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Este blog pretende expressar a literatura em suas distintas modalidades, de modo a representar a liberdade na arte de criar, aliada à criatividade muitas vezes absurda da sociedade em que vivemos. Por outro lado, pretende mostrar o cotidiano, a política, a discussão sobre cinema e filmes favoritos, bem como qualquer assunto referente à cultura.
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1. O desafio
No conto “O dilema da primeira ministra”, participei do desafio de uma oficina literária online, cuja provocação era evitar o assassinato de Indira Gandhi, de modo inusitado, através de personagens cujas existências não fossem do mesmo período de tempo. Indira Gandhi foi assassinada a tiros, em Nova Déli, diante da residência governamental, por dois agentes de sua própria guarda de segurança, no ano de 1984. Neste ambiente político que cercava a primeira ministra, deveriam se reunir o Papa João Paulo I e um emissário da Mossad, chamado Hersch.
Foi um trabalho complicado, principalmente para dar verossimilhança ao discurso dos envolvidos no conflito. Para tanto, pesquisei sobre a história da Índia, principalmente sobre a Primeira Ministra Indihra Ghandi, o partido comandado pela doutrina religiosa Sikh, sobre a morte do Papa João Paulo I e o movimento de espionagem chamado Mossad.
Desse modo, reuni no mesmo cenário, o Papa João Paulo I, que havia morrido seis anos atrás, ou seja em 29 de setembro de 1978. Segundo relatos, uma freira chamada Vicença encontrou o Papa sentado na cama com uma expressão de agonia. Num outro momento, no entanto, informou que o havia encontrado no banheiro, já morto, com as roupas papais.
Com a intenção de equilibrar o clima religioso com o político, dispus na mesma cena, o Papa João Paulo I e o emissário Hersch interagindo no mesmo contexto político que cercava a primeira-ministra da Índia. Os dois estavam imbuídos em ajudá-la a safar-se da difícil situação política em que se encontrava, com risco de vida, por ter enfrentado o grupo religioso cujo principal discípulo liderava o maior partido da Índia.
O primeiro personagem interviria no destino da Índia através do resgate do perdão, que considerava a única saída para a Primeira Ministra safar-se do cruel destino que a aguardava. Por outro lado, o emissário da Mossad tem como missão a outorgada por sua organização que se ocupa em libertar judeus e capturar seus perseguidores, principalmente os nazistas espalhados pelo mundo, inclusive, os que ainda existem nos tempos atuais. Este movimento realizou perseguições na Argentina e inclusive no Brasil, quando seus representantes descobriram que o médico Joseph Mengele, responsável por experimentos macabros em Auschwitz, vivia no interior de São Paulo. Sua intenção portanto, era salvaguardar as comunidades judaicas na Índia, o único país onde os judeus não sofrem discriminações, Segundo ele. Entretanto, a comunidade mulçumana está crescendo muito e este grupo religioso não respeita os judeus. Conclui-se, portanto que esta organização de espionagem internacional se ocuparia do líder missionário Sikh, cujo poder se intensificava na Índia. Havia a intenção de os Sikhs proclamarem uma comunidade soberana que devia se autogovernar.
Outro trabalho importante de pesquisa foi relacionado à própria situação da Índia, no governo de Indira Ghandi, principalmente no aspecto religioso e politico dominado pela doutrina Sikh. Os sikhs são membros de uma seita religiosa que defende a fundação de um país independente no Estado do Punjab. Desde a infância os membros dessa comunidade recebem formação religiosa e militar. Muitos deles fazem carreira, ocupando postos de importância no Exército e nos serviços de segurança indianos. Esta doutrina com traços do hinduísmo e islamismo se tornou uma força política imensa, comprometendo a democracia. A intenção dos partidários Sikhs era proclamarem uma comunidade soberana que devia se autogovernar. Numa intervenção para derrotar esta rebelião, Indira Gandhi deu ordem ao Exército para irromper pelo santuário e os ocupantes recusaram-se a sair. Na luta que se seguiu houve 83 soldados e 493 ocupantes mortos, incluindo os líderes, além de numerosos feridos. A partir daí, houve um rompimento grave nas relações entre os hindus e sikhs, que levariam finalmente a seu assassinato.
Indira foi assassinada por um de seus guarda-costas de maior confiança: o inspetor Beant Singh, que exercia o cargo há dez anos, informado à AFP por um membro dos serviços de segurança que presenciou o atentado. Beant Singh e o capitão Sawant Saingh, um guarda-costas nomeado recentemente, dispararam contra Indira às 9h18 locais , quando ela se dirigia para uma filmagem com o ator britânico Peter Ustinov, que estava na Índia rodando um seriado sobre líderes políticos. Ustinov estava do lado de fora da casa num gramado onde seria feita a entrevista, junto com o secretário de Imprensa Sharda Prasad, quando os guardas atiraram. Eles presenciaram toda a cena. "Tudo estava pronto, o chá servido e ela caminhava em nossa direção, quando ouvimos três disparos", contou Ustinov à televisão francesa, acrescentando: "Por um momento pensamos que fossem fogos de artifício, mas logo após um dos guardas disparou a metralhadora contra ela". Segundo a agência France Presse, o ator teria filmado o atentado.
3. As personagens
Indira Ghandi
Examinando a figura de Indira e pesquisando a personalidade retratada nos jornais e em pesquisas embasadas em fatos históricos, desenhei com simplicidade a imagem de Indira, de acordo com as cenas apresentadas. Tentei mostrá-la como uma mulher forte, tranquila, habituada às reviravoltas políticas, mas que no momento estava desorientada. Fazia questão, porém de mostrar-se calma e segura, tendo este desempenhado completamente se transformado a partir das visitas inusitadas que recebera. Afinal, encontrava um homem que morrera um tempo atrás, e que lhe dizia coisas que pareciam um vaticínio, além de lhe mostrar outro caminho, que Segundo ele, seria o do perdão. Por outro lado, o emissário da Mossad era uma figura pouco provável em seu context politico, apesar de haver certas discriminações aos judeus em seu País, através da religião mulçumana que crescia grandemente. Tentei mostrá-la como uma pessoa forte, por sua posição política, mas ao mesmo tempo frágil por todos os acontecimentos conturbadores que ocupavam seu cenário de governo, aliados às revelações que acabava de ouvir. Embora não possuisse traços de beleza, era uma mulher que irradiava austeridade e uma certa delicadeza através dos gestos delicados e firmes. Imaginei também que fosse recatada e através de sua sobriedade, revelasse certa beleza. Possuia uma vaidade velada, que não costumava admitir. Havia naquele momento de incertezas um medo que a desorientava. Numa epifania do personagem, ao ouvir o pedido de perdão que deveria fazer à comunidade silkh, a primeira ministra se emocionou e viu através da janela os seus agentes que a protegiam. Por serem eles, silks, ela viu o quanto lhes devia pedir perdão, transferindo para os agentes toda a gama de sentimentos de arrependimento que a tomavam. Afinal, jamais fariam nada contra ela. Estavam ali para defendê-la.
Emissário Hersch
Tentei representá-lo como um homem muito seguro de si, com um olhar frio, embora complacente, embora não tivesse qualquer dúvida sobre sua missão. Tiha os olhos claros, os lábios finos, o que para mim, identificava o biotipo que se tem em mente dos conspiradores, capazes de qualquer coisa para terem a missão cumprida, como os representantes anglo-saxões. Mas aqui, seria somente uma licença poética, porque ele era um judeu. Não tinha o hábito de sorrir, mas confiava plenamente na palavra do Papa, embora o seu objetivo se limitasse ao aspecto puramente politico. O papa seria para ele uma espécie de acesso ao problema.
Papa João Paulo I
O Papa João Paulo, cabelo grisalho alinhado para a direita, cujos olhos pequenos pareciam menores sob os óculos pesados. Revelava uma fisionomia alegre, sorriso denso e uma capacidade infinita de mostrar-se o quanto era sincero. Seu interesse era resgatar a paz na Índia e salvar a Primeira-ministra através do pedido de perdão aos sikhs pela terrível chacina no templo. Segundo ele, este pedido selaria a paz e a reconciliação entre as várias facções políticas e religiosas no país. Era um homem de Deus. Um homem de bem, que justificava o seu destino pela impermanência da vida. Veio com a convicção de que convenceria a estadista e assim o fez.
Peter Ustinov
Ator inglês que faria uma entrevista com Indira, mas que somente é citado no texto.
4. Conflito
O conflito se resume na proposta de salvar a vida de Indira, através do convencimento pelos dois personagens que a visitaram. Um, considerando que a convenceria pela prudência política e diplomacia, pois através de sua atitude, ela acabaria realizando a própria missão de sua organização a favor dos judeus. O outro representante estava convicto que pela bondade do coração da estadista, chegaria a bom termo, a fim de conseguir a paz almejada, resultado de seu pedido de perdão e consequente preservação de sua vida. Afinal, ela era um mulher que lutara pelos pobres, que transformara os país numa democracia, que conseguira melhorar a economia com a nacionalização dos bancos e fôra responsável em grande parte pela vitória da Índia no conflito contra o Paquistão, além de outras medias que a tornaram querida entre os cidadãos e a classe média indiana. Entretanto, para banir as rebeliões, ela governou com mãos de aço, inclusive com poderes quase ditatoriais.
No conto, entretanto, o plot se resumia em salvá-la de um presumível ataque pelos agentes que trabalhavam em sua residencia, comandados pelos rebeldes. Os dois enviados ao seu encontro tiveram sucesso através de suas forças de convencimento e a epifania da personagem ocorreu no momento em que ela viu com olhos de compaixão os agentes que a protegiam e que pertenciam à doutrina sikh do templo que invadira.
Observava minha mãe andando de um lado para o outro. Parecia ansiosa. Punha umas roupas sobre a cama, examinava-as com cuidado, afastava-se do quarto, espiava pela janela. Chamava-me a atenção. Exigia que me arrumasse também.
A vizinha aparecia, brejeira e eufórica. Cabelos muito loiros, tingidos. Voz fina, esganiçada. Olheiras pesadas sob os olhos.
Saíram as duas, eu seguindo-as, chutando pedra, caminhando por entre os trilhos do bonde, minha mãe pedindo que saísse, era perigoso. Esquecia rápido as recomendações.
Meu olhar, em seguida se detinha na velha casa caiada de branco, postigos verdes, de janelas sempre cerradas, aspecto meio sombrio.
Minha mãe suspirava curto. Eu longo, na expectativa do desconhecido, no sorriso infantil da descoberta.
A vizinha requebrava com a bolsa branca pendurada no braço. Minha mãe esfregava as mãos, suadas.
Entramos, a porta quase não se abriu. Tudo em penumbra, pessoas que se mexiam pelos cantos, a sala completamente ocupada.
