terça-feira, novembro 15, 2016

Um quarto na tarde

Este é um conto elaborado a partir do desafio de uma oficina literária. O desafio seria utilizar um personagem semelhante à Séverine do filme “Belle de jour”, A bela da tarde.


Talvez estivesse assim abandonada, assim alijada de seus momentos de liberdade absoluta, onde não houvesse ninguém para atrapalhar seus planos. Quem sabe numa ilha deserta, mar aberto, longe de qualquer civilização. Que nada, estava estirada na cama, envolta em cobertas amassadas, mascando o travor da vida que se esvaía, no colchão inchado. A revolta tomava conta de seu ser. O ódio talvez endereçado a si própria deixava distantes os que a atormentavam. Estava assim, desorientada, embrulhada em seus pensamentos, como aquelas cobertas nas quais se descobriam os pés. O frio vinha menos das frestas das venezianas, sem vidraças do que o que a consumia por dentro.

Ela levantou com esforço, espiou para fora: um olhar conturbado, aranhas tecendo redes turvas nas frestas.

Ah, se pudesse desfrutar o ar poluído das ruas, o caminhar reticente dos indecisos, o assombramento noturno dos poetas. Não, devia mastigar a dor, assim, devagarinho, entre um sobressalto aqui e um aconchego ali. Aconchego que se despede em cada esquina, em cada olhar disperso, em cada aceno sem adeus. Um aconchego provisório, desigual, desmanchado na superficialidade do encontro. Ou desencontro, não sabia.

Voltou-se, passeando o olhar pelo quarto, assinando com sangue na parede branca. Seus dedos outrora ágeis, hoje pareciam enrijecidos e entorpecidos pelo golpe que dera a si mesma. Não tinha coragem de se olhar no espelho. Talvez, se o fizesse, se espantasse com o desgrenhado dos cabelos, com a maquiagem borrada e traços arrastados sobre os olhos, mendigando lágrimas de palhaço.

Não pudera. Não tinha este destemor próprio dos heróis, que se elevam ante as tragédias e ascendem a patamares mais altos, mesmo que vencidos.

Não, ela não tinha mais recursos naquele campo de guerra.

Então, sentou-se na cama e juntou as pernas, abaixando a cabeça sobre os joelhos, enquanto os cabelos lambiam as pernas brancas, sem meias.

Talvez chorasse agora. Talvez seu corpo reagisse de alguma maneira: mesmo torta e indigna.

Na posição onde se encontrava, se abrisse os olhos, veria o corpo do homem morto, estendido no chão daquele quarto vulgar de motel.

Talvez retirasse a camisa ensanguentada pelo disparo e juntasse as forças que sobraram para retirá-lo , levá-lo até o carro e desaparecer com as provas definitivas. Talvez caminhasse, finalmente, pela calçada com passos reticentes e balanço frugal. Quem sabe encerraria a tarde, antes que a noite a devorasse.

Mas não fez nada, ou melhor, puxou do criado-mudo um copo e encheu-o de uísque barato até a borda. Tomou o que lhe bastava para aceitar o que o pesadelo lhe oferecia. Ou a vida, ou a morte.

Puxou a blusa, sungando o sutiã que lhe apertava o seio. Tudo parecia incomodá-la, até o piercing do umbigo que já não coçava desde a semana passada, quando a cicatrização aderira ao corpo estranho. De repente, seu passado não a incomodava tanto quanto os penduricalhos de sua vida perdida. Nem os brincos banhados à prata, nem as pulseiras que se engalfinhavam enquanto movimentava os braços pra lá e pra cá, nos momentos de euforia, nem os colares que lhe emolduravam o colo.

Um colo lindo, lhe diziam os amantes que a procuravam, uma promessa de afeto quase maternal, cuja fantasia não era deles, mas sua.

Parou de chorar e de beber. Devia se desfazer das bijuterias, dos adereços com os quais vestia o personagem e voltar à realidade.

Algumas luzes banhavam as paredes de vez em quando e os ruídos da rua abrandavam a sonolência da tarde. As horas corriam e ela estava presa à cama, como se algemas potentes a prendessem como objeto de adorno, sem outra função, senão compor a cena.

Doíam-lhe os pés, afundados nos sapatos vermelhos de salto agulha. Deixava-se ficar, patética, observando o nada. Sua boca estremecia e seu coração combatia no peito, enfrentando a dor forte e destrutiva.

O celular tocou. E tocou várias vezes, até ela alongar o braço em sua direção, naquele movimento compassado de sonho, uma ansiedade no gesto que não se completava.

Na última vez, ouviu a voz masculina do outro lado. Esperava ser oriunda de um lugar bem distante, pensou.

Foi aí que respondeu. Foi aí que quase reagiu.

A voz insistia:

– Laura, quero saber o que houve com você. Fale o que está havendo, mulher. Por que não aparece? Quer me deixar louco?

Olhou para o rosto do homem aos pés da cama. Teve a impressão que um olho vagamente se mexeu e teve um calafrio. Encolheu mais as pernas, puxando-as para a cama, riscando com o salto o parquê vagabundo.

Por fim, respondeu com voz fraca:

– Estou aqui, não se preocupe.

A voz masculina gritou, vigorosa:

– Aqui, onde? Que mistério é esse, mulher?

— Acho que não tem mais jeito, Otávio. Agora não dá mais.

— Não dá, como assim? Não quer mais ficar comigo?

— Na verdade, tenho uma vida que você não conhece. Um mundo só meu, onde posso dispor como quiser da minha liberdade. Mas agora, até mesmo esta vida chegou ao fim. Acabou.

— De que você está falando, Laura? Quer se explicar, pelo amor de Deus!

— Não tenho saída. Estou desesperada.

— Fique aí, que eu vou lhe buscar. Só me diga onde é. Onde fica este seu mundo absurdo.

— Acho que agora, só me restará a realidade da prisão. A minha vida ao seu lado e a outra, aqui fora, eram muito parecidas. Talvez uma completasse a outra. Mas agora, o baralho desandou. Não tem mais jogo duplo.

— Você não diz coisa com coisa. Que está havendo? Me dê o endereço onde você está, me dê este maldito endereço! – o marido parecia chegar ao desespero – Espere, não desligue, me diga onde você está Laura, escute, eu lhe peço, me diga...

Após, breve silêncio, ela prosseguiu mais tranquila:

— Sabe, Otávio, quando eu era adolescente, assisti a um filme cheio de lirismo, sensualidade e beleza: “Belle de jour”, “A bela da tarde”. Você já ouviu falar neste filme, Otávio?

— Do que você está falando, Laura?

— O diretor é Buñuel. Você já ouviu falar de Buñuel, Otávio? Não, claro que não. Você tem outras coisas mais importantes com que se preocupar, não? Pois bem, eu queria ser a bela da tarde, eu sonhei em ser a bela da tarde, tal como Séverine de Catherine Deneuve e talvez, como ela, eu também tenha perdido a chance de me conhecer.

Laura desliga o celular e se afasta da cama. Passa a mão pelos cabelos com delicadeza, arranjando-os sobre os ombros, prenhe de uma estranha paz.

As vozes da rua parecem cessar. Certamente a noite avançava rápida como pensara, mas não a devorara, como imaginara também. Talvez, a saída estivesse ainda por acontecer.

Aproximou-se da porta, abriu uma fresta e espiou pelo corredor. Ao longe, o vulto de um homem se desenhava, dobrando em direção a outros pavimentos. Por um momento, ele parou e olhou para trás, como se pressentisse a sua presença. Então, ela escondeu-se, empurrando rapidamente a porta, sem batê-la.

Esperou alguns minutos e a abriu novamente. Quando o fez, seu coração deu saltos atropelados, deixando-a desorientada, como se entrasse num labirinto com proporções indefinidas. O homem estava ali, na porta. Um olhar maduro de quem aguarda o momento adequado. Moreno, bigode escuro e costeletas antiquadas. Num impulso, empurrou a porta, mas ele a impediu com o joelho.

— Que está havendo, moça, pode me dizer?

— E o que você acha que pode acontecer com uma mulher nesta espelunca?

— Não sei. Podia ser coisa séria. Está esperando alguém?

— Estava, mas tô dando o fora. O cara não veio, sabe como é, a macheza não está lá estas coisas, hoje em dia.

— Mas não é o meu caso. Se quiser, a gente pode fazer o programa que você perdeu.

— Pode ser. Mas eu cobro bem.

— Então me deixa entrar.

— Não, não pode ser aqui. – Respondeu, ansiosa, mais súplica, do que convite. – Me leve para o seu quarto.

— Eu sou o porteiro desta espelunca que você falou, sabia?

— Mas deve ter um lugar. Vamos, não quero ficar aqui, o cara pode chegar e a coisa vai degringolar.

— Então está bem. Vou ver uma chave.

— Espere, me faça um favor — retira um cartão da bolsa e o entrega – ligue para este número, é do cara, diga pra ele vir me buscar mais tarde.

— Você enlouqueceu, quer queimar o meu filme? Ah, garota, deixa de história.

— É uma brincadeira, um jogo, não seja bobo — sorriu maliciosa — daqui a meia hora, ele aparece, vem me buscar. Olha, é meu amante, não é um desconhecido. Eu não posso ficar sozinha aqui, depois... do nosso encontro. Me faça este favor.

— E por que você não liga?

— Porque não tem graça. O interessante é que alguém ligue para ele, pra ficar com um pouquinho de ciúmes, entende?

— Esta história está muito esquisita. Mas espera aí, eu ligo lá debaixo.

— Mas e a chave do outro quarto?

O homem retirou um molhe de chaves do bolso e entregou a de número vinte e dois, avisando-a que era no andar inferior. Em seguida, afastou-se.

Laura entrou no quarto, pegou suas coisas e afastou-se rapidamente, descendo as escadas conforme o indicado pelo porteiro. Caminhou pelos corredores vazios, com a impressão de que a seguiam. Um gato deitava sua sombra no corredor, ultrapassando a janela basculante e saltando sobre o telhado que desembocava noutro prédio. Ela estremeceu, mas sorriu aliviada. Foi por pouco tempo. De repente, a angústia retornou, sem que pudesse refletir. Não bastava fechar a porta do quarto, para que o homicídio não mais existisse. Não bastava confessar ao marido, para que tudo voltasse a ser como era antes.

Quando avistou o número vinte e dois, ela parou na porta, com o coração mais agitado. E se tudo não passasse de uma cilada? Se o porteiro soubesse de tudo e estivesse ali, esperando-a para entregá-la à polícia ou mesmo fazer-lhe chantagem para extorquir-lhe dinheiro.

Por outro lado, vinha-lhe à mente o seu olhar agressivo, despindo-a totalmente, obrigando-a a cometer o sexo que não queria, transformando a sedução que o estimulara em cena grotesca de filme b.

E como reagiria o marido, depois de tudo isso, ao saber de sua vida dupla, de seus casos amorosos, de seu mundo de fantasia?

A morte, o medo, a prisão. A sorte ronronava a sua porta, não deixando-a atravessar a janela. O salto havia sido alto demais.

Por isso, decidiu fugir, desceu as escadas rapidamente, e parou estupefata, ao ouvir a voz do porteiro ao telefone.

