Chegam as compras, tudo adquirido online. Põe a máscara, acerta nas orelhas,
um pouco caindo, não pode tocar na parte da frente. Abre a porta, olha para o
entregador, entre assustado e desconfiado. Ele usa máscara? Está usando
somente aqui, na minha frente, ou acabou de colocar no carro e andava aí pela
rua, descuidado? Como pensar em tudo isso e ainda pegar as compras e o pior,
pagar em dinheiro porque não recebe em cartão. Pegar o troco. Coitado, está
sofrendo com toda esta loucura tanto ou mais do que eu. Na verdade, mais,
muito mais, porque está se arriscando o tempo todo. Pego o troco, me atrapalho
com as sacolas de plástico que deveriam ser abolidas. Mas aqui estão elas. Me
despeço do entregador, que se afasta rápido na moto. Sento num banco baixinho,
esparjo álcool principalmente no local em que ele segura a sacola, mas só por
enquanto, porque logo, que tirar os mantimentos, terei que passar o álcool em
todos os pacotes, e separar os sacos plásticos num balde com alvejante. Ah,
não esquecer de passar o álcool com o pano para limpar bem os cantinhos dos
pacotes de plástico, papelão plastificado ou metal.
O mundo lá fora buzina rápido, alguém passa na calçada, sem máscara, com um
andador antes que eu feche a porta. Olho para os lados, cumprimento atrás das
grades, a pessoa. Inverto os movimentos e volto rápido para a sala. Ainda vejo
os resquícios do fim do dia, um dia que passei sem ver o sol praticamente,
pelo menos, não o senti nas costas. Imagino-o aquecendo as campinas, a lagoa,
as calçadas, as árvores. Mas ele já se vai, como eu, terminar as tarefas que
comecei.
Tudo na cozinha, as verduras, legumes e frutas dentro da pia, cheias de cloro
e água corrente. O tempo passa, o cheiro do café avisa um novo sabor. Quem
sabe, um novo normal, também aqui? Na noite, talvez, a rotina das séries, das
redes sociais, do livro que preciso ler, preciso? Não sei. Quero.
Tudo tem mais tempo, tempo demais para decidir. Tempo demais para escrever.
Tempo demais para ouvir. Tempo demais para rezar. Tempo demais para refletir.
Tempo demais para falar. Tempo demais para dormir. Será o novo normal? Ter
tempo demais? Por que não faço tudo que queria e não podia, quando tinha menos
tempo, para decidir, para falar, para refletir, para ouvir, para argumentar,
para responder, para escrever, para sorrir? Ah, quero sorrir então. Nem que
seja de um filme classe b com muito humor clichê. Quero amar, sonhar, viver.
Por que a morte insiste em rondar meus pensamentos? Uma morte que se acumula,
que se expõe assim, de frente, sem insinuações ou falsos cenários, que se
mostra cruel e obscena, como se o mundo bailasse de modo sinistro na sua
experiência. A morte, a dor dos que ficam, o velório oculto, a dor que
dilacera e abrasa como se o homem perdesse o direito a vivenciar a própria
humanidade. E assistimos com olhos estarrecidos e às vezes, nos acostumamos,
como se o outro jamais possa ser alguém próximo, tão próximo que a dor latente
vai nos agredir e aprofundar os sentimentos. Por isso o vazio e o vazio será o
novo normal? Não sabemos até quando. Mas esperamos que ele venha de outra
forma, que a humanidade seja recompensada pela empatia do outro e não
dilacerada em sua dor iminente.
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