sábado, julho 25, 2015

PRESO NA IGREJA

Era início de noite de outono, mas havia uma sensação térmica mais fria do que se antevia no final da tarde, sintoma de que a estação do frio se prolongaria por bastante tempo. Uma neblina envolvia a cidade. Pouco se via os edifícios ao longe e suas iluminações fracas, espalhadas no cinza aguado da atmosfera.

Entrei na Igreja do Carmo (Rio Grande,RS) com o intúito de fazer uma oração breve, acompanhado de uma novena escrita, que depositaria na mesa providencial: conforto e esperança para os desanimados, acabrunhados em relação às dificuldades que a vida às vezes nos reserva ou mesmo esperançosos, eufóricos até, na certeza do atendimento das preces. Por vezes, e raríssimas exceções, apenas um momento de reflexão e agradecimento. Os que tem fé nutrem-se destes momentos de verdadeiro encontro consigo e com a Divindade, os  que por ventura se alijam destes comprometimentos, ou por terem dúvidas ou mesmo, desprovidos de qualquer entendimento no sentido da entrega total e absoluta de quem crê, servem-se destes momentos para dar uma parada em sua vida cotidiana e mergulharem em seu próprio eu.

Talvez tudo não passe de absolutas divagações. Quem pode traduzir os sentimentos, a ideologia ou mensurar a fé ou falta da mesma nos outros? Ou em nós mesmos. Com que instrumentos podemos transformar em estatísticas estes aspectos tão humanos, que são os da dúvida, do medo de duvidar, da confusão de pensamentos, da ciência como autora indômita de nossas resoluções ou aliada a nossas crenças? Não passa de um exercício de adivinhação.

De qualquer forma, estive na igreja, naquele fim de noite com o mesmo objetivo de milhares de pessoas, exercitar a fé, não talvez aquela fé formal moldada pela religião, mas uma fé personalizada, quase única (não deve servir de modelo), mas que em muitas vezes, me traz um acalento à alma que não encontro em outras relações, a não ser via de regra, pela escrita. Esta me faz sonhar, devanear, envolver-me além das fronteiras do pensamento racional e consequentemente me libertar de mim mesmo. Alçar vôos extremos que me permitem alcançar uma amplidão de sentimentos, que me faz rezar, rezar da maneira mais pura, talvez, um reza interior, incitada pela liberação do eu nos meandros do pensamento mais elaborado. A alma fica solta, despudorada, sem subterfúgios nem máscaras, nas regiões descampadas, nas quais o senso comum e a padronização das virtudes e desejos se desfaçam num rol de coisas inúteis, sem valor. Entre a fronteira da ilusão e da liberdade, aí se encontra o meu mundo ou o mundo dos que escrevem e assumem o seu estar, desimpedidos das fronteiras sociais, estas que realmente impedem o pensamento e a reflexão.

Mas, estava lá, num dos últimos bancos, ainda na penumbra, que por minha surpresa, avançava ainda mais, ficando quase em plena escuridão, somente evitada pelas poucas velas acesas no altar. Ajoelhei-me, fiz minhas orações, larguei dissimulado o papel da novena na mesinha, próxima à parede de vidro que separava o hall de entrada do ambiente interno do templo e voltei-me para o banco, desta vez, sentando-me e observando um número reduzido de pessoas que se agrupavam próximas ao altar.
 

Não demorou muito e começaram algumas orações, com as pessoas se ajoelhando em torno do altar. Em sequência, houve inúmeras canções religiosas, todas de uma melodia contrita, invocando o Espírito Santo, os anjos e demais santos da Igreja. Não quis afastar-me assim, repentino, porque havia começado o que me parecia um culto não muito usual, embora fosse da igreja católica. Imaginei uma missa de louvor, mas não havia nenhum dos rituais que confirmassem esta minha convicção. Pela minha ignorância, não percebia que era uma espécie de benção às pessoas que ali estavam, recheada de testemunhos, chegando ao clímax da chamada língua dos anjos.

