quarta-feira, novembro 29, 2017

EMBLEMA DA MORTE EM VIDA

O conto a seguir,

Emblema da morte em vida
, foi publicado na Antologia Metamorfoses, como um desafio de se criar um diálogo intertextual com Kafka reescrevendo a frase inicial de sua novela Metamorfose "Quando certa manhã, Gregor Sansa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso". O meu conto está na páginas 53-57 da antologia, que está à venda no site da editora: www.editorametamorfose.com.br.

Quando certa manhã Lauro Sampaio acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num cadáver. Tinha consigo que a vida passava rasante ante seus olhos, mas não argumentava. Percebia as olheiras do médico de plantão e as enfermeiras que ciscavam em suas roupas disformes. Ouvia as vozes de raspão. Ora sumiam e um peso terrível abalroava suas pernas. Afinal, onde estava? No hospital? Sentia-se aprisionado em seu corpo, mas ouvia o que diziam.

Uma das enfermeiras enfiou-lhe um tubo na boca. Tudo parecia em diapasão extremo. Lauro tinha certeza de que o médico imputava a condenação definitiva. O filho, cabisbaixo, temia encará-lo. Voltou-se para a nora, ao seu lado, que transpirava certa náusea. Ela observou-lhe o rosto afinado, a boca torta, os olhos abertos para o nada. Recuaram e conversaram em segredo. O médico observava a cena, enquanto as enfermeiras acabavam o serviço e se afastavam.

Lauro tentava ouvi-los. Percebia os perfis ao longe. O médico expressava-se em parábolas. Quem sabe desenhasse o que restou dele? Lauro aguçou os ouvidos. Era tão bom quando somente ouvia o que queria. Um homem de bem, o mais esperto de sua geração. Elegante, ternos italianos e relógios suíços. A mulher o considerava um tanto brega. Onde estaria ela? Talvez fugindo da figura asquerosa em que se tornou. Mas ele sabia discernir quando o vento soprava a seu favor. Era um senador da República e sabia locupletar-se à custa dos idiotas que o cercavam. Agora, porém, nem conseguia contestar sobre a sua vida. O filho e a nora aqui, mas distantes. E sua mulher? Onde andaria? O que este filho da puta dizia que os deixava transtornados? Precisava ficar no hospital? Por que não faziam outros exames? Por que não conseguia se comunicar, embora os entendesse tão bem? Aneurisma, era isso?

Se tinha um aneurisma cerebral, como o médico vaticinara, estaria em coma. Não era um cadaver. Não ainda. Falava em seu futuro incerto, mas não havia mais futuro. Era só uma questão de tempo. Iriam nutri-lo, acionar seus movimentos vitais até que não houvesse mais reação. O medico afirmou que Lauro Sampaio não podia vê-los, nem ouvi-los, e que as suas reações eram apenas reflexos. Mas não era verdade!

Lauro podia ouvir tudo, podia vê-los, descrever cada ladrilho daquele quarto. Como chamar a atenção, como sinalizar que os vê, que os ouve, que os entende? E a mulher, onde andava que não o ajudava? Onde está sua mãe, Júnior? , pensava. Por que não se aproximavam? O que havia de tão repulsivo que os afastava? Temiam a morte? Temiam o cadáver que se deterioraria cheio de escaras? Por que não o examinavam novamente e descobriam que ele não estava em coma e podia ouvi-los? Era apenas um corpo aprisionado. Devia ser algum tipo de doença que permite ao paciente ver e ouvir.

Observava uma teia próxima à lâmpada. Um ponto preto ameaçado por outro na caça iminente. Como ele, um inseto atacado pelo aracnídeo fatal. Uma aranha nefasta que se disfarçava na negligência para prendê-lo em sua trama. Como fugir, se tudo conspirava para a prisão definitiva? Se o filho se conformava, e a nora o observava com repulsa, considerando-o um corpo falido.

As horas passaram, o filho e a nora se afastaram. No banho, subtraíam-lhe a dignidade com fraldas. Por que tinha que mijar e defecar sem perceber? A menos que a aranha gigante o tivesse caçado na teia que o envolvia, uma gosma que cospia em seus músculos e o mastigava com fúria determinada, a ponto de não saber mais o que era, se apenas um visgo que sujava o teto. Quem sabe, era isso: a morte o engoliu e ele, um espectro que se metamorfoseava para transitar livre para o outro lado. É disso que a nora tinha nojo. Um olhar sem vida, o pescoço esticado nos fios que sustentavam a teia, a gosma escorrendo pelos lábios e o crânio esmagado como um feto malformado. A morte era um regurgitar de humores putrificados e odores de comida junto a medicamentos e doença.

Tentava reagir. Bastava que alguém o visitasse. Quem sabe a mulher, Filipa, percebesse que não estava em coma, nem em estado terminal, e o salvasse. Afinal, já o protegera com uma conta na Suíça, em seu nome. Sim, ela poria aquele hospital de ponta-cabeça.

No dia seguinte, Filipa chegou com uma amiga e aproximou-se do leito de Lauro. Ele observou como estava bonita, usando o colar com que a presenteara no ano anterior. Ela, entretanto, afastou os olhos, assustada. Enojada. Voltou-se para a amiga e segredou: “não passa dessa noite”. Esta concordou, condoída. Filipa comentou, aliviada, que o caso com Jorginho ia ficar na surdina. “Jorginho? Que merda é essa?”, pensou Lauro. A amiga concordou, embora achasse deprimente o estado do senador. “Não se esqueça que ele é um sacana”, retrucou Filipa.

Lauro se desesperou. Queria fazer um sinal, unzinho que fosse pra chamar a atenção daquelas vagabundas, que saíam do quarto.

Com o passar do tempo, viu que suas chances reduziam. Morreria dali a alguns dias, perfurado por sondas, coberto de escaras e o pior, ouvindo o que falavam dele. A vida desandava, como se os telões do Senado anunciassem os votos de sua cassação. A mosca que pululava na merda de todos agora era presa fácil da aranha traiçoeira. Era um ser grotesco que resistia aos estertores da agonia, o emblema da morte em vida. Nem Dora, a ex-mulher que surgia na porta, podia ajudá-lo. Muito menos ela, uma mulher de poucos atributos físicos e que se informava com As Seleções. Não, ela derramaria lágrimas nojentas sobre a sua cara. Não precisava de seu espírito solidário.

Dora, porém, o observava atentamente. Por que o chamava de coitadinho? Por que acariciava a sua testa e pousava delicada os dedos em sua boca? Pelo menos, esta doença maldita também aboliu o tato!

Os pensamentos de Lauro se dispersavam rápidos, pois Dora alertava a enfermeira: “moça, ele mexeu a pupila”.

– Impressão sua. O senador está morrendo com uma hemorragia no cérebro. Também, dizem que abusava da cocaína. Queria morrer, não é?

“O que esta vagabunda sabe da minha vida!”, Lauro gritava em pensamentos, Dora tem razão, se eu movi a pupila, é porque tenho chances – é outra doença, meu Deus, essa gente não se convenceu ainda?

– Moça, depois que soube do Lauro, eu li na Seleções sobre uma doença que paralisa os músculos e a pessoa não se mexe.

– Hum?

– Uma tal de Síndrome do Encarceramento, uma doença rara, com paralisação dos músculos do corpo, menos dos que movimentam os olhos e as pálpebras. Temos que fazer alguma coisa!