Começaram os cânticos. Minha mãe apertava a minha mão, com força. A vizinha se apresentara, participando ativamente dos procedimentos religiosos.
Eu me afastei uns passos, saindo lentamente do círculo que rezava e cantava e aproximei-me de uma porta que dava para um corredor imenso, de ladrilhos em preto e branco. Havia cruzes, desenhos estranhos de giz, no piso. Eu os apagava rapidamente, com os pés. Pulava sobre eles, ultrapassando-os, como se jogasse amarelinha, até chegar a última peça da casa e levei um susto, ao ver um homem numa cadeira de rodas, que acenava negativamente a cabeça. Nas pernas, um cobertor leve, na cabeça poucos cabelos enfeitavam a careca, os olhos fundos.
Fiquei paralisado, na última porta, com aquele olhar incisivo, censurando a minha atitude. Ele falou alguma coisa inaudível, acho que pediu água. Sem entender muito bem, aproximei-me do filtro de cerâmica, abri a torneira, enchei o copo que entornou sobre as mãos.
Aproximei-me e entreguei, indagando com o olhar. Ele segurou o copo com as mãos trêmulas, levou-o à boca e pediu que eu sentasse, ali perto, no banco que estava ao seu lado. Fiquei quieto, acomodado no canto. Não ousava aproximar-me, mas temia afastar-me. Sabia que havia alguma coisa que eu precisava saber, que não poderia deixar passar, como uma oportunidade de convivência insuperável.
Então, ele falou. Voz trêmula, lábios umedecidos pela água, que escorria no canto da boca, como um visgo de lesma.
– É a morte. Não me deixe aqui sozinho. Esta é a verdadeira morte.
Tive náusea da boca visguenta. Mas foi só por um momento. Sorri, tentando ser amável. Peguei-lhe o copo da mão, coloquei-o sobre a mesa e perguntei se não queria mais água. Não me respondeu. Ficou ali, parado, me olhando, querendo dizer coisas que não conseguia explicar. Ou talvez, quisesse apenas ouvir-me.
As cantorias da casa ficavam mais intensas. Senti-me atraído por elas. Um cheiro de incenso inundava o ambiente, enchendo o corredor de fumaça. Tambores anunciavam um ritual mais dramático. Meu coração batia forte.
Afastei-me um pouco, voltei-me para ele, a cabeça pendia. Devia dormir.
Na porta, ainda apaguei mais alguns símbolos. Corri corredor à fora, na tentativa de não perder nem uma cena.
Ao chegar na sala, ainda na penumbra, observei as pessoas sacolejando o corpo, acompanhando o ritmo. A vizinha girava sem parar no meio do grupo.
Aproximei-me de minha mãe que perguntava onde eu havia andado.
Não respondei. Arregalei mais os olhos, agora, hipnotizado. A vizinha continuava girando, sem parar, gritando frases desconexas, pedindo bebidas, fumando charuto e de repente, num grito abafado, quase sussurro, desaba no chão. Imediatamente tapam-lhe o rosto com um pano preto e um risco de pólvora é aceso ao seu redor, enquanto os atabaques funcionam com fúria e as pessoas cantam incessantemente, quase gritos.
Em casa, ouvi os gritos de minha mãe, não preocupada com o que presenciara, nem com a vizinha, nem com o ritual, mas com o meu próprio, que organizara.
A boneca de minha irmã incendiava, enquanto cantava canções tão parecidas com aquela que ouvira naquela tarde.
Entrei inopinadamente na sala, pernas bambas, suor na testa, nas mãos, lábios trêmulos, vexado. Elaborei desculpas. Desviei das centenas de olhares que investigavam curiosos. Fazia calor e eu vestido da cabeça aos pés com agasalhos pesados, maleta na mão, celular no bolso, relógio descolando da pulseira. Investi até uma cadeira, abri a pasta, espalhei papéis, fiz barulhos estrondosos no silêncio absoluto.
O palestrante pigarreou, deu alguns passos, me olhou de soslaio, retomou o tema, irritado. Juntei o que pude, caído ao chão, esparsos documentos, entre fotografias, pregos, alfinetes, alicate de unhas, chaveiros. A cadeira rangeu, eu me abaixei devagarinho, mas empurrei os pés de metal, riscando o piso. Foi o suficiente para cessar a palestra.
Ele me olhou novamente, e quase em súplica, exigiu silêncio, apenas com os olhos. Todos os demais viraram os pescoços, narizes, ventas e resmungos em minha direção. Retorci-me levantando a pilha de objetos do chão, fazendo movimentos de malabarista, temendo aumentar o ruído. Ajeitei-me na cadeira. Aquietei-me. Só por fora. Coração alertava, espaldando-se dentro do peito, batucando que nem índio em dia de festa. Estava pálido, acho que até os lábios embranqueceram. Era desafio grande ficar ali, atrasado, danoso, inoportuno.
O mestre recomeçou. Tentei prestar a atenção, mas os pensamentos se confundiam e se misturavam na minha mente, fazendo um entrelaçado de imagens que eu não conseguia sintonizar. Respirei fundo, imaginando o ar inspirado invadir o cérebro e limpar de vez as teias de aranha, há tempo engendradas, ocupando espaços indevidos. Expirei com força para fora, expelindo o negativo, numa nuvem preta, maciça, intensa. Foi um som tão forte e inesperado, até por mim, que o homem parou novamente, desta vez assustado, talvez pensando que eu estava passando mal. Pedi desculpas, expliquei que estava tentando relaxar, me concentrar para entender bem a palestra, mas o som saiu assim forte, assim intenso, assim inesperado que até eu me arrepiei. Parecia espírito do além.
O palestrante era baixinho, agora reparava bem. Foi bom falar, esvaziei um pouco a ansiedade. Tanto que pude observar as coisas, até o jeito dele. Nariz adunco, boca grande, lábios finos e olhos pequenos, salientes, caídos das órbitas sob uns óculos leves, na ponta do nariz. O cabelo, entradas enormes, clareiras imensas na floresta rala de pelos alinhados para trás. A voz era forte, gutural, enérgica. Falava em... em que mesmo? Ah, inserção de valores. Como assim? Natureza morta? Seria sobre arte, pintura, ecologia? Nada disso, o assunto versava sobre política, mas tudo é política. Até o ar que respiramos está atracado à política. A água, cada vez mais rara. E o tratado de Quioto?
Faltava-me ar, naquele momento. Pensar nisso me dava aflição. Até alergia. Pior, comecei a fungar. Fungar baixinho, pigarreando de leve, tentando conter o espirro. Parecia cacoete, mas sempre que alguma coisa me incomodava, vinha aquela cosquinha irritante na garganta, aquele arder nos olhos, uma tosse iniciante decidida a permanecer ou um monte de espirros magistrais, exagerados, exorbitantes. Respirei fundo novamente, mas desta vez, sem nenhuma técnica para não acordar a plateia. Mas alguma coisa me irritava, porque o nariz coçava, a tossesinha surgia no fundo da garganta, aparecendo desanimada no início. Eu, evitando o pior. Se me desse conta o que me fazia mal, cessava definitivamente a alergia. Mas eu ainda não sabia o que era.
Olhei para alguns participantes que estavam mais próximos, eu na cadeira, no corredor do meio. Ao me lado, fileira de dois de um lado, e no outro, outras duas alas totalmente preenchidas. Um rapaz negro do meu lado, uma tarja na testa, segurando os cabelos. Olhar compenetrado, jeito estudado de intelectual, postura adequada, pernas esticadas, mãos nas coxas, como esperando a apoteose final, o confronto das ideias, o debate, a resposta definitiva. Ao seu lado, uma moça, cara de estudante, óculos pesados sobre o nariz arrebitado, boca entreaberta mastigando vez que outra um lápis com o qual devia fazer anotações. Cabelos castanhos, luzes, soltos sobre os ombros, mãos finas e pequenas, unhas pintadas de rosa. No chão uma mochila gorda, cheia de penduricalhos, inclusive um chaveiro com um ursinho na ponta.
Parei de examinar a plateia, porque ouvi um hã hã de censura, do senhor que estava ao meu lado, sentindo-se incomodado pela minha cabeça virada em sua direção, nariz quase colado no dele, o qual nem tinha percebido. Tinha um bigodão, desses de contornar lábios, quase se juntar na testa, olhar aguçado, perspicaz, interessado. No colo, um laptop, conectado à Internet. O reflexo não me deixava ver, mas eu jurava que era um chat em que participava, dissimulado, aparentemente anotando informações. Então resolvi perguntar: –quem é ele? – apontei para o palestrante.
O homem parecia ter sido atingido por um bombardeio no Líbano. Sacudiu o bigode, mexendo a boca, aflito. Olhou-me com censura. Foi falar alguma coisa. Mas espirrei. Espirrei uma, duas vezes, três, inúmeras vezes e um muco insistente corria-me do nariz à boca, misturando-se ao queixo e eu passando as costas da mão, desolado.
O orador interrompeu a palestra mais uma vez. Ia pedir para eu afastar-me, tentar melhorar lá fora, talvez depois voltar, mas não lhe dei o prazer de dizer-me tudo isso.
Levantei-me, fiz um gesto explicando a alergia, um aceno qualquer, nem precisava e ia afastar-me, empurrando a cadeira devagar. Nisso, o bigodudo afirmou: – é um candidato. Está fazendo campanha. Nós somos seus correligionários, entende?
Ele foi generoso e paciente. Talvez quisesse a minha aprovação. Mas agora, eu tinha entendido o motivo da minha alergia. Puxei a ponta da camisa e assoei o nariz, com náusea. E me fui.
Custou-me entender como se processam os pocionamentos e suas repercussões na mente das pessoas. Como enfim, acontece ou não o entendimento das discussões que colocamos em pauta, seja nas redes sociais, no grupos em que interagimos, nos encontros com amigos, etc. Custou-me perceber que as coisas não fluem com a delicadeza das flores da primavera, pelo menos, aquela de nossos sonhos. As coisas seguem o seu caminho muitas vezes tortuoso e árduo, de acordo com a experiência, conhecimento, tradição, cultura e apreensão da realidade de cada um.