— Seu Otávio, hoje aconteceu o que temíamos. Há sangue no lençol. O jogo não pode continuar.

segunda-feira, novembro 14, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 20

Capítulo 20

Quando anoitece, Fernando retorna para a casa onde decidira residir em definitivo. Uma casa que lhe traz muitas recordações, mas está disposto a enfrentá-las e conviver com elas. Afinal, foi a sua vida durante tanto tempo. Quem sabe, agora, ele a reconstrói e esquece para sempre o trabalho de jardineiro. Sabe que precisa andar na linha, para não voltar para a prisão, pois não suportaria voltar para aquele hospício.

Entra em casa e ao ligar o interruptor assusta-se com a presença de Linda, esperando-o na sala.

— O que está fazendo aqui? Como a senhora entrou?

Linda sorri e aproxima-se para abraçá-lo. A primeira reação de Fernando é afastar-se, mas lembrou-se das palavras de Alfredo, de que deveria ser cínico e não enfrentá-la. Então, dá um leve beijo na testa e afasta-se novamente perguntando como ela havia entrado.

— Desculpe, meu querido, não queria assustá-lo.

— Mas a senhora me assustou. Como vou imaginar que alguém estará aqui, dentro de minha casa? E se lhe dou um tiro?

— Você não faria isso. Sei que não pode usar armas.

— Mas eu tenho uma arma para defender-me. Por favor, minha tia, esqueça esse assunto. Não falamos em armas nesta casa.

— Não se preocupe comigo. Você sabe que estou sempre ao seu lado e farei tudo para protegê-lo.

Um pouco mais tranquilo, Fernando senta-se numa poltrona e observa que a casa está arrumada. Linda também senta-se a sua frente e , como se adivinhasse os seus pensamentos, comenta que organizara o que pudera, mas que a casa precisava de uma faxina mais esmerada.

— Sim, eu vou fazer isso. Mas por que estava no escuro?

— Eu estava descansando os olhos, pensando um pouco no passado. Ainda havia luz quando vim para cá, arrumei tudo e me sentei a esperá-lo. Foi escurecendo e fiquei aqui, quieta.

— Você tinha a chave da casa?

— Sim, é claro que eu tinha. Quando sua irmã ainda morava aqui, ela me dera a chave para vir quando precisasse de mim. Foi bem no período em que você esteve preso e ela, coitada, acabou estava muito deprimida. Depois foi embora, você sabe.

Fernando tenta mudar de assunto. Acrescenta que não tem nada para oferecer-lhe, pois ainda não comprara nada para a casa.

— Outro dia, eu virei aqui e você me fará um café. Hoje, está bem assim.

— A senhora teve a tarde de folga?

— Sim, como você. Parece que teve folga à tarde, também.

— Eu tive que resolver um problema.

— E está tudo bem? Quero dizer, em relação aos seus problemas com a justiça.

— Estou me mantendo de acordo com as normas. Acho que isso basta.

— Sem dúvida. Fico contente que você esteja superando tudo isso. Mas deve ter muito cuidado, você sabe que qualquer deslize, pode voltar para aquele inferno.

Alfredo concorda com um aceno. Linda prossegue, enfática:

— Por isso tem que tomar cuidado com quem anda, com quem conversa. Você não pode se meter em nenhuma furada. Quando o cara vai preso, ele fica marcado para toda a vida.

— Estou cansado desta história.

— Desculpe, só queria ajudá-lo.

— Eu sei, tia, mas por favor, não vamos mais falar nisso. – faz uma pausa e pergunta, tentando demonstrar serenidade – Mas me diga, tia, como vão os seus serviços com dona Santa? Parece que estão numa encrenca danada!

— Por que você diz isso?

— É o que todo mundo fala, que ninguém se entende naquela casa, é reunião em cima de reunião e os filhos ficam um para cada lado.

— É isso que você sabe?

— Tem mais alguma coisa?

— Não, na verdade eu sei muito pouco do que acontece naquela casa.

— E dona Santa não lhe conta nada? Não faz confidências?

— Dona Santa é uma mulher muito discreta. Não costuma falar sobre a sua vida.

— Então está tudo tranquilo, apenas fofocas dos empregados.

— Certamente. De minha parte, está tudo muito tranquilo. Dona Santa e eu somos muito amigas.

Fernando levanta-se,dirige-se à janela e observa a rua, por algum tempo, impaciente. Depois, abaixa a persiana e volta-se para Linda, perguntando:
— Mas a senhora não veio aqui apenas para arrumar a minha casa. Deve haver algum motivo.

Linda sorri, afetuosa.

— Você tem razão.

— Ah sim? – interessa-se, voltando a sentar-se. Ela prossegue no mesmo tom.

— Eu queria falar com você, mas não naquela casa. Foi muito bom você ter se mudado, por vários motivos, você sabe.

— Não, não sei. Quero dizer, sei os meus motivos, como por exemplo, ter mais individualidade, a minha vida própria. Morar naquela casinha, nos fundos daquela mansão me deixava sem ar.

— Você está sendo ingrato comigo. Eu fiz tudo para que se mudasse para lá, tivesse onde ficar.

— Sei tia, não me refiro à senhora. Mas sabe, que preciso ficar um pouco sozinho. Todos precisamos, não? Mas quais seriam os outros motivos?

— Você ter mais liberdade e não se envolver com a família. Não quero que fique como eu, uma pessoa da família, mas que na verdade, não passa de uma empregada.

— Mas você acabou de dizer que você e dona Santa são muito amigas. Eu pensei que era feliz naquela casa.

— E sou feliz. Sou muito feliz, porque me acostumei. Porque faz muito tempo que moro ali, e nem saberia mais viver noutro lugar. Mas você é jovem, tem uma vida pela frente. Deve construir a sua própria vida, a sua história.

— É verdade. Então me diga, sobre o que queria falar-me.

— Na verdade, eu vim alertá-lo.

— A senhora já fez isso, pediu que eu não entrasse numa furada.

— Sim, mas vou ser mais explícita agora. Eu acho que você não deve envolver-se com dona Santa.

— Como assim?

— Como lhe disse, eu gosto muito dela, mas também sei que ela não está bem de saúde. Outro dia, ela me pediu para chamá-lo, pois queria conversar com você. Eu tenho medo que ela acabe envolvendo-o em problemas.

— Não sei a que a senhora se refere. Há pouco, disse que tudo estava bem, que não havia nada de anormal na família.

— Meu filho, é que eu procuro não me intrometer nos problemas deles. Eles são eles, nós somos nós.

— A senhora está sendo contraditória.

— Fernando, por favor, tente compreender. Já que quer saber, eu vou lhe explicar o que sei, somente isso, porque não quero que você entre numa fria, como falei. Dona Santa está com problemas mentais, está confusa, se esquecendo de fatos importantes da vida dela e ao mesmo tempo, inventando outras histórias.

— Está ficando louca, então.

— Não sei, não sei. Talvez seja apenas uma fase, um problema provisório, talvez até uma depressão que vai passar um dia.

— E por isso, a senhora não quer que eu fale com ela.

— Não, de modo algum. Eu não disse isso. Eu não quero que você acredite no que ela diz. Aquele dia em que ela quis falar com você, deve ter pedido alguma coisa.

— Não pediu nada, ou seja, pediu.

— Eu não disse? Ela não está bem! O que ela queria?

— Queria que eu fosse na igreja e falasse com o bispo Martim.

— Com o bispo Martim? Não estou entendendo.

— Pois é, nada demais. Ela queria apenas uns documentos antigos, parece que a igreja tem documentos da família, certidões, coisas deste tipo.

— Que estranho! Por que não pediu a mim?

— Talvez não quisesse incomodá-la.

— Mas que documentos são esses?

— Como lhe disse, não sei ao certo. Acho que são certidões, registros da história da família.

— E você os pegou?

— Ele ficou de me entregar na semana que vem.

— Ah, então o assunto não tinha nada a ver com o sr. Sandoval?

— Não, ela nem falou nele. Por que teria?

— Não sei, dona Santa anda muito estranha. Mas olhe, que isto fique entre nós. Eu não quero de maneira alguma que isso se espalhe. Coitada, não merece ser criticada por aí, só porque anda meio confusa. De sua parte, acho melhor se afastar um pouco, e quando ela pedir alguma coisa, passe para mim a incumbência. Eu farei o serviço.
— Está bem, minha tia. Pode ficar traquila. Mas de qualquer modo, não há por que se preocupar. Eu quero distância daquela família. Quero viver a minha vida e logo que puder, que passar esse periodo difícil, eu vou cair fora.

Ela sorri, satisfeita. Em seguida, pede para Fernando chamar um táxi. Quando a vê afastar-se, Fernando liga para Santa.

sábado, novembro 12, 2016

O IDIOTA DE DOSTOIÉVSKI

Em 11 de novembro de 1821 nasceu o escritor russo Fyodor Dostoievsky, uma das mais importantes referências literárias na história.
Um dos seus mais relevantes romances, que revelam muito de sua visão da sociedade da época e de sua incapacidade de compreensão do individualismo que chegava com a modernidade, é o Idiota, um romance que traduz a realidade do escritor.

O protagonista, um príncipe chamado Liév Nickoláeivitch Míchkin sofria de epilepsia, uma doença considerada na época em que o livro foi publicado, 1869, como uma desordem psiquiátrica.

Ele foi internado num sanatório na Suiça por vários anos para tratar da doença e retornaria a Petersburgo, para receber uma herança deixada por um parente de seu seu pai. Ali ele pretendia retomar a sua vida.

A trama se desenvolve a partir da sua inadaptação à sociedade corrupta, incompatível com a sua integridade, lealdade  e senso de justiça.
 

Trata-se de uma narrativa densa, que envolve uma gama de personagens e situações que se desencadeiam nos vários entrechos que se cruzam, enfocando a personalidade austera, virtuosa e íntegra de Míchkin, que se opunha às demandas sociais manifestadas na esperteza, individualidade e injustiça.
 

Por outro lado, a obra apresenta uma narrativa tensa, por tratar-se de um romance de cunho psicológico, cujo pano de fundo é a doença e tudo que a cerca, transmitindo uma dramaticidade que influi nos personagens, tanto no protagonista, considerado um idiota, em virtude de suas convulsões e transitórios “apagamentos”, bem como em relação aos demais que demonstram o preconceito relacionado à enfermidade.

Este preconceito se dá através de atitudes grosseiras, levando Michkin ao isolamento.

Dentro deste universo, onde as atitudes ficam reféns dos preconceitos e descaminhos próprios de personalidades deformadas, a construção do ritmo da trama acontece sob permanente tensão.

Neste cenário, o autor delineia a perspectiva social, que segundo sua ótica literária e sua ideologia, a questão básica é a construção de um personagem perfeito.

Na construção do protagonista, observa-se características fundamentais de Jesus Cristo e atitudes e sentimentos muito próximos a Dom Quixote.

Na verdade, há elementos quixotescos, embora não propriamente cômicos, mas certamente o aspecto utópico, muito explorado no romance de Cervantes.

Pode-se afirmar que idiotice, neste caso refere-se à utopia, que é a ausência de lugar, ou seja, um lugar que não existe, que é apenas um sonho, uma fantasia. O ideal. O protagonista não é de lugar nenhum e a sociedade não consegue compreendê-lo.
   