Lauro explodiu de alegria. Dora e sua cultura das Seleções: de quem menos imaginava, surgia uma esperança.

A enfermeira permaneceu irredutível: minha amiga, se é rara, pode esquecer. Esse cara tá no fim, parece que já morreu faz tempo, só vai dar trabalho pra família. E tem outra, era bem sacana no Senado. Nem sei se deve viver.

Dora acenou a cabeça, desconsolada.

A outra ainda perguntou: “o que a senhora é dele?”.

Anti-heróis: contos/ organizado por William Moreno Boenavides. - Porto Alegre. - Porto Alegre: Metamorfose, 2017.

terça-feira, novembro 21, 2017

Acertar a mão

Segundo Antônio Cândido, em seu brilhante ensaio Direito à literatura, “... as palavras organizadas são mais do que a presença de um código: elas comunicam sempre alguma coisa que nos toca porque obedecem à certa ordem.” E mais adiante, ele sugere que o material bruto da linguagem, oriundo do processo de elaboração, torna-se um caos originário deste material a partir do qual o produtor escolheu uma forma e que se torna ordem. Por isso, segundo ele, o caos interior do leitor também se ordena e a mensagem pode atuar. “Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido.

Seguindo esse princípio do grande sociólogo e crítico literário, eu trampus a técnica para o meu trabalho, como produtor de narrativas. Deste modo, produzi a expressão adequada para dar forma e sentido do eu e do mundo no meu texto, quando organizei o caos. Sempre que inicio um romance, uma novela ou conto, há uma gama de temas que me vem à mente e que me são caros ou que me impressionam de alguma maneira. Na minha narrativa longa “A biblioteca e a barca: um romance sobre como livros também foram sitiados em tempos de repressão", temas como a leitura, o sonho infantil, as descobertas da adolescência, a biblioteca, a ditadura e as dúvidas e questionamentos do protagonista em relação ao pai e a si próprio, dão a dimensão do caos em que se encontrava a minha produção. Eram temas importantes para mim e interessantes à medida em que eu provocava emoções e desafios aos presumíveis leitores. Quem era o vilão? O pai, o tio ou o sistema? E durante muito tempo, inclusive na maturidade, o protagonista é questionado por si e pelos outros.

Finalmente, para dar forma e sentido e transformar este caos num código que também transmitisse a mensagem, eu refiz muitas vezes o texto, além de retirar alguns capítulos que se mostravam excessivos ao tema e incluí outros. Somente aí, tive a convicção de que o meu sentimento e as provocações podiam ser apreendidas pelo leitor. Apesar do tema se realizar num cenário particular de uma cidade do interior, numa biblioteca universitária, nas ruas e praças dos anos 60 e dos dias atuais, concluí que o sentimento ali manifesto é universal, bem como o tema que o reveste. Neste momento, percebi que acertei a mão.

Fonte:

Candido, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 3 ed. revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

Corrêa, Gilson. A barca e a biblioteca: um romance sobre como livros também foram sitiados em tempos de repressão. Porto Alegre: Metamorfose, 2017.

segunda-feira, novembro 20, 2017

A bandeira e o eclipse

Minha mãe era muito zelosa com as atribuições da escola. Na primavera de 66, estávamos mais preocupados com o provável eclipse que ocorreria no Brasil, especialmente na região sul, do que outros eventos cotidianos, como por exemplo confecionar bandeiras brasileiras.

Eu já tinha tudo pronto em minha mente, usaria uma chapa de raios x para observar o céu, até que o sol desparecesse e a terra se alinhasse com a lua, escurecendo a cidade.

No balneário Cassino, no entanto, a situação seria ainda mais eufórica e esperada. Afinal, a Nasa lançaria 14 foguetes na praia com a intenção de investigar o fenômeno. Havia muita gente no Cassino, inclusive mais de 300 cientistas do exterior.

Minha mãe, entretanto estava disposta a cumprir a sua tarefa. Levou-me à loja Isaac Woolf e com a paciência das mulheres em escolher tons para os tecidos, permanecemos na loja mais de uma hora. Eram matizes que não acabavam mais. Tons que iam do verde escuro ao mais claro, azul que deveria compor um céu infinito e inatingível, o amarelo que se desmanchava entre o dourado e a gema de ovo, ou outro tom qualquer que somente ela sabia distinguir. Quando finalmente decidiu, a noite já dava sinais de vestir a cidade com sombras. Eu só pensava no eclipse do próximo dia. Ela com as bandeirolas que a professora a incubira para o passeio dos alunos até à praia, para assistir aos dois eventos e mostrar a nossa brasilidade e força nacionalista.

Em casa, com paciência redobrada e após muitos cálculos sobre as escalas, ela desenrolou os tecidos sobre a mesa e pediu que eu a ajudasse a organizar as peças, de acordo com as cores respectivas. Enquanto eu obedecia, ela investia nas figuras geométricas, associando as cores aos desenhos, desde o verde para o retângulo, o amarelo para o losango, além das estrelas representativas dos vários estados. Por fim, tentava transmitir a sua impressão sobre as bandeiras, prosseguindo enfática:

Sei o quanto o eclipse impressiona, sei do poder flamejante dos foguetes que voarão aos céus, que transformarão os olhos e mentes em memórias jamais esquecidas. Mas estas memórias devem ser acompanhadas pela nossa cidadania, a nossa percepção de nação e isso só acontece, se tivermos um símbolo, um emblema, que nos identifique como nação, que represente o nosso povo e nosso solo, enfim a natureza, além da paz que deve ser prepoderante entre os povos.

Já ouvindo a história que parecia não terminar, concordei que a professora tinha razão em querer confeccionar as 24 bandeiras para a nossa turma que saudariam o eclipse e os foguetes.

Ela retificou: mais do que saudar, vai mostrar a todos, a presença do Brasil neste evento e mais do que nunca o nosso símbolo maior será a representação absoluta.

Naquele momento, já me interessava em levar a bandeira, agitada e altiva, junto com os colegas de classe, convicto que fazia parte do grande evento. Só despertei de meus pensamentos, quando ouvi o barulho metálico da máquina de costura, aprumada em desvendar caminhos que levassem à perfeição.

sexta-feira, novembro 03, 2017

Os dez países com mais leituras em outubro de 2017

1. Brasil

2. Estados Unidos

3. Rússia

4. Alemanha

5. Ucrânia

6. Irlanda

7. Portugal

8. Romênia

9. França

10. Polônia

Os dez textos mais acessados em outubro de 2017

1. A essência da vida

2. SOU DO CONTRA!

3. PIOLHOS DE RICO

4. TRABALHO VOLUNTÁRIO NO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO : UMA PROVOCAÇÃO PARA A VIDA

5. A catarse do escritor

6. O bibliotecário e o escritor

7. Um olhar instigador

8. Sonhos na lagoa

9. Onde chegará o homem?

10. Triste Brasil


quinta-feira, novembro 02, 2017

A catarse do escritor

Pedro Nava, o grande escritor mineiro, autor de "Baú dos ossos", afirmava que a memória é uma coisa inextinguível, com suas coisas boas e ruins, mas pode-se fazer uma catarse, enquanto se escreve. Para isso, ele explicava: “eu tenho esquecido certas coisas que eu tinha completamente vivas dentro de minha memória depois que as pus por escrito. Depois delas escritas, desapareceram certas datas, certas pessoas. Certos aborrecimentos que eu tinha com determinadas pessoas desapareceram completamente. Eu fiz uma espécie de pazes com muita gente através da minha literatura um pouco vingativa sobre algumas pessoas que me desagradaram”.

