho, se avizinhando em nossos pensamentos, sentimentos e corações.

Se o Natal chegar e ainda estiver em dias atribulados, assustados, perdido em promessas que se esvaem em cada pronunciamento, em cada desfavor que fazem à população, em cada mentira degradante que se alastra em grupos de WhatsApp, em cada ficção de nos tornarmos robôs com DNAs estranhos, catapultados dos alienígenas chineses, sim, parecem que eles nem são da Terra e imagem, vermelhos!

Se o Natal chegar e eu ainda estiver neste impasse, de me encontrar embatucado com tanta mediocridade, tanta falta de noção ética, moral e científica.

Se o Natal chegar assim, de mansinho, se avizinhando, quem sabe, eu esqueça por um dia, umas horas, que a ficção é o tempo decorrido antes do Natal e depois, e que agora é a realidade, que vai além das fronteiras do olhar midiático, das redes sociais, dos pronunciamentos falsos, dos desgovernos, das mentiras.

Então é Natal e as máscaras devem ser somente aquelas que servem para nos proteger e não as impostas pela sociedade nefasta dos interesses de poder.

Então que o Natal chegue, devagarinho, sussurrando e se avizinhando em nossos pensamentos e corações e que pelo menos, agora, nestes momentos, sejamos íntegros para aceitar a paz que ele nos traz.


Fonte da ilustração:https://pixabay.com/pt/photos/natal-bolas-de-natal-1867281/

sexta-feira, outubro 23, 2020

A bailarina

Rodopia, brinca, vive

Leve, suave, brisa que envolve

Fugaz, matizes diversos, entoa

Música que dança na pontas dos pés.


Vive, brinca, rodopia

Sonha com brilho, ribalta, luzes

Desperta olhares, gigante no foco

Diverte-se assim, brinca conosco.


Brinca, vive, rodopia

Descarta dor, metamorfoseia em sonho

Beleza, alma solta, brisa, frescor de sol.


Brinca, rodopia, vive

Disfarça a realidade, finge ser poeta, anjo, meretriz

A bailarina é atriz.

quarta-feira, outubro 07, 2020

Onde ficava a dor

Precisava sair e ver de perto aquelas crianças que sorriam, corriam por terrenos baldios, fingindo que eram campos de futebol e se perdiam alegres na experiência do sol. Então, me perguntei angustiado, onde ficava a dor? A dor dos que se consumiam em contas, em brigas rebuscadas, em tons alternativos de valentia e medo.

Onde ficava a morte rasteira que rondava os condomínios abarrotados de perfis estranhos e desconfiados. Por que não se sabia seus nomes? Por que as crianças brincavam felizes? A felicidade não tinha ambiente naquele meio.

Ela até vinha devagarinho, teimosa e se alojava naqueles olhos febris, nos corações vigorosos de quem corre e pula e brinca e se esfarela em sonho e esperança. Que queriam as crianças da favela? Por que se alienavam da fuligem dos fogos em fundos de quintais, de calçadas quebradas e veias dispersas de águas turvas e nojentas. Por que ultrapassavam a borra das valetas imundas, enlameadas de dejetos e o que mais entulhava as valas dos porcos?

Do que se alimentavam as crianças que sorriam felizes e rápidas, do pouco de luz que brilhava em suas testas reluzentes de suor? Por que se confundiam com os esgotos e os zumbis que cercavam as vielas sem arame? Por que não eram observadas? Faltava pouco para os holofotes brilharem em seus rostos, mais do que o sol, a risada fora de hora, o brilho da felicidade intrínseca.

Eles estavam chegando e mais cedo ou mais tarde acariciariam seus cabelos revoltos, sorririam com seus dentes de porcelana e os abraçariam, sentindo seus suores, ranhos e lágrimas. Ouviriam seus gritos, sem lamúria, sem dor, só sorrisos e esperanças. Depois se afastariam, como homens de preto para voltarem só daqui a quatro anos.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/photos/menina-menino-irmão-pobre-favelas-2754233/Billy Cedeno

domingo, outubro 04, 2020

Agitação impetuosa

A noite já acabrunhava os ossos mais frágeis pelo sereno que se intensificava. Doía uma certa melancolia, às vezes doce, às vezes ácida, deixando na boca uma secura que despertava a vontade intensa de qualquer líquido. Como se jorrasse do céu, por um minuto, um décimo de minuto, uma água nítida e brilhante, muito mais do que chuva, mas alguma coisa forte que significasse um banho profundo na alma e no corpo. Um banho que me transportasse a outro extremo da vida, talvez mais doce, mais límpido, mais puro, mais profundo.

Caminhei como pude, enquanto as luzes se apagavam e surgiam as dos velhos postes das ruas transversais. Na casa acachapada no chão, uma calçada alta, que realçava o que havia lá dentro mais do que as paredes esverdeadas da casa. Uma luz tão amarela quanto às dos postes, mas mais fraca e algumas sombras, como fantasmas que se deslocavam de um lado para o outro, acercando-se da janela, espiando pelas frestas, tentando ver um pouco do mar escuro que jazia bem longe, na esquina da rua Riachuelo.