Já a referência a Jesus Cristo revela-se no seu caráter social, onde o outro tem um peso igual ao seu na medida da justiça, do amor, da verdade e da honestidade. Ele ama o seu semelhante, tal como Cristo, e pretende distribuir o seu modo de sentir e ver a vida, na sociedade em que vive.

Entretanto, este despreendimento causa um estranhamento, um desconforto para a comunidade que não absorveu os seus conceitos, ao contrário, manifesta-se de forma oposta à que ele pensa.

É criteriosa no seu convívio, porque não lhe interessa a coletividade, nem o bem comum, mas sim a individualidade, o direito de cada um, não os seus deveres. Muito menos, os conceitos éticos, virtuosos ou morais.
 

A única condição de sobrevivência era o bom senso de preservar a sua vida e de se reunir em sociedade.

Míschkin é um homem sensato, além de seu caráter virtuoso.

Ele representa não somente um ideal humano, mas um ideal russo, que se contrapõe à cultura europeia. Para ele, a Europa estava se afundando num materialismo enquanto que a Rússia ainda propagava o espírito como fonte para uma vida melhor.

É um problema importante, inclusive sob o ponto de vista da efetividade do direito.

Quanto mais bom senso, as pessoas tiverem, menos lei. Não são necessárias leis para estruturarem regras para a sociedade, quando esta caminha no rumo certo, quando esta obedece a regras definidas e solidárias, cujo bom senso é utilizado.

Dostoévisk propôs, no fundo, esta questao da Rússia tradicional. Educar para deveres e não apenas exigir os direitos, como o grupo de Petersburgo agia. 

Neste enfoque, há uma noção clara de coletividade, tal como Míchkin se expressava. 

Nesta questão de direito, percebe-se que pelo fato de Míschkin ser um príncipe, o cruzamento das relações ligadas ao poder se estabelecem.

Durante toda a trama há questões juridicas, como a reivindicação de sua fortuna. Isso é relevante, porque ele nao enfrenta a questão simplesmente do ponto de vista matemático, ele se pergunta sobre a responsabilidade que tem sobre o outro, ou seja, uma questão paradigmática.

Trata-se de uma atitude surpreendente até para os dias atuais, porque o indivíduo que se envolve em pendengas jurídicas, preocupa-se com o seu direito, não com o seu dever, ou o direito do outro.

Ele, ao contrário, é alguém que se ocupa das outras pessoas, que se envolve emotivamente e possui uma postura ética que a modernidade nao entende.

No final do livro, retorna para a Suíça, o isolamento originário. Entretanto, o personagem em confronto com a sociedade corrompida pelos valores, não encontra um lugar neste meio.
 

Por fim, através dos confrontos de Míchkin e seus relacionamentos, percebe-se que o individualismo perpassa o texto. Apesar da construção excessivamente idealista do personagem, não ocorre uma interatividade que confirme o caráter bondoso do personagem através de mudanças nos demais.

Ele não toma atitudes que os ajude a serem pessoas melhores e que os qualifique a vivenciar uma mudança de paradigma naquela sociedade obtusa e obsoleta com a qual não se identificava. Ao contrário, ele tem uma impossibilidade prática para agir, pois não angaria apoio no grupo e embora, propondo soluções, ainda teme ser mal compreendido em seus ideiais e acaba não realizando nada.

Para comprovar a regra, ele tem uma ação efetiva com uma personagem, a qual a ajuda, recompondo a sua imagem social.

Por outro lado, sua ação se estabelece a partir da ajuda das crianças, talvez aí esteja a grande lição do autor, pois estas ainda não estão imbuídas de individualismo, não perderam a esponteneidade, ao ponto de compreender suas aspirações.
 

Por fim, pode-se afirmar que o romance expressa uma dramaticidade intensa, mostrando um homem inadaptado no grupo em que vive, porque está fora dos padrões estabelecidos.

O autor pretende além de traçar um perfil psicológico, mostrar a sociedade corrupta da época, a modernidade que chegava na Europa, através da industrialização, tornando as pessoas cada vez mais individualistas, integradas a uma cultura materialista que ele abominava.

Por outro lado, queria conservar e enaltecer a força espiritual da Rússia. Segundo ele, o sentimento patriarcal e ortodoxo era o caminho para a realização pessoal de seu País.
 

O idiota, de Dostoiévski é um excelente romance que vale à pena ler ou reler pelo seu conteúdo social e psicológico, através da construção humanística de seus personagens.

No Brasil, temos a tradução diretamente da língua russa, por Paulo Bezerra, do russo, 3.ª ed., Editora 34, 2010. 

A fotografia da vida de Santa - CAP. 19

Capítulo 19

No carro, faz-se um silêncio pesado. Parece que nenhum dos dois sabe o que dizer. Fernando porém ensaia alguns temas como o próprio trabalho, o tempo em que ficou desempregado e a proposta da tia para trabalhar na casa de Santa. Alfredo parece entediado. Não lhe interessa aquele assunto, muito menos falar sobre a vida profissional de Fernando.

Fernando conclui, satisfeito:

— Parece que somos amigos há muito tempo. Engraçado, quando há empatia, o assunto flui, não é mesmo?

Na verdade, não era o que estava acontecendo entre os dois, mas Alfredo concorda. Por fim, pergunta:

— Não acha que devemos parar num bar? Como lhe disse, seria bom conversarmos com mais calma.

Fernando sorri, confiante. Em pouco tempo, estão num bar, tomando uma cerveja.

— Então, me diga, o que é que você queria me dizer?

— Não sei, Fernando. É que sou um homem muito solitário.

— Mas nós não somos amigos. Sou apenas o jardineiro de sua mãe.

— Há pouco tempo, você disse que havia empatia entre nós.

— É verdade, mas… deixa pra lá. Não precisamos de um motivo para tomar uma cerveja, não é mesmo?

— Tem um motivo.

— Como assim?

— Você sabe que venho observando-o há algum tempo, deve ter percebido, não?

— Olha aqui, Alfredo, só quero lhe dizer uma coisa: eu não sou gay.

— Meu Deus, o preconceito é uma coisa terrível.

— Não, eu não tenho preconceito, se tivesse, não estaria neste bar, desculpe a franqueza, conversando com você.

— Você acha que dou pinta?

— Não, você parece mais macho do que muito cara que conheço, mas todo mundo sabe…

— Não se trata disso, Fernando. Não tem nada a ver com orientação sexual. Na verdade, eu nunca pensei em ter um caso com você, se é isto que o está afligindo.

— Ah, sim.

— Como disse, eu venho observando você, além disso, você sabe, sou advogado. Sei que não é uma coisa muito honesta, mas no meu meio, sabe-se de tudo.

— Que eu fui presidiário?

— É verdade. Eu sei tudo sobre a sua vida, sei também que você matou um homem.

— E o que isso tem a ver com o nosso papo?

— Quero que você me ajude. Acho que você é a única pessoa com quem posso contar.

— E o que você quer de mim?

Alfredo entorna o copo, sentindo a bebida gelada escorrer-lhe pela garganta. O suor empapa-lhe o colarinho da camisa. Por um momento, tem a sensação de que está conversando com a pessoa errada, na hora errada, mas agora não há como recuar. Solta o copo e abre um pouco a camisa, enquanto olha fixamente para Fernando.

— Sei que as coisas estão difíceis para você. Olhe, eu não tenho nenhuma intenção de prejudicá-lo, só falei isso porque você precisava saber com quem está lidando. Não podia simplesmente fingir que somente o conhecia como o jardineiro de minha mãe.

— Muito bem, até aí, eu concordo. Mas não entendi qual é a sua intenção.

— Bem, na verdade, eu preciso de um favor.

— Um favor? De repente, todo mundo precisa de um favor meu.

— Por que você diz isso?

— Nada. Esquece.

Alfredo faz uma pausa, pensativo. Em seguida, pergunta se Fernando não quer outra bebida.

— Você não acha que está bebendo muito para quem está dirigindo?

— É verdade, mas você não quer repetir a dose?

— Não. Gosto de beber com amigos, desculpe. Acho que esta já é de bom tamanho.

— Acho que você tem razão. É a segunda vez que afirma que não somos amigos.

Fernando fica calado, olhando para o copo. Alfredo prossegue, um tanto ansioso.

— Claro, claro, não faz diferença.

— Meu amigo, não enrola. Me diz como posso ajudá-lo.

— Preciso explicar-lhe com calma. O assunto é delicado.

Fernando decide pedir outra cerveja, considerando que o assunto será longo. Faz o pedido e o garçom se aproxima, trazendo a bebida em seguida. Alfredo então, põe as cartas na mesa.

— Bem, Fernando, a minha família está passando por um momento muito complicado. Vou resumir a parte que interessa e depois, vejamos como você pode me ajudar.

— Você se refere a sua mãe?

— Um pouco sobre ela sim, mas o problema maior é o meu pai.

— Seu Sandoval?

— Ele está com uns planos malucos, está sendo desonesto com minha mãe e eu preciso ajudá-la de qualquer maneira. Não vou deixar que a considerem louca.

Fernando lembra-se da conversa que tivera com Santa e do segredo que ela lhe confiara. Teria a ver com o que Alfredo falava neste momento?

— E o que você quer que eu faça?

— Quero que dê um susto no meu pai. Não quero matá-lo, não faria isso, mas quero que ele desapareça por uns tempos.

— Cara, eu não sou bandido. O que está havendo hem, todo mundo ta querendo me ferrar, é isso? Eu estou em liberdade condicional, querem que eu volte pra cadeia?

— Escute, Fernando, você vive naquela casa, praticamente todo o dia. Sei que desde que foi para lá, tem ficado na casa dos fundos, junto com Linda. Você deve estar a par de tudo.

— Eu vou sair de lá. Você sabe para onde estou indo agora.

— Tudo bem, você vai voltar para a casa que era de seus pais, mas continuará trabalhando em minha casa.

— Como assim, um susto?

— Eu pensei muito quando você pretendeu se mudar. É uma casa abandonada, num lugar afastado. Eu quero que você o leve para lá, por uns tempos, até que eu resolva todos os problemas de minha mãe.

— Você quer que eu sequestre o velho?

— Sim, mas será por um mês.

— Você não parece advogado, né, a menos que queira me ferrar mesmo! Então não sabe que toda a polícia vai procurar o velho na minha casa? Será o primeiro local que procurarão.

— Não, ninguém o procurar, não se preocupe, porque direi que ele decidiu viajar. Invento qualquer coisa em relação à empresa. Não se preocupe, não acontecerá nada com você.

— Que família desgraçada, hem!

— Por que diz isso?

— Porque a sua mãe também está planejando contra o velho.

— Como assim?

— Contra ele e minha tia. Parece que os dois estão de conluio, estão querendo enlouquecer ela, foi o que me contou. Então, ela quer que eu descubra tudo e consiga provas para mostrar a vocês, a toda a família o que eles estão aprontando.

— Meu Deus, eu tinha razão. Meu pai quer ficar com toda a fortuna, sozinho.

— Mas tem mais coisa aí, você sabia que seu pai tem um filho com Linda? Foi o segredo que sua mãe me revelou.

— Miserável! Eu não sabia de nada!

— Os dois tem um plano, mas não sei ainda se estão juntos por conveniência ou por que minha tia o chantageou.

— Então, o meu plano tem muito mais razão de existir. Este canalha não pode ficar impune!

