quinta-feira, janeiro 07, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I

ESTE É O SEGUNDO FOLHETIM QUE PUBLICAMOS EM CAPÍTULOS. COMO NO ANTERIOR, SERÁ PUBLICADO NAS TERÇAS-FEIRAS E QUINTAS-FEIRAS. HOJE QUINTA-FEIRA, 7 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O 1º CAPÍTULO. ESPERO QUE CURTAM E VOLTEM AO BLOG PARA ACOMPANHAR A SEQUÊNCIA. OBRIGADO.

Capítulo 1

Não sei se me arrumo de jeito. Quero ter as coisas no lugar e os dias passam rápidos que nem me dou conta. Acho que preciso parar e pensar e refletir muito, para não ficar rememorando coisas dormidas, esquecidas, mortas e enterradas.

Por mais que me esforce ao contrário, os fatos acontecem. Pudera amanhecer o dia e nem ver as primeiras cores, os primeiros riscos avermelhados, quando tem sol ou quando o sol vai aparecer daqui a pouco. Que nada. Já nem me animo com estas belezas da natureza. Tudo já é cinza, sem cor.

Afinal, passo as noites olhando pela janela, que nem desconfio se há qualquer diferença no tempo. Se chove, faz frio ou calor, saberei no decorrer do dia. A cabeça pesa, o corpo dói e os anos que se acumulam me entocam nesta casa, me deixam perplexa apenas com minha sisudez, com meu desânimo, com meu pouco fazer.

Quisera sair, nem que fosse para fugir desta janela inexorável como o tempo que corrói meus ossos, que afunila minha garganta, que me deixa rouca, voz cansada e sem vida. Meus cabelos esgadelhados. Se as pessoas me vissem assim, como me olho no espelho, por certo teriam náusea, virariam o rosto, entediados, aflitos.

Meu único filho morreu, faz cinco anos. Ele era lindo, um rapaz forte, homem de grandes paixões, sentimento cru. Morreu de dor, solidão. A mulher vive por aí, esquecida de mim, cobrindo a saudade com flores de plástico. Eu, por meu lado, vou quando posso. Só assim, me afasto de minha janela e visito o seu túmulo.

Recordo os tempos em que era apenas um menino, um garoto franzino, que se vestia de zorro, enfiava a espada nas almofadas e sentia-se um herói. Corria pela sala, batendo joelhos no passo desengonçado, de quem se afirma nas pernas miúdas sem grande presteza.

Já naquela época, eu quase não dormia, não tanto quanto hoje. O Jaime voltava tarde, ficava muito tempo na redação do jornal e Luisinho, cansado, dormia a sono solto. Eu olhava aquele vaivém da barriguinha e pensava comigo que nunca aquele sopro se dissiparia antes do meu. É a lei da vida. É a lógica. Por que não morri antes? Para ficar mais tempo olhando as luzes se apagar pela minha janela e o burburinho da cidade atiçada me empurrar pra dentro?

Na frente de minha janela, mora um velho ranzinza, que costuma falar sozinho. Deve ser mais velho do que eu, porque me parece caquético. Acho até que já caducou. Nunca olha pro meu lado e quando o faz, desvia os olhos depressa, temendo encontrar os meus.

Às vezes, vejo um homem no apartamento. Deve ser o filho, que aparece vez que outra pra ver se ainda vive, o infeliz. Eu não tenho este problema, já que ninguém vem me visitar. A não ser hoje, mas deixa pra lá. Quando chegar a hora, eu vou pensar nisso. Nem sei se vou atender, se vale à pena.

De noite, observo o velho estender a calça na poltrona, guardar os chinelos sob a cama e vestido num pijama démodé, se deita de qualquer jeito, enrolando-se nas cobertas. Acho que passa muito frio. Não fecha a janela, nem puxa as cortinas. Não atina. Faz sempre a mesma coisa. É metódico. Um dia, o vi pelado. Voltava do banho e nem se preocupara em vir com a toalha enrolada. Cena deplorável. Uma bunda magra sustentada em coxas finas, descarnadas. Acho que naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele nem vestiu o pijama, porque quando voltei a olhar, já dormia virado pro lado. Cobertas até as orelhas. Será que ele tem ar condicionado? Mesmo assim. Velho sente muito frio. Eu já não sinto. Quer dizer, não sinto tanto, porque me aqueço bem. Meu hobby é fazer estes sapatos de lã que habitualmente uso. Mantenho os pés aquecidos e o restante vem por acréscimo.

Acho que devo me vestir com decência. Tirar estes chinelos de pano, procurar os meus brincos de ouro e todas as jóias que guardo no baú. Um baú de miséria. Se jóia me valesse de alguma coisa! Mas se todos pensassem assim, não existiria o garimpo da serra pelada. Será que ainda existe a serra pelada? Se pudesse, faria uma viagem. Deve ser um lugar muito lindo. O Jaime fez uma reportagem lá. Se eu tenho um sonho nesta minha vida, eu que nem sonho, seria o de ir até a serra pelada. Mas não tenho tempo pra isso, nem dinheiro, nem saúde. Quanto mais, vontade. Não tenho vontade de nada, nem de me vestir.

Estranho, o velho não apareceu na janela. Por estas horas, ele sempre dá uma olhadinha pra baixo. Acho que pra descobrir se os carros aumentaram um pouquinho de tamanho. Velho esquisito!... Olha de soslaio. Não encara. Às vezes, se debruça na janela, como se fosse se atirar na calçada. Qualquer dia desses, cai mesmo. Fraco como é. Mas deixa correr. O velho tem as dele, eu as minhas. Cada um com suas manias.

Hoje ele não apareceu. Será que foi ao médico? Quando velho sai de casa, ou é pra ir ao médico ou pra visitar cemitério. Falar nisso, bom que eu dê jeito nas coisas. Você não acha? Comprar flores, mandar fazer faxina no túmulo do Luisinho. A última vez que fui, tinha chovido muito e se acumulado folhas de tudo que é tipo de árvore. Um lixo só. Vento e chuva só atrapalham os mortos. Quando não os velhos!

Será que ela vem? Deixa eu ver, que dia é hoje? Deve ser amanhã, se não for na segunda...

Bem que podia ser hoje, pra me livrar de vez desta invasão. Sei o que essa gente procura: bisbilhotar a vida dos outros. Até que ponto lhe interessa a história de Jaime?

Vai sentir piedade, dó de uma velha atirada neste apartamento sozinha, que não arreda pé da janela. Uma mulher que um dia foi a esposa do Jaime. Coitada, vive da pobre aposentadoria que ele deixou.

A minha biografia? Deve desconhecer totalmente.

Não sabe, por certo, que fui uma grande pianista, uma mulher acostumada às luzes da ribalta, dos holofotes, ao olhar amoroso dos fãs, ao aplauso arrebatado do público. Mas faz tanto tempo! Não posso me apresentar mal, não acha Rita?

De qualquer forma, o interesse dela deve ser esse: bisbilhotar a minha vida. Detesto esta gente que fica se intrometendo na vida dos outros. Tal como a Dona Júlia, do 403. Não dá ponto sem nó. Vive cercada de gente, marido, filhos, sobrinhos, o diabo a quatro. Não tira a bunda da cadeira, tomando café e falando no telefone, mas não tem dia que não fique espiando da escada pra descobrir alguma novidade no prédio. Um dia ainda jogo aquela zinha escada abaixo.

Meu Deus, por um tempo, fui tão religiosa. Que aconteceu comigo que tenho estes pensamentos de ira? Mas que a Dona Júlia é uma maçante, ah, isso é. Sempre que a Dulcina chega, ela sempre pergunta como estou. Mas não é para saber da minha saúde, se fosse isso realmente, viria até meu apartamento ou ligaria. É pra ver se descobre alguma coisa. Tenho certeza que se ela vir a moça, vai interpelá-la na escada ou no elevador. A curiosidade ainda vai matar aquela lá.

A visita. Deve ser hoje sim. Melhor eu me arrumar para não causar piedade ou nojo. Você não acha Rita? Sabe-se lá como essa gente reage na frente de uma velha como eu.

Já tive meus encantos, fui muito admirada, não só na minha profissão, mas nas relações sociais. O Jaime tinha muito ciúmes, quando eu chamava a atenção dos homens.

Mas que fazer, eu tinha meus predicados. Era alta, a pele muito clara, os cabelos castanhos. E meus olhos eram grandes, expressivos. Hoje, quase não tem vida, escondidos que estão nas papadas que sobraram de minhas pálpebras. Quando o Luisinho se foi, envelheci dez anos. Meus olhos incharam, perderam o brilho. A vida não teve mais sentido. Se havia algum, se foi.

Ah, graças a Deus! O velho apareceu na janela. Você viu? Uhm, está lambendo os lábios. O café foi mais demorado, hoje. Nem deu tempo de passar um guardanapo naquela boca! Que velho desajeitado. Menos mal que está vivo. Não para ninguém naquele apartamento. Este aí, já faz mais de ano.

Olha, como ele não me encara. Acho que tem medo que eu puxe conversa. Pois pra eu abrir a boca, precisa ser alguém muito interessante, ou que me procure, como esta moça que vem aqui hoje: a tal visita. A que vem saber sobre a vida do Jaime. Este velho aí pode se benzer. Eu jamais vou conversar com ele. Nem que o prédio dele incendeie.

Se ele soubesse, que o vi pelado! Ia morrer de vergonha! Ou não, tem jeito de ser confiado. Jamais contaria isso a ele, jamais! Será que é mais cedo do que eu imagino? Quem sabe, ele está na hora correta? Quem sabe, acordou há pouco? Ando meio perdida nos horários. Vou pro meu banho, antes que batam na porta e eu tenha de atender com a boca cheia. Vou fazer o desjejum antes da moça chegar. Não lembro se já tomei café. A noite foi tão longa!

quarta-feira, janeiro 06, 2016

Sobre o romance “Pássaro incauto na janela”

Este romance mostra a solidão de uma idosa que vê, analisa e critica a vida através de sua janela. É viúva de um grande jornalista que lutava contra a repressão nos anos 70. Em sua solidão, costumava conversar com uma fotografia de Rita Hayworth.