De certo modo, todo escritor se vale de suas experiências pessoais, de características de familiares, amigos, conhecidos e até mesmo desconhecidos. Em geral, estas nuances de personalidade ou aparência física ou características especiais ficam na memória e são mescladas para construir determinado personagem.

É no fazer literário, na comunhão com seus fantasmas e expectativas que o escritor atua, de tal modo a percorrer caminhos que às vezes, percebe uma perplexidade em relação às próprias ideias transmudadas em estratégia literária.

É aí que acontece o estranhamento do leitor, a provocação do absurdo ou do choque da realidade, enquanto ocorre uma verdadeira catarse com o autor. Talvez seja complexa esta relação tão íntima e solitária, mas que se dá aos poucos, quando o leitor desvenda a leitura.

Acho que todo escritor exerce, talvez até de maneira inconsciente, a vingança declarada por Pedro Nava e acaba assim fazendo as pazes com seus fantasmas.

quinta-feira, outubro 26, 2017

Triste Brasil

Lendo uma das citações de Bertold Brecht, o dramaturgo alemão do século XX, cujos trabalhos artísticos e teóricos influenciaram o teatro contemporâneo, percebemos que seus pensamentos são tão universais e de nosso tempo, que parecem vaticinar o que viria acontecer no futuro.

Senão, vejamos suas palavras:

"Nada é impossível de mudar.Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar."

Observamos, portanto, que este pensamento se encaixa na situação que estamos vivendo, de arbitrariedade e golpe na democracia.

Pense bem, desconfie do "simplinho", do falso humilde que vota pela pátria, pela democracia, pelo amor a Deus e à família.

Sabemos que não vivemos num mundo de ficção, mas esta parece cada vez mais entranhada na visão humana, principalmente na dos políticos em sua descarada hipocrisia.

Hoje não é dia de compor silêncios, mas externar de algum modo a nossa indignação seja em que cenário façamos parte, no trabalho, na escola, na feira, na loja, no shopping ou dentro de nossa comunidade.

Ficar atento e mostrar a realidade, não aquela manipulada da mídia, mas a que salta aos olhos e nos fere o coração.

Entretanto, parece que tudo fica como está, no governo, nos três poderes da Nação.

Tudo se acomoda como numa carroça de abóboras e todos vão assimilando o desandar das coisas, como se fosse natural.

Onde estão os panelaços? Onde está a indignação contra a corrupção?

Parece que somente havia um único propósito, o golpe parlamentar e era isso que parte da população desejava. Como numa novela da Globo, o que vale, são os fins para os mocinhos das tramas, não interessam os meios.

Triste Brasil.

sexta-feira, outubro 20, 2017

Luta por quem está contigo

Eu costumo comentar com colegas ou amigos, que sempre que havia um desentendimento de alguém que de algum modo me feria, eu não ficava me lamuriando, caso a pessoa fosse apenas um colega ou conhecido.

Claro que sentia, mas sentiria muito mais se eu gostasse realmente da pessoa, se fosse minha amiga ou parente. Ficaria muito triste. Afinal, essas me tocavam de perto.

Em 2014, o Papa Francisco disse a frase que corrobora com o que penso:

“Não chores por quem te abandonou, luta por quem está contigo. Não chores por quem te odeia, luta por quem te quer.”

Eu acrescentaria o verso do Quintana “eles passarão, eu passarinho”.

Sem ódio, sem tristeza, apenas

exaltar a alegria dos que a compartilham.

Vida que segue.

quarta-feira, outubro 18, 2017

Um pouco sobre mim e meus livros publicados

Eu trabalhei na FURG como bibliotecário. Lecionei também Português, Inglês e Literatura em escola pública. Formado em Letras Português/Inglês, Biblioteconomia e Especialista em Ciências da Informação.

Atualmente, sou membro da Academia Rio-grandina de Letras. Escrevo no blog letras-livres.blogspot.com.br e participo da página literária do Jornal Agora, no caderno O Peixeiro, pela Academia Rio-grandina de Letras.

A página literária no facebook é: https://www.facebook.com/guilsonlitteris/

Sobre os livros publicados:


Como escritor, participei da Coletânea de Conto, Poesia e Crônica, Edições EG da All Print Editora, 2009.

Ainda em 2009, integrei a Antologia de contos “Outras águas”.

Participei da antologia Contos Vencedores 2013 de Araçatuba, com o conto “A margem oposta e na Antologia de Contos de Santo Ângelo, 2014.

Em 2017, Antologia de contos “Metamorfoses”, com o conto “Emblema da morte em vida”.

Publiquei dois romances: “O eclipse de Serguei”, pela editora Biblioteca 24x7, de São Paulo, 2009.

Em 2017, “A barca e a biblioteca: um romance sobre como livros também foram sitiados em tempos de repressão”, pela editora Metamorfose, Porto Alegre.

O eclipse de Serguei está disponível no site da editora: www.biblioteca24x7.com.br

”A barca e a biblioteca está disponível na livraria Vanguarda, Rio Grande, RS e Pelotas, RS, pelo e-mail gcgilson4@gmail.com, bem como pelo site da editora: http://www.editorametamorfose.com.br/livro.php?pid=960 e pelo site da Amazon.com.br

Trecho do prefácio de "A barca e a biblioteca”, pelo Prof. Dr. Oscar Luiz Brisolara

A barca e a biblioteca é uma empolgante narrativa em que o autor incursiona pela história recente do Brasil, de modo especial, pelo período posterior ao golpe militar de 1964.

Trata-se de um romance, que em não sendo do gênero histórico propriamente dito, envolve a história recente de nosso país, denunciando, mesmo que veladamente, o processo perverso que os sistemas políticos antidemocráticos escondem.

Em nome de uma pretensa ordem, em defesa de uma ideologia dissimulada, os usurpadores do poder cometem os mais bárbaros crimes. Trata-se de indivíduos, desobrigados de responder pelos próprios atos e decisões, que agem com extrema parcialidade, mesmo em questões que nada têm em relação ao interesse público. O que se destinava a preservar costumes torna-se o instrumento e a razão dos mais perversos atos de corrupção e descaminho.

segunda-feira, outubro 16, 2017

A essência da vida

Por volta dos anos 50, Sartre proclamara que "cada homem é singular porque constrói sua essência ao longo de sua existência". Talvez esta procura da definição de si mesmo, seja o sentido da vida. Ou não?

Eu, como não gosto muito de falar em público, fiquei pensando nesta imagem de Sartre que me diz de perto o que sinto. É preciso construir a essência, não importa em que cubículo nos escondamos ou em que janela nos espelhamos. Construindo a nossa essência, identificamos quem somos e talvez seja este o sentido da vida que passamos a existência procurando.

E para que o sentido da vida? O fato de ser feliz, de procurar a felicidade de todas as maneiras. No entanto, a busca pela felicidade plena não faz sentido. O que podemos almejar é a serenidade, algo completamente diferente. Só se atinge a serenidade vencendo o medo.

É o medo que nos torna egoístas e nos paralisa, que nos impede de sorrir e de pensar de forma inteligente, com liberdade. Os filósofos gregos costumavam dizer que o sábio é aquele que consegue vencer o medo.