Se eu pudesse voltar e rever as noites alegres da Riachuelo e olhar ao longe os navios que se aproximavam, na verdade, barcos de pesca abarrotados de peixes e esperanças. Homens que desciam no cais, esgueiravam-se pelas calçadas de pedra, sentavam-se nos ancoradouros, bebiam cachaça, enquanto descansavam extenuados em suas buscas infinitas. Mas nenhuma cachaça avançava em minha garganta, só o acalentado do sereno que molhava os cabelos e descia pelos olhos.

Meu coração ficava agitado, não era para menos, pois meu pé já apontava para a porta da casa esverdeada e nada, nada além do que eu imaginara, poderia atravessar aqueles umbrais. Talvez houvesse uma pequena janela que desse para o cais, quase uma escotilha em que se pudesse ver além da escuridão, talvez as luzes longínquas de São José do Norte. Talvez se pudesse apreciar o ar, a vida e a cantoria de algum bêbado que riscava esboços nos paralelepípedos. Talvez outros viessem e o seguissem e partilhassem daqueles traços sem qualquer estética, mas que os levassem a algum tipo de prazer, bem diferente da casa esverdeada, que agora, já nem verde era, apenas paredes escuras e esquecidas.

Quando me aproximei alguns metros, senti que minhas pernas paravam sem que eu fizesse qualquer gesto para impedir. Por um momento, pensei nos fantasmas, que há tanto percorriam aquelas bandas. Um soldado cuja arma ricocheteava a bala e furava o olho esquerdo, ensanguentado o rosto e a calçada. O sangue jorrando, as pessoas correndo, chapéus à cabeça, mulheres de maçãs avermelhadas e bocas sem cor, talvez pavor da morte ou do adeus. Adeuses são sempre trágicos. E trágicas eram as mortes inesperadas, os tiros desavisados, os gatilhos à espreita de um corpo jovem ou maduro, um corpo com vida. E era tão fácil e tão rápida a partida, sem adeus, sem compromissos com o passado ou o futuro, apenas a morte. A morte do sangue escorrido, da fome de pão e sexo, do desejo inabalável, do desafio da verdade contra a mentira ou vice-versa. Um Deus nos pague, um Pai Nosso, um pecado absolvido e a morte desenhada na calçada juntando gente, aglomerando curiosidade e medo.

Eram tempos de morte. Eram tempos em que a vida andava muito perto, também bem distante. As mulheres voltavam para os salões iluminados, a orquestra voltava a tocar, os risos, as bebidas, os jogos, os prazeres escancarados e ocultos, as verdades contidas, as palavras não ditas, os olhares falantes. Homens e mulheres se revezavam no receber e dar prazer e a noite bailava rápida entre as horas e os risos e os gozos. E tudo se misturava numa orgia da qual não se apontava os pares, homens que se desafiavam a ter os mesmos desejos e desfrutarem juntos de suas preferências sem que se ocupassem com os mistérios. Mulheres que se amavam e amavam homens e todos vibravam na mesma consonância, sem formar juízos, até que a razão os alertasse, mas aí o sol se impunha, no desenrolar do dia, a produzir o tecido da hipocrisia e esquecimento. Sexo e morte se locupletavam naqueles tempos e tudo parecia igual, quando a chuva passava e purificava as calçadas, limpando-as para a próxima noite.

Agora, estes fantasmas ainda perpetuam um certo destaque dos tempos antigos em sua tépida e execrável falência. As luzes parecem mais escuras e percebo na parede interna a imagem de um santo. Não tinha como não me surpreender que houvesse tal imagem na parede de cal branca. Talvez fosse a fotografia de alguma dona antiga da casa. Uma daquelas meretrizes qualificadas a servirem os mais altos escalões, a mostrar seus dotes e artifícios para sobreviver sob os brasões ou os coturnos. Ou de alguma cafetina famosa pela doçura com a qual manejava a arma do cinismo e da sedução, não para com os aficionados, mas na direção de suas protegidas. O mundo girava de algum modo, talvez com mais diferenças e certezas, menos dúvidas e mais mentiras. Entrar nesta casa, já não me provoca a sensação de qualquer prazer, mas uma simples obrigação. Sei que virá a mulher decadente, com um olhar submisso e malicioso a me conduzir a mesa com um abajur ou uma vela apagada, cuja iluminação real provém da lâmpada amarela presa na parede, ao alto, quase sobre a santa. É mesmo uma santa? Saberei quando chegar mais perto.

Tenho dezoito anos, haverá um tempo, eu sei, que não terei que provar nada. Que não precisarei ter a minha primeira relação com uma prostituta. Mas hoje, devo entrar na casa esverdeada, sentar naquela cadeira e esperar que me sirvam, primeiro de bebida, depois de conversa, de sedução, de sexo. Olho em torno, alguns homens saem com seus chapéus nas mãos. Dirigem-se rápido em direção aos carros de aluguel. Talvez um que outro, venha no seu próprio veículo ou apenas espere o motorista. Estou aqui, olhando em torno, sentindo os eflúvios dos fantasmas. Talvez agora, nesta data de guerra, eles estejam mais atentos, pois seus antepassados tiveram o mesmo destino. O fascismo, o medo, a guerra. Os heróis estão longe. E lutam por uma guerra que não é nossa.