Faz um contraponto com a protagonista, uma jornalista que pretende entrevistá-la sobre os envolvimentos do marido. Aos poucos, são revelados os dramas pessoais da jornalista, a partir do conhecimento de que o pai em seus momentos finais pedira que ela desligasse os aparelhos que o mantinham vivo.

Junto a tudo isso, há o homem do prédio da frente, do qual a protagonista tece as suas conjunturas e tudo culmina com o surgimento de sua família, que parece ter interesses especiais em sua vida.

Com o decorrer da história, as duas personagens vão se descobrindo e encontrando novas formas de viver e serem felizes.

É uma história de sentimento, emoção e poesia, na qual as vidas se entrelaçam e se revelam aos poucos.

Como o fiz com “O doce bordado azul”, vou publicar os seus capítulos todas as terças e quintas- feiras.

Na próxima quinta-feira, dia 7/01/2016 apresentarei o primeiro capítulo. Será o nosso folhetim rasgado de 2016.

sábado, dezembro 19, 2015

PENSO NO NATAL

Talvez falasse em consumo, em presentes, em comilança, em festa.

Talvez falasse no Aniversariante, engendrando questões que explicassem, sob um viés capitalista, porque não se preocupam com Ele, ou só o consideram de passagem.

Talvez falasse do Natal, como um feriado para compartilhar com parentes e amigos, a celebração da vida, a tentativa de ser feliz, pelo menos por um dia.

Talvez comentasse tudo isso, mas prefiro pensar no silêncio.

No silêncio daqueles que sofrem em hospitais, dos marginalizados nos depósitos psiquiátricos, dos alienados da vida real, dos que perambulam pelas ruas, dos que bebem da água que sobra nas garrafas sujas, jogadas após uma noite de festa.

Dos amargurados, impedidos de falar, silenciados pelo peso da dor ou do jugo do parceiro.

Das mulheres que descreem da vida, apartadas do seus, nos desvios produzidos por regimes.

Nos pais que não enterraram os filhos, ocultados sob a dor de períodos de trevas, onde a liberdade era apenas um discurso político, e apesar do passar do tempo, revivem a cada Natal, o sorriso do filho, que deixou o quarto intacto.

No silêncio dos meninos de rua, dos palhaços de sinal, dos pedintes, dos incapazes de sonhar. Nos que morrem no trânsito, nos que se suicidam nas estradas, nos que fugiram covardemente da vida.

Nos bêbados andrajosos, nos viciados, perdidos em noites escuras estruturadas em túneis sem fim, bamboleando entre vielas sujas e mal cheirosas, buscando o pouco de vida que lhes foge a cada acesso de prazer.

Nos solitários, nos patéticos frente a monitores, assistindo de longe a vida como cenário abstrato de poucos, tão fugaz e inatingível. Dos que se perdem nos bastidores de softwares, chips, megas, tentando encontrar outros ou a si mesmos, ineptos das ações mais humanas.

Nos velhos solitários, observando a vida da janela, borbulhando a dor nos ossos, na pele flácida, nos olhar aguado, assistindo as imagens em movimento, com alma em apuros; um item do passado, que o mundo esqueceu de conferir.

Penso neles. E também nos que percorrem a vida com calma, vivenciam a dor humana, consolam, ajudam, compartilham. Por tudo isso, penso no Natal. Um Natal que muitos não possuem, ou talvez, não propriamente como imaginamos, mas um Natal que se consagra aos poucos, no dia a dia de suas atribulações, quem sabe, um respaldo para o encontro maior com o Senhor.

sexta-feira, dezembro 18, 2015

Terra do Fogo (Tierra del Fuego)

Não sou especialista em Geografia, mas me incomodava a inclusão de Rio Grande (RS) à Terra do Fogo, por membros do facebook, que moram aqui. Tentei averiguar a razão do aposto e percebi que há uma cidade argentina denominada Rio Grande, e talvez por isso, o engano.

A Terra do Fogo (em espanhol Tierra del Fuego) é um arquipélago na extremidade sul da América do Sul, formado por uma ilha principal (a Ilha Grande da Terra do Fogo, chamada de Tierra del Fuego) e um grupo de ilhas menores. Sua superfície total é de 73.753 km², sendo o arquipélago separado do continente sul-americano pelo estreito de Magalhães. A ponta mais a sul do arquipélago é o Cabo Horn.

É portanto uma província que fica no sul da Argentina. A paisagem, com as montanhas no último trecho da Cordilheira dos Andes de um lado, e as geleiras, por outro, proporcionam uma visão deslumbrante aos visitantes. É repleta de extensas florestas e paisagens diferentes, como pântanos, vales, geleiras, montanhas, além do litoral. Possui também locais de importante conteúdo histórico, cultural e artístico. Também é conhecida como “Deserto da Patagônia.

Em 1881, o território foi dividido entre a Argentina (província da Terra do Fogo) e o Chile ( província da Terra do Fogo). As localidades mais importantes do arquipélago são Ushuaia, Rio Grande, Tolhuin e Porvenir, as três primeiras na parte argentina e a última na chilena.

De acordo com o Censo Nacional de População de 2010, Tierra del Fuego tem 126,998 habitantes em sua três localidades.

Rio Grande está localizada no norte da província de Tierra del Fuego, mais precisamente na margem norte do Rio Grande, onde ele deságua no Oceano Atlântico. O nome da cidade deriva do rio que a atravessa. De acordo com o Censo Nacional de População de 2010, Rio Grande tem 70,042 habitantes (incluindo Tolhuin). É chamada a "Capital Internacional da Truta", onde o turista pode obter objetos exclusivos feitos de pesca, que cativa milhares de visitantes que procuram truta Brown, arco-íris, ribeiro e salmão do Pacífico.

A cidade possui sítios naturais e históricos, bem como uma Reserva da Província da Costa Atlântica. Há também as atrações como a Missão Salesiana, cerca de 12 km ao norte de Rio Grande, Cabo Domingo e monumentos comemorativos aos mortos em Malvinas, que são lugares e se pode aprender a mergulhar na história de Tierra del Fuego.

Nesta cidade, pode-se desfrutar do turismo rural, com serviço de guias pelas regiões, com caminhadas e observação do trabalho rural, além deing si serviços de catering, guias de pesca e alojamento.

Algumas propriedades têm alojamentos de pesca, localizadas em lugares calmos longe de centros urbanos, próximos aos serviços de pesca, que são reconhecidos internacionalmente pela qualidade e tamanho de sua truta. Neste tipo de estadia, ovisitante tem todas as comodidades necessárias para tornar a estadia muito agradável.

A cidade de Tolhuin é o centro urbano localizado entre Ushuaia e Rio Grande. Na língua Selknam, significa “coração”, por isso é chamada de “o coração da ilha”. Tolhuin está localizada em estreita proximidade com a cabeça do Lago Fagnano, no antigo trajeto da Rota Nacional 3. É distante de Ushuaia cerca de 98 km e 105 km de Rio Grande. Em 2012, a comunidade de Tolhuin adquiriu seu status de município, considerando que o Censo Nacional de População de 2010 revelava uma população de 3004 habitantes.

Ushuaia, capital da província, está situado no Canal Beagle e rodeada pela cordilheira Martial, em uma baía de singular beleza protegida pelos ventos. Seu nome vem da língua Yamana e é interpretado como "baía que penetra em direção ao oeste." Departamento de Ushuaia tem uma área de 9.390 km2 (inclui Staten Island e Ilhas Beagle) e uma população de 56.956 habitantes, segundo o Censo Nacional de População de 2010.

A nossa cidade também chamada de Rio Grande, com o aposto de “Noiva do Mar” é uma bela e rica região que se situa no extremo sul do RS, porém bem distante da Terra do Fogo.

fontes: .
www.tierradelfuego.org.ar/v4/_por/index.php?seccion=4

sexta-feira, dezembro 04, 2015

NOITE FELIZ

Noite feliz

Meu avô, lembras, das noites natalinas, à espera daquela consagrada a Ele?

Lembras das carruagens enfeitadas com luzes, em cenários enluarados, onde fogos riscavam céus e nossos olhos encantados nos anjos vestidos de gente?

Lembras das tuas frases curiosas, tuas histórias brilhantes, teu afago em meu peito, enquanto seguravas firme a minha mão, assim, pequena, na tua tão grande? Mão de avô, firme, forte, segura. Lembras? Não, não mais lembras e se o fazes, deve ser de uma maneira diferente em que as lembranças ecoam contagiadas da mesma alegria anterior, sem esta melancolia que me atinge.

Talvez não haja mais passado para ti, nem futuro. Só o presente em que me acompanhas de longe, inspirando-me melodias e poemas, que inventas sem que eu perceba, para que seja feliz.

És bem capaz disso. Teu coração sublime, tua verdade inabalável.

Tuas histórias em que me incluías ao lado de cada herói, de cada passagem vibrante, onde a vida brotasse plena em nossas mãos. E eu ficava ao teu lado, observando o brilho que purificava o teu olhar, iluminando o teu rosto, e por vezes, revelava um ser diáfano na noite.

Noite de estrelas. Noite de luzes e vozes. Noites de alegria e paz.

Quisera te ver ainda, rodeado desses bônus que a vida, às vezes, nos proporciona. Quisera sentir a brisa leve no rosto, percebendo o friozinho gostoso do sereno, mergulhado na expectativa das celebrações, dos corais, dos anjos, das bailarinas, do presépio e do menino Jesus na manjedoura.

Quisera estar ao teu lado, experimentar a brisa suave, o abraço afetuoso e ter a certeza de que o espírito de Natal ainda permanence.

Mas esbarro numa criança, alguém que se apressa para não perder nenhum acontecimento nesta noite e me volto surpreso.

Por um momento, imaginei que estavas aqui, tão próximo, infundindo em minha alma este desejo de ser feliz, de sentir novamente o espírito sublime desta noite. Quem sabe, me inspiravas mesmo e eu compartilho também esta Noite Feliz?

SOU DO CONTRA!