Então, entendi que cada pessoa reage de acordo com a sua realidade interior, apreendida, assimilada e traduzida segundo os seus princípios e maneiras de pensar. Há muitas formas de expressar o que sentimos ou pensamos, mas para que haja a comunicação na íntegra, é preciso que os canais não sejam obstruídos por quaisquer ruídos. É preciso que o que pensamos ou sentimos não se manifeste apenas como um simples palpite ou uma opinião sem fundamento histórico, sem a compreensão de todos os aspectos que compõem o tema proposto. Precisamos estar bem embasados para expressar o pensamento. Nem sempre porém, o outro lado do canal possui esta mesma apreensão da ideia proposta. Ou mesmo, não possui conhecimento profundo sobre o tema, que o respalde para uma discussão fecunda. Pode ocorrer que tenha apenas um conhecimento superficial ou moldado na sua subjetividade, a partir de convicções enraizadas em sua cultura pessoal. Não se quer dizer que os ruídos produzidos sejam favoráveis (adequados ou melhores) de um lado (emissor) ou do outro (receptor). Os ruídos atrapalham a comunicação, entretanto, apesar dos ruídos com discordâncias pontuais, há que se levar em conta as discordâncias internas. Como modificar o outro, se pensa diferente? Como transformar o modo de pensar construído a partir de uma cultura enraizada desde a infância, ou passada por gerações e gerações? Como desconstruir toda uma história apreendida através de experiências pessoais e sociais que se manifestam sobrepondo a conceitos que não são aceitos por aquele grupo?
Claro que existe a evolução do pensamento, dos costumes, das ideias, para isso existem as vanguardas e as mudanças, muitas vezes paulatinas, mas firmes no andar da visão da humanidade. Mas nem tudo ocorre na urgência que queremos. Nem tudo é verdade absoluta. Nem tudo é criação única. Nem tudo é apropriação do bem comum ou do malefício estudado.
Custou-me entender a dificuldade em aceitar os meus preceitos, minhas ideias, meus pontos de vista por pessoas que possuem trajetórias tão semelhantes a minha. Mas, por fim, compreendi, que elas abstraíram o que a história familiar, a escola e princípios religiosos ou não-religiosos produziram na sua formação pessoal e lhes indicou conteúdos filosóficos que para eles representam o que seria o melhor para o planeta, para o país, para a cidade, para a comunidade, para a família, para o ser humano. Houve uma apreensão diferente da vida, tomando como em sentido amplo e geral do conhecimento adquirido, constituído de conhecimento acadêmico, empírico, valores familiares e princípios herdados. Entendi por fim, que todos tomamos os caminhos que consideramos os melhores para o país, para o bem estar humano, para a sociedade em que vivemos, para a nossa pequena comunidade social ou familiar e que nem sempre coincide com os caminhos escolhidos através de diferentes apreensões da realidade.
Deixando de lado os que somente dão palpites via de regra, embasados apenas em opiniões da mída ou os que exercem opiniões, porém sem o respaldo do conhecimento mais profundo, concentramos nossa atenção para os que se estabelecem uma relação de conhecimento profícuo e apreensão da realidade. Neste último caso, percebemos que pode ocorrer uma consonância e presumível identificação de ideias, desde que ocorra a reflexão e que cada um, a partir de suas apreensões pessoais da realidade, consiga fazer uma relação entre as suas opiniões próprias e as dos demais, embasados na apreensão mútua da especificidade do tema. Neste caso, descartam-se as paixões desenfreadas, tais como as disputas inócuas por futebol, pois cada um verá apenas as possibilidades de seu time, ou a discussão de dogmas religiosos, que jamais chegarão a um ponto de concordância. Por outro lado, nas considerações baseadas nos estudos sociais, na realidade que nos cerca, juntamente com as nossas realidades e culturas pessoais, pode ocorrer a sedimentação da sementes plantadas das discussões, cujos brotos vão robustecendo a democracia e aos poucos descortinando uma verdade que nos liberta. Aí, acontece a ruptura da lógica da arrogância, do preconceito, do conhecimento de uma só face, da verdade absoluta. Aí acontece a união de ideias.
Mas também me dei conta, que isso acontece em grupos muito pequenos. Grupos que divergem e que através de estudo e contemplação de paradigmas diferentes, aceitando ou discordando, mas interagindo através do raciocínio, do conhecimento e da percepção da realidade como ferramenta fundamental que possibilita uma tentativa de construção da verdade multifacetada. Nesta construção, deve ocorrer uma fenda que leve à libertação das amarras dos preconceitos, da arrogância, da visão única de pensar e de se bater numa única tecla, aquela que muitas vezes não pontua a frase final do ponto de vista.
Portanto, aprendi, que as nossas realidades e formas de registrá-las não devem ser impostas. Devem ser discutidas, analisadas, afagadas para que se desenvolvam numa concepção de ideia, no sentido de criar todas as perspectivas de realidade do mundo, numa intenção filosófica de como viver e vivenciar as situações que experienciamos. Entendi que cada um reage de acordo com suas convicções, sua compreensão da vida, seu caldo cultural construído desde a infância e sua história repassada por gerações, assim como eu que tenho a minha cultura formada pelo que apreendi. E que bom que seja assim, que todos tenhamos as nossas verdades, mas que não a queiramos impor a ninguém, a não ser que o nosso conhecimento adquirido induza à reflexão e opções de transformar a realidade de cada um. Se não pudermos fazer isso, ou por nossa incapacidade ou pela insuficiência do outro, que nos calemos.
Não posso impor ao outro que traz consigo todo um arsenal de experiências internas, a minha realidade política, os meus desejos políticos ou religiosos, as minhas ideologias. Posso sugerir, mas nunca impor. Posso tentar refletir, mas nunca manifestar apenas os aspectos inerentes a minha filosofia e não conceber a do outro. É na busca refratária de conhecimentos que se encontra o bordado capaz de tecer um mapa que sirva de bússola. Uma bússola somente. Sem ser guiada, porque possui os seus próprios paradigmas e seus próprios destinos. Pelo menos, aqueles que desafia a humanidade para que se torne melhor.
Camilo tinha esta desagradável mania de não gostar do que tinha ou do que havia para fazer. Se levava merenda de casa, para a escola, preferia a comprada, de preferência a dos amigos. Se havia futebol, preferia jogar dama, num canto do pátio e para isso, incitava um de nós a ficar com ele, possessivo que era, fingindo sempre precisar de um amigo. Caso tivéssemos educação física, a malfadada ginástica, dava um jeito de investirmos num futebol de salão, convencendo o professor, seja em que pé estivessem os seus humores.
Mas ele era assim, alegre, persuasivo, companheiro. Gostávamos de andar juntos, dar boas risadas de tudo e de todos, imaginar a professora assustada, puxando a saia godê, ao passar na esquina, fugindo do vento insolente que insistia em desafiar a sua paciência. E agradar nossa fantasia.
Tínhamos prazer em assistir o filme que a escola proporcionava nos finais de semana, especialmente, nos domingos, como continuidade da educação religiosa, obrigando-nos desta forma a participar da missa.
Camilo, entretanto, além de extrovertido e alegre, era um pouco cínico. Ele sabia como agradar aos padres, às professoras, ao diretor da escola. Tinha um jeito especial de se comunicar e deixar tudo tranquilo, leve e solto para o seu lado. Eu, ao contrário, gostava das coisas todas no lugar, muito bem esclarecidas, apesar de que fazia das minhas, sem me importar contudo em agradar a ninguém. Temia ser descoberto, pego em flagrante, como nas diversas vezes em que fugíamos na hora do recreio, pelo simples prazer de fazermos um lanche num bar, fora da escola. Apenas comer um queque e tomarmos refrigerante. Voltar depois, sorrateiramente, coração assaltado, boca seca, passarmos pelo porteiro, escondidos sob a portinhola que separava o balcão de entrada e que conduzia ao pátio, para entrar na sala de aula, como se nada houvesse acontecido.
Na verdade, o porteiro fazia vistas grossas para nossas escapulidas, mas esta condição amistosa jamais nos vinha à tona, felizes que estávamos em nossa arrogância de enganar os superiores. Nada restituía nossa liberdade, nada a interrompia nem desempenhava qualquer atenuante para nossa felicidade, que nos enchia os corações e disso nem nos dávamos conta.
Nunca me deparara com o lado triste da vida. Nossa infância era povoada de sonhos e certezas absolutas, que nos deixavam tão cansados que nada víamos, à noite, a não ser dormir para acordar no dia seguinte e recomeçar tudo de novo. Novas risadas, novas estripulias, novas escapadelas, novos confrontos com o porteiro, novas explicações. E finalmente a saída triunfante de quem vence todo e qualquer obstáculo.
Mas naquele dia, nada disso aconteceu. A não ser uma mensagem em casa, um outro colega anunciando uma tragédia, uma coisa triste, palavra que não havia em nosso vocabulário. A morte chegara, assim de improviso, sem pedir licença ou antecipar a sua vinda com um presságio qualquer. Viera exclusivamente para Camilo, dotado de uma doença qualquer que levara consigo a alegria que sentíamos e da qual eu não dispunha de meios para me afastar. Por isso, olhei para o colega, elucidei como pude a mensagem, irritei-me com a riqueza de detalhes, bordados de curiosidade e desliguei a cena. Não fui ao enterro. Não vi Camilo pela última vez. Acovardei-me. Pelo menos, de Dona Agripina, eu vi os pés no meio do corredor da igreja, na missa de corpo presente. Foi a minha primeira e tênue visão da morte. Mas de Camilo, guardei o jeito alegre de se portar, de sorrir, de fingir-se solícito e brilhante, de ser o que era e o que queria ser. Não foi desta vez que enfrentei a morte. Deixei-a passar, covarde, sentido, dizendo para mim mesmo que tudo continuava como antes.
Nem que se diga, que lhes faltou o peito, nem que a fome durou;
nem que se saiba que a vida é árdua e a escola seja talvez o único acesso à dignidade.
Nem que os pais não lhes provejam o amor ou que o abandono se torne perene.
As crianças deveriam sempre vencer as dificuldades, sobreviver e se tornarem homens e mulheres mais fortes e guerreiros.
No entanto, às vezes, o homem no seu poder canhestro e torpe, investe na vida dos povos, interferindo em sua trajetória. E o poder se revela na intolerância religiosa, na ganância dos modelos econômicos, no imperialismo dos governos.
Gostaria de falar de nossas crianças em seu dia, de seus sorrisos, suas procuras pelo abraço e carinho, seus encontros e descobertas.
Mas como esquecer as que aparecem em nossos monitores diariamente, pedindo socorro ou registrando a sua falência. Como esquecer entre tantas, a menina praticante de Candomblé que foi agredida na escola, vítima de preconceito religioso, por outras de sua idade, que também são vítimas, pois repetem a norma do preconceito arraigado de uma sociedade em decomposição moral? Pensei nos pais dessa menina.
Como esquecer o menino sírio Ailan Kurdi, cujo corpo apareceu numa praia da Turquia, em setembro. Seu corpinho frágil registrando o sectarismo grotesco da humanidade, destoante dos melhores sentimentos fraternos. Como esquecer o irmão de 5 anos anos que se perdeu no mar e morrera como tantos outros.