— Mas o que você pretende fazer com o sumiço do velho?

— Nesse meio tempo eu pretendia provar que minha mãe é uma pessoa lúcida e capaz. Não posso deixar que ele participe do processo, porque vai moldar a situação de acordo com seus objetivos. Mas, agora sabendo o que sei, que você me disse, o caso muda de figura.

— Por que?

— Porque é muito mais grave do que eu pensava. Nós sumimos com ele e você aperta com sua tia. Nós vamos provar que os dois estavam planejando se livrarem de minha mãe.

— Eu não posso fazer nada contra minha tia, porque ela me ameaça, me joga na cadeia novamente.

— Mas você pode fingir que não sabe de nada e começa a se preocupar com ela, perguntar coisas. Não pode enfrentá-la, apenas. Tem que ser cínico.

— E o que eu ganho com isso?

— Eu posso lhe dar um bom dinheiro, é isso que interessa, não é mesmo?

— E o que eu faço com a proposta de sua mãe?

— Faça a sua parte, descubra tudo com a sua tia, não é o que ela quer?

— Sim, inclusive sobre os remédios. Sua mãe desconfia que minha tia está lhe dando calmantes fortíssimos, para que se esqueça das coisas.

— Muito bem, faça isso. E faça o que lhe pedi, tenha certeza que só tem a ganhar.

— E como vou fazer isso? Eu já lhe disse, eu errei uma vez, fiz uma burrada, acabei matando um homem, mas não sou um bandido. Eu não quero voltar pra prisão!

— Só tem uma maneira: fazer a coisa certa. Pode deixar, eu vou ajudá-lo.

Fernando coça a cabeça, intrigado.

quinta-feira, novembro 10, 2016

Como se desenvolve a criação

Quando escrevo, procuro difundir ao máximo as ideias pertinentes à história que está sendo construída.

Entretanto, os caminhos se diversificam e aos poucos, percebo que se algum preceito ou ponto de vista está na tentativa de ser disseminado, não passa desta etapa, porque a história segue um rumo quase determinado pelo crescimento ou não dos personagens.

Nada de extraordinário, apenas uma reflexão no fazer literatura, que, via de regra, pensamos ter as rédeas do texto nas mãos, mas o conteúdo foge de acordo com a imaginação e criatividade.

Na verdade, aí é que se dá a literatura, uma forma diferente de ver o mundo, de representar a realidade e não apenas mostrá-la com precisão jornalística.

Às vezes, torna-se necessário a desconstrução do texto para produzirmos o tão falado estranhamento, que pode trazer ao leitor a reflexão do tema que tratamos.

No entanto, a coisa deve surgir com naturalidade, sem acomodar muito a história a ponto de torná-la artificial.

É preciso saber unir a história que queremos contar com o desejo de chegar ao coração e à mente do leitor, sem vilipendiar nossos sentimentos e concepções de vida.

quarta-feira, novembro 09, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 18

Nosso folhetim dramático encaminha-se para os últimos capítulos. A seguir o capítulo 18, mas logo, logo chegaremos ao desfecho final.

Capítulo 18

As cores estavam esmaecidas. Paredes descascadas, velhas. Quando ele entrou e avistou a cena melancólica sentiu as pernas estremecerem e um rubor estranho percorrer-lhe o rosto. Aquele cheiro de coisa velha, mofada, o ar sofrido que o envolvia. Deu meia volta, pensando em fugir, mas desistiu. Parou na porta, segurando o marco, talvez para evitar afastar-se de vez. Seus olhos estavam perdidos. Não queria ver aquela coisa dissoluta que se transformara a sua casa. A sua vida, o seu passado.

Entrou devagar atravessando a sala em direção ao corredor que desembocava numa área que outrora fora verde. Quem sabe, respiraria melhor, ali. Seu coração estava agitado. Suas mãos suavam.

Procurou por alguma coisa no quarto. Sim, o quarto, antes de chegar a área. Era o seu quarto.

Aproximou-se da cama, deitou-se e ficou olhando para o teto. Estava tudo sujo, com teias de aranha e um cheiro de mofo que exalava dos cantos úmidos.

As palavras de Santa ainda martelavam em sua cabeça. Sabia que precisava ficar de um lado e estava com muitas dúvidas.

Fernando recostou-se na cabeceira e segurou a cabeça com as mãos. Por que sofria tanto, afinal a tia não significava muito para ele, a não ser que o havia ajudado a trabalhar naquela casa. Fizera-lhe um bem, é verdade, mas estava sempre ao seu encalço, rondando com uma certa ameaça, dizendo-lhe que um dia precisaria dele e que não poderia falhar. Se não a ajudasse, muito mais do que perder o emprego, seria perder a liberdade.

Na verdade, ela o usava, mas deixava o barco correr. Não podia fazer nada mesmo, estava bem daquele jeito. Tinha um trabalho, ninguém o incomodava.

Mas agora, havia aquele segredo que ele sabia e que talvez pudesse livrá-lo de seu jugo.

Por outro lado, teria de ajudar a patroa e fazer o que lhe pedira. Tinha que pensar.

Fazia tempo que não dormia naquela casa, que um dia fora de sua família e que agora estava abandonada.

Fazia tempo que não retornava ao seu quarto, às suas coisas, que deixara para trás, quando fora preso.

Ele agora senta-se na cama e revira as gavetas do criado mudo. Uma série de papéis, documentos, bulas de remédio. Talvez ainda houvesse alguma droga, mas não era isso que precisava naquele momento.

Levanta-se então e procura numa cômoda, abre várias gavetas e numa delas, encontra um embrulho com um elástico envolvendo-o.

Abre-o devagar, pensativo. Sabe do que se trata. Rasga o papel e retira uma arma, examina-a, engata o silenciador e fica apontando-a na direção da janela. Talvez precise usá-la.

Atira-se na cama novamente, e aponta várias vezes para o teto.

De repente, seus olhos se anuviam e sente uma forte raiva por Linda, ao mesmo tempo em que detesta Santa.

Afinal, as duas estão manipulando-o para conseguir os seus objetivos. O que ele nem desconfiava é que a tia tivera um filho no passado com o patrão. Onde estaria este rapaz?

O celular dá um alarme do whatsApp. Desbloqueia rapidamente a tela e vê a imagem de Alfredo surgir instantânea.

Pensa se deve responder-lhe. Fica em silêncio.

Em seguida, decide tomar a iniciativa que vinha protelando. Responde a mensagem. Alguns segundos depois, ele informa o endereço.

Solta o celular ali mesmo, na cama e sorri.

Quem sabe, as coisas podem melhorar para o seu lado, pensa.

Há tempos, o filho de dona Santa o olha de um modo estranho que parece convidá-lo a alguma coisa proibida.

Ao mesmo tempo em que se aproxima, também se afasta e o deixa entre os jardins, como se fosse um acessório que devesse observar e talvez achar bonito.

Algumas vezes, trocaram algumas palavras, nada demais, mas percebia em seu olhar uma intensidade que produzia muitas interrogações, nunca respondidas. Quem sabe, estava na hora de descobrir e encontrar um caminho para a sua vida que não estava nada tranquila, ultimamente.

Fernando já estava pensando em ir embora, quando tocaram a campainha.

Foi até a porta da frente e abriu-a para Alfredo, que o olhava angustiado.

Convidou-o a entrar, mas Alfredo exitava, dizendo que estava confuso e talvez fosse melhor conversarem noutro lugar.

— Mas qual é o problema? Esta casa era de meus pais, eu morei muito tempo aqui, agora estava abandonada e estou decidido a vir para cá. Por que você não quer entrar?

— Não é isso, quero dizer. Acho que deveríamos sair para um lugar público. Quem sabe, tomarmos uma cerveja.

— Do que é que você tem medo?

Alfredo olhou para os lados. Na esquina, um homem parecia observá-lo, caminhando pela calçada e voltando para o que ele supunha ser uma farmácia. Tudo, no entanto, parecia deserto.

— Eu não tenho medo de nada. É que nós nos vemos na casa de minha mãe, trocamos uma ou duas palavras, aliás, pouco vou lá.

— Mas então, o que você quer de mim?

Alfredo estremece. Olha novamente para esquina e observa que o homem se afastou em definitivo. Prossegue, ansioso:

— Você sabe, conversar um pouco. Mas acho que me enganei, forcei a barra com você, me desculpe, acho que fui longe demais.

— Não, espere, onde quer ir? Eu vou com você.

Alfredo se surpreende e responde, um pouco mais calmo:

— Estou com o carro aí na frente.

Fernando responde que é só o tempo de fechar a casa. Ao entrar, reflete no encontro que tivera com Santa e agora enfrenta o filho.

Sorri. Parece que a família está fechando o cerco.

Devem ter bons motivos para procurá-lo, principalmente Alfredo, pensa irônico.

Guarda a arma no bolso da calça e após fechar a casa, corre na direção do carro.

Alfredo o espera, sorrindo.

sexta-feira, novembro 04, 2016

A redação, a Apollo 11 e o grêmio literário

Eu estava à cata de informações para uma redação, na imaturidade de meus 13 anos.

Os acessos eram difíceis, embora houvesse os jornais, a TV, as revistas e principalmente a imaginação.

Naquele julho de 69, a Apollo 11 era a primeira missão de sucesso, com Neil Armstrong pisando na lua e surgindo nas telas da TV, numa imagem entrecortada de chuviscos e emoção.

Eu elaborara a redação com cuidado, tentando ser o mais verídico possível, sem ser previsível.

Naturalmente não possuía esta percepção de previsibilidade, mas por pura intuição, eu tentava ser original, no esforço de transformar o texto num produto bem elaborado.

Enveredava sempre que podia, pela imaginação, transportando meu mundo interior fundamentado na fantasia do espaço para o papel, procurando decifrar a perspectiva que possuia no avanço espacial.

Aquela nave maravilhosa, desenhando no céu uma centelha de luz, trazendo a nós, terráqueos, uma visão tão próxima da lua, com a certeza de que os astronautas pisavam pela primeira vez no solo inatingível.

Desta forma, realizei a redação, se não a melhor, uma das melhores de minha carreira de estudante.

Certo dia, o diretor da escola, um frade austero, de olhar frio e perscrutador, adentrou a sala, invadindo a aula de português.

Nosso professor, Irmão PL. recebeu-o com cortesia.

Um meio sorriso nos lábios, uma ansiedade contida, um torcer de mãos sob a batina branca, talvez na mesma expectativa em que estávamos mergulhados.

Ele era alto, cabelo ralo, nariz adunco, mãos grandes e dedos peludos. Tinha um olhar tranquilo, mas havia neles uma interrogação, que me inquietava.

Talvez não exatamente por sua conduta, mas pela minha maneira peculiar de observar as pessoas e considerá-las um produto promissor para minhas histórias.

Eu fiquei circunspecto, sem muita expectativa, a não ser imaginar que o assnto que levara o diretor à sala de aula, seria algum tipo de norma reformulada ou talvez um feriado religioso, no qual participaríamos em alguma solenidade.

Eu, magro, mãos sobre a mesa, olhar atento, cabelo caído na testa, a la Beatles, observava o cenário já meio enfadado.

Meus colegas cochichavam, faziam mil esforços intelectuais para descobrir o motivo do diretor aparecer assim, de súbito.