Eu sou contra tudo isso. Não importa que me fritem com azeite quente, nem que me façam ferver no fogo do inferno. Sou assim e não vou mudar. Quero acabar com as alianças dos que se enfileiravam à direita do prato. Há os que se regozijam do mal que nos fazem, mas tenho comigo, que apenas servem ao verdadeiro sabor da vida. Dias e dias os assisti calado, sem dizer nada, esperando que algum dia liberassem. Dei com os burros nágua. Mas agora, não vou voltar atrás, não vou declinar por falsas ameaças. Está na hora da luta.

Comecei agora. Retirei devagar aquelas alianças de barbante que envolviam as linguiças campeiras, uma por uma e coloquei para o outro lado do prato. Da direita, para o outro canto, para incluir na mesma porção, os temíveis pedaços de bacon alinhavados com o queijo gorgonzola e o paozinho de alho.

Todos os embutidos foram se soltando, as linguiças amarradas se transformaram em pequenos blocos de petiscos proibidos, um a um, pendurados em argolas, agora desfeitas e submissas ao sabor.

Também os charques defumados e o próprio toucinho, assim, in natura. Se preciso, irei à justiça, para tê-las transbordando em gordura na panela do feijão! Nada de dietas, de temores infundados de fazerem mal à saúde.

Peguei minha bandeira e fui à luta. Quero também o meu churrasco de volta, com toda a carne vermelha, fumegando na churrasqueira, com a gordura saturada e o lombinho chamuscado revirando-se na grelha! Se preciso vou à guerra! E o sal será a minha arma, aquele sal grosso, inundando de pedregulhos brilhantes a carne ensanguentada, lambida pela chama glamourosa que vez ou outra produz um frisson, num chiado sublime derretendo a gordura!

Que venham as picanhas, as costelas-janela, o lagarto, o vazio. E para completar, as coxinhas de frango com pele borbulhando na brasa, amaciando o bronzeado para os olhos sedentos. Antes, um gole de caipirinha, porque ninguém é de ferrro.

Por fim, para apaziguar os ânimos, a velha e gostosa cerveja, amainando o rescaldo da fornalha! Vamos à luta, companheiros! Impeachment ao chuchu, à couve e ao alface! E não troquemos de lado! A cerveja é sempre mais gostosa quando a tocamos por fora!

quinta-feira, dezembro 03, 2015

RELAÇÕES MÚTUAS

Este conto deu origem ao mote do romance "O eclípse de Serguei"


Aspirou o cheiro de alho no dorso das mãos. Fungou. Deu até alguns espirros. Alergia danada. Insuportável. Olhos vermelhos, como se esmagasse cebolas. Era somente o alho triturado com a faca, sobre a pia branca, branquinha, mármore impecável. Era mármore mesmo? Olhou para os lados, procurando a hora no relógio da copa. Buscou num canto do olho a luz da rua. Suspirou. Tomou água, pensou na vida. Examinou-se no fundo da concha: aqueles olhos grandes, a pele encardida, dedos esbranquiçados. Sentiu um suor forte escorrer pela nuca, molhando o cabelo. Já estava crescido demais, pensou.

Largou o alho moído, aproximou-se da primeira cadeira que encontrou e encostou a bunda, de leve, temendo afundar no vazio.

Por um momento, pensou que morreria. Bobagem. Era só um contratempo, um empacho qualquer no estômago. Ninguém morre por comer demais. E ela tinha sido glutona demais, como dona Matilde costumava chamá-la.

Você é glutona, saco sem fundo! 

Gostava de Dona Matilde, não fosse aquele jeito arrogante de chamá-la de crioula, com todos os e us que tinha direito. Também, pudera, vivera sempre na casa grande, cercada por serviçais, com pensamentos de vanglória em relação aos negros. Não podia pensar diferente, da noite pro dia. Agora viviam as duas, naquela mansão enorme.

A velha estava cada dia mais sozinha e só tinha ela para lhe preencher a vida.

Também para seu lado, a coisa não era diferente. Vivia quase em simbiose com Dona Matilde. Não tinha vida própria, nem namorado, nem pai, nem mãe. Na verdade, nem conhecera o pai. Como quase todos de seu bairro pobre, da cidade pequena onde morava.

Felizmente, melhorara, o mal-estar estava passando devagar, mas podia respirar com mais propriedade. Tinha um pouco de náusea ainda pelo cheiro do alho.

Levantou-se, enfraquecida e voltou para o balcão de pia. Juntou o alho, o sal, e todos os condimentos que encontrou, jogando tudo na panela, fritando no óleo quente. Pouco tempo e o aroma de comida pronta se espalhava pela cozinha. Afastou-se do fogão, rabiscou com o indicador no ar, como se escrevesse o que faria em seguida. Pensou um pouco e abriu a geladeira, entediada. Vasculhou em todos os cantos, pesquisou as carnes e encontrou um pedaço de vitela estirado num prato. Refez consigo os passos da receita.

Aos poucos, o sol foi fugindo da janela, acompanhando o fumegar dos molhos. Vapores daqui, humores dali, enxovalhando o teto e o sol cada vez mais longe, trazendo sombra à pequena área. Quando deu meio-dia, a comida estava servida.

Silêncio absoluto. Ainda uma réstia de luz iluminava a pele de dona Matilde.

A parede de piche do prédio ao lado destacava a sombra que se insurgia pela casa. 

Dona Matilde comia devagar e vez que outra a olhava, intrigada, mas se limitava ao silêncio. Enquanto comia, não gostava de conversas. Além disso, não estava disposta, queria mesmo é ficar com seus botões e pensar o mínimo possível. Melhor era só comer aquela comida sem graça que a crioula fazia. 

Mesmo assim, investigou a limpeza da toalha, o arranjo dos talheres, dos pratos. A beleza da comida. Não estava mal, não. Mas bem que podia comer sozinha. Ter aquela mulher a sua frente, mastigando com aquela avidez, voraz como um animal, sem qualquer elegância, era sempre um tormento.

Mas hoje, especialmente, havia uma estranheza em suas atitudes. Ela não comia do mesmo jeito, beliscava. Que coisa acontecera? É sensato e de bom tom, ficar quieta. Pra que saber o que vai naquela cabeça oca? E se descobrisse, não mudaria em nada, a sua vida. Não teria muito tempo e aquela imprestável tinha toda a vida pela frente. Pois que a vivesse sozinha, com seus problemas comezinhos, sua vida vazia, sua quase inutilidade. 

Melhor encarar de frente aquela vitela, que mesmo macia, ainda machucava a gengiva. Seus dentes, os poucos que restavam, não eram os mesmos e os que substituíam os faltantes, ainda a machucavam. O maxilar derreara, como toda a sua vida. Quase não se olhava no espelho, uma mulher como ela, que vivera o esplendor da beleza, mantinha-se assim, medíocre, quase caquética.

A outra, entretanto, quebrou o silêncio.

Dona Matilde levantou os olhos devagar e pensou: ela sempre me suga os pensamentos. Que quer agora? Falar do espinafre que está à hora da morte? Dizer que a carne demorou a descongelar ou se desculpar porque se passou no sal.

–A senhora não reparou nada?

Reparar? Dona Matilde tinha a percepção de que alguma coisa estranha havia acontecido, não tinha dúvidas. Mas não dava o braço a torcer. 

–Não reparei nada. Se passou no sal?

–Não, fiz tudo com muita calma. Pensei bem em cada ingrediente.

Estava ficando cada dia mais burra! Ainda precisava pensar nos ingredientes.

–Ainda não decorou? Você trabalha pra mim há quanto tempo?

–Mais de quarenta anos!

Dona Matilde expressou um meio sorriso, irônica. Depois voltou-se para o copo de suco e o sorveu, paciente. Não perguntou mais nada. Houve insistência. –Acho que foi uma das melhores comidas que fiz! - Convencida - Mastigou a velha.

–Que disse, Dona Matilde?

Sem levantar a cabeça, perguntou, irritada: você é que queria me dizer alguma coisa. Desembucha, crioula!

A outra, com um frio na espinha, concluiu: pensei que a senhora tinha reparado que eu quase não comi, hoje. A senhora sempre reclama, me chama de glutona.

Silêncio. O sol ficou mais fraco e nem uma réstia de luz iluminou o rosto de Dona Matilde.

–Não é normal.

–Não é normal.

–A senhora também acha?

–Mas é claro que acho. Você come que nem uma desvairada. Mas não se preocupe, foi só hoje. Amanhã, você volta a ser a mesma ensandecida.

–Não passei bem hoje. Me deu tonteira, tremedeira. Suador.

–Idade.

 

sábado, novembro 28, 2015

O destino do homem?

Na fábula, o sapo foi terrivelmente traído pelo nefasto escorpião, ao ser transportado pelo rio.

Ao ser ferroado, o sapo pergunta, na agonia da morte, por que o escorpião fez aquilo, se assim os dois morreriam afogados, visto que somente ele sabia nadar.

O escorpião, então responde que é esta é sua natureza.

Observando as pessoas e fatos, fico me perguntando, o que leva certas pessoas a trair, a enganar, mesmo quando são acarinhadas em suas relações.

E logo, me vem a resposta do escorpião da fábula: é de sua natureza.

Seria este o destino do homem, seria esta a sua natureza, a de trair, de mentir, de enganar despudoradamente, mesmo que não haja qualquer ganho?

sexta-feira, novembro 20, 2015

O elo do encontro

Tento prestar atenção em cores, janelas, platibandas, casas antigas restauradas ou em ruínas. Memórias que ficam ou apenas o passado depojado de sua história. Na história que produzimos, talvez as memórias não resistam ao próximo bafejo da moda.

Ando pelas ruas e observo as casas e pessoas na sala de jantar ocupadas em nascer e morrer, como no Panis Et Circenses dos Mutantes. Na verdade, agora ocupadas em revelar no intervalo, a vida que vaza rápido pelas entranhas das vidraças. Vidraças das redes sociais, das fotos instantâneas, dos vídeos do celular, dos olhares importunos. Um selfie a qualquer custo, na vida ou na morte. Importa é revelar.

Ando pelas ruas e vejo as crianças metidas em carros blindados, perdidas nos tablets, em joguinhos não tão inocentes. Ando pelas ruas e observo os meninos já não tão meninos, fazendo o próprio jogo de polícia e bandido, armando-se na aprendizagem cotidiana de seus pares não tão parceiros assim.