A dona da pocilga, onde preciso entrar, sorri com um convite. Subi a calçada e meu pé quase descalçou o sapato. Ajeitei o corpo da melhor maneira, me apresentei, como se estivesse à frente de um pelotão. Sentei numa das mesas, como pensava, uma ribalta iluminada pela luz amarela da parede. Talvez a santa estivesse bem acima de minha cabeça, mas não ousava olhar. Um garçom trouxe a bebida, uma cuba-libre, a primeira que me veio à cabeça. Enfim, tirei as mãos dos bolsos, para segurar o copo. Em seguida, uma mulher sentou à mesa. Percebi que me olhava fixamente e sorria, revelando um dente de ouro no lado esquerdo da boca. Perguntou se não a convidaria para o drink. Também indagou se eu não era soldado. Depois disse que eu cheirava a leite. A seguir, veio outro copo e lhe puseram ao lado do braço cheio de pulseiras. Meia-luz. Quase escuro, como no tango que tocava na vitrola. Lembrei de meu pai, que às vezes ouvia o rádio, encostado no velho sofá de seda, até dormir. A cerveja ao lado. Gostava de tangos, boleros, músicas românticas. Talvez por isso, insistisse que eu deveria vir àquele lugar, com tanta veemência. A mãe ouvia as novelas da tarde, enquanto esperava o horário da janta. A media luz. Nada fazia sentido. Era tudo tão morno, tão suave. Por que deveria ser assim?

A mulher levantou, segurando a minha mão, levando-me por um corredor escuro. Ruídos de pingos de água em algum chuveiro. Gemidos. Ouvi quase tangível a agitação impetuosa no porto. Tinha certeza que uma torrente d’água se antecipava. Deviam as ondas avançarem ao cais, talvez atravessassem a rua e chegassem naquela transversal. Talvez atingissem a calçada, invadissem as casas. Talvez tudo ficasse escuro e o mar nos afogasse a todos. Desassossego. Soltei a mão da mulher de dente de ouro e recuei pelo corredor, ante alguns olhares que reluziam nas luzes amarelas.

Fonte da ilustração:https://pixabay.com/pt/users/stocksnap-894430/

sábado, julho 11, 2020

O novo normal


Chegam as compras, tudo adquirido online. Põe a máscara, acerta nas orelhas, um pouco caindo, não pode tocar na parte da frente. Abre a porta, olha para o entregador, entre assustado e desconfiado. Ele usa máscara? Está usando somente aqui, na minha frente, ou acabou de colocar no carro e andava aí pela rua, descuidado? Como pensar em tudo isso e ainda pegar as compras e o pior, pagar em dinheiro porque não recebe em cartão. Pegar o troco. Coitado, está sofrendo com toda esta loucura tanto ou mais do que eu. Na verdade, mais, muito mais, porque está se arriscando o tempo todo. Pego o troco, me atrapalho com as sacolas de plástico que deveriam ser abolidas. Mas aqui estão elas. Me despeço do entregador, que se afasta rápido na moto. Sento num banco baixinho, esparjo álcool principalmente no local em que ele segura a sacola, mas só por enquanto, porque logo, que tirar os mantimentos, terei que passar o álcool em todos os pacotes, e separar os sacos plásticos num balde com alvejante. Ah, não esquecer de passar o álcool com o pano para limpar bem os cantinhos dos pacotes de plástico, papelão plastificado ou metal.

O mundo lá fora buzina rápido, alguém passa na calçada, sem máscara, com um andador antes que eu feche a porta. Olho para os lados, cumprimento atrás das grades, a pessoa. Inverto os movimentos e volto rápido para a sala. Ainda vejo os resquícios do fim do dia, um dia que passei sem ver o sol praticamente, pelo menos, não o senti nas costas. Imagino-o aquecendo as campinas, a lagoa, as calçadas, as árvores. Mas ele já se vai, como eu, terminar as tarefas que comecei.

Tudo na cozinha, as verduras, legumes e frutas dentro da pia, cheias de cloro e água corrente. O tempo passa, o cheiro do café avisa um novo sabor. Quem sabe, um novo normal, também aqui? Na noite, talvez, a rotina das séries, das redes sociais, do livro que preciso ler, preciso? Não sei. Quero.

Tudo tem mais tempo, tempo demais para decidir. Tempo demais para escrever. Tempo demais para ouvir. Tempo demais para rezar. Tempo demais para refletir. Tempo demais para falar. Tempo demais para dormir. Será o novo normal? Ter tempo demais? Por que não faço tudo que queria e não podia, quando tinha menos tempo, para decidir, para falar, para refletir, para ouvir, para argumentar, para responder, para escrever, para sorrir? Ah, quero sorrir então. Nem que seja de um filme classe b com muito humor clichê. Quero amar, sonhar, viver.

Por que a morte insiste em rondar meus pensamentos? Uma morte que se acumula, que se expõe assim, de frente, sem insinuações ou falsos cenários, que se mostra cruel e obscena, como se o mundo bailasse de modo sinistro na sua experiência. A morte, a dor dos que ficam, o velório oculto, a dor que dilacera e abrasa como se o homem perdesse o direito a vivenciar a própria humanidade. E assistimos com olhos estarrecidos e às vezes, nos acostumamos, como se o outro jamais possa ser alguém próximo, tão próximo que a dor latente vai nos agredir e aprofundar os sentimentos. Por isso o vazio e o vazio será o novo normal? Não sabemos até quando. Mas esperamos que ele venha de outra forma, que a humanidade seja recompensada pela empatia do outro e não dilacerada em sua dor iminente.