Ah, e mais uma resposta para minha dificuldade de falar em público, a frase de Hari Dunzru: “Para ser um escritor você precisa desenvolver a habilidade de falhar em público.”

quarta-feira, outubro 11, 2017

Onde chegará o homem?

Não gosto de comentar notícias policiais, muito menos ficar dissecando as informações, investindo em cada detalhe e transformar o fato numa dramaturgia barata.

Mas às vezes, a realidade dura nos obriga a pelo menos refletir e sofrer as consequências da falta de humanidade.

O bebê baleado no útero da mãe e que não resistiu e acabou morrendo, em Caxias, na Baixada Fluminense vai contra qualquer percepção de realidade, como se o surrealismo ou a ficção concentrasse seus valores em nossa realidade.

Como não se comover, como não sentir na pele o arrepio da dor e do medo ao assistir um fato tão doloroso. Isso apenas citando dois fatos, embora ocorram diariamente todos os tipos de assassinatos e perdas terríveis ao povo brasileiro.

Como acreditar na humanidade e imaginar que ainda há futuro?

Quando vemos nossos filhos longe, ficamos com o coração na mão e quando estão perto permanecem em total abandono, porque as balas perdidas não são excessões, ao contrário, são a regra em muitos recantos do Brasil, como na escola em Porto Alegre, onde os alunos precisaram fugir para não serem atingidos.

Parece que o homem fica cada vez menos homem, menos ser humano e talvez não tanto animal, mas um ser perdido na desumanidade, um ser que enxerga no outro apenas o reflexo de seu desejo de ganância, de ódio e do medo intrínseco de se enxergar no espelho alheio. É triste.

Uma involução que avança em várias áreas e repercute nas comunidades mais frágeis.

Uma involução nos costumes, na política fascista que avança, na ilegimidade dos governos, no despropósito das ações alavancadas na não-constituição.

Onde chegará o homem?

Quem cuidará de nossas crianças?

Quem olhará por nossa vida?

sexta-feira, outubro 06, 2017

O bibliotecário e o escritor

O cuidado em encapar os livros, não é coisa de bibliotecário que evita a descaracterização da obra, mas é coisa de escritor que tem o cuidado, o zelo e o carinho com este suporte maravilhoso de lazer , informação e cultura.

Virginia Woolf era acima de tudo, uma grande escritora e uma cuidadora da cultura.

Bibliotecário protege para a disseminação da obra, o escritor cuida.

Os dois se completam.

Um olhar instigador

Muito se fala sobre o livro e com muita propriedade. Há expressões das mais variadas que ilustram com perfeição a finalidade, a valorização e a importância do livro.

Kafka fala sobre o livro com certa dureza, mas seu intuito é o de inspirar uma transformação no homem. Vejamos: "Deveríamos apenas ler livros que nos mordem e nos espicaçam. Se a obra que lemos não nos desperta como um golpe de punho no crânio, qual é a vantagem de ler?”.

Os livros devem provocar sensações, deixar marcas, fazer a alma voar e a mente repensar, repensar e deglutir com paciência, quase intolerância, o que recebe.

Assim é a arte em geral, que deve instigar, mexer com o nosso conforto existencial e impulsionar um olhar novo no que se vê e sente.

quinta-feira, setembro 28, 2017

Total desassossego

Quando a vida lhe parecia sorrir, sentia-se em total desassossego. Sampaio não era de se envolver nos problemas alheios, ainda bem, dizia consigo, já lhe bastavam os seus. Mas de uma hora para outra, passou a ter desejos estranhos, que não lhe cabiam em seu pensamento conservador. O que poderia lhe causar mal a melhoria no emprego, o galgar melhores condições de trabalho, inclusive de salário? Sei lá, o tal do desassossego, o temor de que alguma coisa lhe acontecesse, sempre vinha a cabresto. Trabalhava numa empresa de informática e seus conhecimentos na área nunca decepcionavam a chefia. Sua vida familiar era tão estável como água parada. Tinha mulher e filha que completavam um ciclo de ajustamento doméstico. Tudo muito certo, muito adequado, bem nos trilhos.

Sampaio também não saía da linha, como costumava dizer um dos colegas mais chegados, que lhe cabia na categoria de amigo. Com ele, fazia até confidências.

Mas Sampaio andava inquieto. Quando deixava o carro no estacionamento da empresa, alguma coisa lhe avisava, como um instinto, uma competência de quem profetiza que alguma coisa estava errada. E o pior, é que ele não conseguia decifrar o enigma. Talvez fossem aqueles pensamentos que não ousava deixá-los assumir voz. Ficavam na oculta, jaz em seu mais recôndito cuidado.

Entretanto, um dia sentiu-se mal, um aperto no peito, coisa normal para quem está muito tenso, diziam uns, coisa de quem sofre calado, diziam outros. Ele não dizia nada, mas aquela falta de ar sinalizava uma fronteira que avistava aos poucos e que o deixava paralisado. O pânico é o pior negócio, pensava ele. Se se deixar levar, vai para o fundo do poço ou da cova. Isso lhe dava arrepios. Foi aí que decidiu se abrir com o tal amigo, pediu-lhe um conselho.

O amigo, Chagas encarou-o intrigado. Sampaio não era de fazer perguntas, muito menos propo—rcionar qualquer aproximação a respeito de sua vida. Engoliu em seco e o ouviu, compenetrado.

– Sinto que estou com um problema grave e quero que você me ajude. Chagas, você sabe o quanto sou certinho na vida, ando em linha reta, não desvio um milímetro do meu caminho, mas agora, tem uma coisa que me incomoda.

O amigo olhou para os lados e percebeu que alguns colegas passeavam pelo escritório, dissimulados, fingindo que faziam uma coisa, mas faziam outra, isto é, queriam ouvir a conversa. Então sugeriu a Sampaio que saíssem e fossem ao bar.

– Não. Você está louco! Não posso! O bar vai ser a minha perdição.

– Como assim?

– Se você não me ouvir, como vou pedir a sua ajuda? Deixa pra lá, Chagas, você não vai me entender, mesmo. Vamos esquecer tudo o que falei.

– Espera aí, você não falou nada. Disse que anda em linha reta, isso todo mundo sabe. O que ninguém sabe é o que você queria me dizer, nem eu!

– Por que você quer saber, hem? Vai me ajudar?

Chagas deu de ombros. Claro que queria ajudar, apesar da inconfessável curiosidade que o amigo despertara. Então, pensou e retribuiu.

– Bom, se você não quer o bar, entao o problema está lá. Que foi, você ficou viciado em bebida?

– Se fosse isso, meu amigo, não era nada demais. Quero dizer, ainda tinha remédio.

– Mas então?

Sampaio pensou um pouco. Olhou para o amigo e viu o seu olhar iluminado, o que sinalizava grande curiosidade. Evitou falar alguma coisa que o comprometesse, mas teria que decidir se precisava de sua ajuda e sabia de antemão que sim. Então, pediu para irem a outro lugar, quem sabe numa biblioteca.

O amigo estranhou, afinal Sampaio não era dado a leituras. Aliás, nunca o tinha visto falar em livros ou visitar uma biblioteca. Sampaio insistiu, não ficava longe dali, talvez três quadras apenas e iriam conversando no caminho. Chagas, curioso como estava, aceitou de pronto o convite, embora bastante intrigado.