Pensei nas crianças do Brasil. Pensei nas crianças do mundo.
Pensei no pai do menino, que na tentativa de fugir da Síria, imaginava um futuro para a família. Lembrei então da música “Cantiga de ninar” de Raul Seixas, cuja última estrofe enfatiza o que meu coração doído expressa:
"Fiz meu rumo por essa terra
Entre o fogo que o amor consome
Eu lutei mas perdi a guerra
Eu só posso te dar meu nome”.
O pai sírio que lutou para chegar à ilha de Kos na Turquia, perdeu a guerra. Nada mais lhe restou, nem a mulher, nem os filhos. Apenas lhes deu o nome. O nome de refugiado. Refugiados são todas as crianças, cujo direito de viver a infância lhes é tolhido, quando a intolerância, o racismo, o ódio, a esquizofrenia sexual de alguns, a violência e a incompetência das instituições impedem que sejam realmente crianças e se tornem apenas uma trajetetória interrompida. Uma ruptura da lógica infantil. São refugiados em seus próprios sonhos.
Quero esta mulher perto de mim, ouriçando meus cabelos
Sentindo seu bafejo próximo, tão próximo que o aroma arrepia-me os pelos
Quero-a mais próxima, levando tudo por diante
Não a quero calma, pacata, silenciosa
Quero-a guerreira, firme e enérgica
Quero que espalhe a luz, que empurre as folhas, que vergue os troncos
Quero-a resistente, alvissareira e alegre.
Quero-a, sobretudo num clima ameno, que antecipe o verão.
1º lugar : Vida de gado
2º lugar: As rádios locais e as tvs regionais : os sonhos e as mudanças culturais
3º lugar : A lua, a Apollo 11 e minha avó
4º lugar: Para quem "a paz de Cristo”, não passa de um cumprimento social
5º lugar: Como se desenvolve a criação
6º lugar: Desenhos, história e castigo
7º lugar : Um natal distante
8º lugar: Metáforas cruéis : desqualificação das mulheres e negros
9º lugar: A fuga de meu cão
Se a noite gira ad eternum
e os homens brilham ao luar
por que se encantar com as luzes
se nada podem provar?
mentiras que saem dos termos
dos que proclamam a luz
só trazem contornos enfermos
do apelo que a ti seduz
nao temer as verdades obtusas
nem ferver as entranhas nas febres
por certo é viver às escusas
da lei maior que entoa
do povo que vive prenhe
de um mundo que clama à toa
Havia um clima de angústia e alguma agitação na casa. Foi no dia do casamento dos dois.
Minha avó estava deitada em seu quarto. Eu tinha a impressão de que ela observava a minha mãe com um olhar de súplica e até um pouco de desconfiança. Talvez imaginasse que aquele casamento pudesse curar a sua doença, ou pelo menos, não a matasse de vez.
Minha mãe, ao contrário, por mais que evitasse demonstrar, apresentava uma inquietação em cada movimento ou conversa. No fundo, ela sabia que a morte era inevitável. Apenas, desejava que a mãe não sofresse tanto!
E aquela falta de ar que não passava, aquela angustiosa espera de que alguma coisa acontecesse e por um milagre, ela voltasse a conversar normalmente, a respirar com fluidez, voltar a sorrir.
Minha mãe chorava pelos cantos, mas na frente dela, sorria e dava esperanças.
Meu avô parecia não entender bem aquela história, mas aceitava pacificamente a ideia do casamento. Não sabia porque a filha inventara um casamento religioso, tanto tempo depois, velhos e cansados, que diferença fazia? Mas se é o que se devia fazer, que se cumprisse.
Naquela época, o homem estava prestes a ir à lua. Era uma esperança para a humanidade, a certeza de que muitas coisas mudariam, talvez doenças fossem curadas, ou em consequência dessas viagens espaciais, até se descobrisse alguma forma de vida. Não se conhecia muito do assunto, mas tínhamos certeza de que alguma coisa boa viria daquelas viagens interplanetárias. O homem riscando os céus, descobrindo novos mundos, enfrentando o espaço. Havia slogans na TV, na rádio, nos jornais. Todo mundo falava na era espacial.
Eu ficava dividido entre estes dois mundos. O mundo imaginário, com um quê de realidade, bastava que o homem pisasse na lua para tudo ficar real e decisivo. Por outro lado, havia o meu mundo pequeno, real, no qual as noites eram intermináveis, em de algum modo, participava das dificuldades de meus pais, na tentativa de uma melhora de minha avó, na busca por médicos, por remédios especializados ou uma provável hospitalização.
Até que marcaram o dia em que a Apolo 11 rasgaria o céu em direção ao astro tão almejado, no caso o satélite natural da terra.
No meu mundo particular, marcaram a data do casamento. Era uma noite fria de maio. Um maio que se arrastava em suas derradeiras noites, porque nas noites as coisas aconteciam, nas noites em que minha avó gravitava como um pêndulo, numa falta de ar que ia e vinha, sem tempo da oscilação parar. Um maio quase junho parecendo persistir no frio. Um vento que também oscilava lá fora.
O Padre Costa chegou e aproximou-se dos dois, sorrindo. Meu avô o olhava desconfiado, sentado ao lado da cama.
De meus olhos de criança, observei a cena, através de uma janela que dava para uma área lateral. O cenário pronto, os protagonistas aptos e os personagens em volta.
Com a presença do padre, minha avó parecia ter melhorado da falta de ar. Uma tia de olhar intrigado afastava-se do quarto, em direção à cozinha. Não acreditava que nada mudasse. Para ela, tudo não passava de crendices. Minha mãe nada argumentava. Ela sabia que a esperança era quase nula, mas por que não levá-los ao encontro com o sacramento, por que morrerem sem esta oportunidade?(No fundo, era o que pensava).
O padre realizou a cerimônia. Eles, sentados e encostados na cabeceira da cama. O ritual consolidado. Cumprimentos. Sorrisos.
Quando o padre foi embora, houve um certo alívio para a tia descrente e parece que tudo se aquietou.
O maio terminou. Junho chegou rápido e foi um dos meses mais frios do ano.
Em 20 de julho de 1969, o homem pisou na lua pela primeira vez.
Minha avó ainda resistiu um tempo, até para descrer daquela façanha. E numa noite de julho, dois anos depois, ela também se foi. Foi uma noite fria, tão fria quanto àquela.
O dia? Foi cinzento.
Desci do ônibus enfrentando aquela pequena multidão envolta na bruma. Vestiam roupas pretas. Esfregavam as mãos, tiritavam de frio. Uns fumavam, absortos, aquecidos na garganta pelo poder da chama. Pigarreavam às vezes. Meu pai puxava-me o braço, ansioso. Não se sentia bem entre eles. Parecia querer fugir do lugar. Ouvi as badaladas ao longe. Seria hora da missa? Senti a mão pesada de meu pai em minha cabeça. Que queria ele? Abrigar-me da cerração, proteger-me do frio, apressar-me o passo?
Caminhamos rápidos, pela rua pavimentada em cinzas de carvão. Ele, passos largos, pernas compridas. Eu, aos tropeços, pernas curtas. A pequena multidão já se desfazia ao longe. Quase não os víamos e já nem sabia se era noite ou tempo ruim. O frio congelava o nariz. Dei mais uma volta na manta, ajeitei o casaco nos ombros, puxei a gorra para os olhos. Meu pai também acertou o chapéu, que custava-lhe ficar à cabeça. Minhas botinas estavam gastas. Sentia na planta dos pés, os pedregulhos da rua, me espetando. Olhei para os pés enormes de meu pai. Não tinha problemas. Aqueles coturnos deviam ser herança de guerra, tão reforçados estavam. Se houvesse qualquer ser vivo por ali, ele esmagava impunemente. Não tinha o hábito de olhar para o chão. Principalmente, quando estava ansioso, como agora.
Na primeira esquina, guarnecida por casas maiores, ele parou, olhou para os lados e disse aliviado: – é ali.
Tentei ficar feliz, mas não estava. Não queria ficar naquela casa antiga, cheia de lembranças dos mortos, sempre citados por tia Clotilde. Só a viagem me interessava. Entrar naquele ônibus velho, atravessando os campos, vendo as luzes da cidade se apagando aos poucos ante meus olhos. Isso me bastava. Por que será que ele viajara sem minha mãe? Ainda lembro seus olhos brilhantes, querendo dizer qualquer coisa que não se atrevia. Talvez tivesse chorado. Agora estávamos ali, os dois, como dois homens, enfrentando as lembranças de tia Clotilde.
Quando chegamos, a escuridão era quase absoluta, não fosse a luz fraca do lampião de querosene, cuja chama se via pela janela. Ela chegou, apertou a mão de meu pai, que sorriu polidamente, sem muito entusiasmo. Em seguida, ela o abraçou, chorando e ele quase não retribuiu o abraço. Ficou assim, meio parado, sem saber o que fazer com as mãos e percebi que ele olhava para mim, como se pedisse socorro. Ela o deixou, abaixou-se até mim e apertou-me com força as bochechas, já recuperada pelo desafogo. Franzi a testa de dor. Ela sorria, satisfeita. Mandou que entrássemos, apresentou três amigas que estavam junto à mesa, quase às escuras. Elas mal levantaram os olhos, quando muito as sobrancelhas. Não arredaram pé. Ficaram mexendo em rendas, linhas, agulhas. Parece que costuravam. Tia Clotilde sentou entre elas. Pediu que nos acomodássemos a sua frente. Foi até o fogão de lenha, trouxe a chaleira tisnada e serviu um café aguado, sem perguntar se queríamos. Na cesta de vime, bolachas duras. As três mulheres nem olharam para o café. Continuaram na labuta e pelo que pude ver melhor, já com o olhar acostumado, desenredavam fios. Ou quem sabe, faziam novelos? Meu pai serviu-se de açúcar mascavo, gosto de rapadura. Olhei para tia Clotilde e vi que ela ensopava a bolacha no café. Depois, sorvia o mingau, fazendo um barulho estranho, um chiado, quase um assobio.
Bati no braço de meu pai, querendo falar alguma coisa. Estava apertado. Precisava ir ao banheiro, mas temia falar na frente daquela gente toda. Meu pai empurrou-me o braço e perguntou: – como vão as coisas?
Antes que ela respondesse, puxei a manga da camisa, pedindo ajuda. Ele não respondeu, continuou o assunto. Depois, explicou porque viera. Ela o interrompeu, rápida. – Não me diga, não me diga. Eu sei porque veio e ainda não sei, não sei se quero fazer isso.
Depois, como se uma luz a iluminasse a mente, chamou a atenção de meu pai. – Escuta o menino. Vai ver que quer se aliviar. Aliviar? Bem que ela tinha razão, se não fosse agora, tudo iria por água abaixo. Literalmente. Quando ele perguntou o eu queria, já tinha levantado da cadeira de palha.