De repente, ele manifestou-se através de uma fala burocrática, citando a turma que, segundo ele estava bem orientada na aula de língua portuguesa , deu os conselhos de praxe e por fim, citou o meu nome.

O meu nome? Perguntei-me atônito, a que se referia.

Claro que perguntei mentalmente, sem abrir a boca ou piscar os olhos.

Alguns segundos e o diretor pediu que eu me levantasse.

Obedeci, pernas trêmulas, joelhos batendo um no outro, coração aos pulos.

Não sabia o que pensar, o que dizer, o que imaginar.

Nem passava pela minha mente confusa, qualquer indagação que não fosse uma temerosa culpa por alguma conduta indevida.

Ele então, mandou que eu sentasse, o que fiz de imediato, deixando cair os braços sobre a carteira, mãos presas na caneta, desenhando quase involuntário no caderno, tentando fugir daquela atmosfera de incerteza.

Ele prosseguiu elogiando a redação que eu fizera, acrescentando que havia sido muito bem avaliada pelos professores e que, em virtude da qualidade do texto seria publicada no jornal da cidade.

Quando afastou-se, os colegas todos me olharam, juntamente com o professor, que parecia abalado, pois nada dissera a respeito. Nem me cumprimentara.

Houve mil brincadeiras e muitos apelidos, culminando por me chamarem de poeta.

Para eles, qualquer um que escrevesse razoavelmente era um poeta.

Ou talvez fizessem uma leitura pejorativa, realçando que a sensibilidade não era prerrogativa de meninos. Não sei. Coisas que talvez Freud explicasse. Afinal, era um tempo de uma ideologia tecnicista, na qual as artes e filosofias foram excluídas.

No intervalo, as brincadeira se sucediam, mas eu estava feliz, porque o meu texto fora analisado, elogiado e comprovado publicamente que tinha qualidade.

Com o passar do tempo, eu tinha ainda mais ânimo para escrever, não somente as redações obrigatórias da escola, como outras histórias, que criava em total liberdade de meus pensamentos e imaginação.

Neste período, elaborava contos ou imensos romances, pontuados de ação, aventura e emoção, abrangendo deste modo, os sentimentos que imaginava aos personagens e suas tramas.

Era uma dramaturgia intuitiva e repleta de clichês, mas que ampliava a minha imaginação e de certo modo, o conhecimento literário, além de ampliar o gosto pela leitura.

Nos sábados, em que se realizava o grêmio literário da escola, costumávamos assistir os trabalhos feitos pelos colegas, cujas diversas turmas se reuniam e havia muitas apresentações, com a participação dos professores de português e inclusive de outras disciplinas que confraternizavam com os seus alunos.

Geralmente, alguns pais convidados também faziam parte da plateia.

Enumeravam-se poesias, crônicas e contos, que apresentados em sala de aula, e considerados os melhores trabalhos, eram apresentados à comunidade escolar.

Em determinado momento, o professor que apresentava os alunos, chamou um dos meus colegas de turma.

Todos ficamos aguardando na expectativa da apresentação.

Era um menino de cara rechonchuda, vermelha e um sorriso imenso nos lábios, considerado o guri popular da turma.

Já aplaudido pelo grupos de alunos e pais, abriu uma página datilografada e antes que se pronunciasse a respeito do tema, o professor anunciou tratar-se de uma redação sobre a chegada do homem à lua, ou seja, a Apollo 11.

Meu coração revirou-se, em saltos.

Os colegas voltaram-se de imediato para mim, criticavam e afirmavam que se tratava de minha redação, o que implicava em eu estar lá, no palco, lendo-a.

Perguntavam afoitos, por que eu não dizia nada?

O menino começou a ler, voz clara e bem colocada. Não modificou nenhuma palavra, nenhum artigo, nenhuma pausa.

Meu coração sim, quase pausava.

Meus lábios tremiam, tensos, incapazes de pronunciar uma sílaba sequer, músculos paralisados, pernas cravadas no chão, como estacas inanimadas.

O professor de português, ao nosso lado, impassível. Não foi capaz de informar que aquele texto havia sido escrito por mim. Não fora capaz de defender-me.

Como eu, no meio daquele público de adultos e crianças, poderia sair gritando que a tal composição era minha, que havia sido inclusive publicada no diário da cidade e elogiada pelo diretor da escola?

Não teria coragem para tanto.

Ali, conheci a mão pesada do apadrinhamento, da covardia dos mestres, do interesse dos superiores.

Deixaram-me na lona, Davi perdido, sem enfrentar nenhuma fera ou qualquer gigante.

Perdido, acabrunhado e triste.

Ali, conhecera a duras penas, o significado de plágio. Mais do que o plágio, a predileção por um aluno em detrimento do outro.

Se ao menos, nomeassem o autor do texto, eu me conformaria, mas todos os créditos foram para ele. Todos os louros. Todos os aplausos.

Pra mim, sobrou o constrangimento de não ter me levantado contra aquela injustiça.

Sobrou a crítica dos colegas, por meu acanhamento.

Sobrou a autocrítica por minha fraqueza.

Felizmente, sobrou também a vontade de lutar, de mostrar ao mundo o meu fazer literário, sem o medo do fracasso, pois se ocorrer, será somente meu.

Mas como tudo é aprendizagem e sublimação, a mágoa se transformou em representação na narrativa literária e só existe para vestir um personagem.

terça-feira, novembro 01, 2016

O piquenique

Aquela noite seria longa, mas provavelmente eu tenha caído no sono em seguida. A manhã chegou tão rápida que me ocupei de minhas coisas de modo a não perder um detalhe, a não esquecer a bola de vôlei, o estilingue e os guides.

A mala era pequena, eu não tinha aquelas mochilas modernas, não, era uma mala esquisita de lona e papelão.

Quando levantei, às 6 horas mais ou menos, tudo estava pronto, ou quase pronto à mesa, pois a condução que nos levaria ao passeio sairia às 7:30 horas.

Minha mãe se desdobrava em fazer o lanche e mais do que isso, dar os habituais conselhos. Não pega muito sol, te cuida dos lugares perigosos, olha os precipícios, fica sempre atento e não te afasta do grupo, muito menos da professora. Ela será o teu guia.

Não precisava de tudo aquilo, mas era de praxe.

As horas passavam rápidas, mas a escola ficava apenas quatro quadras de minha casa. Nada que fosse atrasar-me.

Eu estava ansioso. Ouvia com uma mão na mala e outra na xícara, atento ao que meu coração dizia, avesso ao discurso de minha mãe. Aliás, a preocupação dela era exasperante para qualquer mortal, mas para mim, que ouvira aquele lero-lero desde a noite anterior ou talvez a semana toda, era demasiado.

Certamente, todas as mães fazem a mesma coisa, todas engrossam o caldo das lamentações, dos medos, dos avisos e finalmente dos abraços e beijos, numa disposição enfática para que tudo dê certo, que o piquenique seja maravilhoso e que os filhos voltem sãos e vivos.

Minha mãe, é claro, não fugia à regra.

Meu pai, a esta hora, já estava longe, a caminho do trabalho e minhas irmãs nem sonhavam em levantar-se, ocupadas em que estavam em seus sonhos de adolescente.

Já eram praticamente sete horas quando tudo estava pronto.

Minha mãe insistiu em levar-me até a escola, tinha recomendações a fazer à professora, informar-se sobre horários e prováveis eventos durante o percurso, paradas no meio do caminho, horário para almoçar, os infinitos perigos que poderiam rondar os despreparados meninos, principalmente o dela, e ter a certeza absoluta que tudo correria bem.

Fui implacável, entretanto. Afinal era um menino de 10 anos, ela que me deixasse sozinho que eu me acomodava do meu jeito.

Fiz de tudo, até promessas que agiria de acordo com o que ela tinha recomendado, que faria o lanche na hora certa, evitaria os precipícios e principalmente que obedeceria à professora.

Tanto insisti, que ela concordou, desanimada, talvez refletindo se devia aceitar o meu pedido.

Foi o suficiente para eu pegar a mala, ajustá-la em meu corpo mirrado e correr para a rua em direção à escola.

Ela não me deixou chegar ao portão.

Abraçou-me, beijou-me, encheu-me de recomendações, aquelas mesmas que havia insistido em carimbar em minha mente, que a estas alturas estava conturbada pela ansiedade.

Depois dos abraços, afastei-me devagar. Ainda ouvi a sua voz desejando uma boa viagem e a sugestão que eu sentasse mais ou menos na metade do ônibus, porque era mais seguro. Na frente, sabe Deus, o que pode acontecer. Em caso de acidente, o primeiro que é atingido... parou aí. Acho que temeu prosseguir a frase e que o vaticínio involuntário acontecesse.

Então, sorriu e me acenou do portão.

Fui quase correndo em direção à escola. Estava feliz. Meu coração dizia que seria um piquenique daqueles!

Era o meu dia de liberdade, de ação, de vida e nenhum daqueles avisos ainda martelavam na minha cabeça.

Entretanto, chegando próximo à escola, para ser exato, faltando uma quadra, o ônibus repleto de alunos começou a mover-se, fazendo uma curva e dobrando em seguida na direção contrária ao meu movimento.

Meu coração bateu assustado.

Corri feito louco, tentando ocupar o lugar que era meu, o dia que se apresentava a mim, a vida que se desenrolava naquele veículo.

Ainda ouvia a cantoria das crianças, quando o ônibus dobrou na esquina.

Cheguei na escola desesperado e sem que dissesse nada, ouvi o porteiro anunciar que o ônibus esperara 20 minutos. O horário correto era às 7:00 e não às 7:30 como havia pensado.

Na verdade, pensei em tudo. Tive todas as recomendações do mundo. Só errei a hora da saída do ônibus.

À tarde, o veículo passou na esquina de casa, abarrotado de crianças ainda com toda a energia, cantando. Eu chorei.

Os dez textos mais acessados no mês de outubro ( 02/10 a 31/10/16)

1º. AS AULAS DE DONA MARINA

2º. O menino e o livro

3º. Webrádio de qualidade, com a melhor programação

4º. Trabalho voluntário no Hospital Psiquiátrico: uma provocação para a vida

5º. A margem oposta

6º. A fotografia da vida de Santa - CAP. 13

7º. Meu pai, a jawa e o Irmão Cassiano

8º. A fotografia da vida de Santa - CAP. 11

9º. A fotografia da vida de Santa - CAP. 9

10º. Alguns aspectos do filme “A

pele em que habito” de Pedro Almodóvar

Fonte da ilustração: fotografia do poeta e escritor Wilson Rosa da Fonseca.

As mulheres e as redes sociais

Pensando em minhas amigas das redes sociais e em centenas de mulheres que me cercam, surge uma série de sentimentos, em cascata, na tentativa de compreender as mulheres, ou pelo menos as diferenças que nos distinguem.

Diriam alguns que me conhecem, que falo de cadeira, visto que moro com duas mulheres (aqui vale esclarecer, uma esposa e uma filha).

Na minha família pregressa, o grupo feminino compunha-se de três mulheres, contando com minha mãe.

No colégio, entre amigos homens, havia sempre uma amiga confidente, a qual talvez tivesse a faculdade de decifrar outros horizontes, acenando para assuntos literários, culturais e políticos, temas proibitivos aos meninos, entre o jogo de bola e a autoafirmação da adolescência.