Na rua porém, a passos curtos, os dois não conversavam, ou melhor, Sampaio não abria o bico. Quando Chagas insistiu, ele advertiu que conversariam lá dentro, ali, na rua, havia muita gente, talvez até algum conhecido que os ouvissem e até os seguissem.

Andaram lado a lado em silêncio. Quando chegaram na biblioteca, escolheram uma mesa a um canto, um pouco afastada de outros leitores. Chagas, então perguntou, decidido a saber tudo de uma vez:

–E aí, me conta tudo.

–Não é bem assim, não é fácil, de uma hora para outra, me abrir com você, como se fosse num confessionário.

– Por que? O que há de tão grave?

– Um confessionário, não tinha pensado nisso. E se eu falasse com um padre? Ele me receitaria dez ave-marias, um pai-nosso e tudo estaria certo. Eu não teria por que me preocupar com que alguém soubesse e ainda seria absolvido.

– Porra, Sampaio, está surtando? Desembucha de uma vez! Sou seu amigo ou não sou?

Neste momento, um casal que estava numa mesa transversal a deles, voltou-se com a alteração da voz de Chagas. Sampaio respondeu com voz sumida:

– Claro que você é sim, por isso estou aqui. Mas fala baixo, isso é uma biblioteca.

– Está bem, eu vou me controlar. Mas fala de uma vez, o que está acontecendo com você. Tem uma doença grave?

– Antes fosse, antes eu tivesse seis meses de vida. Estaria aliviado.

– Então?

– Penso muito em minha mulher, na minha filha...

– Então o problema é com ela? Ela traiu você?

– Para falar a verdade, antes fosse. Eu preferia ser corno do que...

– Mas que porra está acontecendo com você? Não vai me dizer ...

– O que voce está pensando? Não, isso não.

– Você é gay?

– É o que pensou não é?

– Só posso pensar uma coisa destas! Você não tem uma doença grave, sua mulher não o traiu, o que quer que eu pense?

– Não pense. O que está acontecendo comigo, não é facil explicar, nem entender, nem assumir, nem acreditar! Se eu fosse gay, tinha saída, mas o problema é que não sou gay e não tenho saída!

– Não acredito que está dizendo que ser gay não seria um problema para você.

– Maior do que estou vivendo, não!

–Então fala, cara, pelo amor de Deus.

– Você sabe, além de minhas ideias mais à direita, sempre fui bastante conservador, bom marido, bom pai, um homem religioso.
¬

– Sei, um poço de virtudes!

– Por favor, Chagas, não zomba de mim, o caso é grave.

– Não estou zombando. Só espero que você abra o jogo.

– Eu estou começando a falar, veja bem que fiz um pequeno resumo de minha personalidade e minhas atitudes. Também sempre fui dedicado ao meu trabalho e muito disciplinado.

– Isso é verdade.

– Pois é, mas agora, depois de tanto tempo assistindo a mídia, vendo tanta informação desencontrada, assistindo versões estranhas sobre tudo, parece que contraí uma doença.

– Que doença?

–Uma coisa semelhante à direitice aguda, ou guinada à extrema direita ou medo da esquerda, não sei. Sonhei até com intervenção militar, com o Bolsonaro na Presidência!

– Que porra é essa Sampaio?

– Eu estou em pânico, Chagas. Tenho dúvidas sobre tudo e sobre todos. Todos os dias o castelo de cartas se desmancha e fico cada dia mais depressivo. Outro dia, cheguei em casa e minha mulher me contou que gastara muito na feira, que os produtos estavam caros, que o vizinho do apartamento 22 foi demitido, que não deu para encher o tanque de combustível e que o aluguel estava atrasado. Eu não acreditei nela!
¬

– Por que? Está tudo assim mesmo, pela hora da morte, como dizia o meu pai. Por que duvidou dela?

– Perguntei: deu na Globo? Ela não soube responder!

Chagas entendeu que o caso do amigo era grave, entretanto ousou ainda perguntar:

– Por que não quis ir ao bar?

Ele não respondeu, ainda estava inebriado pelos pensamentos anteriores. Por isso, prosseguiu, enfático:

– Eu não confio mais na minha mulher!

Chagas sorriu, satisfeito. Quem sabe havia cura. Então era isso, ele sabia que tinha coisa com mulher. Sampaio concluiu:
– Eu acho que ela virou comunista!

Em seguida, olhou para os lados, deu alguns passos, afastando-se da mesa e sentiu um arrepio ao ver uma bibliotecária que se aproximava com um broche que mais parecia uma estrela vermelha. Resmungou, atônito: Pensei que isso eu só via no bar!

terça-feira, setembro 26, 2017

Pode ser

Pode ser que a vida passe, que os números se sucedam produzindo estatísticas inverossímeis. Pode ser que os mortos falem, se expressem de algum modo, identificando realidades desconhecidas. Pode ser que existam mundos paralelos, que vivamos duas vidas ao mesmo tempo. Pode ser que experienciemos novidades e que o fim não seja o fim, talvez o começo. Pode ser.

Pode ser que eu me engane, que tu te enganes, que o mundo prove, de alguma forma, que somos feitos de barro e sal. Pode ser que tudo derreta, que o sal não conserve, que o barro se misture nos tsunamis da vida. Pode ser.

O que não deve ser é a verdade absoluta, a certeza sobre todas as coisas e sobre tudo. O que não deve ser é a falta de discernimento, o desprezo por caminhos incertos, não compatíveis com a realidade do senso comum, que preza o padrão e a mesmice. O que não deve ser é amar acima do humano, é ser pós- humano neste mundo insensato e prever a necessidade apenas de um grupo, aquele que vive junto feito gado e não se dispersa, a não ser a favor do vento.

Que sejamos polém que voa, se afasta, se funde, se nutre, se reproduz, reflorece. Que sigamos caminhos diversos, com menos certezas e mais harmonia.

sexta-feira, setembro 15, 2017

O barco à deriva

Greg olhou para a estante de poucos livros. Por um momento, pensou até que ficaria, mas já não havia tempo para discutir qualquer assunto, muito menos permancer naquela casa.

Os livros pareciam chamá-lo, pedindo que observasse suas capas, a contra-capa, o miolo costurado de uma maneira estranha para a época. E o conteúdo, o conteúdo viria por acréscimo. Não importava a ninguém o conteúdo e eles, os livros, pareciam ter vida.

Greg afastou-se um pouco em direção à janela que dava para o jardim dos fundos.

Na verdade, não era um jardim, era apenas um amontoado de flores de todos os tipos e alguns arbustos.

Olhava para baixo e tinha uma sensação de vazio, uma melancolia que não tinha como explicar.

O psicanalista dizia que era normal, ele era um homem melancólico, um cara acostumado com os sentimentos, o sofrimento, a dor que deveria ser exaltada, extrapolada, sentida e liberada na escrita. Quase catarse. Talvez o psicanalista tivesse razão. A melancolia era o seu ganha-pão. Com ela, conseguia escrever coisas densas, sentimentais e mais do que isso, provocantes. Precisava disso, precisava dessa escrita como respirar, mas quem se importava com isso?

Heloisa, na sua superficialidade de vida? Américo, no seu pensamento raso e fascista?

Quem se interessava com seus humores, amores, sofrimentos? Quem se importava com a sua vida?

Agora teria de sair para sempre. Dar lugar à promiscuidade intelectual, à mediocridade de temperamento e ineficiência coletiva. Comunidade? Para eles, isso era quase uma heresia. Eram mais individualistas do que autistas. Pelo menos, esses não se responsabilizam por seus atos.