Ando pelas ruas e vejo o mar se abrindo na borrasca de nossos processos escusos de desapropriação da natureza, empresas que descarregam veneno transformando em sarjeta o cenário da vida. Vejo as pessoas jogarem as sobras de seus acúmulos, alterando a lagoa, fechando comportas, produzindo enchentes.

Tento prestar atenção em cores, na natureza, na vida que se insurge nos meandros de nossas escolhas visuais, mas me aquieto e me afasto, temendo que ora acabe a beleza observada.

Passo pelas igrejas, pelas escolas, pelos parques. Não ouço porém, os cânticos acolhedores, nem as preces fervorosas. Nem as crianças em bandos, alcançando esquinas, fazendo dos momentos livres, as brincandeiras do encantamento. Vejo-as correndo para os carros mal estacionados como se temessem a vida. Nem os adolescentes disputando espaços nos caminhos arborizados, conversando e rindo como se a vida se reduzisse em seus desejos. Vejo-os afoitos em suas mochilas e celulares, buscando a última conexão com o mundo.

Quem sabe um dia, as ruas se encham de cores de todos os matizes e os temores, as ameaças, o racismo e todos os ismos que afastam o ser humano desapareçam? Quem sabe o homem se integre à natureza e a defenda, revendo assim os seus princípios? E quem sabe a proximidade com o outro seja o elo principal do encontro?

Foto do artista, poeta e escritor Wilson Fonseca.

sexta-feira, novembro 13, 2015

PRESSÁGIO

Colocou o notebook no colo e abriu, afoito, os e-mails, imaginando que pelo menos, naquela situação,  haveria alguma resposta. Era tardia, sabia, mas tinha de haver, tinha que acreditar, um último fio de esperança. Abriu e o que viu era a rotina de spans de sempre, cadastros mal elaborados, informações do trabalho. E nada dela. Nada de sua conduta marcada pelos tons nevrálgicos das discussões inacabadas.

Nada que valesse à pena esperar. Abriu uma página, duas, assustou-se com o imenso número de pessoas participando de chats àquela hora da tarde. Espiou um, bisbilhotou nas mensagens e arrepiou-se com o que viu. Sentia-se perdido no mundo de ilusões que criara desde a infância.

O barulho ensurdecedor do metrô abafou seus pensamentos. Milhares de pessoas corriam para a plataforma, filas se formavam e ele oculto dentro de si mesmo, olhando para o nada, esperando quem sabe, ser assaltado naquele terminal repleto de mal intencionados.

Um homem o olhava de soslaio, desconfiado, examinando-lhe a roupa, o terno bem cortado, a elegância dos sapatos e principalmente a maleta com o laptop em cima. Resolveu guardá-lo, fechar a maleta e levantar-se do banco. Passear dissimulado pela estação. O metrô afastou-se abarrotado, olhares pelas janelas, gente absorta como ele que olhava o que vinha pela frente, pensamentos do dia.

Ele pressentiu que o homem o seguia com o olhar dissimulado, esgueirando-se entre as pessoas que iam e vinham, em busca de  novas chegadas,  extenuadas com as partidas.

Resolveu afastar-se, tomar a escada rolante que levava até a rua, afinal, não estava à espera de transporte, não se afastaria daquele bairro, não faria nada para mudar as coisas. Olhou para trás na mancha escura de pessoas que preenchiam a escada e viu o homem de moletom vermelho, também no mesmo rumo, olhando para os lados, fingindo outros objetivos, que não escusos, outras direções, que não a dele.

Temeu por sua vida. Mas o que ele faria naquela multidão? Melhor era retirar-se rapidamente, quase correr, alcançar a rua e entrar em qualquer bar ou galeria que encontrasse.

De repente, sentiu uma pancada na cabeça, uma dor forte, as veias latejando, parecendo rios inchados e as forças esvaindo-se, vendo-se rolar escada abaixo, esbarrando em pessoas que o empurravam, acotoveladas, desviando-se surpresas, obtusas em suas fisionomias próximas, olhos arregalados, pavor, torpor.

Um vazio imenso. Um nada no infinito. Ouvia-lhe a voz suave, dando-lhe as boas vindas e vontade de estar perto e não mais sentir dor. Nenhuma.

Viu o homem do moletom vermelho afastar-se depressa, como um fugitivo que deixara uma bomba às ocultas, num lugar público.

Avistava o céu embrumar-se em nuvens rápidas que corriam para o sul, trazendo chuva. Sentia os pingos frios e grossos chocarem-se com seu rosto, mas não podia mexer-se.

Pessoas corriam, abrigando-se. Poucos o olhavam e se o faziam, temiam se envolver. Comentários rápidos acenando ajuda.

Um que outro se aproximava e desistia, mas alertava os demais. Como pombos famintos nos grãos deixados na praça, chegando curiosos, cautelosos e debandando rápido, pressentindo  algum perigo. Outro resistia no banco da praça, incauto, à espreita, esperando retorno.

Até que pediram documentos, mexeram em sua maleta, pesquisaram seus bolsos, reviraram a sua vida. Quem sabe o salvariam? Sentiu um nó na garganta de dó e esperança, de medo e aflição, de angústia e espera.

Mãos fortes o seguraram, o retiraram da calçada de ladrilhos coloridos, picotados, como aqueles adornos de festa junina da escola, bandeirolas, correntes de papel de seda, enfeitando a sala. Uma menina de tranças vermelhas, correndo em sua direção, mostrando exultante os enfeites de papel, os desenhos mal acabados, mas coloridos e acalentados com um 10. Ele, empurrando-a, com força, com raiva e inveja, deixando-a esticada no chão, aos gritos, entre lágrimas que molhavam a cara vermelha de sangue.

Podia ser ela, podia ser Eugênia, ali, ao seu lado, sem despedidas, sem brigas, sem dores, repleta de mensagens reais em sua face macia, seus olhos vivos, brilhantes, examinadores. Olhos de detetive.

Deixaram-no no carro, o frio que sentia não era mais o dos pingos da chuva chocando-se com seu rosto, nem o medo do assalto, nem a expectativa da espera.

Era um frio interior que aumentava a cada minuto.

Sirenes invadindo as ruas, os ouvidos doendo, vozes misturadas, confundindo-lhe a mente.

Por que não se mexia? Por que não tomava o notebook que estava tão perto, por que não procurava novamente as mensagens, não buscava as informações que precisava, não levantava a cabeça para ver além. Além do carro, da sirene, das vozes, do corredor branco, do soro no braço, da cama inerte, do vizinho do quarto. Havia quarto? Vizinho?

Quem estava do seu lado, só divisava sombras, vozes distantes, absurdas, um buraco no estômago dilacerando-lhe as entranhas, um sentimento de onipotência, uma falta de dor, de consciência.

Quando distinguiu uma frase nítida aos ouvidos, pensou que fossem recados do celular. Quem sabe ela atendeu. Quem sabe estava ali, tão próxima, tão intima, esquecida das brigas, dos maus tratos, das vinganças, dos perigos da rua.

Mas não era a voz dela.

Era uma voz estranha, tão distante quanto o tempo em que estava assim, sem se mexer. Referiam-se a ele e precisava ouvir para ter certeza. Desligar os aparelhos. Foi tempo demais. Não tem mais volta. A família não suporta esperar. É muito sofrimento. Esperar o que? Desligar o que?  Suportar o que? Por que vão desligar...?

quinta-feira, novembro 12, 2015

A primavera e a Academia Rio-grandina de Letras

Antes de iniciar a primavera, apavorado com o inverno, ousei fazer alguns versos o que chamei de poesia. Utilizando a mulher como a metáfora de primavera, eu a suplicava junto a mim, ouriçando-me os cabelos, guerreira e forte e superando o inverno que não acabava.

Hoje, porém, tive a primavera bem próxima. E não foram os ventos que a trouxeram, talvez a temperatura suave acalentada pelo sol esparso sobre as árvores. Pois revelou-se com o encontro. Um encontro inédito e espontâneo, que se deu, a partir da sessão da Academia que se desenvolveu sob as árvores da praça Xavier, na falta da chave da biblioteca.

Ali, nos expomos em nossas atitudes mais despojadas, sem didatismos ou preocupações formais. A ordem foi invertida, a lírica, a literatura e a harmonia dos textos chegou antes das atividades administrativas.

Até mesmo o tradicional chá com salgadinhos e doces, alternou-se com a poesia.

Senti o bafejo da primavera, bem perto, junto com meus colegas, perfazendo um círculo em que a alegria espontânea dava lugar a sisudez das discussões. Parecíamos mais livres e dispostos a interagir uns com os outros, mesmo ante os olhos desavisados que vez ou outra nos observavam intrigados.

Como um bando de crianças, nos divertíamos com o encontro, um piquenique da 3å infância, como nos intitulara o Gerundo. Cada um manifestava a sua personalidade, e eu, como de hábito, observava as nuances de cada um.

Uns brejeiros, conversando em brados, rindo com a interrupção inusitada de um entregador de folhetos religiosos, que irado, nos punia com o inferno.

Outros inferindo temas e possibilidades para presumíveis sessões em lugares públicos como aquele. Um na câmera, outros fazendo pose.

Entre registros fotográficos e dizeres poéticos, senti a primavera exaltar-se no grupo que se afinava num único objetivo: o fazer literário, experienciando o momento que a vida nos legava.

Que bom! Bendita chave que não apareceu! Bendito sol que nos aqueceu o coração e nos deixou mais próximos.

segunda-feira, novembro 09, 2015

A CALÇA COMPRIDA

Lembro-me dele. Chamava-se Camilo, um nome que eu achava estranho. Mas nossa amizade era segura, firme, quase madura. Confidenciávamos sobre tudo o que nos acontecia, falávamos da família, das ideias políticas de nossos pais, das agruras de minha avó, que se limitava a sentir aquela falta de ar absurda, o sorriso complacente e tranquilo de meu avô, o seu olhar sereno e belo.

Parecíamos adultos, mas éramos crianças e não passávamos da 5ª. Série.