Então, resolvi quebrar as regras da boa educação e afastar-me, já que não tinha me preparado para participar do ritual, mesmo porque havia outros compromissos e nem deixara nenhum recado em casa. As pessoas me esperavam e eu, nem trouxera o celular. Levantei-me no maior sigilo, esgueirando-me por entre os bancos, evitando fazer qualquer ruído e dirigi-me praticamente na escuridão (porque nos fundos da igreja, a penumbra já era escuridão absoluta) em direção à porta, tateando entre uma mesa no caminho, a parede envidraçada, que separava o hall, o mural de informações, e finalmente uma das portas laterais. Respirei, aliviado. Ali estava minha salvação. A porta. A liberdade, não que estivesse me sentindo mal naquele ambiente tão bem sintonizado com a bondade, a contrição do pensamento, a invocação a Deus. Ao contrário, estava guarnecido por um sentimento de paz e serenidade. Mas um outro lado, o do dia-a-dia, das tarefas por fazer, da rua que me esperava para afastar-me em direção à minha casa, o cumprimento de compromissos, o fato de não poder participar na íntegra do acontecimento e a razão maior, de que o tempo limitado não me deixava saídas, a não ser aquela real, austera, maciça. A porta lateral imensa, pesada, bordada em alto relevo me parecia fechada. Aproximei-me um pouco mais, encontrei a maçaneta que brilhava na penumbra resultante da fronteira entre a parede envidraçada e o hall de entrada.

De lá, ouvia os brados sonoros do padre. Fazia um discurso, que de certa forma apontava pessoas, pessoas que como eu não participavam da missa e eventualmente surgiam nestes momentos de ligação com o infinito, revelando que estavam sedentas de fé e religião. Sentia na pele que o discurso era pra mim. Delírios de quem se encontra num aperto. Mas ele prosseguia, como “aquele senhor ali, quer aproximar-se, receber a benção e apagar de vez a sua vida pregressa?” Claro que não se referia a mim, pois eu continuava preso entre o hall e a porta envidraçada. Girei com força a maçaneta. Já não sentia frio, nem me importava a neblina que se transformava em chuva lá fora. Meu coração palpitava agitado, não mais tranquilo, não mais sereno, não mais em paz. Um suor frio escorria-me pela testa atingindo a gola do blusão de lã, passando pelo colarinho da camisa. A porta não se abria de jeito nenhum. Então, afastei-me, titubeando entre as paredes, tentando atingir a outra porta lateral, pois qualquer uma das duas, fatalmente alcançaria a porta principal, de onde partiria para a rua, em definitivo. Fiz a mesma função anterior e nada. A porta até balançava com meu esforço.

Ouvi passos cujos ruídos aumentavam e estremeci. Alguém percebera o meu interesse em fugir e talvez pensasse que eu não passava de um ladrão forçando a porta. Mas era a porta que dava para a principal, ou seja, para a rua! Voltei-me devagar e espiei para descobrir o meu vigilante. Os passos diminuíam, bem como o discurso do padre.

Agora as orações eram quase em silêncio, cada um falando consigo mesmo, baixinho, cada vez mais baixinho. Encostei-me na parede próxima à porta e observei a pessoa que caminhava em rodeios. Era uma senhora obesa, que devia estar esticando as pernas inchadas e doloridas e nem de interessava pelo meu caso. Estiquei o braço para a maçaneta que cada vez me parecia mais imensa. Inesperadamente, esta porta lateral da esquerda abriu-se com uma suavidade que me encheu de alegria e esperança o coração. Mas, a odisséia prosseguia, porque havia a porta principal e desta, eu não tive a menor dúvida. Havia ferrolhos tão fortes, que eu jamais abriria.

Voltei desolado para o meu lugar, principalmente porque imaginava minha família me procurando, pois não demoraria dez minutos e já se passavam duas horas.

Em dado momento, as pessoas começaram a ser convidadas para a benção. A maioria situava-se bem próxima do altar, diferente de mim e de dois ou três, talvez não tão engajados, que se dispersavam em bancos afastados. Aos poucos, numa canção suave, as pessoas se dirigiam. Uma vela acesa, segura por um dos ajudantes e o sacerdote punha as mãos sobre a cabeça do indivíduo, abençoando-o.

Não era minha intenção participar do evento, da forma que se me dispusera, nem havia pensado em tal hipótese, muito menos sabia que ocorreria àquela hora, naquele dia. Arquitetei milhares tentativas em sair pela sacristia, imaginei saídas mirabolantes, rezar na frente de um santo qualquer do altar e evadir pela porta mais próxima. Ou, aproximar-me sorrateiramente do grupo, fazer algumas orações e aos poucos acessar os arredores da sacristia, talvez em marcha-ré, pé ante pé. Avaliei em cálculos os metros que faltavam e o tempo que levaria para chegar até lá. Quem sabe, aproveitaria o testemunho mais enlevado, o sermão mais enfático ou uma dose de absoluta mansidão, onde os sentidos se tornassem vulneráveis apenas aos sentimentos mais profundos de fé. Sairia assim, cauteloso e seguro de minha precisão.