Ele me seguiu. Saímos para a rua. Nem cheguei ao banheiro que ficava lá fora. Fiz o que precisava ali mesmo, próximo à soleira da porta, vendo meu pai encobrindo-a quase que completamente com o corpo. Ao longe, avistava movimentos escuros de vacas que pastavam, pacientes. Perguntei: – aqui não tem pia?
– Não faz perguntas. Entra.
Voltamos para o café. As três já não estavam à mesa. Espalhavam-se pela casa. Uma varrendo a cozinha, outra empilhando as louças, guardando-as com cuidado. A outra ronronava pelos cantos, atirada num sofá velho. Esta tinha uma berruga bem na ponta do queixo e eu jurava que vi uns chumaços de pelos pendurados do nariz.
Os dois, meu pai e tia Clotilde sentaram-se novamente, frente a frente. Eu, do seu lado, enchi o café com aquele açúcar escuro e da calda, lambi a ponta da colher. Ouvi os dois conversando, mas não prestava a atenção. Procurava encontrar as outras que passavam pra cá e pra lá como baratas tontas, seguindo a intuição. Só uma ficara abandonada, deixando-se embeber de tédio.
Levantei-me da mesa, limpei a boca com o dorso da mão e aproximei desta. Cheguei bem perto, mas pouco via, pela luminosidade fraca do ambiente. Pela janela, distinguia a lua, triunfal, mexendo-se como elas, de um lado para o outro. Cada vez que eu olhava, achava que ela se mudava de lugar. Era possível isso? Ou eram as nuvens? Que importava agora? Quando desisti da mulher, ela me segurou pelo braço, firme. Estremeci. Senti um arrepio instantâneo. Forcei a mão, tentando me soltar, mas ela era forte e decidida. – Quem é você?
Tia Clotilde me salvou desta vez, chamando a atenção da mulher. Eram criaturas estranhas. Percebi um certo sorriso na fisionomia de meu pai.
Afastei-me um pouco, olhando para o nada que cada vez ficava mais escuro, um negrume. Se é que o nada tem cor. Ouvia sem dar muita atenção a conversa dos dois. Tia Clotilde comentava: – o Osvaldo, osso duro de roer. Mas se foi.
Meu pai indagava: – e o Sandoval? O alemão forte como um touro?
– Esse aí? também osso duro de roer, mas se foi como os outros.
Pequeno silêncio e meu pai comentou, taciturno: – do Horácio, eu soube.
Tia Clotilde levantou as sobrancelhas e posso jurar que uma lágrima correu rápida, pelos olhos. Assoou o nariz vermelho. Resmungou: – esse inventou de protestar, os milico levaram. A tal da ditadura.
E ela foi enumerando todas as faltas, todos os vazios, todos os homens fortes da terras, provavelmente irmãos, cunhados, marido, o filho. Parece que não restara nenhum. Ossos que ruíram. E concluía, resignada:– só eu to ficando, velha, encarquilhada, esquecida no mundo.
Procurei não encará-la. A chama do lampião lambia os cantos do vidro e fazia figuras no teto, bordado em picumã. Imaginava os tios, lá em cima, pairando curiosos, indagando sobre a gente. A velha do sofá esticou as pernas na minha direção, como se com eles fizesse uma forquilha para me prender. Sentia que a minha presença a irritava.
Voltei para a mesa e afundei a cabeça num travesseiro de banha. A da vassoura atravessava a sala na penumbra, sem desviar de qualquer obstáculo, já que parecia conhecer os quatro cantos. Eu não. Afastei-me depressa e sentei-me assustado, perto de meu pai. Percebi que tia Clotilde se ressentia com alguma coisa e agucei rápido os ouvidos. – Já lhe disse que agradeço a visita, mas to bem aqui.
É só para descansar um pouco.
Ela reagiu, assustada. – Não quero ficar maluca com aquela gente. Lá, não tem direito de nada. Polícia de todo o lado.
Meu pai retrucava que ela se referia ao exército, que era comum em dias de ditadura. Que ela poderia ficar tranquila. Mas pelo jeito, ela já tinha decidido tudo em sua cabeça, antes mesmo que ele perguntasse. Uma baforada bem perto do meu ouvido. A que empilhava a louça, parou um pouco afastada, ouvindo a história, não tão longe que seu cigarro não ocupasse o nosso oxigênio. Fumava e sacudia os quadris pra lá e pra cá. Balançava-se e fumava. Os dois silenciaram, acho que pela presença da fumante. Olharam ao mesmo tempo para ela, mas foi só um segundo. Meu pai quebrou o silêncio. Amanhã voltaríamos.
Então, passei a imaginar a volta, sentado ao lado da janela, observando tudo que passaria por mim. Meu pai bateu no meu ombro, exigindo que me levantasse, iríamos para o quarto. Dormir? Já? Antes de levantar, perguntei: – que é ditadura?
Meu pai abriu a boca, faltaram palavras. Calou-se. A velha concluiu: – é ir pra cidade.
A do sofá começou a dormir. Babava despudorada. A da vassoura voltou a varrer, ensandecida. E a fumante, parou, um pouco, pensando, extraordinariamente calma.
No quarto, quem desabafou foi ele: – v
Quando crianças, via de regra, temos um mundo interno muito rico, e um tanto dissonante com a realidade. As crianças vivem num mundo imaginário e interagem de acordo com a interpretação que estabelecem para si mesmas. Para os dias de hoje, é absurdo se pensar que alguém, até mesmo uma criança, possa imaginar que uma rádio local possa ter um elenco refinado de artistas, cantores, atores e atrizes que lá permancem para executar suas obras, fazer suas perfomances e encantar os ouvintes. Sabe-se que atualmente, tudo é gravado e a maioria dos programas vem dos grandes centros, principalmente do eixo Rio-São-Paulo onde a dramaturgia e os grandes shows musicais acontecem. Onde a música tem realmente importância comercial e os grandes artistas se salientam a partir destas “trincheiras" de arte e marketing. Por essa cultura dos grandes centros, as crianças de hoje e as pessoas em geral, sabem que a maioria dos sucessos vem de lá, que a arte regional é praticamente esquecida, com raríssimas excessões. As crianças, na verdade, nem pensam nisso. Elas assimilam esta situação, bem como os adultos em geral, que procuram nas páginas de seus jornais locais, notícias e fofocas de celebridades das grandes emissoras do centro do País, sem contar os sites que as popularizam e transformam em celebridades, pessoas que tem muito pouco ou nada a oferecer em termos de arte e cultura.
Mas, antigamente, muito antigamente, pelos idos dos 60 e 70, as coisas eram um pouco diferentes. A cultura regional era diversificada e havia programas regionais nas rádios locais e estaduais com muita audiência. A própria tv da capital tinha a sua programação regional nos horários nobres. A TV Gaúcha, por exemplo tinha uma programação de shows depois da novela das oito (novela que não era apenas da Globo, mas de outras emissoras, como a Excelsior, até se formar a sinistra rede nacional, onde se perdeu a criatividade regional e o povo brasileiro se padronizou conforme a ideologia doutrinária da emissora). Aliás, a TV Excelsior é um capítulo à parte na história da TV brasileira, pois foi banida do cenário televisivo porque seus administradores se opunham à ditadura. Mas isto, pode ser tema de outra crônica. Outras emissoras, como a TV Piratini, produzia peças teatrais com atores locais e shows aos sábados e domingos em horários que hoje são preenchidos pela programação das grandes redes, incluindo os programas religiosos aviltantes, uma troca fabulosa de benefícios financeiros.
Voltando à TV Piratini, que foi pioneira no Rio Grande do Sul, nos anos 60, ela apresentava uma programação regional extensa, incluindo o Repórter Esso, que era transitido em Porto Alegre por Ênio Rockenbach. Também havia o programa sobre futebol, chamado em "Mangas de Camisa”. Na culinária, o programa de Mimi Moro, além de outros programas populares, como o ‘Clube do Guri”, "TV Samba", com Sayão Lobado, "Grande Show Wallig", um programa realizado ao vivo, nos domingos, com astros da música local e até internacional, acompanhados de uma orquestra.
Na década de 70, havia o programa feminino "Elas por elas”, apresentado de segunda à sexta às tardes, cuja abertura trazia o tema “Un homme et une femme” de Paul Mauriat, do filme com o mesmo título. . Aliado à programação regional, havia a programação nacional através da TV Tupi. Por outro lado, a TV Gaúcha (atual RBS), trazia atrações ao vivo, como o Show do Gordo, com Ivan de Castro, GR show, com Glênio Reis, o show de luta livre, aos domingos, o programa Cidades frente a frente, na qual Rio Grande concorreu com Canoas e muitos outros programas. Na Tv Difusora (atual Band), entre outros, se destacava o "Programa Júlio Rosemberg", com atrações locais e nacionais, “bem como alguns programas infantis, como o "Recreio", apresentado pela Tia Bita e o menino Fabiano ” e mais tarde, o Carrossel Bandeirantes, apresentado pelo mágico Tio Tony. À noite, um programa de reportagens, chamado Camera 10 e ao meio-dia, um programa que ficou muito conhecido, chamado Portovisão que concorria diretamente com o Jornal do Almoço da TV Gaúcha.
Embora houvesse muita participação popular, as rádios locais também tinham a sua programação bem estruturada e com sucesso, inclusive oferencendo dramaturgia, que na época, era ao vivo. Na Rádio Minuano, havia uma peça teatral apresentada aos domingos, que se destacava na programação e os atores eram rio-grandinos. Havia programas de auditório, com calouros, nos quais se apresentavam muitos cantores da cidade e outros até seguiam em frente na carreira. Na rádio Cultura Riograndina, um dos seus maiores sucessos era o “Cafezinho telefone”, no qual fazendo juz ao título, a comunidade interagia pelo telefone, solicitando músicas. A característica músical, como se dizia na época, a música que identificava a abertura do programa era “”Os milionários”, dos Incríveis. Era um programa no qual o apresentador conversava tranquilamente com os ouvintes, que solicitavam músicas e entre uma e outra, ele fazia os anúncios de praxe, os ditos reclames (propagandas) e comentava curiosidades relacionadas à música ou alguma notícia. Também havia um programa muito ouvido pela comunidade lusitana, cuja pauta era de músicas portuguesas, principalmente o fado, com muitos comentários do apresentador que também falava com sotaque. Outro programa tradicional e muito ouvido no interior do Município era o “Alô Zona Sul”, que informava as notícias através de anúncios pagos pelos ouvintes, como convites para missas, enterros, casamentos, etc.