Fonte: autor da ilustração: Viktor Ivanchenko / artpolka / pixbay.com

sábado, maio 23, 2020

Tempos e momentos


Houve momentos em que não teve lua, ou seja, ela surgiu tímida entre algumas nuvens e desapareceu. Mas nós sabemos, que ela estava lá, escondida entre as nuvens e realizando os mesmos movimentos, claro que na sua velocidade, tão diferente da nossa percepção.

Houve momentos em que a noite escura parecia se propagar e permanecer para sempre, que as estrelas houvessem sumido ou terminado o seu tempo e embora outras nascessem, não as víamos e o universo parecia mais escuro e solitário. Tínhamos impressão de uma noite eterna e que nunca mais veríamos a luz do sol. Mas, eis que o sol nasceu e aos poucos a luz no horizonte começou a surgir e iluminar os campos, as casas, as ruas, os dias.

Houve tempo de muita seca, estiagem nociva para ao solo cada vez mais árido, cujos grãos morriam e os sobreviventes produziam frutos frágeis, esturricados pelo sol, danificados pela fragilidade de sua constituição.

Houve tempo de chuvas, de alagamentos, da terra encharcada e vimos muitas vezes, apesar de tudo, a seiva brotar, o grão crescer e a terra se ajustar aos poucos ao clima adverso. Já houve tempo de pesca. Já houve tempo de idas e vindas, de partidas e chegadas, de corridas, de passeios, de observância da natureza, de olhar focado em minúcias, detalhes antes não percebidos.

Houve tempos de outonos contagiantes, de sol dourado sobre os campos, de clima ameno e atmosfera saudável.

Houve tempo de criações, de criatividade, de sensibilidade, como houve tempos de falsos elogios, de fraca visibilidade do belo, de fraqueza de valores sustentados em famílias de marketing, de elogios a falsos heróis, desqualificados e mentirosos, de corrida pela vida, pelo sangue derramado, espargido nas esquinas, nas dobradas, nas favelas, nos condomínios de luxo, nos parques, nas sombras.

E há tempos de espera. Tempos de parada. Tempos de isolamento. Tempos de comunicação virtual. Tempos de ajuste de horários internos, de limpeza nas mentes tóxicas, dos desejos tresloucados, das vontades exacerbadas, do clientelismo da mídia, das redes sociais, do mau uso da tecnologia. E tempo de bonança, de entendimento, de esperança. Que estes tempos nos ensinem a importância de sermos os que somos, falhos, insatisfeitos, medrosos, conscientes, criativos ou não, metódicos ou não, organizados ou não, mas acima de tudo, produtivos.

Que o mundo ande para frente e não retome a marcha ré jamais. Que não incorra no erro do julgamento. Mas prossiga na luta pelo entendimento, pela aceitação das diferenças, pelo convívio com o outro, pela empatia e alteridade. Que o homem se veja a si mesmo como um ser coletivo e não uma autoridade acima de qualquer lei.

Que haja tempos pós-pandemia, que vençamos os medos, mas não os escondamos, ao contrário, que os enfrentemos e vivamos em conluio com a natureza. Apenas.

domingo, abril 12, 2020

Pandemia


Espio o mar e sinto a espuma das ondas orbitarem por meu cérebro, minha mente, meu espírito.

Outras vezes, passeio por terras distantes, sentindo nos pés e na moleira o calor do sol, o fustigar do vento, o estalar do salto nas calçadas de pedra. Por momentos, o calor abrasador, quase chama, quase incêndio, nas areias escaldantes do deserto, o vento assobiando nos ouvidos, borbulhando no coração e mentes, o reluzir do brilho nos óculos escuros, a dor na fronte, a sobrancelha levantada, a falta de ar.

Por momentos, estou no ar noir da Londres molhada, as correrias às avessas à procura de criminosos, o rio lamacento da noite sem lua, um corpo estirado, boca escancarada, medo na lanterna do celular.

Às vezes, viajo tranquilo nos trens que seguem percursos longos, entre países, embora perceba entre seus passageiros uma certa de desconfiança de que alguma coisa está prestes a acontecer.

Por vezes, ouço uma música no Spotify e meu coração se ilumina e minha mente, meu espírito se rendem à melodia e aos arpejos e meus olhos se esquecem do que vejo.

Depois de tudo, paro e penso. Mas pensar não conforta, nem resolve. Então volto à santa loucura dos livros, das séries, dos filmes, das músicas e tentar viver, pelo menos um pouco, esta realidade, enquanto a pandemia nos enche de notícias, indignação, medo e às vezes, esperança.


Fonte da ilustração:autor John Hain in: www.pixbay.com.

quinta-feira, abril 02, 2020

O cheiro doce da maresia

Fonte da ilustração: Bernhard_Staerck in: www.pixbay.com



Quisera falar coisas agradáveis. Talvez anunciar que ando lendo livros, ouvindo músicas , que arrumo minhas estantes e desorganizo meus pensamentos. Talvez a única opção correta é o caos de pensamentos.

Quisera sorrir com as piadas, com os memes da pandemia, com os artifícios de comunicação em mídias menos afeitas ao jornalismo.

Quisera sorrir e ver beleza em imagens da natureza, nos programas de viagens, nos realities falsos de construções e vendas de casas ou de restauração de carros. Quisera me divertir com programas de humor, de me emocionar com dramaturgia, de acalentar a alma com a melodia. Mas não consigo. Meu coração está apertado e meu peito não se expande para dar vazão a sopros de esperança.