Na Universidade, nos cursos que ingressei, havia poucos homens. Em Letras, éramos ao cabo do curso, apenas três homens.

Na biblioteconomia, bem nesta área, além de haver muitas mulheres na sala de aula, havia a predominância do sexo feminino em todos os setores, na biblioteca.

Hoje, as coisas mudaram um pouco, e como no grupo de monges da idade média, os bibliotecários timidamente vão assumindo seus cargos.

Ao ingressar, algum tempo atrás, o grupo era formado tipicamente por mulheres, o que significa dizer que me habituei ao comportamento feminino. Tenho, inclusive, a pretensão de que as conheço, embora não consiga entender na maioria das vezes, as suas atitudes, cujos meandros tornam as situações um pouco confusas.

Às vezes, desconfio que percebo suas aspirações mais profundas, entretanto, sei que sou completamente ignorante aos seus verdadeiros interesses.

Por certo, sou enrolado por elas, porque eu e qualquer homem, desculpem a generalização, não consegue atingir o entendimento de uma mulher de modo integral. Talvez somente o Ronnie Von, com a sua elegância e desprendimento quase materno tenha esta faculdade.

As mulheres são capazes de nos surpreender a cada momento.

Isso não é mistério, nem para elas. Ao contrário, conhecem a tudo e a todos.

São afetuosas, corajosas, inteligentes, religiosas ou não, bregas ou refinadas, alegres ou melancólicas, amantes, amigas nas redes sociais, e ao mesmo tempo são tudo isso na vida real.

Não há nenhum descalabro nisso, o estranho seria se fossem diferentes.

Enquanto nós homens, nos policiamos para declarar qualquer coisa (a não ser os insensatos ou deslumbrados), elas abrem o verbo a toda hora e se posicionam abertamente, mesmo que derramem lágrimas e se mostrem fragilizadas ou deem risadas online ou se recolham ao recato absoluto.

São elas que participam intensamente do nosso dia a dia.

Tem uma capacidade ímpar para odiar e outra para amar indistintamente.

Enquanto que nós nos amparamos em verdades solidificadas, alicerçadas em patamares seguros e nos vestimos de armaduras, elas se revelam na mais primitiva alegria ou mais genuína tristeza.

Por outro lado, nos bandeamos para realidade, de um modo resguardado e tímido. E se o fazemos com alguma singularidade que demonstre afeto ou alegria, ainda nos perguntamos, quem é aquela pessoa mesmo? É meu amigo na rede? É minha parceira no projeto online que discutimos juntos?

As mulheres, ao contrário, conhecem todos os amigos das redes sociais, dos amigos dos amigos e dos que ainda pretendem se cadastrar!

Além do mais, encontram-se no dia seguinte, falam de mil coisas ao mesmo tempo, vão da pequena tragédia da esquina de casa, ao embate com o marido preguiçoso ou ao chá de panela da amiga, transitando pelo trabalho na biblioteca.

Nós nos enredamos no primeiro encontro dos amigos virtuais.

Nem sabemos quem são, na verdade e se o reconhecemos, lembramos de um personagem que nos deparamos na rede, dissociado do ser real a nossa frente.

Trocamos nomes, esquecemos fisionomias e lembramos fatos de outrora que nem são adequados, na maioria das vezes, ao momento daquele encontro banal.

Para completar, ainda somos desligados no dia a dia, não sabemos fazer duas coisas ao mesmo tempo, somos ansiosos e atemporais.

Enquanto as mulheres se alinham na fila correta para o lugar adequado nas palestras, por exemplo, nós ainda estamos nos perguntando quem se apresenta lá.

É, elas tem tino apurado nos relacionamentos sociais, sabem se esgueirar com agilidade e elegância entre as diversidades de comportamento. Uma façanha pra nós. Uma qualidade habitual para elas.

Nós, somos mais duros e restritos.

Talvez amemos tanto quanto elas, talvez sejamos tão afoitos em sermos felizes quanto elas, mas sem dúvida, elas tem a singularidade de se dividir em várias facetas, enquanto nos perdemos na maneira restrita de encarar as situações.

Cabe aqui uma piada, que adaptei livremente, de acordo com o contexto representativo do universo masculino.

“Contam que num velório de certo internauta, havia meia dúzia de amigos. Conversavam entre si, ensimesmados, até que um deles perguntou à esposa:

— Mas ele não tinha tantos amigos, onde anda este pessoal? Se não me engano, eram mais de 500 amigos no facebook!

Ela respondeu, resignada:

— São todos virtuais.”

Por esta e por outras, as mulheres possuem a capacidade de armazenar a qualidade nos seus conteúdos online.

São softwares de imensa segurança em hardwares precisos.

Por certo, não são os proprietários, feitos numa forma certinha, restrita a determinados aplicativos.

Devem ser software livres, de conteúdo aberto, sem modelo padrão, capazes de se metamorfosear e buscar a condição de serem felizes.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/tablet-dedo-not%C3%ADcias-mulher-menina-1716296/

A fotografia da vida de Santa - CAP. 16

No capítulo anterior, após o desmaio, Santa não conseguiu comentar com Linda sobre a conversa que tivera, na qual ela havia negado o próprio passado, pois voltou a sentir-se mal. No dia seguinte, porém, estava decidida a fazer alguma coisa, que deixava Linda preocupada. Pedira para falar pessoalmente com o jardineiro, o sobrinho de Linda. A seguir o décimo sexto capítulo de nosso folhetim dramático.

Capítulo 17

Ao chegar no gabinete, o jardineiro mostrava-se preocupado por ter sido convocado pela patroa. Sentou-se numa cadeira, sentindo-se desconfortável. Santa, no entanto, parecia muito segura e com uma intenção objetiva.

— Bem, Fernando, o que tenho a lhe dizer é bem simples e fácil de resolver.

— Eu fiz alguma coisa errada, dona Santa?

— Não, você não fez nada errado, não se preocupe. Ao contrário, gostamos muito de seu serviço.

— Então, não estou entendendo porque a senhora me chamou aqui.

— Por que vocês acham que sempre que são chamados é para serem advertidos?

Ele tentou responder, mas ela o interrompeu, prosseguindo o assunto que pretendia tratar:

— O que eu pretendo de você Fernando é uma coisa que deve ficar em absoluto segredo. Você não pode contar para ninguém, até chegar a hora, nem mesmo para a sua tia Linda.

— Que coisa estranha, dona Santa. Desculpe falar assim, mas é que ninguém me pediu um segredo, principalmente em se tratando da patroa.

— Então me diga, Fernando, por que está aqui?

— Como assim? Eu preciso trabalhar.

— Eu sei, todos precisam, principalmente agora com esta crise econômica, com tanto desemprego.

— Pois então, é por isso.

— Mas você não precisava estar aqui como um jardineiro. Você poderia trabalhar dentro de sua profissão.

— Não sei o que a senhora quer dizer, dona Santa. – Neste momento, ele se mostra nervoso, movendo as pernas num gesto quase involuntário. – Santa prossegue, incisiva. – Você é um engenheiro, Fernando.

Ele não diz nada, mas empalidece rapidamente. Santa aproveita para complementar com mais ênfase:

— Você poderia trabalhar numa empresa de construção, sei lá. Por que está aqui, volto a perguntar. Qual é o seu interesse em trabalhar como jardineiro, recebendo um salário modesto. Quero que seja muito sincero, Fernando.

— Bem, dona Santa, acho que depois da nossa conversa, com certeza vai me mandar embora.

— Vai depender da sua honestidade. Quero que abra o jogo.

— A senhora sabe que sou sobrinho da Linda, e que ela a convenceu a me contratar.

Santa concordou com um aceno e permaneceu em silêncio.

— Pois bem, ela na verdade me criou depois que minha mãe faleceu, eu tinha uns 14 anos.

— Como assim, Linda sempre morou nesta casa.

— Criou é maneira de dizer, ela me ajudou nos estudos, na manutenção da casa. Morávamos eu e minha irmã e ela sempre nos visitava aos domingos. Ela nos ajudou muito.

— E seu pai?

— Meu pai? Bem, eu não o conheci, dona Santa.

— Muito bem, quer dizer que Linda ajudou a família de sua mãe. Era irmã dela?

— Sim, elas eram irmãs.

— Muito bem, Fernando. Eu só não estou entendendo o que tudo isso tem a ver com a pergunta que lhe fiz.

— É que eu queria mostrar que ela sempre se importou muito comigo, com a gente. Minha irmã hoje é casada e mora no interior.

— E você se formou em engenharia civil. Há quanto tempo?

— Uns sete anos.

— E nunca trabalhou na área?

— Trabalhei sim, tabalhei numa empresa durante dois anos, mas é que eu fui demitido.

— Por quê?

— Dona Santa, eu não entendo o seu interesse. Eu sou um bom jardineiro, não me meto na vida de ninguém. Por que tudo isso, agora?

— Porque você está na minha casa, trabalhando para a minha família e eu preciso saber com quem estou lidando.

— Mas minha tia deve ter lhe falado sobre mim. Ela sabe que sou gente de bem.

— Por que você foi demitido? É por isso que não pode voltar a trabalhar como engenheiro?

— Eu fui preso, a minha ficha é suja e ninguém me aceita em lugar nenhum, é isso que a senhora queria saber? – Pergunta, indignado, levantando-se da cadeira e se aproximando da mesa, na qual Santa está do outro lado, sentada. Ela também altera a voz – Acalme-se rapaz, eu não estou julgando ninguém, por enquanto.

Ele volta a sentar-se e abaixa a cabeça, desolado. Depois, a olha com indisfarçável ansiedade. Santa volta à carga e pergunta qual fora o motivo de sua prisão.

— Eu sabia que não ia dar certo, mais dia, menos dia, a coisa ia estourar. Mas, Linda insistiu, achou que poderia segurar as pontas, olha no que deu!

— Por enquanto, não deu em nada. Eu também tenho um segredo, uma coisa que preciso que faça para mim, mas tem que ser honesto comigo. Tenho que saber tudo.

Ele fica um pouco pensativo, mas em seguida, parece estar disposto a falar:

— Bem, eu me envolvi com uma turma da pesada, eu usava drogas e precisava deles. Não era nada muito forte, sabe, cocaína, mas eu não tinha vício, não era dependente. Mas aos poucos, fui sendo convencido a ter mais dinheiro, muito dinheiro. Eles tinham um plano, arrombar o caixa eletrônico da firma em que eu trabalhava. Eu sabia tudo, conhecia toda a estrutura da firma, o dia em que o dinheiro chegava, quem ficava nas câmeras, a hora que trocava o turno. Então dei as dicas, e eles planejaram entrar na empresa numa noite, mas alguma coisa deu errado, pois apareceu um vigilante que me conhecia e ele havia trocado de turno, naquele dia. Então, eu o matei. Não tinha outro jeito. Foi aí que tudo desandou, a polícia foi acionada, eu ainda fugi, mas era tarde demais. Dois membros do bando foram presos e eu fui logo em seguida. Passei cinco anos e estou na condicional.

Santa fica petrificada. Tudo acontecendo a sua volta e ela não sabia. Agora ela teria a chance de pôr o seu plano em ação. Aproximou-se de Fernando e pediu que se acalmasse. Disse-lhe que preferia a verdade do que ser enganada o tempo todo.

