
Este conto deu origem ao mote do romance "O eclípse de Serguei"
Aspirou o cheiro de alho no dorso das mãos. Fungou. Deu até alguns espirros. Alergia danada. Insuportável. Olhos vermelhos, como se esmagasse cebolas. Era somente o alho triturado com a faca, sobre a pia branca, branquinha, mármore impecável. Era mármore mesmo? Olhou para os lados, procurando a hora no relógio da copa. Buscou num canto do olho a luz da rua. Suspirou. Tomou água, pensou na vida. Examinou-se no fundo da concha: aqueles olhos grandes, a pele encardida, dedos esbranquiçados. Sentiu um suor forte escorrer pela nuca, molhando o cabelo. Já estava crescido demais, pensou.
Largou o alho moído, aproximou-se da primeira cadeira que encontrou e encostou a bunda, de leve, temendo afundar no vazio.
Por um momento, pensou que morreria. Bobagem. Era só um contratempo, um empacho qualquer no estômago. Ninguém morre por comer demais. E ela tinha sido glutona demais, como dona Matilde costumava chamá-la.
Você é glutona, saco sem fundo!
Gostava de Dona Matilde, não fosse aquele jeito arrogante de chamá-la de crioula, com todos os e us que tinha direito. Também, pudera, vivera sempre na casa grande, cercada por serviçais, com pensamentos de vanglória em relação aos negros. Não podia pensar diferente, da noite pro dia. Agora viviam as duas, naquela mansão enorme.
A velha estava cada dia mais sozinha e só tinha ela para lhe preencher a vida.
Também para seu lado, a coisa não era diferente. Vivia quase em simbiose com Dona Matilde. Não tinha vida própria, nem namorado, nem pai, nem mãe. Na verdade, nem conhecera o pai. Como quase todos de seu bairro pobre, da cidade pequena onde morava.
Felizmente, melhorara, o mal-estar estava passando devagar, mas podia respirar com mais propriedade. Tinha um pouco de náusea ainda pelo cheiro do alho.
Levantou-se, enfraquecida e voltou para o balcão de pia. Juntou o alho, o sal, e todos os condimentos que encontrou, jogando tudo na panela, fritando no óleo quente. Pouco tempo e o aroma de comida pronta se espalhava pela cozinha. Afastou-se do fogão, rabiscou com o indicador no ar, como se escrevesse o que faria em seguida. Pensou um pouco e abriu a geladeira, entediada. Vasculhou em todos os cantos, pesquisou as carnes e encontrou um pedaço de vitela estirado num prato. Refez consigo os passos da receita.
Aos poucos, o sol foi fugindo da janela, acompanhando o fumegar dos molhos. Vapores daqui, humores dali, enxovalhando o teto e o sol cada vez mais longe, trazendo sombra à pequena área. Quando deu meio-dia, a comida estava servida.
Silêncio absoluto. Ainda uma réstia de luz iluminava a pele de dona Matilde.
A parede de piche do prédio ao lado destacava a sombra que se insurgia pela casa.
Dona Matilde comia devagar e vez que outra a olhava, intrigada, mas se limitava ao silêncio. Enquanto comia, não gostava de conversas. Além disso, não estava disposta, queria mesmo é ficar com seus botões e pensar o mínimo possível. Melhor era só comer aquela comida sem graça que a crioula fazia.
Mesmo assim, investigou a limpeza da toalha, o arranjo dos talheres, dos pratos. A beleza da comida. Não estava mal, não. Mas bem que podia comer sozinha. Ter aquela mulher a sua frente, mastigando com aquela avidez, voraz como um animal, sem qualquer elegância, era sempre um tormento.
Mas hoje, especialmente, havia uma estranheza em suas atitudes. Ela não comia do mesmo jeito, beliscava. Que coisa acontecera? É sensato e de bom tom, ficar quieta. Pra que saber o que vai naquela cabeça oca? E se descobrisse, não mudaria em nada, a sua vida. Não teria muito tempo e aquela imprestável tinha toda a vida pela frente. Pois que a vivesse sozinha, com seus problemas comezinhos, sua vida vazia, sua quase inutilidade.
Melhor encarar de frente aquela vitela, que mesmo macia, ainda machucava a gengiva. Seus dentes, os poucos que restavam, não eram os mesmos e os que substituíam os faltantes, ainda a machucavam. O maxilar derreara, como toda a sua vida. Quase não se olhava no espelho, uma mulher como ela, que vivera o esplendor da beleza, mantinha-se assim, medíocre, quase caquética.
A outra, entretanto, quebrou o silêncio.
Dona Matilde levantou os olhos devagar e pensou: ela sempre me suga os pensamentos. Que quer agora? Falar do espinafre que está à hora da morte? Dizer que a carne demorou a descongelar ou se desculpar porque se passou no sal.
–A senhora não reparou nada?
Reparar? Dona Matilde tinha a percepção de que alguma coisa estranha havia acontecido, não tinha dúvidas. Mas não dava o braço a torcer.
–Não reparei nada. Se passou no sal?
–Não, fiz tudo com muita calma. Pensei bem em cada ingrediente.
Estava ficando cada dia mais burra! Ainda precisava pensar nos ingredientes.
–Ainda não decorou? Você trabalha pra mim há quanto tempo?
–Mais de quarenta anos!
Dona Matilde expressou um meio sorriso, irônica. Depois voltou-se para o copo de suco e o sorveu, paciente. Não perguntou mais nada. Houve insistência. –Acho que foi uma das melhores comidas que fiz! - Convencida - Mastigou a velha.
–Que disse, Dona Matilde?
Sem levantar a cabeça, perguntou, irritada: você é que queria me dizer alguma coisa. Desembucha, crioula!
A outra, com um frio na espinha, concluiu: pensei que a senhora tinha reparado que eu quase não comi, hoje. A senhora sempre reclama, me chama de glutona.
Silêncio. O sol ficou mais fraco e nem uma réstia de luz iluminou o rosto de Dona Matilde.
–Não é normal.
–Não é normal.
–A senhora também acha?
–Mas é claro que acho. Você come que nem uma desvairada. Mas não se preocupe, foi só hoje. Amanhã, você volta a ser a mesma ensandecida.
–Não passei bem hoje. Me deu tonteira, tremedeira. Suador.
–Idade.
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