Enganou-se consigo, enganou-se quando pensou que poderia ser igual a todo mundo. Não era. Era um cara diferente, estranho para os demais e cada vez mais diferenciado no mundo reacionário que passara a viver.

Américo sempre lhe dizia que um dia, tudo viria à tona, o mundo descobriria quem é o verdadeiro líder, o cara para quem o comércio, a economia, o capital daria a medalha da meritocracia.

Greg não dava a menor importância àqueles números e contatos com economistas e gente que só pensava em dinheiro.

Não que fosse avesso ao dinheiro, ao contrário, sabia que ele tinha a sua utilidade e devia usá-lo de modo sensato, pensava.

Heloísa não se envolvia com esses dogmas burocráticos e afeitos às grandes corporações financeiras. Ela só usufruía e isso lhe bastava. Cansada que estava da vida enfadonha do mundo da beleza, das celebridades e da busca do sucesso, encontrara em Américo a pessoa certa para estabelecer um vínculo permanente em consonância com a ambição. Estava com ele, estava com Deus. Por isso, passava por cima de tudo, até do amor.

E o amor, a poesia, o lirismo e a paixão estavam com Greg.

Greg se apossara dessas coisas, talvez pela melancolia.

Talvez o psicanalista estivesse certo. Era de sua essência. Não tinha como mudar.

Mas Greg amava Heloísa e houve um tempo em que foi correspondido. Houve um tempo em que o invólucro de sua liberdade emocional sustentava aquela relação. Ele amava pelos dois, amava duplamente até a décima potência.

Ela gostava dele simplesmente. Às vezes, se entendiava com seu papo adocicado demais, mas superava os maus momentos e se sentia renovada, cada vez que ele a beijava, cada vez que examinava os seus cabelos, enfiando os dedos com cuidado, como se escolhesse os melhores fios, para depois beijá-la com paixão.

Greg era estranho, pensava. À medida que era uma mansidão, um carinho personificado, também era um vulcão que a dilacerava, que a transformava numa lava incandescente ao ponto de custar a desvanecer. Ficava dias pensando nele, naquele amor fortalecido, apoiado na atmosfera de conforto que estabelecia uma ponte elétrica, quase turbilhão.

Mas um dia surgiu Américo e foi do nada, um amigo que Greg não via há muito tempo, talvez da época da adolescência.

Um cara extrovertido, cheio de ideias e principalmente ações. E não somente ações humanas, de atitudes e procedimentos, mas ações financeiras.

De repente, Greg ficava pequenino na frente de Américo.

Greg trazia um mundinho idealizado, Américo lhe mostrava um mundão lá fora, quase inatingível. Um mundo ao qual jamais havia sido convidada.

Greg a esperava sempre, junto aos seus livros, as suas leituras, a sua escrita, na esperança de que voltasse atrás e compreendesse que o amor devia estar acima de tudo, até de sua ambição, seu desejo de compartilhar a vida que Américo lhe oferecia.

Mas era tudo inútil.

Por isso, ele estava deixando a casa, deixando pra trás a vida comportada e civilizada que moldava a sua personalidade. Não devia mais viver entre o que lhe dava prazer, se o amor se dissipava em outras procuras. Não ousava transformar a melancolia em literatura, pois esta já não o completava.

Estava aturdido e o branco que a página produzia era muito mais do que uma falta de imaginação, era o excesso de conflitos sem solução, desequilíbrios em labirintos instáveis, dores que permeavam as margens e se confundiam com as palavras ainda sem qualquer sonoridade visual. Eram vírgulas que se interpunham entre versos ou expressões, transformando-as em resumos insalubres de pensamentos deformados.

Voltou-se da janela, abandonou devagar a visão do jardim, ficando ainda na retina algumas raízes de plantas que se soltavam da terra seca e sem vida. Tinha a impressão que tudo secaria ao sol e que nada restaria, além daquela terrível coroa de cristo que circundava o muro.

Dirigiu-se à estante dos livros, sentou-se na velha escrivaninha, abriu o notebook, esforçando-se em desviar os olhos do cenário inteiro e tomar uma decisão. Sabia o que faria, sabia que estava certo, sabia que o desregramento não fazia parte de seu comportamento. Seria, por fim, a saída para sempre da vida de Heloisa.

Que ficasse com o capital exterior, com as ações, com os dólares e euros de Américo.

Que ficasse com a América e o Imperialismo em suas mãos. Que mudasse o seu nome e se chamasse para sempre de Europa, quem sabe, encontraria um destino para fugir da crise?

Foi aí que Heloisa entrou no gabinete e se apoderou do que ele mais prezava: o seu conhecimento. Juntou tudo que havia, seus textos, seus livros, suas buscas e incertezas e o abraçou e o beijou e ousou fazer a última provocação, ou proposta, e que talvez ele aceitasse, por mais perversa e obscena fosse.

Então, encarou-a e por um instante, viu um espectro que parecia tomar-lhe os sentidos.

Vinha à mente, a traição, entretanto ela surgia com propostas ainda piores. Por certo, uma traição maior a qual ele deveria refutar com todas as forças, embora suas objeções pareciam definhar.

Ela o beijou com força e sua boca enchia a dele de baba que escorria pelo queixo, o que produzia uma sensação de propriedade. Era sua propriedade. Era seu.

Heloisa sorriu segura, abandonando os braços sobre seus ombros e encarando-o, com a boca próxima, a respiração quase única, argumentou alguma coisa absurda que ele nem queria ouvir.

Talvez por isso, duas lágrimas correram de seus olhos e ele tentou fechá-los e afastá-la, mas ela o impediu com a mão carinhosa, mas firme sobre sua boca. Em seguida, segurou o seu rosto, sorriu e o encheu de confiança. Ato contínuo, empurrou o seu rosto de modo a obrigá-lo a voltar-se para a porta.

Américo sorria e o fitava com carinho. Aliás, seu olhar carinhoso era dirigido aos dois.

Sem dizer nada, aproximou-se e os abraçou e ficaram assim, os três juntos. Precisavam tomar uma decisão. Américo parecia mais do que carinhoso, havia um vigor em seu corpo, em sua voz, como se um desejo quase incontrolável o atingisse. Suas mãos alternavam-se entre os seios de Heloísa e o pescoço de Greg, produzindo-lhe arrepios constrangedores, mas dos quais não ousava fugir.

Foi então que Heloisa, fez a pergunta decisiva, na verdade, uma conclusão questionada:

– Ficamos os três, só nós três juntos. Não podemos viver separados. Aceita Gregório?

Américo repetiu:


– Aceita?


Greg desviou com esforço o olhar para os livros, como se suplicasse ajuda. Era uma pergunta repulsiva, obscena, deplorável. Como não pensara nisso, quando deixara o barco à deriva a quem o quisesse tomar. Como poderia pensar numa proposta dessas? O capital, a exploração, o poder, a traição, a mediocridade, a ambição, o sonho, a poesia, o ... o idiota.

Ela então, suspirou, obrigando-o a encará-los. E perguntou:

– Então?


– Eu topo.

domingo, setembro 10, 2017

O COVIL

Saímos meio às escondidas, desviando dos pingos grossos da chuva, sentindo na pele uma batida intermitente ao nosso encalço.

Causava-me um certo prazer, misturado com temor, um temor desconhecido, de que alguma coisa não andava bem.