Ele então, olhando-a ainda desconfiado, perguntou:

— Qual é o segredo? O que a senhora quer de mim?

Fonte da ilustração:https://pixabay.com/pt/jardineiro-trabalhador-jardinagem-1435463/

domingo, outubro 30, 2016

Loiralice, o Opala vermelho e o futebol

Eu e meu amigo Saulo inauguramos nosso desejo de assistir um grande jogo de futebol. Acostumados com os times pequenos de nossa cidade, assistir Grêmio e Corinthians era uma verdadeira odisseia. Uma marca em nossa carreira de torcedores, que na época, antes das desilusões derradeiras, éramos fanáticos.

Saulo era um sujeito estranho. Gente boa, grande amigo, sempre disposto a apoiar em qualquer situação difícil, mas tinha uma conduta peculiar que  chamava à atenção.

Eu não conseguia convencê-lo de que as suas atitudes eram inadequadas, pelo menos, pois sempre dava um jeito de dar outro rumo à conversa.

Uma de suas extravagâncias, era a mania de interpretar papéis que destoavam de sua rotina. Se participávamos de uma reunião de jovens da igreja, ele demonstrava estar em êxtase, perdido nos trâmites iluminados do divino, ascendo à postura angelical, quase um santo. Mas quando estávamos juntos, toda a encenação se dissolvia e se transformava no jovem de classe média, com pouca espiritualidade e muita disposição para ser o que realmente não era.

Outras vezes, convencia a si mesmo, que era um intelectual. Participava de palestras de quaisquer assuntos, pois a todos tirava de letra, segundo seus pensamentos egocêntricos. Metia-se em polêmicas doutrinárias, ideologias, filosofias e demonstrava uma facilidade extrema para cercar-se de neologismos, sofismas e saídas rasteiras, onde se locomovia como um larápio nas noites escuras, deixando a todos de boca aberta. Às  vezes, até acreditava que ele tinha razão. Pelo menos, até cair a ficha.

Mas voltando ao futebol, o nosso assunto a partir daquele momento, passou a ser o jogo ao qual assistiríamos de camarote. Já imaginávamos o povo se acotovelando nos metrôs, os carros pipocando nas avenidas, milhares de pessoas nas passarelas, vestidas em uniformes, tingindo de azul preto e branco, numa mistura de cores que dosavam os matizes dos times em disputa.

Víamos também nossa imagem, refletida em nossa mente fantasiosa. Eu, vislumbrando o cenário, imaginando uma história a contar, olhares argutos, coração e mente atentos, ouvindo o rugir da torcida e o trovoar dos foguetes, na entrada dos jogadores.

Ele, ao meu lado, levantando a todo o tempo, antes mesmo de comemorar qualquer coisa; cabelo curto, pois se considerava um tipo formal, nariz adunco e olhar investigativo, numa performance nova, talvez até torcendo pelo inimigo.

Mas eram só conjecturas, pois ainda estávamos em nossa cidade natal.

Ele chegou com a novidade, de que iríamos num carro novo, tinindo, zero quilômetro, um Opala vermelho, com todos os acessórios considerados de luxo para a época. Disse-me que havia alugado o carro, pois não iríamos no ônibus de excursão, com àquela gente cheirando à cachaça, misturada a desodorante Mistral.

Sorri e percebi que o Saulo havia incorporado outro papel.Tentei dissuadi-lo da ideia, pois não tinha muita prática em direção, mas ele me saiu com uma proposta mais absurda ainda:

— Não, não, nada disso. Teremos um motorista.

— Um motorista? – perguntei intrigado.

Ele pousou aquela mão enorme sobre o meu ombro e concluiu, confiante.

— Deixa comigo. Amanhã é o grande dia.

E assim foi. No dia seguinte, estava à espera, olhando pela vidraça. Um sol forte produzia flashes no para-brisa do imponente opala. Olhei para direção para verificar se havia o tal motorista e qual minha surpresa, uma morena depositava as unhas vermelhas no volante, fitando-me de uma maneira tão incisiva, que parecia exigir que eu entrasse, sem fazer perguntas. Obedeci, sentando no banco detrás, largando a mochila e olhando surpreso para o meu amigo, que virava o pescoço comprido para trás, perguntando se eu lembrava da Loiralice.

Ela atravessou o olhar pelo retrovisor, fuzilando como defesa, antes de qualquer investida.

Claro que me lembrava, no meu machismo pós-adolescente, Loiralice era apenas a morena gostosa, das festas do colégio, que segundo as conversas de corredor, já havia conhecido a intimidade da maioria dos guris. Tinha esta qualidade, mas a profissão de motorista era uma novidade, pelo menos pra mim.

Hoje, ela já passava dos trinta, bem mais velha do que nós, já que na época da escola, ainda estávamos no primário e ela já avançava no ginásio, se bem, que quase a pegamos, no bom sentido, porque via de regra, repetia de ano.

Loiralice não era do ramo. Estudar não era sua melhor aptidão. Quem sabe, como motorista, revelaria dotes desconhecidos. Devia dar uma chance, afinal, como ser preconceituoso, só por ser a Loiralice? Pois Loiralice arrancou de primeira.

O carro não corria, deslizava. Era uma suavidade só, uma sensibilidade, uma coisa feminina, que norteava seus gestos, suas mudanças, seus retornos ou paradas em sinaleiras. Sutil, sóbria, tranquila. Cada adjetivo que eu pensasse se encaixava nas mãos de Loiralice.

Ela obedecia as regras da direção com tanto cuidado e recato, que mal desconfiávamos que era a mesma Loiralice que conhecíamos.

Meu amigo sorria, satisfeito, boca grande, dentes irregulares, nariz quase batendo no queixo. Achava que fizera uma ótima aquisição.

Loiralice era excelente motorista. Consciente, cuidadosa, preocupada com os animaizinhos soltos na rua, com os velhinhos que atravessavam descuidados, com as meninas das escolas, passinhos amiúde, ocupadas em suas histórias, quem sabe os cuidados com os cadernos e as primeiras paixões da infância.

E vá adjetivos à Loiralice.

Loiralice era assim, quase uma mãe. Logo ela, tão exuberante, voz altiva, boca bem desenhada e pintada de vermelho sangue, olhos delineados, com aquele traço preto que quase atravessava a fronte em direção à orelha.

E os trajes? Loiralice não tinha recato, nem qualquer censura. Usava os decotes como arma de sedução, abusava das saias curtas, revelando pernas bem torneadas e tão lisas, que tinha-se a impressão de que qualquer objeto deslizaria por elas infinitamente.

Assim era Loiralice: esta faceta sensual bem mais conhecida.

Mas agora, parecia outra pessoa. Tal como Saulo, que se metamorfoseava em distintas situações, ela agora se investira na mulher sensata e cumpridora dos deveres e das leis.

Entretanto, havia um senão, um detalhe que envolvido naquele mar de novidades, passara desapercebido: Loiralice estava lenta demais. O carro não passava dos sessenta.

A cidade parecia nos puxar para dentro, ao invés de nos afastarmos, como naquela poesia em que as ruas acenam, despedindo-se da moça no trem, as casas ficam distantes,  os automóveis, as crianças, os cachorros de rua, os gatos despreparados, tudo se dilui na distância.
 

Nós, ao contrário da moça do trem, éramos atraídos para o interior da cidade e não para a zona rural.

A sensatez de Loiralice deixava que o mundo passasse por nós, até o ônibus de excursão, com centenas de torcedores pendurados às janelas, acenando bandeiras, soprando instrumentos, batendo tambores e gritando.

Aos poucos, as latas velhas do ônibus desapareciam na poeira da estrada e nós ficávamos, ali, à mercê de Loiralice, quase uma traição de nossos desejos mais profundos.

Nos olhamos de soslaio, respiramos fundo, gaguejamos, resmungamos alguma coisa, fizemos mímica e nos entendemos com profusão.

Decidimos chamar a atenção de Loiralice, a principio com sutileza, com delicadeza para não ofendê-la.

Começamos informando sobre a potência do veículo, que gastaria muita gasolina, caso a velocidade exigida pelo motor estivesse aquém e que por fim, demoraríamos muito tempo e ela fatalmente se cansaria demais.

Ela então, inesperadamente, parou o carro, numa freada brusca. Não era a freada de Loiralice.

Ficamos em silêncio absoluto.

Não questionamos, não abrimos a boca, mas nossos corações palpitavam desenfreados, um dizendo para o outro, que o cruzamento havia chegado.

Loiralice iria desfazer o nó. Ou aceitava a nossa proposição ou ... Não sabíamos a sua reação.

Quando íamos abrir a boca, soou aquela voz sonora, melodiosa e forte de cantora de pagode:

— Olha aqui, pessoal. O meu trato é esse. Dirigir até Porto Alegre. Mas eu não arrisco a minha vida. Se querem correr, se querem se matar, que vão sozinhos. Tenho dito.

Loiralice tinha desses caprichos, como as expressões antiquadas de políticos.

Tentamos então convencê-la, argumentamos de todas as maneiras, imploramos até, mas ela era radical e definitiva. Desceu do carro, dizendo que voltaria de ônibus.

Ficamos paralisados por um momento, assistindo-a dirigir-se até uma parada que ficava alguns metros adiante.

Então, num ímpeto, corremos até ela e pedimos que voltasse, aceitaríamos, com reservas, é claro, as suas determinações.

Ela aceitou, arrumou o penteado, ajeitou o vestido amarelo-queimado nas nádegas, acertou o passo na sandália dourada e voltou para o carro. Então, prosseguiu suave, sutil, deslizando no asfalto, delicadamente e sendo ultrapassada por todos os meios de transporte imagináveis, desde caminhões e ônibus até carroças e bicicletas. O cúmulo do desespero foi quando um corredor, que avistamos na saída da cidade, passava por nós e acenava satisfeito. Cuspimos com raiva pela janela, ouvindo um trovoar de palavrões.

Com o passar do tempo, tanto eu quanto o meu amigo, suávamos de ansiedade. Então, perguntei porque ele não dirigia, já que eu não poderia, pois não tirara carteira.

Ele confessou que nem sabia dirigir, o que confirmou mais uma de suas fantasias. Não sabia se me indignava com Loiralice ou com ele.

As horas passavam. No rádio, comentavam sobre trio de arbitragem e nós nem tínhamos chegado ao paradouro, um local que praticamente divide o percurso.

Em dado momento, Loiralice desviou o automóvel da rodovia, pegando um atalho. Perguntamos atônitos para onde ia.

Ela pairou o olhar em nossas fisionomias desesperadas e afetuosa, comentou:

— Vamos fazer um lanchinho, não?

— Não! – gritamos em uníssono.

Mas fizemos o tal lanche e assistimos a entrada dos dois times pela televisão do bar à beira da estrada.

sábado, outubro 29, 2016

O menino e o livro

O menino punha as mãos nas páginas devagar. Escorregava os dedos e percebia que além do som e do movimento, havia alguma coisa ali que o prendia.

O menino sabia que era o conteúdo.

Mas como conhecer o que está escrito, sem decifrar os códigos.

E quais são os códigos? As letras, os sons, os fonemas.

Conhecia pouco de tudo isso: uma sílaba aqui, uma letra dali e formava-se a palavra e de palavra em palavra, descobria o mistério.