Ele parecia mais velho, era mais forte, mais ágil. Eu franzino, pernas finas, calças curtas, meias até o joelho.

Estávamos felizes. Aproximava-se o dia da procissão de Corpus Christi que eu ansiosamente aguardava, não exatamente a procissão, mas a oportunidade que se antecipava de eu usar calças compridas. Minha mãe prometera que usaria neste dia.

Naquela época, usar calças compridas significava quase a passagem para a vida adulta, um símbolo de masculidade. Estávamos ficando homens de fato, portando-nos como tal.

Minha mãe passou dias na costura. Antes porém, enveredou-se por lojas, buscando o tecido adequado, a cor, naturalmente azul-marinho, um tecido firme e ao mesmo tempo maleável, que fosse possível se fazer o friso.

Acabou na mesma loja de sempre, onde se encontravam os tecidos finos e mais baratos. Comprou a fazenda, como ela dizia, cortou o pano ante meus olhos grandes por detrás da mesa, espiando, fingindo preocupar-me com as figuras dos jogadores da copa, ocupado em que estava em demonstrar indiferença.

De vez em quando, meus olhos aflitos se deparavam com os de minha mãe. Ela olhava-me, encarava por alguns segundos, depois, se mantinha entretida nas linhas, nos dedais, retroses, carretéis, tesouras e agulhas.

Contornava delicadamente o tecido, desenhando um esboço de calça que me encantava. Suas mãos brancas, de dedos pequenos e finos percorriam delicados os viés da costura, os tortuosos vai-e-vem dos alinhavos, na construção da obra imaginada. Em seguida, um corte aqui, uma fisgada no dedo ali, um jeito ágil de chupar o sangue e esquecer de imediato a dor, partindo para a atividade almejada.

Eu corria os olhos atentos, obedecendo a ordem de ligar o interruptor, clarear o ambiente, buscar o pão quentinho, estalando nos dentes no caminho, roubando um pedaço rápido, antes de chegar em casa, conhecendo de antemão a rotineira repreensão.

Coração aflito, voz esganiçada, perguntando se queria mais algum favor. Não queria, nem precisava, o que me angustiava mais.

Desejava permanecer ali, ao seu lado, parado, vendo o espectro tornar-se real: a calça imaginada correndo comigo, passeando orgulhosa entre os colegas menores, seguindo a procissão, ouvindo o “louvado-seja-nosso-Senhor-Jesus-Cristo-do-padre”, com um olhar entre orgulhoso e cúmplice, querendo dizer “tu, heim, já é um homem, de calças compridas” e eu mais orgulhoso e seguro”para-sempre-seja-louvado”, querendo dizer ”isso-mesmo-seu padre-já-sou-um-homem, igualzinho ao meu pai.”

Mas ela não se dispunha a ouvir-me, mandava-me estudar, os livros me esperavam no quarto, a escrivaninha estava cheia, um dez não basta, um dez não é definitivo, é preciso alimentar a cabeça. Que ela queria dizer com isso? Que eu ainda não estava feito por inteiro? Seria por causa das calças curtas? Mas logo, logo, eu usaria as tão esperadas e amadas calças compridas, como todo o mundo.

E vinha dia e voltava noite e a labuta na costura ficava ainda mais acirrada. Era uma briga constante com a máquina, dor nas costas, olhos inchados, pouco dormir, camisa por fazer, ah, branca, colarinho de entretela, passado na goma para ficar bem duro. Cinto? Aquele de couro que ganhei no Natal.

Até que chegou o grande dia. Meu coração saltitava exuberante no peito, os olhos grandes vibravam, o espírito voejava translúcido, a boca estremecia ressequida, ofegante, esperando os olhares invejosos dos menores ou dos que não tinham conseguido uma calça comprida e além de tudo, o respeito dos mais velhos.

Minha mãe ficou me vigiando da esquina, não sei se orgulhosa de fato comigo ou com a sua obra-prima.

Na verdade, ficava feliz com a minha alegria. Tanto que passara horas na noite anterior, espargindo borrifadas de água, com leveza, para ajustar o vinco com o ferro quente. Depois de alisada, observada, examinada e almejada, deixara-se ficar assim, a calça, quase feliz como eu, estirada na cadeira, preguiçosa, longe de qualquer toque mais abrupto para não desmanchar o desenho. A camisa branquinha, lavada em anil, de gola bem engomada e passada rigorosamente para não fazer feio na procissão.

Como a noite custou-me a passar. Só fui vencido pelo sono e não sonhei com nada. Quando acordei, já me via longe, abanando para a mãe que prosseguia na esquina, até eu desaparecer no colégio.

A pequena igreja estava em construção. A escola em rebuliço. As crianças eufóricas.

Meu amigo Camilo foi o primeiro a me ver com a calça nova. Sorriu satisfeito e mostrou a dele, de tergal, com um certo brilho, meio furta-cor, que me incomodava um pouco. Mas não comentei nada.

Em seguida, o orgulho deu lugar à euforia das brincadeiras. Outros chegaram e passamos, como de hábito a correr, pega daqui, esconde ali, agora pelos escombros da igreja antiga, subindo no altar ainda em construção da nova e gigante que se antecipava aos nossos olhos e corações.

Corria tanto que nem via padre, ou professora, ou qualquer outra autoridade que me fizesse parar. O prazer era mais forte do que meus brios de homem recém adentrado na sociedade masculina. Tanto foi, que no puxar de cá, empurra pra lá, caí de um aterro da construção de concreto, assim, de modo abrupto, rasgando inexoravelmente a calça, bem na altura do joelho.

Meu amigo me viu e não deu muita importância. Falou alguma coisa como voltar para a casa, trocar de calça.

Os demais chegaram rápidos como saídos do ninho, bando em disparada, ao meu encontro. Era tudo que eu não queria.

Voltei para casa decepcionado.

Na cadeira, como se estivesse a minha espera, a calça curta, marinho, velha amiga de guerra, das brincadeiras de criança, menino que não queria mais ser.

Minha mãe assentiu com a cabeça, como se conhecesse antecipadamente o meu infortúnio. Não tinha remédio. Voltei para a procissão de calças curtas. Percebi que nada havia mudado. Só a certeza de que não seria daquela vez que eu usaria definitivamente as calças compridas. Quando isto ocorreu? Acho que não teve nenhum sentido. Talvez tivesse amadurecido naquele tombo e descoberto que não significavam nada a mais do que um vestuário novo. Só lembro que voltamos da procissão com a sensação de liberdade plena, como se a nós fosse dada a oportunidade da vida e livrarmo-nos de todas as opressões da infância. Talvez por isso, tocássemos “indisciplinadamente” a campainha de todas as casas que víamos pela frente.

Meu avô : existir é compartilhar

Alimentava-se de nossas pequenas arruaças, brincadeiras inusitadas para quem passara a infância na labuta. Tinha no olhar uma pureza quase infantil, mas cheio de perspicácia, sagacidade e curiosidade por nossas vidas.

Corríamos pelas vielas empoeiradas, empurrando aros de bicicleta, equilibrando-os com uma pequena haste de ferro ou arame dobrado, fazendo voltas, escolhendo caminhos próximos aos seus pés, desviando, riscando o solo arenoso. Ou jogávamos bolinhas de gude, desenhando arcos no chão, ou cavando o imba.

Noutras vezes, corríamos organizando gangues, constituindo quadros de polícia e ladrão, onde o ladrão, na maioria das vezes era pego e massacrado com centenas de sopapos na cabeça, quase uma instituição, um dogma.

Quando havia meninas, uma ou duas, seguíamos o recatado amarelinha, que chamávamos de pula-boneco, sempre vigiado pelo olhar complacente e generoso de sua presença.

Em outros momentos, não perdíamos as chance de imitar os reis do ringue, artistas de luta-livre, que se dividiam sempre em heróis e vilões. Não passávamos de três, contando apenas os meninos, acrescidos de dois ou mais, quando partíamos para o futebol.

Mas quando intimado ao banho e execrar-me dos prazeres da rua, também era acompanhado por ele.

Caminhar dificultado pelo avc, mãos trêmulas que seguravam uma bengala improvisada, olhar aprumado para a frente, fingindo-se forte e resoluto.

Após o banho e o jantar, ficávamos juntos: eu, lendo meus livros fantásticos, com voz impostada, ele ouvindo e comentando entre sorrisos, a virtuosidade de minha dramaturgia, ante o olhar frio e reprovador de minha avó.

Mas logo, quando ela se afastava, deixando-nos a sós, entre nossas histórias, mais dele, do que minhas, voltávamos a desfazer a teia de informações compartilhadas. Falava-me da vida difícil na zona rural, da impossibilidade de prosseguir na faina em que se habituara desde pequeno, em função das deficiências da saúde e da precariedade do atendimento.

Em qualquer tema, revelava um humor constante, uma celebração à vida, o prazer de dividir aqueles momentos de companheirismo e afeto. Fazíamos bem um ao outro: não havia solidão para meu avô, nem para mim.

O quarto não era uma prisão, apenas a ante-sala de nossas conversas até a hora de dormir. Era mais um espaço de partilha de alegria.

Nos finais de tarde, numa época não povoada de novelas, assistíamos ao Bat Masterson e sua pistola que cuspia fogo, Os Waltons e seus cumprimentos noturnos, Roy Roger e as intermináveis corridas pelas pradarias do velho oeste, o túnel do tempo e o passeio frantástico pela história e assim, nos perdíamos na imaginação, de espírito elevado, só interrompidos pela novela que se antecipava e com ela o restante da família.

Meu avô retirava-se, levando consigo a alegria que ainda persistia em meu coração. Quando o acompanhava, mostrava-lhe desenhos toscos, ilustrando histórias que me permitia escrever e revelar.

Às vezes, degringolava o inglês, recitando poemas que seriam apresentados na aula seguinte, ou apenas sentava ao seu lado. Observava-lhe a face morena, o olhar tranquilo, mas inquieto, buscando dentro de si uma saída que eu não compreendia muito bem, mas que me deixava tomar parte de alguma forma.

Os cabelos totalmente brancos, finos, esparsos, caídos para o lado direito. O sorriso instantâneo, a voz forte e densa. O corpo frágil. Tão frágil, que um dia caiu da cadeira que ficava à frente de nossas brincadeiras, na rua, e nem percebemos.