Era frio e escuro e as ruas desertas, como se o mundo todo se escondesse em suas casas, temerosos de uma investida qualquer, uma agressão da qual não tinha como desconfiar.

Apenas as palavras reticentes de meu pai, os dedos frágeis e estremecidos da mãe segurando a bolsa branca, iluminada de vez em quando por algum raio preguiçoso que surgia ao longe. Os olhos de meu pai brilhavam também, mas de ansiedade.

Olhava para os lados, sondava a esquina que desembocava na avenida, ouvia apitos, esfregava a ponta do sapato no paralelepípedo escorregadio que limitava a calçada.

Atrás de nós o muro alto do cemitério. Seria este o temor deles? Não, era de alguma coisa mais palpável, muito mais perigosa e parecia que a cada minuto do atraso do ônibus, o monstro desconhecido se aproximava. E punha garras em todas as direções, pois não se sabia ao certo o seu destino, o seu rumo, o seu objetivo. Apenas me parecia que era tirano e faminto. Não respeitava mulheres nem crianças. Aparecia de súbito, oriundo do covil, burocrático e civilizado, oficial e correto, pronto a consumir o que de vida restava, mesmo na escuridão da esquina, de costas para o muro imenso do cemitério, tão grande quanto uma fortaleza.

Mas com certeza, era mais forte e valente que meu pai, pois ele o temia. Temia mais do que o temporal que se prenunciava, esquecido das trovoadas encobertas, anunciadoras de chuva forte.

Um vento frio fustigava-me o rosto, a boca doía, os lábios rachavam e a testa febril, testemunhada pela mão doce de minha mãe.

Via aflição nos seus olhos, nas poucas vezes que conseguia encará-la. Sempre conversavam sussurrando, temerosos de meus questionamentos.

Um barulho de tropas ao longe, apitos contínuos e sinalizadores, como senhas, talvez emboscadas para civis como nós.

Meu pai apertou-nos junto ao corpo e levou-nos para o portão enorme do cemitério, encostando-nos nas grades, mas protegidos por uma espécie de tapume que cobria o portal e nos deixava de alguma forma ocultos.

Senti os dois corações bem perto, batendo forte, agitados, assustados. Minha cabeça não chegava aos seios apertados de minha mãe, de sutiãs acolchoados sob blusas em buclê e casacão de lã, aberto como tenda. Nem na axila de meu pai, que estendia também a japona rala e esburacada, consumida pelo uso intensivo na fábrica e nos discursos pela liberdade.

Dobrada em minha cabeça, agora sentia-a molhada e fria, inchada na água plangente.

Estávamos juntos, os três e dos medos deles eu não tinha o que temer.

Ao 10 dez anos o que minha fantasia projetava além disso, era o que temia que surgisse detrás das grades. Imaginava uma mão descarnada a atacar-nos e puxar-nos para dentro, impelindo-nos ao ambiente tétrico do mortos. Mortos que estavam sendo importunados em sua privacidade sagrada, cujas almas desgastadas e infelizes, numa noite de chuva e frio, voltavam-se contra nós para se vingarem.

Por isso, meu coração estremecia assustado e minha voz emudecia e minhas pernas finas, de calças curtas e botas inundadas, batiam uma na outra, trêmulas.

Não muito longe, uns faróis pequenos surgiam na rua enlameada, cujos paralelepípedos irregulares luziam, formando pequenas estradas pontiagudas, produzindo caminhos que agitavam o coração de meu pai.

O ônibus verde e amarelo sacolejava na escuridão, e embora não víssemos as cores, sabíamos que se tratava dele. Aquele design arredondado, as janelas oblíquas, das quais tanto avistei as ruas ensolaradas de dias mais felizes. Mas ele parece se desviar do caminho cotidiano, como se um obstáculo enorme se interpusesse entre a nossa liberdade de tomá-lo e voltarmos para casa e a incerteza de ficarmos na chuva à espera do ferrolho da ditadura.

Era do que meu pai sussurrava naquele ano de 65, no qual o mundo se mudara de lado e o toque de recolher se anunciava com os fuzis.

Agora um vento frio acelerava nossos sentimentos de medo.

Percebi que meu pai falava por senhas, quando avistou o soldado, embora as tropas estivessem longe e apenas um carro ficava na esquina, com os faróis desligados.

Não entendia as palavras contravenção, nocivo, subversivo, estorvo. Mas eles se falavam assim, balbuciam coisas disformes, bocas que se abriam na chuva, impelidas pelo vento frio que parecia produzir ódio entre irmãos.

Minha mãe afirmou os dedos em minha cabeça, pegando-me pelos cabelos, meu pai ouviu-o quieto.

O ônibus da linha se afastou do caminho, devagar.

As luzes se apagaram e apenas a fumaça do cigarro do motorista ressaltava embaçando a vidraça, que vez por outra, se enchia de luz.

Levaram meu pai e minha mãe segurou-se à grade, temendo a fera do covil, temendo o ultraje, temendo por nós.

A chuva amainou.

Meu pai sumiu na cerração que tomava conta do caminho, sem antes dar um último olhar, esperando que retribuíssemos emudecidos. Nada mais queria de nós, a não ser ver o que deixava pra trás. Talvez para sempre.

Minha mãe segurou-me mais forte, me abraçou e as lágrimas lavaram meu rosto.

Quando não mais vi a silhueta de meu pai, voltei para as grades do cemitério e meu coração ficou tranqüilo. Nunca mais temi as almas desalmadas, desgastadas e vingativas.

O monstro estava lá fora. No coração dos homens.

quarta-feira, setembro 06, 2017

As escolhas

De olhos abertos observa-se a vida. De olhos abertos percebe-se o mundo. De olhos abertos descobre-se os medos. Mas de olhos fechados, absorve-se a plenitude da vida. De olhos fechados, avalia-se as trajetórias que nos revelam o nosso mundo interior. De olhos fechados refletimos, nomeando os medos, concedendo-lhes voz e tamanho, despojando-os de força e poder.

Pensei nestas maneiras de apreender a vida, em virtude de uma conversa com uma senhora, que me fez refletir sobre os nossos devaneios em cumprir as tarefas e avançar o tempo. Eu, aproveitando a sombra no parque, afogueado por um calor abrasante, ela, tranquila, com um olhar límpido de quem manifesta a profundidade de seu mundo interior.

Por um momento, me encarou com uma generosidade que me desconcertou e falou sobre o tempo e como o dispõe através de alguns princípios, dos quais prioriza as escolhas. Disse-me que costuma meditar e o que vê durante o dia, absorve de uma forma distinta, em que as verdades são aprofundadas. O que parece assustador arrefece e se dissipa e a trajetória do mundo é bem mais intensa e menos problemática do que se pensa. Basta fazer-se escolhas.

De certo modo, aquelas certezas me incomodavam, talvez pelo desconhecimento da disciplina que revelava. Ela, no entanto, completou: cada um tem suas escolhas, mas devemos cultivar as que dão significado ao nosso tempo, aproveitando-o e produzindo mais prazer.

Então, repliquei que nem sempre podemos escolher o que nos interessa, ao que ela concluiu que nem tudo que amamos podemos priorizar, mas talvez dois ou três itens dos cinco que elegemos; deste modo, o tempo fica melhor dividido e muito mais afável.

Calei-me, em seguida fui embora, sem antes olhar para trás e me despedir. Percebi que ela estava encantada com um livro, provavelmente uma de suas escolhas.