Além disso, havia a programação esportiva das duas rádios locais da época, que tinha grande força na região. Tudo aos poucos foi se modificando, a partir das primícias oriundas das programações nacionais, seja por influência dos patrocinadores, seja pela falta de audiência local, o que obrigava aos programadores trazer as novidades dos grandes centros. De todo modo, as rádios locais sempre pautaram pelo jornalismo durante todo o dia e pela programação musical, bem como o jornalismo esportivo, especialmente, o relacionado ao futebol. Entretanto, percebe-se, que apesar dos esforços de muitos produtores de rádio e jornalistas envolvidos nas transmissões, há uma decadência gritante, em virtude das inúmeras mídias que atualmente se tem em mãos, mas principalmente, pela fuga indiscrimida que ocorreu a partir do final da década de 70 para a grande mídia nacional, que monopolizou toda a programação das emissoras, tanto de rádio, quanto tv, seja no fator econômico e mercadológico, seja no fator de supremacia da cultura da região central do país em detrimento das culturas locais. O mundo foi mudando e até esta cultura está debilitada, porque agora, há muito mais oportunidades de acesso, a partir de paradigmas internacionais, com a internet e as tvs pagas.
Mas, voltando ao passado, sabia-se o quanto eram importantes as rádios para as crianças da época, talvez não propriamente pela programação exibida, mas pelo fato de acompanharem diariamente com os pais, de uma forma ou de outra, mesmo envolvidos em outras atividades. Em consequência, estabeleciam ao rádio uma dimensão, que os tornava participante de suas vidas, o que para os dias atuais, seria um absurdo. Lembro de uma colega de escola que ao passar pela Cultura Riograndina, na Silva Paes, dizia ter curiosidade em subir as escadas para encontrar algum cantor ou artista da rádio. Era uma ilusão infantil, quase inconcebível, mas o sonho só foi abalado, quando ela precisou pagar um aviso para o programa do meio-dia, em virtude do falecimento de sua avó. Subiu rapidamente as escadas e se deparou com um guichê vazio, onde uma presumível secretária apareceria a qualquer momento. Próximo à parede, um sofá antigo, surrado. Alguns homens conversavam nos bastidores, sendo que se ouvia a voz de um dos locutores famosos e as conversas desandavam para o mais banal e simplório do cotidiano. Quando a secretária chegou, pediu o tradicional anúncio, feito à mão para datilografar em sua escrivaninha. Cobrou e dispensou minha amiga com a indiferença dos que estão cumprindo uma tarefa rotineira e desgastante. Minha amiga até olhou para trás, na esperança de assistir uma conversa mais alvissareira, com vozes impostadas e conversas inteligentes. Quem sabe um cenário luminoso, onde houvesse pessoas discutindo os grande anseios da humanidade, a chegada do homem à lua ou a nulidade do processo civilizatório? Nada disso acontecia. Não havia glamour, nem elegância, muito menos alguma deferência aos visitantes. O sonho acabara. Como na vida virtual de hoje, o sonho só se concretizava ali, pertinho do alto-falante, a cabeça próxima ao rádio, ouvindo aquelas vozes aveludadas e temas românticos ou intelectualizados. Mas assim era a vida. Talvez com o tempo, ela tenha entendido, que eles eram tão iguais quanto ela, gente do povo, gente que sonha também, que tem seus ídolos e suas paixões, seus aborrecimentos, suas iras, suas esperanças. Que bom que as pessoas percebessem nos dias atuais, que as celebridades e os atores eloquentes em suas falas são tão iguais ou piores que todos nós. Em geral, os espectadores são semelhantes àquela menina dos anos 70 e vêem nos ídolos dos dias de hoje, apenas as qualidades que enxergam. O personagem criado para vender discos, shows, fazer sucesso em novelas, teatro, etc. O estereótipo do homem. O que todos veem, mas que na realidade, na sua intimidade, somente o próprio conhece.
Mas assim era a rádio e a TV. E assim a vida segue até hoje. Só mudaram os formatos. O mundo gira igual. E as ilusões… bem, estas, talvez mais pueris.
Chamava-se Chacrinha. Nem sei por que cargas d’água dei este nome ao cachorro. Era um cusco preto, com uma pata branca, destoando das demais, meio peludo. Tinha um olhar atilado, uma boca enorme que se mantinha presa a trapos que eu puxava, segurando-o, levantando para o ar, dentes presos, respiração ofegante, peito saltando, olhar atento ao pano pendurado, sem descuidar para não perder a presa. Estava sempre assim, ao nosso lado. Corria comigo pelas ruas, enveredava por esquinas, metia-se em becos, quintais, ladrava com altivez e fugia no momento certo.
Num destes dias, em que as coisas acontecem sem que tenhamos qualquer intervenção ou pressentimento, fui à aula, pela manhã, com a pasta embaixo do braço, uniforme limpo, calças azul-marinho, frisadas, um lanche para o intervalo. Estava no horário de rotina à espera do coletivo que me levava até à escola, quando inesperadamente despontou na esquina, à toda velocidade, Chacrinha, correndo ao meu encontro, sem que eu pudesse detê-lo.
O ônibus dava sinais de estacionar e eu o expulsava em absoluto desespero, que para maior desgraça, ele parecia entender ao contrário, fazendo festa, pulando em minha roupa asseada, querendo participar como sempre de minha vida. Entrei no ônibus, na esperança que ele voltasse, desaparecendo na esquina, entretido com outras mensagens que pudessem surgir no momento, talvez uma cachorrinha alegre que despertasse interesse ou o cachorro imenso do vizinho, que latia como um trovão, afugentado-o em definitivo. Nada disso aconteceu. Quando sentei-me num banco, logo após à cadeira do cobrador, ele saltou para dentro do veículo, acomodando-se exatamente embaixo, junto a meus pés. Algumas pessoas brincavam que ele deveria pagar a passagem, outros olhavam de soslaio, desconfortados com o animal, assim alojado no mesmo ambiente. O cobrador já se inquietava em seu lugar, mexendo os quadris, adequando-se para solicitar a passagem para a frente, já que se esgotavam rapidamente as acomodações. Vez que outra, olhava para trás, na tentativa de enxergar o animal que se aninhava, encolhido, sem se mexer. Chacrinha, às vezes, observava atento, para o alto, aliviado, como se entendesse que estava no seu direito. Em seguida, baixava a cabeça, sisudo, conformado em apenas proteger-me. O cobrador, por sua vez, encarava-me com ar de censura, mas não tinha mais tempo de fazer qualquer reprimenda, porque as pessoas já se acotovelavam no corredor, centenas de meninos que iam para a escola em seus uniformes coloridos, outros tantos operários, comerciários, comerciantes, bancários, professores, enfim, o povo que se juntava na mesma hora para chegar a seus locais de trabalho. O pior de tudo é que se alguém se aproximava, o cão rosnava, com uma empáfia e coragem, como se me defendesse. Eu suava frio, imaginando que a qualquer momento, ele morderia alguém, ou mesmo que o colocariam para fora, na próxima parada.
Meu tormento durou mais ou menos 30 minutos. Desci um quarteirão antes da escola, aflito para me ver livre daquela inquietação. Desci contrito, coração apertado, culpado, por ter abandonado o meu cachorro, fingindo que não era meu, às pressas, quase fugindo do veículo. Mas na verdade, ele me seguiu, esgueirando-se por entre as pernas, sapatos, botas, alpargatas, torcendo o corpo lustroso e atingindo os degraus rapidamente, chegando em seguida ao meu encontro. Nada porém, me consolava. Afinal, ele estava ali e eu não poderia mandá-lo embora. Como voltaria, como encontraria rastros, cheiros, faro, se havia vindo de ônibus. Meu cão seria abandonado em plena via pública e não voltaria jamais para casa.
Deixei que entrasse na escola e subi rapidamente as escadas em direção à sala de aula. Ele se perdeu de mim, mas logo encontrou diversão, correndo no pátio através dos meninos que chegavam e se permitiam na algazarra, divertindo-se, nas horas iniciais, anteriores ao toque da sineta. Chacrinha corroborava para esta festa. Eu, lá de cima, a tudo observava, triste, temendo deixá-lo sozinho e perdê-lo para sempre, principalmente porque o inspetor da escola o enxotou, imediatamente, ao sinal da campainha. Não fiz nenhum gesto para ajudá-lo, defendê-lo, salvá-lo do desconhecido, das ruas estranhas onde não deixara faro, das diversidades, dos automóveis, dos homens que talvez o chutassem, correndo-o de suas casas ou dos outros cães, maiores e mais ardilosos, capazes de expulsá-lo de seus reservados.
Com este sentimento, entrei na sala de aula. Não me concentrava em nenhum assunto, nenhuma conversa entre os colegas ou qualquer ensinamento dos professores. Só via a imagem de Chacrinha, perdido nas ruas da cidade.
Voltei para casa, taciturno, com a pasta em desalinho, tal como meus pensamentos. Papéis se juntavam amarfanhados a cadernos dobrados, lápis misturados a canetas, borrachas e transferidores. A desorganização imperava. Meus pensamentos divagavam e as ruas me pareciam extensas demais e o caminho extremamente longo e o tempo quase eterno. Da esquina, avistei minha casa. Tudo parecia em ordem. As árvores não se mexiam, pelo contrário, desenhavam tacitamente sombras na calçada, elaborando uma tarde que se aproximava devagarinho, provavelmente vistosa, num dia de primavera. Em minha alma, entretanto, o inverno enregelava os sentimentos.
Tirei a chave do bolso, na tentativa de abrir o portão de ferro, esperando que as expressões tristes da família. Mas, eis que um som surdo e abafado, como se um corpo se debatesse me despertou a atenção. Por um momento, pensei que estivesse sonhando e que meu cachorro houvesse voltado para casa. Quando abri, a certeza se solidificou. Ali estava ele, feliz, lambendo-me as mãos, batendo as patas em minha pasta, sujando minha roupa. Havia voltado, nem sei como. Minha mãe dissera, que por volta das dez horas ele aparecera, esbaforido, língua pra fora, extenuado. Então se confirmara que ele não voltara de ônibus.
Há quem se lembre dos natais da infância e são estes os que realmente preenchem a nossa memória, trazendo de volta a fantasia, a alegria e a recordação da família naqueles momentos intensos. Tenho comigo que os natais são todos bons, a menos que tenhamos tido algum sofrimento marcante e as coisas, aí, trilhem caminhos mais estreitos e tortuosos. Lembro de muitos natais da infância e acho que na maioria foram muito felizes.
Entretanto, há um em especial, em que eu não era criança, nem adolescente, nem vivenciava aqueles momentos de encantamento em que somos pais com filhos pequenos. Tinha meus 20 e poucos anos e o Natal se resumia a um pequeno encontro de família, com os pais e irmãs, a missa do galo e no máximo, alguma festa maior à noite, em que houvesse danças e namoricos. Nada que se compare às baladas explosivas de hoje em dia.