Foi ali, naquele instante, que aos pouquinhos, ele foi se ausentando. Como uma flor quase etérea, que se espalha nos campos, afugentada pelo vento, levada pela brisa, enfeitando estradas, pontilhando regatos. Tais como aquelas, que se sustentam no ar, por momentos, ao sopro de uma criança. Flocos de algodão, desvanecendo-se, consumindo-se. Ficou-me, no entanto, a beleza da dança, bailarinas miúdas ensaiando nas campinas. Ficou-me o sorriso vivaz, o prazer de cantar a vida e partilhar com ela o inspirar do sonho, de se mostrar generoso e paciente, de apostar em mim, um homem como ele, rindo de tudo e de si mesmo, tentando ser feliz.

A foto à direita é de meu avô.

sábado, novembro 07, 2015

Caminhos traçados

"O homem que deve morrer" era uma novela dos anos setenta. Na abertura, não lembro bem se era dentro do tema musical ou em off, na voz de um locutor, ouvia-se a frase “ando por caminhos que nunca foram abertos”. Tudo induzia ao clima de suspense da história.

Aproveito este preâmbulo para deixar-me conduzir pelas memórias infantis que volta e meia surgem e via de regra, produzem uma sensação de boa melancolia. Nesta época, um amigo da escola e eu, tínhamos entre onze ou doze anos e costumávamos pegar um ônibus na volta da escola. Só que eram linhas opostas, enquanto o meu coletivo ia na direção do bairro Cidade Nova, o do meu amigo era no rumo do Santa Teresa.

Ao sair do colégio, dirigíamos pela rua 24 de maio até a praça Tamandaré. Atravessávamos as pequenas vielas entre os canteiros, repletos de uma espécie de lírios lilases. Eram flores com muitas folhas verdes e longas, perfazendo o contorno dos canteiros. Enquanto ele se afastava em direção à rua Silva Paes, atravessando a praça, por força de seu ponto de ônibus, eu me dirigia ao abrigo da Luiz Lorea.

E íamos quase correndo, comentando as peripécias da aula, o modo estabanado do Irmão Freitas, discorrendo sobre temas nada correlatos à disciplina, mas ricos em informações geográficas quase turísticas, que só interessava a ele e suas viagens.

Ríamos a bandeiras despregadas, como se dizia na época, do Professor Ambrósio, homem magro, que se vestia de preto e tinha na lapela do paletó, um cravo branco (símbolo de quê, nem desconfiávamos). Tinha o apelido de "ternudinho", por não dispensar jamais a fatiota. Tinha por hábito cheirar a ponta dos dedos, enquanto escrevia alguma coisa no quadro. Quando se voltava, nos encarava com certo espanto como se não acreditasse em nossa atenção na disciplina. Suas aulas eram um transtorno, talvez mais para ele, porque os temas contábeis, parece, não cabiam em sua atenção. Na metade do caminho, mandava fechar o livro e liberar os alunos, para preparar o tema para a próxima aula e assim, se arrastava a matéria.

Também havia a professora de Inglês que nos desfiava uma tonalidade que desafiava qualquer esmero linguístico. De repente, o idioma aprendido nas séries anteriores, voltava cheio de penduricalhos fonêmicos que não correspondiam à língua falada, por mais que nos esforçássemos em entender.

Mas não era momento para revolta ou desmotivação com a aprendizagem. Tudo era um grande circo que nos fazia rir. Talvez este caldo antropológico não significasse nada para nós, a não ser rir de nós mesmos. Havia bons professores que não se encaixavam nessas reproduções? Sem dúvida! Mas estes não tinham a menor graça!

Talvez por isso, atravessássemos diariamente a praça, insistindo em caminhos não usuais aos transeuntes e dizendo para nós mesmos, “ando por caminhos que nunca foram abertos”.

Fonte da ilustração: fotografia de Wilson Fonseca

sexta-feira, novembro 06, 2015

Comentários emocionantes sobre a crônica "Refugiados em seus sonhos" publicada em 04/10/15

Fiz questão de transcrever estes comentários sobre a crônica "Refugiados em seus sonhos" publicada em 04/10/15 por representar uma forma de pensamento lúcida e coerente com a triste realidade que o mundo está vivendo. Sei que seus autores se identificaram com o que escrevi e, inclusive, sem falsa modéstia despertei o sentimento de indignidade que aflorou com a reflexão. Não há dúvidas que este sentimento estava latente ou muito bem desperto em suas experiências. Portanto, pensamos de maneira semelhante, pois sabemos o quanto são discriminadas as crianças não somente os refugiados, mas os refugiados de sua pátria, sua família, seu grupo, como tão bem se expressaram.

1. A seguir os comentários que tanto colaboraram com enriquecimento da discussão tão atual e que se desenrola com difícil abrandamento, segundo os informes diários dos refugiados no mundo.

"O comentário a seguir é de Fernando A. Freire. É escritor e mora em João Pessoa, na Paraíba:

Não estamos distantes da Turquia, nem da Síria. Nossos Ailan Kurdi, aqui no Brasil, dormem nas calçadas e não têm onde se refugiar, porque ali nasceram, ali aprenderam a andar, falar e mendigar. Muitos deles perdidos dos pais ou dos irmãos, noutros "mares". Vítimas do nosso preconceito torpe, suas praias são os semáforos nos cruzamentos das ruas, onde aprendem, uns com os outros, entre outras, habilidades de equilibristas, ou de engolidores de fogo, para sobreviver. Aí, nos cobram algum centavo pela exibição. Não é raro, nada lhes pagarmos, até mesmo por medo de baixar o vidro da porta do carro. Incomoda-nos essa sub-raça que vai crescer sob nossos olhares hipócritas. Quantos de nós desejaríamos que uma extensa cerca de arame nos separasse deles?!... Quantos de nós apelaríamos para que os governos nos protegessem, com suas balas de borracha, gás lacrimogênio, jatos d´água e cassetetes?!... Quantos de nós repudiaríamos a quem carregasse um deles nos braços, tentando incluí-lo no nosso meio social, na nossa escola, no nosso ambiente, tal como faríamos (talvez só por exibição)com qualquer refugiado branco estrangeiro?!... Ah, assim não dá!... Façanha dessa tamanha só dará IBOPE quando todos os nossos Ailan Kurdi estiverem mortos."

2. O comentário a seguir é de Bebel Lima, é escritora e mora em Athenas, na Grécia:

"Realmente muito triste todos esses infortunios pelos quais passam as criancas em todo o mundo . Voce se refere aos fatos que ve na TV , imagine eu que vivo na Grecia e vejo ao vivo todas essas imagens . Moro ao lado de Pireus , porto onde chegam os navios trazendo os refugidos que sao resgatados diariamente na costa ou nas aguas entre Turquia e Grecia e e' uma imagem diaria ve-los sendo conduzidos como animais para "alojamentos" . Prefiro nao entrar em detalhes quanto ao que vemos e que a imprensa nao mostra . Apesar da solidariedade do povo grego , o pai's tambe'm esta' em estado deplora'vel e nao pode fazer muito . Te aplaudo por levantar esse tema e me desculpe pelos erros gra'ficos , pois estou usando o PC e o teclado e' em grego . Bjss."

quinta-feira, novembro 05, 2015

A velhinha do riacho

Era assim, baixa, cabelo espichado num coque sugado no topo da cabeça. Tinha aquele jeito amável de ser, mas se a examinássemos com cuidado, veríamos uma sagacidade no olhar, um meio sorriso nos lábios e uma artimanha escondida nas mãos que jamais imaginaríamos.

Mas ela era assim, tranquila, doce, solícita e focada nos seus objetivos. Nada a despertava de seus cuidados constantes com o croché, com a linha desobediente arriscando-se entre seus dedos a se tornar mais uma fiel: corregionária da fé. Por certo obedeceria seus gestos ágeis, embora, inseguros e faria os contornos necessários para o desenho.

Ela tinha seus caprichos. Tinha consigo que deveria fazer as coisas da melhor maneira possível e se asssim aprendera de geração em geração, era seu dever fazê-lo.

Era conservadora nos seus segredos e via de regra, mantinha a tradição.

Outra coisa que gostava, era de prosear. E até fumava, meio às escondidas, um cigarro de palha. Tinha uma tosse danada, daquelas que nem alecrim cheiroso cura, mas persistia no vício.

Sentava à beira do avarandado e puxava conversa. Seus olhinhos miúdos, quase escondidos, entre pesados sulcos, brilhavam. Sua boca de poucos dentes desafiava a memória de qualquer um. E lembrava, e contava e argumentava sobre as histórias mais cabulosas. Sabia de tudo. Nada lhe passava, que ficasse no esquecimento. Ao contrário, tinha uma memória prodigiosa, principalmente quando algum fato escabroso assombrava a pequena povoação. Mas esse assombramento, esse destempero, nada tinha a ver com alma penada ou assombração. Tinha a ver com gente da cidade, políticos, militares, advogados, donas de casa, sacerdotes, gente de qualquer profissão ou vocacão. Até os vagabundos tinham a sua história. E como tinham. Aí, brilhava o seu lado progressista.

A tradição passada de geração a geração era esquecida. Ou compartilhada. Ela ficava bambaleando entre a tradição, a posição conservadora e a progressista, que desafiava o caráter de qualquer um. Tinha este carisma, este dom, de ultrapassar barreiras ou ficar me cima do muro. O único problema, e ela não sabia disso, é que poucos confiavam nela. Quem poderia confiar numa pessoa que passava de uma margem a outra, sem pestanejar, sem molhar os pés, sem se preocupar.

É, ela era assim. E há políticos, que são bem parecidos, saltam de partido em partido e lutam para criar outros. Tal como a velhinha do riacho.