Fico emocionado sim com o pessoal que trabalha na frente de batalha, como soldados fiéis e fortes, em nossa defesa. Parece que a humanidade está tão frágil e as questões de classes, etnias ou orientações sexuais parecem ter apenas um viés democrático, o de estarem todos no mesmo barco.

E parece que a tempestade é poderosa, cujos ventos e ondas estão a ponto de desestabilizar o barco no qual cabe cada vez menos pessoas. Como se fôssemos ficando sem espaço, pois os que decidiram avançar as ondas, já não podem voltar para o barco e se voltarem farão com que os que já estavam acomodados e isolados, afundem juntos. Quisera que a tempestade passasse rápida e que pudesse novamente olhar de frente o horizonte e observar uma paz indefinida, com a certeza de que não estou sozinho nem isolado e que outros já podem respirar ao meu lado. Antever ao longe, o oscilar das névoas entre o sol e a brisa, permeando meu olhar solidário. Para isso, basta que não enfrentem a ciência e fiquem no barco, não sigam as atitudes bisonhas de um líder que não lidera, que apenas aguardem que a maré abaixe, que as ondas diminuam, que o mar se acalme, que sintam o cheiro doce da maresia e a vida recomece. Nunca mais como antes, mas talvez mais rica e densa de valores.

quarta-feira, março 25, 2020

Indignação

Indignação


Há um tempo atrás, eu comentava muito sobre política nas redes sociais, mas com o passar do tempo, percebi que falava apenas para uma bolha, que acreditava nos mesmos ideais e valores políticos com os quais eu me orientava. O outro lado, a outra bolha, não dava a mínima importância. Eu jamais mudaria o pensamento ideológico de alguém, com os meus argumentos.

Nem se podia conversar com franqueza nessa dicotomia que passou a vigorar no Brasil, embora sempre houvesse de forma disfarçada. No máximo, o que passei a fazer, foi alguns comentários em publicações de amigos ou curtidas ou mesmo alguns compartilhamentos. E se publicava alguma coisa, o fazia de modo subjetivo, no qual, quem o lesse, perceberia nas entrelinhas o pensamento crítico ali embutido, pelo menos, é o que eu pretendia.

Mas hoje, porém, com o funesto e histórico discurso do Presidente da República, que repudia tudo o que está sendo elaborado e executado pela sociedade civil, através das recomendações da OMS e do próprio Ministro da Saúde, neste caso da pandemia, não há como ficar calado.

Não vou falar o que o cientistas da área médica exaustivamente já comentaram e teceram longos argumentos, apenas demonstrar a minha indignação com essa pessoa que deveria liderar a nação e ao contrário, desmoraliza e descontrói a luta contra o avanço do dramático vírus que avança em nossa população, contra o qual, os profissionais da saúde em suas várias especialidades e categorias desempenham com afinco no cuidado e no alerta à população para que faça o isolamento social, trabalhando de modo diuturno e arriscando as suas próprias vida.

Causa indignação e repulsa que essa pessoa faça um discurso na contramão de tudo que é cientifico e provado pelas autoridades médicas em todo o mundo e faça uma comparação esdrúxula com a Itália, salientando que aquele país é um país de idosos, como se somente estes possam adquirir o vírus, de modo que se conclui que esta parte da população brasileira de idosos não possui nenhuma relevância enquanto cidadãos, pois podem morrer à vontade, a partir do fim de confinamento da população ativa.

Nem me pergunto mais como grande parte dos eleitores (apesar dos fake nesws) foi capaz de votar neste homem, mas atualmente me questiono com tristeza e estupefação, como alguns ainda o defendem e repassam mensagens de whatsapps tentando enaltecer e ratificar atitudes que segundo eles, são adequadas, além de criticar outros países como a China e até, imaginar que esta nação é a grande culpada pela disseminação da epidemia.

Estes, na verdade, merecem o Presidente que tem. Nós, não. O povo brasileiro merece coisa melhor.

terça-feira, março 17, 2020

Que o vírus imploda

Nem sei o que digo, o que penso, o que desatina meu coração naufragado. São dores fortes que não abandonam o barco, ao contrário, o transformam numa pequena embarcação a esmo, metida entre juncos e macegas, tentando se desvencilhar e arriscar na velha lagoa. Avisto homens arrastando camarão em redes precárias. Sei que estão errados, tão perdidos quanto eu em minhas elucubrações. Quisera voltar à sanidade, à civilização, ao lustro das vitrines emolduradas em ouro das grandes lojas de grife. Quisera desfilar entre os ricos e famosos de Milão. Quisera fugir da miséria da morte e destruição. Quisera desafiar a arrogância e camuflar meu coração de ideias positivas. Nada é verdade. Tudo é falso e nulo. Tudo conspira pela morte e dor. Tudo foge do comum, do normal, do construtivo, do planejamento. Tudo é sorteio: de vidas, de horas, de momentos, de parcelas da população que se aglomera, dos vendilhões do templo, das promessas vãs, das febres altas, das dores na alma. Quisera ser um vírus, tão mortal e disseminador como este e atacar a ignorância, o caráter inculto e desonesto dos governantes, a subserviência patética e bovina dos seguidores, a complacência da mídia, a destruição civilizatória, a falta de empatia com o semelhante. Mesmo que agora todos se apresentem como são, que não temam mais parecerem e serem machistas, homofóbicos, racistas, enfim, fascistas; que o vírus imploda e transforme o que é sangue e dor em novos auspícios de vida. E que as lojas de grife sirvam para o olhar curioso e não identifique a morte. E que as favelas se nutram da luta diária pela sobrevivência e não pelo medo da morte, nem da bala perdida, do assalto, da segurança mal administrada, muito menos da gota de saliva espalhada na roleta do metrô.