E este natal começou muito cedo. Na véspera, numa tarde de sábado. Um desses sábados à tarde em que as pessoas já fizeram as suas compras ou ainda permanecem comprando os últimos presentes que faltaram. Nas ruas, um pouco distante do centro comercial, a cidade parecia completamente deserta. Era uma avenida arborizada, com grandes canteiros centrais e árvores gigantescas que davam um ar de nostalgia para a véspera de natal, que já por conta de todos os envolvimentos emocionais, o Natal em si, já é nostálgico para mim. Uma data em que lembramos de entes queridos que já não se encontram em nosso meio ou, porque as famílias já se dissolveram e vivem em lugares distantes , ou porque, sei lá, temos uma dificuldade interna de sermos felizes quando todos assim parecem.
Pois, antes de chegar nesta avenida arborizada, eu resolvi visitar o asilo de pobres. Era uma experiência nova para mim, não que eu não tivesse ido até lá em outras oportunidades, ao contrário, já participara de outros encontros e dedicado alguns momentos que foram talvez bons para eles, mas muito produtivos para mim.
De todo modo, a experiência a que me refiro, se chama véspera de natal. Na véspera de natal, os idosos parecem ter a obrigação de serem felizes. Os cuidadores riem, esforçam-se para incentivá-los e não admitem quaisquer reclamações ou tristezas. Alguns filhos os visitam, trazem os netos e outros parentes. Às vezes, até os levam para casa. Eu conversei com alguns idosos e havia lhes trazido presentes. Na verdade, guloseimas, porque o que interessa para um idoso? Ganhar uma camisa nova ou uma blusa de rendas? Para onde eles vão? Com que se divertem? Como vestir roupas novas, se o seu destino inevitável é o quarto onde deitam suas dores? Então foi o que fiz. Presenteei-os com chocolates, biscoitos, cookies, balas e todos os tipos de guloseimas que pudessem adoçar-lhes a boca e o coração.
Uns conversaram mais do que os outros. Uns se fecharam em si mesmos, embora agradecessem os presentes, mesmo que momentaneamente, decididos a se afastarem, habituados a ficarem sozinhos. Houve os que contaram histórias, verdadeiras ou fantasia, mas que preenchiam suas memórias de maneira intensa, mesmo que por alguns momentos. Talvez, o encontro tenha durado uma hora.
Dali sai satisfeito e angustiado. Satisfeito por ter realizado o meu objetivo que era o de levar aquelas pequenas lembranças e angustiado, talvez por que outro objetivo não tenha sido alcançado, que seria o encontro. Acho que não houve o encontro entre nós. Não houve interatividade. Não houve partilha de sentimentos, de emoções, de troca de experiências. Houve apenas um encontro social, onde alguns fragmentos de sentimentos vieram à tona. De todo modo, fiz o que me propus e pensei que no próximo ano seria melhor. Depois, pensei melhor e me perguntei, por que no próximo ano? Por que não na próxima semana, no próximo mês, no forte calor de janeiro, no imenso frio do inverno? Há tanto momentos para serem compartilhados. Há tantos dias a serem preenchidos. E pensando desta forma, retirei-me, entre os cumprimentos e desejos de feliz natal e anseios de um bom ano novo.
Por um momento, lembrei de nosso trabalho no hospital psiquiátrico e o comparei com o asilo. Na verdade, a solidão e a fantasia eram as únicas coisas que os uniam. E talvez as únicas que realmente tinham alguma importância. Mas desviei o olhar, tentando não ver aquelas paredes escuras, cujas luzes pareciam focalizar apenas olhos assustados e ouvidos desatentos. Procurei não pensar e esquecer de vez esta visita. Muito menos divagar, fazendo comparações, cujas conclusões poderiam argumentar uma tese. Afinal, o asilo já tinha preenchido bastante aquela tarde.
Afastei-me devagar. Não estava tranquilo. Mas não devia me deter muito nisso. Teria mais tempo e mais angústias, que por certo aflorariam.
Dirigi-me a algumas casas, onde deixaria cartões sob as portas ou os entregaria pessoalmente. Nesta época, não havia cartões virtuais, nem redes sociais, nem comunicações online. Tudo era concreto. Tão concreto, quanto a calçada da avenida que eu, agora, após a entrega dos cartões natalinos, me dispunha a caminhar.
Observei que o sol já se punha, devagar, bem lentamente. É um sol de verão e portanto, demora mais a se esconder. Entretanto, a noite se aproximava e devia me antecipar, porque havia muito mais a percorrer.
Do outro lado da avenida, havia a igreja e nem uma pessoa na rua. Um silêncio sepulcral, como se todos houvessem abandonado a cidade. Um silêncio bom, que me deixava refletir, inclusive sobre a calma que a natureza despertava. O sol ao longe, se pondo, jogando seus raios por entre as árvores da avenida, a rua que se alongava em direção à saída da cidade, o silêncio intenso, tudo produzia uma paz que nem sabia explicar. Nem tentava, só absorvia.
Por outro lado, estava satisfeito, porque a maioria dos cartões natalinos foram entregues.
Pensei comigo que esta tranquilidade contempla a condição de nos sentirmos plenos, inteiros em nossa caminhada. Atravessei a avenida e aproximei-me da igreja, agora já um pouco às escuras, pois o lusco-fusco aumentava, em virtude das luminárias serem acesas, amiúde, e por momentos, via-se apenas a luz natural.
Foi neste momento, ouvi um voz firme e forte, me chamando. Olhei para os lados e não vi ninguém. A voz insistiu, pedindo que o olhasse, com a convicção implícita de que o atenderia.
Um pouco aturdido, voltei-me e avistei um homem encostado na porta da igreja, meio escondido, pois embora fechada, a porta fica um pouco para dentro, como um nicho. Percebi tratar-se de um senhor idoso, do qual não conseguia avaliar a idade que aparentava. Usava um terno escuro e vestia um colarinho de padre. Os sapatos pretos me pareciam de verniz. Aproximei-me, mais calmo, apertei sua mão com firmeza e sorri, quando disse: — tinha certeza de que conversarias comigo. Hoje em dia, todos estão muito apressados, mas tu já fizeste com calma o que te propuseste. Visitaste o asilo de pobres, entregaste os cartões natalinos e agora parasses para conversar comigo. Eu sabia que farias isso.
Respondi com determinação , que não havia motivo para não parar e ouvi-lo. Não entendi bem como ele sabia sobre o que eu havia feito, mas, de qualquer modo, tudo me parecia muito natural. Naquele momento, não achei que este detalhe tivesse alguma importância.
Ele então, concluiu: — és um bom rapaz. Foi por isso, que parasses para conversar comigo. Sei que sempre evitas contar as tragédias que tens conhecimento pela tv, jornais ou por outras pessoas, para os teus familiares. Achas que não vale à pena incomodar teus pais com estas histórias tristes, até mesmo, porque tu não gostas de repetir estas coisas. Não acrescentam nada.
Concordei com ele. Então, fez uma pequena revelação: – a partir de hoje, véspera do Natal, ficarei aqui, nesta igreja, até o Ano Novo. Se quiseres me ver novamente, conversar comigo, eu estarei aqui, te esperando. Agora, vai, te esperam em tua casa.
Apertei-lhe a mão e afastei-me ainda mais contente do que estava antes.
Passou o tempo, esqueci do ocorrido. Naquela época, havia o cinema Lido, que ficava próximo à Igreja. Na véspera do ano novo, eu e minha irmã decidimos assistir um filme, lembro que se tratava de um musical com Barbra Streisand.
Ao sair do cinema, passamos pela frente da igreja e, para minha surpresa, ele estava lá, sorrindo e me chamando para conversarmos. Avisei a minha irmã da pessoa que havia encontrado naquele mesmo lugar, na véspera do natal, da qual havia comentado anteriormente.
Para minha surpresa, ela ficou em verdadeiro pânico, correndo em absoluta velocidade, em direção à esquina, sem parar um segundo, muito menos atender aos meus chamados.
Ainda, antes de me afastar por completo, voltei-me e olhei para o homem que sorria e me acenava. As pessoas passavam rápidas, saindo do cinema e provavelmente conversando sobre o filme. Ele continuava lá, e nem sei se o viam, tal como eu.
De todo modo, nunca mais o vi, embora, provavelmente tenha ficado até o dia primeiro do ano novo, tal como anunciara. Nunca mais o vi, nem tenho certeza de que a mensagem que deixara, fora apenas uma invenção de sua mente. De todo modo, ratificou a ideia de que devemos sempre fazer o melhor em quaisquer circunstâncias. Que devemos perseverar em nossa missão e observar a natureza, experenciando sem pressa os momentos em que partilhamos a plenitude da vida. Seja cumprindo uma missão, seja interagindo com o próximo
. Isso é o que podemos chamar de momentos de felicidade. Provavelmente, seja este o significado maior do Natal.As horas passavam lentamente, naquela manhã. Meu espírito irônico se evidenciava nas pequenas coisas, nas orelhas de abano do colega ao lado, na boca imensa e dentes desaparelhados do que ficava na fileira à direita, no cabelo sempre envolto em um generoso laço rosa da menina da frente e principalmente, cansava-me a atitude enfadonha da professora a conjugar os verbos interminavelmente. Estava na quarta serie primária, no tempo em que obedecíamos regiamente aos professores, pais, diretores, enfim, quaisquer pessoas superiores em hierarquia e em idade a nós. No entanto, havia uma pequena brecha que surgia a cada momento em nossas mentes, onde a ocupávamos com imaginação ou brincadeira, para atenuar a rigidez que nos era imposta. Nem o sabíamos, mas fazíamos de forma inconsciente, embora não raras vezes sofrêssemos as consequências.
Naquela manhã, não conseguia ouvir uma palavra do que a professora dizia, mas observava o seu jeito engraçado, a sua voz rouca, o seu olhar instigante, como se a todo momento, fizesse acusações irreparáveis. Estava vestida com uma blusa de gola alta, num vermelho forte, que lhe acentuava a pele clara, emoldurada nuns olhos negros e grandes. O cabelo, invariavelmente, preso para trás, num meio-coque, que aumentava-lhe ainda mais a testa, que me parecia interminável. Por cima da blusa, um casaco meio curto, acinturado, tecido assemelhado a lã, pontuado de pequenas pintas mais claras,compondo com a saia justa, que lhe vinha até os joelhos, na verdade, um pouco abaixo. As pernas meio finas, ajustadas em meias de náilon, com uma risca de costura atrás, como se usava na época, compondo com o sapato de verniz, salto alto, desenhando imagens no chão enquanto passava de lá para cá. Tudo que eu via, colocava no papel, grosseiramente, através de desenhos que tinham por motivo a professora, os colegas, as meninas da frente e assim, mostrava a todo momento, para os mais próximos, imaginando que jamais seria pego em tal gracejo. Todos riam sem cessar, revelando aos grupos mais afastados que a história era boa.