Países que mais acessaram o meu blog no mês de outubro/2015

Lista por número de acessos

Estados Unidos

Brasil

Rússia

Portugal

Alemanha

França

Geórgia

Irlanda

Espanha

Reino Unido

Fonte da foto: autor Wilson Fonseca

domingo, outubro 25, 2015

PÓS-ESCRITO SOBRE O CONTO “O DILEMA DA PRIMEIRA-MINISTRA"

1. O desafio

No conto “O dilema da primeira ministra”, participei do desafio de uma oficina literária online, cuja provocação era evitar o assassinato de Indira Gandhi, de modo inusitado, através de personagens cujas existências não fossem do mesmo período de tempo. Indira Gandhi foi assassinada a tiros, em Nova Déli, diante da residência governamental, por dois agentes de sua própria guarda de segurança, no ano de 1984. Neste ambiente político que cercava a primeira ministra, deveriam se reunir o Papa João Paulo I e um emissário da Mossad, chamado Hersch.

Foi um trabalho complicado, principalmente para dar verossimilhança ao discurso dos envolvidos no conflito. Para tanto, pesquisei sobre a história da Índia, principalmente sobre a Primeira Ministra Indihra Ghandi, o partido comandado pela doutrina religiosa Sikh, sobre a morte do Papa João Paulo I e o movimento de espionagem chamado Mossad.

2. Algumas pesquisas

Desse modo, reuni no mesmo cenário, o Papa João Paulo I, que havia morrido seis anos atrás, ou seja em 29 de setembro de 1978. Segundo relatos, uma freira chamada Vicença encontrou o Papa sentado na cama com uma expressão de agonia. Num outro momento, no entanto, informou que o havia encontrado no banheiro, já morto, com as roupas papais. Com a intenção de equilibrar o clima religioso com o político, dispus na mesma cena, o Papa João Paulo I e o emissário Hersch interagindo no mesmo contexto político que cercava a primeira-ministra da Índia. Os dois estavam imbuídos em ajudá-la a safar-se da difícil situação política em que se encontrava, com risco de vida, por ter enfrentado o grupo religioso cujo principal discípulo liderava o maior partido da Índia.

O primeiro personagem interviria no destino da Índia através do resgate do perdão, que considerava a única saída para a Primeira Ministra safar-se do cruel destino que a aguardava. Por outro lado, o emissário da Mossad tem como missão a outorgada por sua organização que se ocupa em libertar judeus e capturar seus perseguidores, principalmente os nazistas espalhados pelo mundo, inclusive, os que ainda existem nos tempos atuais. Este movimento realizou perseguições na Argentina e inclusive no Brasil, quando seus representantes descobriram que o médico Joseph Mengele, responsável por experimentos macabros em Auschwitz, vivia no interior de São Paulo. Sua intenção portanto, era salvaguardar as comunidades judaicas na Índia, o único país onde os judeus não sofrem discriminações, Segundo ele. Entretanto, a comunidade mulçumana está crescendo muito e este grupo religioso não respeita os judeus. Conclui-se, portanto que esta organização de espionagem internacional se ocuparia do líder missionário Sikh, cujo poder se intensificava na Índia. Havia a intenção de os Sikhs proclamarem uma comunidade soberana que devia se autogovernar.

Outro trabalho importante de pesquisa foi relacionado à própria situação da Índia, no governo de Indira Ghandi, principalmente no aspecto religioso e politico dominado pela doutrina Sikh. Os sikhs são membros de uma seita religiosa que defende a fundação de um país independente no Estado do Punjab. Desde a infância os membros dessa comunidade recebem formação religiosa e militar. Muitos deles fazem carreira, ocupando postos de importância no Exército e nos serviços de segurança indianos. Esta doutrina com traços do hinduísmo e islamismo se tornou uma força política imensa, comprometendo a democracia. A intenção dos partidários Sikhs era proclamarem uma comunidade soberana que devia se autogovernar. Numa intervenção para derrotar esta rebelião, Indira Gandhi deu ordem ao Exército para irromper pelo santuário e os ocupantes recusaram-se a sair. Na luta que se seguiu houve 83 soldados e 493 ocupantes mortos, incluindo os líderes, além de numerosos feridos. A partir daí, houve um rompimento grave nas relações entre os hindus e sikhs, que levariam finalmente a seu assassinato.

Indira foi assassinada por um de seus guarda-costas de maior confiança: o inspetor Beant Singh, que exercia o cargo há dez anos, informado à AFP por um membro dos serviços de segurança que presenciou o atentado. Beant Singh e o capitão Sawant Saingh, um guarda-costas nomeado recentemente, dispararam contra Indira às 9h18 locais , quando ela se dirigia para uma filmagem com o ator britânico Peter Ustinov, que estava na Índia rodando um seriado sobre líderes políticos. Ustinov estava do lado de fora da casa num gramado onde seria feita a entrevista, junto com o secretário de Imprensa Sharda Prasad, quando os guardas atiraram. Eles presenciaram toda a cena. "Tudo estava pronto, o chá servido e ela caminhava em nossa direção, quando ouvimos três disparos", contou Ustinov à televisão francesa, acrescentando: "Por um momento pensamos que fossem fogos de artifício, mas logo após um dos guardas disparou a metralhadora contra ela". Segundo a agência France Presse, o ator teria filmado o atentado.

3. As personagens

Indira Ghandi

Examinando a figura de Indira e pesquisando a personalidade retratada nos jornais e em pesquisas embasadas em fatos históricos, desenhei com simplicidade a imagem de Indira, de acordo com as cenas apresentadas. Tentei mostrá-la como uma mulher forte, tranquila, habituada às reviravoltas políticas, mas que no momento estava desorientada. Fazia questão, porém de mostrar-se calma e segura, tendo este desempenhado completamente se transformado a partir das visitas inusitadas que recebera. Afinal, encontrava um homem que morrera um tempo atrás, e que lhe dizia coisas que pareciam um vaticínio, além de lhe mostrar outro caminho, que Segundo ele, seria o do perdão. Por outro lado, o emissário da Mossad era uma figura pouco provável em seu context politico, apesar de haver certas discriminações aos judeus em seu País, através da religião mulçumana que crescia grandemente. Tentei mostrá-la como uma pessoa forte, por sua posição política, mas ao mesmo tempo frágil por todos os acontecimentos conturbadores que ocupavam seu cenário de governo, aliados às revelações que acabava de ouvir. Embora não possuisse traços de beleza, era uma mulher que irradiava austeridade e uma certa delicadeza através dos gestos delicados e firmes. Imaginei também que fosse recatada e através de sua sobriedade, revelasse certa beleza. Possuia uma vaidade velada, que não costumava admitir. Havia naquele momento de incertezas um medo que a desorientava. Numa epifania do personagem, ao ouvir o pedido de perdão que deveria fazer à comunidade silkh, a primeira ministra se emocionou e viu através da janela os seus agentes que a protegiam. Por serem eles, silks, ela viu o quanto lhes devia pedir perdão, transferindo para os agentes toda a gama de sentimentos de arrependimento que a tomavam. Afinal, jamais fariam nada contra ela. Estavam ali para defendê-la.

Emissário Hersch

Tentei representá-lo como um homem muito seguro de si, com um olhar frio, embora complacente, embora não tivesse qualquer dúvida sobre sua missão. Tiha os olhos claros, os lábios finos, o que para mim, identificava o biotipo que se tem em mente dos conspiradores, capazes de qualquer coisa para terem a missão cumprida, como os representantes anglo-saxões. Mas aqui, seria somente uma licença poética, porque ele era um judeu. Não tinha o hábito de sorrir, mas confiava plenamente na palavra do Papa, embora o seu objetivo se limitasse ao aspecto puramente politico. O papa seria para ele uma espécie de acesso ao problema.

Papa João Paulo I

O Papa João Paulo, cabelo grisalho alinhado para a direita, cujos olhos pequenos pareciam menores sob os óculos pesados. Revelava uma fisionomia alegre, sorriso denso e uma capacidade infinita de mostrar-se o quanto era sincero. Seu interesse era resgatar a paz na Índia e salvar a Primeira-ministra através do pedido de perdão aos sikhs pela terrível chacina no templo. Segundo ele, este pedido selaria a paz e a reconciliação entre as várias facções políticas e religiosas no país. Era um homem de Deus. Um homem de bem, que justificava o seu destino pela impermanência da vida. Veio com a convicção de que convenceria a estadista e assim o fez.

Peter Ustinov

Ator inglês que faria uma entrevista com Indira, mas que somente é citado no texto.

4. Conflito

O conflito se resume na proposta de salvar a vida de Indira, através do convencimento pelos dois personagens que a visitaram. Um, considerando que a convenceria pela prudência política e diplomacia, pois através de sua atitude, ela acabaria realizando a própria missão de sua organização a favor dos judeus. O outro representante estava convicto que pela bondade do coração da estadista, chegaria a bom termo, a fim de conseguir a paz almejada, resultado de seu pedido de perdão e consequente preservação de sua vida. Afinal, ela era um mulher que lutara pelos pobres, que transformara os país numa democracia, que conseguira melhorar a economia com a nacionalização dos bancos e fôra responsável em grande parte pela vitória da Índia no conflito contra o Paquistão, além de outras medias que a tornaram querida entre os cidadãos e a classe média indiana. Entretanto, para banir as rebeliões, ela governou com mãos de aço, inclusive com poderes quase ditatoriais.

No conto, entretanto, o plot se resumia em salvá-la de um presumível ataque pelos agentes que trabalhavam em sua residencia, comandados pelos rebeldes. Os dois enviados ao seu encontro tiveram sucesso através de suas forças de convencimento e a epifania da personagem ocorreu no momento em que ela viu com olhos de compaixão os agentes que a protegiam e que pertenciam à doutrina sikh do templo que invadira.

sábado, outubro 24, 2015

A casa caiada de branco

Observava minha mãe andando de um lado para o outro. Parecia ansiosa. Punha umas roupas sobre a cama, examinava-as com cuidado, afastava-se do quarto, espiava pela janela. Chamava-me a atenção. Exigia que me arrumasse também.

A vizinha aparecia, brejeira e eufórica. Cabelos muito loiros, tingidos. Voz fina, esganiçada. Olheiras pesadas sob os olhos.

Saíram as duas, eu seguindo-as, chutando pedra, caminhando por entre os trilhos do bonde, minha mãe pedindo que saísse, era perigoso. Esquecia rápido as recomendações.