Afastei-me e pensei que tinha razão, que deveríamos optar por alguns ítens de nossos sonhos, para redistribuir o tempo, de modo a experenciarmos a vida e não apenas passarmos como figurantes. Afinal, o cenário está pronto, não custa tentar.

sexta-feira, agosto 25, 2017

A roda parou de girar

Um carro quase sobrevoava a calçada. Noite escura. De repente, parou. Um homem de branco desceu, examinou os pneus, deu dois giros em torno e permaneceu quieto, em frente da casa que parecia abandonada. Não fez um gesto. O carro ainda pairava na calçada, a roda traseira no ar, se alguém a empurrasse faria várias voltas.

Não havia ninguém. A noite se adiantava e a cidade, naquele bairro, morria. Ele moveu-se um pouco. Faiscou os olhos na luz intensa do celular. Ficou ali, perdido numa mensagem. Em seguida, aproximou-se do muro e encostou-se devagar.

Olhou para os lados. Nada. Ninguém se aproximava. Nem um sinal. Nem mesmo a brisa costumeira da cidade litorânea desenhava algum movimento. Tudo parado. Morno. Suspirou, ansioso. Meteu as mãos e o celular nos bolsos.

Por um momento, pensou em afastar-se, bater no portão de ferro, chamar alguém. Não teve coragem. Algo o segurava no chão. Um chão bolorento, de musgo e ervas que se erguiam pelas frestas das lajotas. Um chão sujo. Um lugar sem qualquer cuidado. Mas estava ali. Precisava fazer o negócio. Não tinha como fugir, desistir. Tinha se aconselhado há muito tempo com sua consciência e ela lhe dissera que era o melhor a fazer.

Por que ficar assim, agora, tão intimidado? Que droga de conhecimento que se tem de si mesmo, se de um momento para o outro, tudo parece desandar e toda aquela certeza se esvai.

Estava com muita vontade de fugir, sim. É verdade. Mas ficaria ali até a solução.

Todos os momentos em que a encontrou pensou que fosse passar apenas alguns segundos.

Nada que o fizesse permanecer por tanto tempo, ouvindo histórias que jamais esquecera e que eram repetidas sempre, com a mesma tenacidade e vigor.

Tinha vontade de sair. Dizer adeus. Um adeus para sempre. Um adeus para que ficasse marcada em sua vida. Para que o esquecesse.

Mas neste momento, tudo parecia diferente, a ponto de não reconhecer o local em que passara tanto tempo de sua vida.

Voltou para o carro e percebeu que a roda parou de girar, mas era como se aquele transtorno pusesse em cheque o seu desejo.

Deveria retirar o veículo, tentar estacioná-lo um pouco mais à direita, quem sabe na esquina, mas não tomava qualquer atitude. Tudo naquele cenário conspirava contra o bom senso.

Sentiu que o celular estremecia no bolso, sinal de que a mensagem tivera retorno. Retirou-o devagar, temeroso. Afinal, foram tantos pedidos, tantas súplicas para que a coisa fosse retomada da forma como ficara, que agora perdera todas as esperanças.

A mensagem era sucinta. A brevidade não fazia parte das atitudes dela, mas por certo, se espelhara nele mesmo, em suas respostas ágeis, rápidas e breves. Em sua mania de negociar, de colocar tudo sob um pedestal de valores. Talvez apenas indicasse um caminho, nada mais. Era só o que precisava naquele instante.

Olhou para cima, doeu-lhe a pupila que se dilatava na luz artificial da noite.

Uma janela se abria, lá no alto, ele tinha certeza. Deveria entrar. Por que não lera a mensagem? Por que não decifrara o que havia ali, digitado em códigos internetês?

Foi neste momento de dúvida, que percebeu o farol de um carro em sua direção, como se fosse subir a calçada, tal como ele o fizera. Cantando pneu, parou bem ao seu lado, no meio-fio.

Um homem descera e se aproximara dele de modo arrogante, como se o conhecesse. Afastou-se em direção ao portão, mas ele o chamou, como se o conhecesse também e perguntou se ele pretendia entrar na casa, se tinha a chave, se sabia quem morava ali. O homem voltou-se, deu um meio sorriso irônico e não disse nada. Ao contrário, afastou-se assegurando-se de alguma mensagem no celular, como a única desculpa para o silêncio. O outro, no entanto, insistiu. Ele então, o encarou com frieza:

— Vou onde você pretende ir.

— Como sabe?

— Porque sei que espera por Susi. Eu sou o agenciador dela, o proxeneta, o cafetão, o que você quiser chamar. Mas me dê um tempo, que logo, logo, ela será toda sua.

— Mas ela…

— Eu sei quem ela é, mas agora Susi é do mundo - e rindo - e de você também.

Dizendo isso, afastou-se entrando no velho portão de ferro e desaparecendo no quintal escuro.

Ele então voltou para o seu carro, aproximou-se devagar e deixou-se ficar quieto, sem tomar nenhuma atitude. Tinha só vontade de voltar para casa deitar a cabeça no travesseiro e ficar à espera.

quarta-feira, agosto 23, 2017

Cinema de rua e sonhos de primavera

Uma noite de primavera. A brisa leve sussurrava em nossas testas suadas. Meu pai vestia paletó azul, meio gasto.

O olhar se perdia ao longe, como se aguardasse o galardão de ouro. O longe que se perdia, na verdade era a tela de parede caiada. Ele parecia mais ansioso do que eu. Sua boca entreaberta sorria.

De repente, fitou-me e ficou sério. Eu é que deveria estar feliz e ter muitas expectativas naquele momento. Seria uma noite e tanto: uma noite só de homens. As mulheres ficaram em casa.

Daqui a pouco, chegaríamos na rua onde seria projetado o filme.

As pessoas se aglomeravam entre vendedores de algodão-doce e pipoca, enquanto atravessávamos ruas de paralelepípedos e trilhos. O caminho habitual agora atingia um ar festivo e uma euforia se rendia a nossas mentes curiosas. Aos poucos, o cenário quase onírico se formava.

Na calçada, paramos sob uma árvore, já apinhada de meninos à espera do espetáculo. Para meu pai, eram apenas meninos de rua, sem disciplina. Ele era assim: um homem que almejava o melhor para nós, a seu modo.

De repente, a música ecoou silenciando o burburinho. Nada havia, porém, que sugerisse uma imagem. Apenas o desejo incontrolável dos espectadores.

Meu pai punha as mãos nos bolsos e olhava o relógio, desconfiado. Dizia alguma coisa, tentando conservar o meu entusiasmo.

O pacote de pipoca acabara. Minha decepção só não fora maior porque, desta vez, irrompera uma imagem na tela, que parecia ocupar toda a plateia que se acotovelava nas paredes das casas.

Num alto-falante, alguém informava que a fita era uma obra-prima da sétima arte, dirigida ao seleto público.

No fundo, me encantei mais pelo espetáculo do cinema, pela preparação da festa, do que pela história.

No final da sessão, houve prêmios para o público e meu pai ganhara uma lata de biscoitos Aymoré.

Ele recebera o prêmio, próximo à tela, ainda iluminada. Eu observava o seu perfil azulado, como um personagem que se deslocava da tela para alcançar a realidade. Ali percebi que a magia do cinema, mesmo de rua, me encantava e me transportava a um mundo novo.

Voltamos em seguida para casa, com a lata de biscoitos na mão e muitos sonhos na cabeça.

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