Quando acabou a aula, saímos a resfolegar, batendo os cotovelos, correndo como um bando de pássaros soltos da gaiola, chocando-se sem rumo, quando ouvi o meu nome, de forma sonora e altiva. Parei, lívido. Não era o momento de ser chamado, muito menos por ela, naquele jeito tão solene, pondo-me os olhos esticados, como se analisasse cada veia de meus braços. Dei alguns passos, meio atrás da turma, que já desaparecia no pátio. Ela encostou-se na porta e esperou que eu me aproximasse. Pediu, não, na verdade, exigiu que eu voltasse para a classe. Voltar? Mas era hora do recreio, como dizíamos. Não, já passara a aula. Agora, eu era livre. Pois ela insistiu, categórica: – volta para a tua escrivaninha e traze (ela usava o imperativo de forma perfeita) os desenhos que fizeste.
Estremeci. Minhas pernas finas bambolearam nos sapatos. As meias alargaram, caindo nos calcanhares. Minha boca se tornava seca, a voz não saía. Os cotovelos se enrijeciam e a professora tornava-se naquele momento, uma figura descomunal, extraordinária. Ela repetiu a frase, então dei alguns passos para trás, meio que me afastando, olhando de soslaio, vendo pelas janelas uma nuvem colorida de meninos que corriam para todas as direções, numa agilidade em que eu gostaria de estar incluído. Doía-me a alma. Na porta, algumas meninas se cutucavam, observando de longe, a cena. Uma delas, aquela do laço rosa, como se adivinhasse que eu a desenhara também, olhava-me com ar de censura. Dei mais alguns passos e passei por minha mesa. Voltei, abaixei-me e peguei da gaveta, que ficava mais embaixo, as folhas de desenho. Minhas mãos tal como minhas pernas tremiam. Então tive uma idéia genial. Talvez desse certo, não sabia. Mas não havia outra saída. Juntei as folhas, uma após a outra, e as levei com cuidado, ante o olhar intransigente da professora. Tinha a impressão de que quilômetros nos separavam, tal era a dificuldade de chegar até ela. Podia contar as lajotas coloridas, seus triângulos e outras figuras geométricas, simetricamente compostas. Quando cheguei, ela esticou a mão cheia de unhas vermelhas.
Mas antes de entregar-lhe, disse, com a mais disfarçada sinceridade: – fiz o que a senhora pediu na aula passada.
– O que eu pedi? – questionou, indignada.
– Uma crônica da turma, só que através de charges. Quer ver?
Ela me encarou de um jeito tão estranho, que pensei que fosse me pegar pelo pescoço, segurar-me junto à parede e levantar-me pela gola branco-anil da camisa. Depois, desviou o olhar e com displicência segurou as folhas. Examinou a primeira, a segunda, a terceira, na qual pude esticar o olho e ver que se tratava do esboço dela. Foi aí que ela parou por um segundo. Em seguida, me perguntou: – é assim que tu me vês?
Nem sei muito bem o que falei, ou se realmente disse alguma coisa. Acho que balbuciei e meus olhos revelaram tudo de uma vez, naquela mistura de medo e vergonha. Logo retomou às demais folhas e no que parecia uma avaliação, sentenciou, precisa: – Então está bem. É uma crônica, pois quero que faças mais do que isto. Quero a aula de hoje explicada por estes personagens.
Eu arregalei ainda mais os olhos, eufórico, mas antes que eu fizesse qualquer gesto de aceitação, ela prosseguiu: – Mas agora, no intervalo. E tem mais uma coisa, tens que desenhar a ti e tu vais ministrar a aula.
Tentei arguir que estava com fome, que precisava descansar no intervalo, que devia pensar no que ela havia explicado na aula, para poder por em prática e se finalmente, sugeri fazer o trabalho em casa. Não havia alternativa. Era ficar no intervalo e obedecer ou ir para casa e voltar no dia seguinte com a mãe a tiracolo. Optei pela primeira. Inventei uma história de verbos, que não tive tempo de acabar. Meus colegas prosseguiam no alarido lá fora. As meninas se afastaram e conversavam em grupo. Uma que outra espiava pela janela. A professora também saíra e eu ficara ali, fazendo uma história que não sabia muito bem o enredo. Mas o que teria chamado a atenção na figura que eu fizera dela? Será que era...ah, devia ser, mas quem saberá algum dia? Quando todos voltaram, a aula prosseguiu e ela parecia ter-me esquecido. Fiquei com os desenhos, a história e o castigo.
Para que servem as vírgulas. Se nos detivermos com atenção nas minúcias, observamos que há dezenas de usos, nos quais extraímos da mente, como apêndices desnecessários da linguagem, a não ser para respirarmos com mais tranquilidade. Entretanto, gramaticalmente, poderíamos falar em intercalações, tais como as do adjunto adverbial, da conjunção, ou de expressões explicativas, bem como nos apostos ou no uso após o vocativo, e o que é mais corriqueiro, nas enumerações. E aqui elas se fazem valer, altivas, imponentes, revelando aos incautos a força de seus significados e significantes, mostrando o porquê de suas inserções.
Mas na verdade, estas funções gramaticais não despertam curiosidade em nosso discurso cotidiano, ao contrário, nem percebemos a sua localização, seu uso adequado ou indiscriminado. Via de regra, respiramos saciados, no linguajar afoito de quem, quase sempre, tem pressa absoluta. E lá vai vírgula. Ao menos que sejamos especialistas em linguística, damos conta de suas funções e qualificamos suas determinações. A nós, pobres mortais, interessa-nos, quando muito, o conteúdo, o texto subjacente ou o ponto final. Este último, absoluto, austero, próprio, poderoso. Deixando pra trás qualquer vírgula ou interrogação mais arguta. Encerrando o que nos parece enfadonho, perigoso ou impróprio. Talvez porque não nos atenhamos às indagações que a vida nos dirige e passamos o rodo de graça nos momentos mais simples, mesmo que recheados de novidades e reflexões. Queremos o ponto final e com ele outros pontos, outras procuras, outros caminhos, sempre atentos ao fim, ao “the end”, “se fini”, ao encerramento, ao fim propriamente dito para começar tudo de novo. Esta é a angústia atual do homem, o homem que consome o tempo sem viver, que reclama das horas escoarem-lhe pelas mãos, como mercúrio de termômetro quebrado. Não percebe a plenitude dos acontecimentos mais puros, mais sensíveis e íntimos de sua existência. Talvez precise parar apenas, desapegar-se dos compromissos fugazes e desnecessários (ou apenas convenientes ao padrão inspirado por uma sociedade consumista e falsa de valores) e projetar seu pensamento e todo o seu coração nas coisas mais simples e proveitosas, essenciais e menos pontuais. Quem sabe, devesse o homem absorver-se do lazer e encontrar prazer em acontecimentos simples do cotidiano, sem deixar-se levar no lodaçal poluído da mídia, padronizando mentes pelo senso comum, produzido para rotular e criar necessidades alicerçadas em valores mercadológicos. Um mundo avesso ao passo amiúde dos velhos, às mãos integradas dos que oram, à mente livre dos que param e meditam, à fragilidade dos meninos de rua, à loucura dos famintos. Talvez pessoas que não se deixem seduzir apenas pelos grandes acontecimentos, mas que extravasem seus sentimentos nos cantos dos pássaros, no grito insistente e intenso do bem-te-vi, no gorjear esquisito da alma de gato em seus contatos diários no amanhecer do dia. Talvez estas não pontuem acontecimentos transitórios, mas cultivem o sabor dos presentes que a natureza via de regra oferece a quem faz parte dela. Apenas.
Tal como as vírgulas e suas pequenas interrupções, que nos instigam a ver nas palavras, mais do que seus signos representam, mas desvendar seus mistérios, desencadear significados, encontrar no contexto a vontade prenhe de saber, de descobrir, de vivenciar o que o outro apresenta. O que nos diz. Não apenas o ponto final, não apenas o encerramento, mas linha por linha, descrevendo cada sensação, cada matiz novo, quase tonalidade, como sons musicais e cores tingindo o mundo diverso que se apresenta no texto.
Quem sabe o seu uso amoroso, delicado, exacerbado como uma paixão fulminante e arrebatadora. As vírgulas de Antonia. Assim ela veste as palavras e anotações e títulos e autores e as remete ao contexto, bem como ao leitor do produto que está acessando. Ela gosta das vírgulas, mas gosta mais ainda dos acessos, das maneiras sutis de informar, do jeito delicado e suave de integrá-las ao contexto, usando e abusando de suas qualificações, sentindo-as como parte integrante da amostra, sem restrição, mas ampliando o conhecimento da informação.
Talvez mostrem o seu frisar a vida com calma e cuidado, o seu passar cauteloso e preciso, alcançando a plenitude do encontro, da interação com o outro, muito mais do que simples considerações técnicas. Para que servem as vírgulas de Antônia? Para chamar a atenção, para mesclar sentimentos, para adocicar as regras. Tal como o cajado sonhado do Caminho de Santiago de Compostela, ela as usa como efeito agregador e até enfeite. Um adorno útil no caminho que vira ponte. Um sorriso aqui, um piada ali, um caso do passado e a história se desenrola recheada de vírgulas, sem pontos, a não ser reticências para um novo recomeço. Sem ponto final, somente vírgulas. As vírgulas de Antônia.
Que importam os apostos, vocativos, advérbios? São as vírgulas que absorvem delicadamente o grande mundo da informação e o fazem com cuidado, esmero, atenção. Afinal, as vírgulas estão aí, para as pequenas coisas, separando e juntando acessos, intercalando assuntos, mesclando títulos, identificando autores. São as vírgulas de Antonia. Não pontos finais. Pontos? Só os de acesso.
(Crônica que tenta metaforizar o nosso relacionamento com o mundo e o outro, alicerçado em apreender as coisas simples, para viver intensamente. Para tanto, lembramos das vírgulas, como ponto de intercalações e de encontros. No curso Capacitação e Gestão da Qualidade em Bibliotecas, cujo módulo Representação Descritiva pelo AACR2 , tivemos a honra de ter como ministrante a Profa. Antônia Motta de Castro Memória, as vírgulas foram “contestadas” em tom espirituoso, em vista do sentido gramatical, nada que devesse ser revisto, porque estavam em absoluto acordo com as regras do código. Mas a tal “discussão” das vírgulas me levou a imaginar esta crônica.)
A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...