Meu olhar, em seguida se detinha na velha casa caiada de branco, postigos verdes, de janelas sempre cerradas, aspecto meio sombrio.

Minha mãe suspirava curto. Eu longo, na expectativa do desconhecido, no sorriso infantil da descoberta.

A vizinha requebrava com a bolsa branca pendurada no braço. Minha mãe esfregava as mãos, suadas.

Entramos, a porta quase não se abriu. Tudo em penumbra, pessoas que se mexiam pelos cantos, a sala completamente ocupada.

Começaram os cânticos. Minha mãe apertava a minha mão, com força. A vizinha se apresentara, participando ativamente dos procedimentos religiosos.

Eu me afastei uns passos, saindo lentamente do círculo que rezava e cantava e aproximei-me de uma porta que dava para um corredor imenso, de ladrilhos em preto e branco. Havia cruzes, desenhos estranhos de giz, no piso. Eu os apagava rapidamente, com os pés. Pulava sobre eles, ultrapassando-os, como se jogasse amarelinha, até chegar a última peça da casa e levei um susto, ao ver um homem numa cadeira de rodas, que acenava negativamente a cabeça. Nas pernas, um cobertor leve, na cabeça poucos cabelos enfeitavam a careca, os olhos fundos.

Fiquei paralisado, na última porta, com aquele olhar incisivo, censurando a minha atitude. Ele falou alguma coisa inaudível, acho que pediu água. Sem entender muito bem, aproximei-me do filtro de cerâmica, abri a torneira, enchei o copo que entornou sobre as mãos.

Aproximei-me e entreguei, indagando com o olhar. Ele segurou o copo com as mãos trêmulas, levou-o à boca e pediu que eu sentasse, ali perto, no banco que estava ao seu lado. Fiquei quieto, acomodado no canto. Não ousava aproximar-me, mas temia afastar-me. Sabia que havia alguma coisa que eu precisava saber, que não poderia deixar passar, como uma oportunidade de convivência insuperável.

Então, ele falou. Voz trêmula, lábios umedecidos pela água, que escorria no canto da boca, como um visgo de lesma.

– É a morte. Não me deixe aqui sozinho. Esta é a verdadeira morte.

Tive náusea da boca visguenta. Mas foi só por um momento. Sorri, tentando ser amável. Peguei-lhe o copo da mão, coloquei-o sobre a mesa e perguntei se não queria mais água. Não me respondeu. Ficou ali, parado, me olhando, querendo dizer coisas que não conseguia explicar. Ou talvez, quisesse apenas ouvir-me.

As cantorias da casa ficavam mais intensas. Senti-me atraído por elas. Um cheiro de incenso inundava o ambiente, enchendo o corredor de fumaça. Tambores anunciavam um ritual mais dramático. Meu coração batia forte.

Afastei-me um pouco, voltei-me para ele, a cabeça pendia. Devia dormir.

Na porta, ainda apaguei mais alguns símbolos. Corri corredor à fora, na tentativa de não perder nem uma cena.

Ao chegar na sala, ainda na penumbra, observei as pessoas sacolejando o corpo, acompanhando o ritmo. A vizinha girava sem parar no meio do grupo.

Aproximei-me de minha mãe que perguntava onde eu havia andado.

Não respondei. Arregalei mais os olhos, agora, hipnotizado. A vizinha continuava girando, sem parar, gritando frases desconexas, pedindo bebidas, fumando charuto e de repente, num grito abafado, quase sussurro, desaba no chão. Imediatamente tapam-lhe o rosto com um pano preto e um risco de pólvora é aceso ao seu redor, enquanto os atabaques funcionam com fúria e as pessoas cantam incessantemente, quase gritos.

Em casa, ouvi os gritos de minha mãe, não preocupada com o que presenciara, nem com a vizinha, nem com o ritual, mas com o meu próprio, que organizara.

A boneca de minha irmã incendiava, enquanto cantava canções tão parecidas com aquela que ouvira naquela tarde.

domingo, outubro 11, 2015

A PALESTRA

Entrei inopinadamente na sala, pernas bambas, suor na testa, nas mãos, lábios trêmulos, vexado. Elaborei desculpas. Desviei das centenas de olhares que investigavam curiosos. Fazia calor e eu vestido da cabeça aos pés com agasalhos pesados, maleta na mão, celular no bolso, relógio descolando da pulseira. Investi até uma cadeira, abri a pasta, espalhei papéis, fiz barulhos estrondosos no silêncio absoluto.

O palestrante pigarreou, deu alguns passos, me olhou de soslaio, retomou o tema, irritado. Juntei o que pude, caído ao chão, esparsos documentos, entre fotografias, pregos, alfinetes, alicate de unhas, chaveiros. A cadeira rangeu, eu me abaixei devagarinho, mas empurrei os pés de metal, riscando o piso. Foi o suficiente para cessar a palestra. Ele me olhou novamente, e quase em súplica, exigiu silêncio, apenas com os olhos. Todos os demais viraram os pescoços, narizes, ventas e resmungos em minha direção. Retorci-me levantando a pilha de objetos do chão, fazendo movimentos de malabarista, temendo aumentar o ruído. Ajeitei-me na cadeira. Aquietei-me. Só por fora. Coração alertava, espaldando-se dentro do peito, batucando que nem índio em dia de festa. Estava pálido, acho que até os lábios embranqueceram. Era desafio grande ficar ali, atrasado, danoso, inoportuno.

O mestre recomeçou. Tentei prestar a atenção, mas os pensamentos se confundiam e se misturavam na minha mente, fazendo um entrelaçado de imagens que eu não conseguia sintonizar. Respirei fundo, imaginando o ar inspirado invadir o cérebro e limpar de vez as teias de aranha, há tempo engendradas, ocupando espaços indevidos. Expirei com força para fora, expelindo o negativo, numa nuvem preta, maciça, intensa. Foi um som tão forte e inesperado, até por mim, que o homem parou novamente, desta vez assustado, talvez pensando que eu estava passando mal. Pedi desculpas, expliquei que estava tentando relaxar, me concentrar para entender bem a palestra, mas o som saiu assim forte, assim intenso, assim inesperado que até eu me arrepiei. Parecia espírito do além.

O palestrante era baixinho, agora reparava bem. Foi bom falar, esvaziei um pouco a ansiedade. Tanto que pude observar as coisas, até o jeito dele. Nariz adunco, boca grande, lábios finos e olhos pequenos, salientes, caídos das órbitas sob uns óculos leves, na ponta do nariz. O cabelo, entradas enormes, clareiras imensas na floresta rala de pelos alinhados para trás. A voz era forte, gutural, enérgica. Falava em... em que mesmo? Ah, inserção de valores. Como assim? Natureza morta? Seria sobre arte, pintura, ecologia? Nada disso, o assunto versava sobre política, mas tudo é política. Até o ar que respiramos está atracado à política. A água, cada vez mais rara. E o tratado de Quioto?

Faltava-me ar, naquele momento. Pensar nisso me dava aflição. Até alergia. Pior, comecei a fungar. Fungar baixinho, pigarreando de leve, tentando conter o espirro. Parecia cacoete, mas sempre que alguma coisa me incomodava, vinha aquela cosquinha irritante na garganta, aquele arder nos olhos, uma tosse iniciante decidida a permanecer ou um monte de espirros magistrais, exagerados, exorbitantes. Respirei fundo novamente, mas desta vez, sem nenhuma técnica para não acordar a plateia. Mas alguma coisa me irritava, porque o nariz coçava, a tossesinha surgia no fundo da garganta, aparecendo desanimada no início. Eu, evitando o pior. Se me desse conta o que me fazia mal, cessava definitivamente a alergia. Mas eu ainda não sabia o que era. Olhei para alguns participantes que estavam mais próximos, eu na cadeira, no corredor do meio. Ao me lado, fileira de dois de um lado, e no outro, outras duas alas totalmente preenchidas. Um rapaz negro do meu lado, uma tarja na testa, segurando os cabelos. Olhar compenetrado, jeito estudado de intelectual, postura adequada, pernas esticadas, mãos nas coxas, como esperando a apoteose final, o confronto das ideias, o debate, a resposta definitiva. Ao seu lado, uma moça, cara de estudante, óculos pesados sobre o nariz arrebitado, boca entreaberta mastigando vez que outra um lápis com o qual devia fazer anotações. Cabelos castanhos, luzes, soltos sobre os ombros, mãos finas e pequenas, unhas pintadas de rosa. No chão uma mochila gorda, cheia de penduricalhos, inclusive um chaveiro com um ursinho na ponta.

Parei de examinar a plateia, porque ouvi um hã hã de censura, do senhor que estava ao meu lado, sentindo-se incomodado pela minha cabeça virada em sua direção, nariz quase colado no dele, o qual nem tinha percebido. Tinha um bigodão, desses de contornar lábios, quase se juntar na testa, olhar aguçado, perspicaz, interessado. No colo, um laptop, conectado à Internet. O reflexo não me deixava ver, mas eu jurava que era um chat em que participava, dissimulado, aparentemente anotando informações. Então resolvi perguntar: –quem é ele? – apontei para o palestrante.

O homem parecia ter sido atingido por um bombardeio no Líbano. Sacudiu o bigode, mexendo a boca, aflito. Olhou-me com censura. Foi falar alguma coisa. Mas espirrei. Espirrei uma, duas vezes, três, inúmeras vezes e um muco insistente corria-me do nariz à boca, misturando-se ao queixo e eu passando as costas da mão, desolado.

O orador interrompeu a palestra mais uma vez. Ia pedir para eu afastar-me, tentar melhorar lá fora, talvez depois voltar, mas não lhe dei o prazer de dizer-me tudo isso.

Levantei-me, fiz um gesto explicando a alergia, um aceno qualquer, nem precisava e ia afastar-me, empurrando a cadeira devagar. Nisso, o bigodudo afirmou: – é um candidato. Está fazendo campanha. Nós somos seus correligionários, entende?

Ele foi generoso e paciente. Talvez quisesse a minha aprovação. Mas agora, eu tinha entendido o motivo da minha alergia. Puxei a ponta da camisa e assoei o nariz, com náusea. E me fui.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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