domingo, março 01, 2020

Um concerto

A dor que se esfarela nas contas do rosário que rezo. Uma ave-maria, duas ave-marias, três, não sei. Aos poucos observo o céu encrespado sob um manto de Villa- Lobos. Bachianas Brasileiras , número 5.

As pessoas quietas, ouvidos atentos, olhos vendo pensamentos enquanto os sons entoam, ora mais enérgicos, ora mais suaves, contemplando a natureza que se expande ante meus olhos, ouvidos, coração. Algumas lágrimas titubeiam em cair, sigo o ritmo compassado. Rezo outras ave-marias, talvez.

A música me atinge, me envolve, me absorve e o ar da rua, das planícies, do céu enovelado de brancos e azuis me inspiram. Não quero sair daqui. Quero ficar na arquibancada ao ar livre para sempre. A dor da realidade, a vida doída e fugaz se esfarela, se desmancha nas ave- marias. As contas me seduzem. Meu olhar se perde no brilho das contas e das notas. A música me transforma e serve de oração. Oração pura e plena que sensibiliza, conforta e cura.

Um concerto é um rosário bem rezado.

sexta-feira, janeiro 10, 2020

Quando se tem amigos


Esta é uma pequena homenagem à minha querida amiga Idelci Souto, pela passagem de seu aniversário. Ela é uma pessoa que sempre participou com muita generosidade e afeto de minha carreira literária. Na foto desta publicação, ela está no autógrafo de meu primeiro romance, "O eclipse de Serguei". Uma pessoa amável, grande advogada e professora de português além de uma inspirada cantora.


Tem-se amigos durante a vida que nem precisam estar sempre ao nosso lado. Nem devem conviver como nossas angústias ou dores, embora demonstrem empatia por nossos sentimentos e tenham implícita a alteridade, colocando-se em nosso lugar, quando demonstramos fragilidade ou sofrimento.

Há amigos que vivem próximos, e mesmo sem contato constante, sabemos que estão ao nosso lado.

Há amigos que alegram-se com nossas conquistas, como nossas pequenas vitórias, com nossos desafios. Há amigos que nos desafiam, que nos despertam, que nos apoiam, que vibram com nossa alegria. Há amigos assim, fortes, sinceros e envolventes que desconstroem barreiras e estabelecem pontes.

Há amigos que se aproximam, que falam, que argumentam, que lutam, que se inventam, que esperam de nós sempre boas colheitas e nos ajudam a plantar, semeando expectativas e esperanças.

Tenho uma amiga assim, que sempre me incentivou em meus escritos, desde os primeiros textos, aos contos, aos livros publicados, aos romances, às crônicas do Jornal Agora. Tenho uma amiga deste naipe, rara e brilhante, uma pessoa afável, cujas virtudes não teria como enumerar aqui, porque além de todas os predicados, ainda tem a principal que é a capacidade de disseminar esperanças, confiante e firme. Seu único interesse é o bem do amigo e por isso, muito maior do que qualquer característica pessoal, é o mérito de ser amiga em sua essência como um rasgo de afetividade que envolve com afeto, benevolência e carinho, pois sua aspiração é o bem do outro.

Uma amiga que utiliza a linguagem em suas representações semânticas, metafóricas ou líricas, e muito além destas teorias, uma explosão de conhecimentos, ideias e perspectivas tanto políticas, quanto sociais ou apenas o ato genuíno de uma boa conversa. Tem-se aqui o espírito exacerbado de emoção e inteligência, tanto da advogada quanto da professora.

Quando se tem amigos, a vida fica mais leve e o mundo parece abrir espaços a nosso favor. Esta minha amiga muito me incentivou a prosseguir minha carreira literária.

quarta-feira, outubro 16, 2019

O que queria Dóris Fontaine?

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de relance. Homens sedentos por seus segredos mais íntimos, suas intenções ocultas. Nem sabiam que nada era real. Sua vida era plana como o rio que circundava a cidade.

Naquela noite, na boate, alguma coisa violou seus sentidos quando o avistou, ali sentado à beira do palco, olhando-a como uma estrela. Imaginou o homem dos sonhos cujo olhar intuía em seu coração e no sexo dormente uma explosão antagônica: desejo e medo na mesma moeda. Uma fotografia que se projetava em várias dimensões.

Uma bebida desfilava entre as mesas e o suor da garrafa ficava nos dedos, como sequência slow motion. Tudo parecia cinema naquela noite, embora o mundo gritasse por promessas não vindas lá de fora. Soldados que se consideravam célebres numa guerra que nem era nossa. Ele, entretanto, era civil e sua farda não passava de um corpo ilustrado por um sorriso à luz negra que devolvia em flashes um olhar que a comia. Então sorriu, quase feliz, saindo de cena, fugindo do cenário, dublando o que nem ouvia; coração assaltado pelo novo que libertava por segundos o cinza de sua vida.

