Segundo Antônio Cândido, em seu brilhante ensaio Direito à literatura, “... as palavras organizadas são mais do que a presença de um código: elas comunicam sempre alguma coisa que nos toca porque obedecem à certa ordem.” E mais adiante, ele sugere que o material bruto da linguagem, oriundo do processo de elaboração, torna-se um caos originário deste material a partir do qual o produtor escolheu uma forma e que se torna ordem. Por isso, segundo ele, o caos interior do leitor também se ordena e a mensagem pode atuar. “Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido.
Seguindo esse princípio do grande sociólogo e crítico literário, eu trampus a técnica para o meu trabalho, como produtor de narrativas. Deste modo, produzi a expressão adequada para dar forma e sentido do eu e do mundo no meu texto, quando organizei o caos. Sempre que inicio um romance, uma novela ou conto, há uma gama de temas que me vem à mente e que me são caros ou que me impressionam de alguma maneira. Na minha narrativa longa “A biblioteca e a barca: um romance sobre como livros também foram sitiados em tempos de repressão", temas como a leitura, o sonho infantil, as descobertas da adolescência, a biblioteca, a ditadura e as dúvidas e questionamentos do protagonista em relação ao pai e a si próprio, dão a dimensão do caos em que se encontrava a minha produção. Eram temas importantes para mim e interessantes à medida em que eu provocava emoções e desafios aos presumíveis leitores. Quem era o vilão? O pai, o tio ou o sistema? E durante muito tempo, inclusive na maturidade, o protagonista é questionado por si e pelos outros.
Finalmente, para dar forma e sentido e transformar este caos num código que também transmitisse a mensagem, eu refiz muitas vezes o texto, além de retirar alguns capítulos que se mostravam excessivos ao tema e incluí outros. Somente aí, tive a convicção de que o meu sentimento e as provocações podiam ser apreendidas pelo leitor. Apesar do tema se realizar num cenário particular de uma cidade do interior, numa biblioteca universitária, nas ruas e praças dos anos 60 e dos dias atuais, concluí que o sentimento ali manifesto é universal, bem como o tema que o reveste. Neste momento, percebi que acertei a mão.
Fonte:
Candido, Antonio. O direito à literatura. In: Vários escritos. 3 ed. revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
Corrêa, Gilson. A barca e a biblioteca: um romance sobre como livros também foram sitiados em tempos de repressão. Porto Alegre: Metamorfose, 2017.
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