O menino era sábio.

Percebia que tudo é uma coisa só: leitor, leitura, autor, ideias.

Tudo vem na mesma viagem.

O trem carrega o texto e o texto carrega o trem. Assim a trajetória se forma.

O livro é como o trem, matutava o menino, assim repleto de gente, de mercadorias, de cargas que vão de um lugar para o outro.

Todos têm importância no caminho.

A leitura é isso.

Por isso, foi criado o dia nacional do livro, 29 de outubro, quando Portugal disponibilizou grande acervo da Real Biblioteca para a nossa biblioteca, aqui no Brasil.

O menino descobriu isso também, inclusive que o local escolhido ficava em salas do Hospital da Ordem Terceira do Carmo, no Rio de Janeiro.

Depois, no dia 29 de outubro de 1810, fundou-se a Biblioteca Nacional do Livro, noutra região do Rio de Janeiro.

Ah, o menino conheceu outra novidade: Há muito tempo atrás, após a criação da prensa tipográfica, por Johannes Gutenberg (1398-1468), deu-se a publicação do primeiro livro em série, que ficou conhecido como a Bíblia de Gutenberg.

E no Brasil, o primeiro livro publicado foi Marília de Dirceu, escrito por Tomás Antônio Gonzaga.

É preciso festejar o dia do livro, porque ele decifra a história e nós fazemos parte dela.

Tudo a mesma coisa, pensou o menino.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/figura-de-pedra-menina-leitura-1464796/

A fotografia da vida de Santa - CAP. 15

No capítulo anterior, Santa sente-se isolada da família e até mesmo Linda que a ajudaria, parece empenhada em desestabilizá-la. De repente, Santa percebe que alguma coisa nova está acontecendo, da qual ela não tem o mínimo conhecimento. Linda tenta convencê-la de que está confusa, a ponto de negar tudo que acontecera, inclusive as suas conversas. Por fim, convence Santa a tomar uma xícara de chá que a deixa zonza. A seguir o décimo quinto capítulo de nosso folhetim dramático, neste sábado,29/10/16.

Capítulo 15

Santa aos poucos, acorda com a sensação de que levou uma bordoada na cabeça. Não sabe com certeza o que aconteceu, lembra apenas que Linda estava ao seu lado e que teve a sensação de desmaiar. Olhou em torno e tentou levantar-se. Por que estava ali afinal? Se desmaiara, por que Linda não a ajudara? Esforçou-se para sentar na poltrona, sentindo-se um pouco zonza. Lembrava que Linda havia trazido uma xícara de chá.

Neste momento, Linda aparecera, mostrando-se ansiosa e preocupada:

— Ainda bem que a senhora melhorou. Eu fui chamar ajuda e não encontrei ninguém, por isso, havia saído.

— O que aconteceu, Linda? Eu estava no chão, tive uma dificuldade imensa em levantar-me. Lembro que tive uma sensação de desmaio.

— É verdade, dona Santa. Eu fiz tudo para acordá-la, mas não consegui, por isso fui buscar ajuda.

— Mas e Sandoval? E os demais empregados?

— São uns inúteis, cada um nas suas tarefas. Quando consegui comunicar-me, já era tarde demais. Então decidi chamar o médico e vir para saber como estava.

— Descarte o médico. Estou bem.

— Tem certeza de que está bem, dona Santa? Não gostaria que a minha amiga piorasse.

— Estou bem, sim. Mas e Sandoval, você não me disse onde estava. Que aconteceu com ele?

— Ele havia saído.

— Está bem, então acho melhor ir para o meu quarto. Estou cansada.

— Eu posso ajudá-la.

— Linda, parece que nós estávamos conversando e o assunto me parecia importante, só não consigo lembrar. De que se tratava?

— Ah, nada importante, dona Santa. Não quero constrangê-la de modo algum.

— Como me constranger?

— Acho que disse uma bobagem, é que a senhora me pareceu muito confusa. Não dizia coisa com coisa. Mas vamos esquecer isso. Vou lhe trazer alguma coisa para comer, a senhora vai para o seu quarto e descansa. Amanhã, com certeza, estará melhor.

— Você quer dizer que eu me constrageria por estar confusa? É isso?

— Esqueça isso, dona Santa. é uma bobagem.

— Espere aí, Linda. Agora estou me lembrando. Você negou o seu passado, tudo o que sabemos e compartilhamos juntas. Você negou que tem um filho com o meu marido.

— Eu já tinha lhe pedido para esquecer esta história maluca.

— Não, não quero esquecer, ao contrário, quero lembrar tudo muito bem.

— Quem sabe, conversamos isso noutra hora? Olhe, tomei a liberdade de trazer um comprimido para acalmá-la.

— Não preciso de calma – ao dizer isso, sente uma forte dor de cabeça acompanhada de uma leve tontura – meu Deus, parece que não estou bem mesmo.

— Que está sentindo, dona Santa? Por favor, me fale, me ajude a ajudá-la!

— Estou bem, Linda. Não foi nada.

— Quem sabe tomando a pílula que trouxe, vai melhorar? Quer tentar, foi o seu médico que receitou.

— Está bem. Dê-me este comprimido e vamos para o quarto. Quero dormir e esquecer tudo isso. Amanhã, colocarei tudo em pratos limpos.

— É o que mais desejo, dona Santa. Não gosto de vê-la assim, com estes transtornos. Quero-a lúcida, como sempre foi.

Santa não responde. Acha melhor não questionar mais nada à Linda que parece determinada em pôr um véu em tudo que ela pensa. Na verdade, quer livrar-se dela e ir para o quarto. Está exausta e sua vontade é não ver ninguém. No entanto, sente-se fraca e precisa da ajuda da empregada, que a ampara até o quarto.

Na mãe seguinte, Santa acorda com dificuldade, como se o mundo viesse abaixo. Sabia que deveria consultar o médico, mas ao mesmo tempo percebia que havia alguma coisa errada nesta situação. Refletiu muito em tudo o que acontecera, a mudança extraordinária de Linda, a ausência de Sandoval e até mesmo dos filhos. Então, tomou uma decisão, que parecia a correta. Quando Linda apareceu, ela resolvera tomar o café na varanda, que se ligava ao jardim.

Linda aproximou-se, solícita, tentando agradá-la.

— Não precisa se preocupar em servir-me, Linda. Ana já fez o serviço com muita dedicação.

— Esta moça está há pouco tempo aqui, é muito inexperiente.

— Mas está aprendendo. É o que importa.

— Sem dúvida. Espero mesmo que ela progrida. A senhora precisa de pessoas que lhe ajudem, não a atrapalhem. Não é por me gabar, mas sempre fui uma presença amiga, e só lhe falava ou a servia, quando me pedia.

— Então, me faça um favor, Linda. Diga-me o nome do rapaz que trabalha no jardim, o último que você contratou.

Linda tem um leve estremecimento, mas se contém. Pergunta, dissimulada de quem se trata.

— Você já o esqueceu? Se não me engano, ele é seu sobrinho.

— Ah, a senhora se refere ao Fernando. O que pretende com ele, dona Santa?

— É um assunto que terei apenas com ele. Acha que devo informá-la antes, Linda?

— Não, de forma alguma dona Santa. Eu, na verdade, não tenho nada a ver com isso. Apenas, fiquei preocupada, a senhora sabe como são estes rapazes hoje em dia, eles estão sempre querendo subir na vida, e fazem qualquer coisa para conseguir o seu objetivo.

— O seu sobrinho é deste naipe?

— Não, acho que não, mas sabe como é, tem pouca maturidade, pode ser influenciado por outras pessoas.

— Então você pode influenciá-lo a se comportar bem. Fale com ele e diga que quero conversar com ele no gabinete, ainda hoje à tarde.

Linda suspira, nervosa. Mas em seguida, conclui que fará o que a patroa pediu. Em seguida, tenta mudar de assunto:

— Parece que a senhora está muito bem hoje, não. Eu vi quando o seu Sandoval saiu bem cedinho, mas a senhora decidiu esticar um pouco mais na cama.

Santa não respondeu. Linda então, prossegue, fingindo-se animada:

— Fico contente que tudo tenha passado, aquele seu mal estar foi coisa pequena, com certeza, embora eu ache que devesse procurar um médico.

— Linda, me diga uma coisa, você aprendeu muito nesta casa. Você teve até uma professora particular que a ajudou a escrever bem, a ler, a falar com muita propriedade. Você aproveitou as oportunidades. Acabou inclusive fazendo um curso técnico.

— Sim e sou muito grata por isso, dona Santa. Eu jamais poderei agradecer o que vocês fizeram por mim. Mas por que está falando sobre isso?

— Nada, estou só lembrando. É bom a gente de vez enquanto refrescar a memória, para saber em que patamar estamos dentro de determinada realidade.

— A senhora me deixa assustada. Parece que fiz alguma coisa errada.

— E não fez?

— Eu sou sua amiga, dona Santa. Sou capaz de dar a minha vida pela senhora.

— Então, não vamos mais falar nisso, Linda. Sente aí e tome café comigo. Hoje será um novo dia.

Linda sorriu, aliviada. Ainda perguntou se deveria sentar-se à mesa, mas pelo gesto impaciente de Santa, decidiu obedecer. Serviu-se e esperou que a patroa propusesse alguma coisa.

Foi em vão. Alguns minutos depois, Santa acabou o desjejum e afastou-se. Linda a acompanhou sorrindo, mas só por um instante. Quando Santa desapareceu no interior da casa, ela fechou a cara, acabrunhada.

Em seguida, pegou o celular e ligou para o jardineiro.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/salada-verão-verdes-vegetais-775949/

quinta-feira, outubro 27, 2016

A lanterna

O poeta transmudou a expressão "porque hoje é sábado" em inúmeros sentidos.

Como uma lanterna iluminando fraca sob uma mão trêmula, na busca desesperada de algo perdido ou na iminência de acontecer.

É assim, iluminando palavras ou desfocando sentidos e certezas, que se constrói o grande mosaico da manipulação.

Quem sabe, somos lanternas pálidas para iluminar os focos imprecisos de nossos argumentos, quando nos inteiramos apenas de um lado da informação, do conteúdo ou da sinopse que julgamos como verdades absolutas.

Quantas vezes alimentamos a luz desfocada para centralizarmos na fogueira!

Uma afirmação modesta pode ser rica de conteúdo se iluminada no contexto certo.

Nos sábados, as luzes se encontram, se estabelecem e se recriam.

Nos sábados, o mundo para e as vozes emudecem.

Nos sábados a alegria é dever e a tristeza apenas fuga melancólica dos amantes.

Mas a vida real, por vezes perversa e obscura, nos leva a refletir apenas como lanternas frágeis à possibilidade do brilho.

O filósofo grego Diógenes procurava um homem que vivesse segundo a sua essência, com uma lanterna na mão.

Hoje os homens buscam lanternas que lhes deem sentido, seja em que grau de claridade os contemplem. No entanto, a verdade compartilhada segue apenas um flash, obstruindo os fatos comprovados.

Que venham os sábados e as segundas e que os homens busquem a si próprios para desvendar com profundidade suas verdades. Que a quimera seja apenas o símbolo de suas buscas. Jamais a certeza das respostas.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/lâmpada-de-querosene-luz-lâmpada-1453994/

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