Soldados riam e gritavam, mencionando Castela, navios, o Getúlio, a ida, na chancela de serem os melhores. Um ou outro, dissimulava um sorriso. Ela percebia. Mas quem era ela? Apenas Dóris Fontana, porque Fontaine à la Joan ninguém conseguia pronunciar. Ela odiava quando a Chamavam de Dóris Fom-fom.

A música seguia seu compasso comezinho de sempre. O maestro engatava um tango num bolero e a vida seguia. Mas hoje, na presença dele, um blues anunciava anjos, como se os timbres e ritmos e tons se confundissem no prazer que a inspirava.

Ela desceu do palco e ele ofereceu um drinque. Nada extraordinário, era quase de praxe o hábito, mas a chamou de Dóris Fontaine, com uma pronúncia quase americana e seu olhar impreciso se perdeu em profusões de imagens que vinham de um passado distante. Talvez da infância, não sabia, mas alguma coisa que a deixava feliz. Quem sabe o carrinho de boneca que empurrava num jardim que não era seu?

Olhou-o e sorriu tão ingênua, que pensou voltar a ser a menina do interior, na virgindade dos sentimentos, mesmo no adiantado da hora. Ele a beijou suave, sem pressa e sem imposição. Nada pediu, nada deixou, nada procurou a não ser a liberdade de serem o que eram.

Sonhava? Ela se perguntava feliz. Beberam, dançaram, riram e ele foi embora, deixando promessas.

No cinema, numa tarde qualquer após a ressaca, Dóris observava o cartaz de “Soberba", com Anne Baxter no topo de uma escada, enquanto Joseph Cotten detinha-se na parte inferior, na espera do encontro. Talvez a história nada tivesse a ver com o que pensava, mas lembrava a sua interpretação sobre o palco. Talvez o seu Joseph Cotten fosse o homem que a visitava todas as noites.

E como nos filmes, ele trazia flores, lia os versos de Raimundo Correia, não importava se falava em pombas, cavalgada de fidalgos ou palavras que mal entendia, juntando moça e éter. O éter que conhecia é o que deixava tudo azul, nítido e forte aos ouvidos e a fazia dormir. Entretanto, o que falava, trazia um tom de primavera que a despertava para um sol que se descolara há tempos de seus ombros. Não mais vento, não mais chuva, não mais frio. Até os sons eram claros e festivos. Tiravam retratos. Passeavam no dia. Iam ao cinema, ao parque, à praia. Na noite tomavam uísque, vodca ou gim. Ela se desmanchava no jazz e revelava as garras no tango. Na madrugada, se amavam. E o mundo girava arriscando um futuro que se instalava em algum lugar.

A turnê porém seguia para resgatar o moral dos aliados na base aérea de Natal. Seu coração dividido. O mundo dividido. Era dinheiro a rodo e futuro promissor.

Então, ele chegou devagar, incendiou seus olhos com desejo e mágoa. Um foco de luz, uma energia que sustentava o ar e seu corpo bailava num mundo que a família sonhara: o de uma mulher direita. Assim diziam, assim queriam.

O desejo de ser rica e talvez casada com um americano ou outro estrangeiro ficava para trás. Ele chorou, ele a abraçou, ele pediu; eles casaram.

Como no filme, ele voltou como o príncipe que resgatou a sua vida e ela se desarmou em devaneios. Deixou a boate, esqueceu a turnê, o elenco, o futuro, deixou a vida. E se sustentou como uma esposa, sem sem música, sem poema, sem palco, sem ribalta, sem brilho, sem romance, sem luz. Só o éter.

segunda-feira, setembro 30, 2019

Análise do livro “A barca e a biblioteca” por José Eslebán

"A Barca e a Biblioteca" é um livro que mistura gêneros. Por conta da ocorrência de um crime, poderia ser rotulado como um romance policial. Mas, por conta da peculiaridade da história mais ou menos recente do Brasil, mistura elementos de denúncia política.

Numa cidade não nomeada, que eu associo à litorânea Rio Grande, um crime acontece no campus de uma universidade. Por conta da história das personagens, fatos da história do país são trazidos à luz.

O livro denuncia torturas, assassinatos, vandalismos, todo tipo de crime perpetrado por agentes do estado.

Diria que é um bom romance. A leitura flui, e o autor consegue nos transportar para o seu mundo.

CORRÊA, Gilson. A Barca e a Biblioteca. Porto Alegre: Editora Metamorfose, 2017.

Postado por José Elesbán

Marcadores: diário, leituras, livro, livros

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domingo, agosto 11, 2019

O dia dos pais

O dia dos pais é uma data magnífica para os pais, é claro, mas também muito importante para os filhos. É nesta integração de pais e filhos, que ocorre de maneira plena e permanente a humanidade na sua essência. A empatia, a alteridade, a solidariedade e o amor ou tudo isso, ao mesmo tempo, acontece nesta experiência. A experiência de pais e filhos.

O homem, a meu ver se transforma quando atribui a sua existência, o ato de ser pai. Alguém me disse, certa vez, que o homem ao ser pai é capaz de tornar-se outro ser, qualquer coisa, até mesmo um leão para defender o filho. Por muito tempo, pensei naquela conversa e tive um insight quando nasceu a minha filha. Aquele senhor tinha razão, o que expressara com tanta sapiência era a pura verdade, pois a vida transcorre num processo de alternância entre os fatos bons ou ruins, atraentes ou insignificantes, raros ou profundos, mas todos, todos eles tem extrema densidade e importância quando quaisquer circunstâncias, sejam quais forem, se refiram a nossos filhos. Somos outras pessoas, capazes de vencer o mundo, para proteger quem amamos.

Por outro lado, estas condutas oferecem aos filhos a perspectiva de cultivarem a humanidade que lhes é outorgada, o carinho, a luta cotidiana para mostrar o caminho certo, a condução propositiva nos meandros que se apresentam na vida de cada um, cujos percursos devem ser sondados e iluminados para que o fardo fique mais leve, mas acima de tudo, mais verdadeiro.

Os filhos, mesmo que não se deem conta, aprendem com os pais e embora distantes, agirão de maneira semelhante, porque lhes caiu na alma e na mente, as diversas nuances das atitudes e comportamentos e principalmente, os exemplos de vida. Também os pais aprendem com os filhos, pois cada vez que se age de modo representativo do amor, como um processo e um projeto de vida, também se apreende a humanidade no grau absoluto da identidade, da alteridade, do carinho, do amor. É a partir destas instâncias tão interligadas, que o homem se torna realmente homem e se transforma num ser melhor.

sexta-feira, julho 12, 2019

O ipê pensante

Sentei-me sob a sombra de um ipê de minha rua. Um ipê roxo, altaneiro, elegante, agora com poucas folhas e ramagens. Um ipê que sofre o processo do inverno e como tal, se recolhe à seiva mantenedora, abrigando-se e perdendo aos poucos as flores, as folhas e alguns ramos. Espera resignado a primavera. Por certo, observa o sol alongado no céu, enfraquecido e distante.

À noite, espera a lua que às vezes, se some, esquecida entre nuvens e neblinas, trazendo mais escuridão.

O que pensará o ipê de minha rua, se todas as coisas são assim, se sempre foram as mesmas, as temperaturas frias, os ventos que oscilam seus galhos, as noites cada vez mais longas. Talvez alguns pássaros comentem: esta noite não acaba mais. Talvez ele ouça sussurros, arrepios de frio, penas ao vento, brisas inesperadas vindas sabe lá de onde, provavelmente do mar. Talvez ele espere os dias maiores, as manhãs aconchegantes, o sol mais forte, as brotos surgindo, as flores antecipando a primavera e os ventos fortes trazendo os pólens. Outros pássaros, outros sons, outros sussurros, outras vozes.

Mas tudo não é a mesma coisa? As noites, os dias não se sucedem iguais? Se o ipê de minha rua pensasse, se é que não pensa, por certo diria: não! Nem tudo é igual, nem tudo soma, nem tudo evolui, nem todos os sons são claros e vibrantes, nem todas as sombras são as mesmas das árvores, nem o vento sibila do mesmo jeito.

Há algo diferente, algo que o ipê não sabe. Nem o homem comum, o transeunte, o atarefado do dia a dia. Talvez os cientistas saibam, talvez os pensadores, os filósofos, os educadores, os que pensam a vida e o País saibam. Aquela sombra do ipê, aquele dia ensolarado, aquele frio intenso nunca mais será o mesmo, porque a lâmina que decepa cabeças pensantes atua precisa e tal como o ipê, seus pares nunca mais serão os mesmos.

Déjà vu

Quando passava pela rua, me dei conta que terminava num beco escuro. A escuridão se afunilava no medo, na falta de perícia em enfrentar o desconhecido, na exigência de encontrar uma saída. Mas qual! Cada vez, o perigo absurdo e sinistro avançava, como numa névoa de filme de terror. Um uivo aqui, um ecoado lá. A impressão que tinha é que uma coruja cantava ao longe. Não que sugerisse mau agouro, o agouro já era tão presente, que nem valia à pena exortar estes medos menores.

Mas precisava seguir o caminho e este parecia mais longo, embora a bifurcação na esquina se escondesse sob uma árvore, ou o que parecia ser árvore naquela escuridão de sombras e pequenos flashes nas calçadas. Na verdade, as calçadas se diluíam em uma terra lamacenta que se insurgia sob meus pés afundados numa passagem visguenta, como se um verme se apoderasse deles e os corroesse aos poucos, devagar, para sentir o gozo da tortura. Mesmo assim, afundando um pé e retirando o outro, afastei-me aos poucos, do que me parecia uma armadilha.

Ao longe, uma luz de farol na neblina que se insinuava. Por certo, o beco se transformaria num lugar conhecido e aberto e as pessoas passeassem, músicas e danças fruíssem e o mundo seria o mesmo de antes. Por certo, aquela luz influenciaria todo o aspecto soturno e as dores seriam apenas as do coração.

Parei então, fumei um cigarro, uma bagana qualquer, senti aquele ressecado no nariz e na garganta e uma certa esperança.

Entretanto, a luz forte que se aproximava de repente, assim, como do nada, me cegou completamente e pude perceber que aquela luz nada mais era do que um dos últimos suspiros de uma claridade antiga, de uma felicidade morna que como num déjà vu mostrou o passado. O presente? Este era mais escuro, sombrio e assustador do que aquele beco, no qual nunca pisei.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/users/geralt-9301/

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