Claro que nada disso funcionou, até porque, eu não tinha certeza de que após a sacristia, haveria uma porta aberta também. Por isso, aderi ao evento e num último convite, como o homem provavelmente alienado da religião, da fé e dos sentimentos bons, fui chamado para a benção. Obedeci. Lá estava claro, à luz das velas e de algumas artificiais estrategicamente acesas. Não era este o meu primeiro objetivo, mas me senti recompensado, até pelo tempo que considerara perdido. Até pela aflição que passara. As pessoas saiam sorridentes e comovidas. Eu ainda pensava, o que vou explicar em casa? Que fiquei preso na igreja? Quem vai acreditar?

O ESTRANHO PRIMO DO INTERIOR

Chamava-se Ismael. Veio morar conosco numa dessas tardes de inverno, quando o sol se põe tão lentamente que parece que vai desaparecer para sempre. Era forte, robusto, ideal para o quartel. Nos meus onze anos, me parecia muito velho. Era um típico exemplar de rapaz do interior. Olhos baixos, gestos miúdos, aperto de mão respeitoso aos mais velhos. Jeito de quem sabe onde pisa. Eu, ao contrário, tão acostumado a minha vida serelepe, sempre à busca de aventuras, me atirava de corpo e alma no exercício das travessuras. Estava sempre à cata de espécies que alimentassem esta gana. Ismael trazia uma mala marrom de um tom avermelhado, com alças de metal, que me deixava curioso. Foi morar no quarto dos fundos, onde passaria os próximos nove ou doze meses, não sabia bem. Percebia, de imediato que não gostava de minhas atitudes. Parecia me julgar infantil, imaturo ou qualquer coisa que lhe viesse na cabeça a respeito de meninos de minha idade. Julgava-se, provavelmente, muito adulto. Sentia um respeito e um carinho pelo meu pai, que me irritavam profundamente. Era o sobrinho de longe, aguardado com gentilezas e salamaleques. Na verdade, não tanto quanto eu imaginava. Mas naquela época, final dos anos sessenta, era fácil para um menino de minha idade importar-se com estas coisas: muita imaginação, poucas oportunidades de alargar horizontes, de movimentar a mente, descobrir coisas novas. Não pouco era o que a leitura me provocava, mas não bastava: havia a astúcia do movimento, a vontade de vencer o impossível, de tornar valente o fraco, de observar a transformação do inimigo, de mexer com o provável bandido, de não ser sempre o mocinho, mas o protagonista da trama.

Pouco nos falávamos. Ismael sempre se dirigia a meu pai ou a minha mãe, mesmo que a situação se referisse a mim. Aos poucos, fui conhecendo os seus pontos fracos, a sua imensa vaidade, os perfumes que guardava na mala marrom avermelhada, as colônias, os cremes de barba, as loções, os talcos, sabonetes, a brilhantina, a base para as unhas. As camisas muito bem passadas e guardadas de forma a não amassarem, as calças com o vinco perfeito, os sapatos lustrosos. Aos sábados, geralmente ia ao cinema à noite, nunca às matinés, como eu. Depois, estendia nas festas de garagens, as chamadas brincadeiras onde os rapazes e as meninas se reuniam para ouvir e dançar ao som dos rocks ingênuos, brindando à cuba libre e samba. Dizia que era coisa de homem, como se eu não soubesse o tipo de festa que faziam: conversinha pra cá, bate-papo pra lá, os homens de um lado, as meninas de outro. E pouco se encontrando. E ele se julgava o máximo.

Certa vez, quando se afastou para ir a uma destas festas, deu-me um cascudo na orelha, me olhou com cara de vilão de filme de caubói e ameaçou despudorado: – não te intromete na minha vida. Sou homem, tu é um frangote, ainda mija nas calças – em seguida, deu um sorriso astuto, puxou uma carteira de cigarro Continental do bolso, aquele com debrum dourado nas laterais (a gente chamava de ourinho), acendeu, deu uma baforada na minha cara e se afastou balançando o corpo. Era a outra personalidade que se desenhava só para mim.

Uma tarde, quando ele havia saído, aproximei-me de seu quarto. Coração aos saltos, assustado. Mão trêmula na fechadura, encaixando a chave de modo a não fazer barulho e não despertar a atenção de ninguém. Abri a porta, espiei longamente para dentro, tentando ver algo extraordinário. O ambiente estava na penumbra. Aproximei-me devagar, esbarrando na cama, fazendo um barulho surdo na minha coxa, franzindo a testa de dor e evitando qualquer ruído denunciante. Subi na cama. Somente as luzes que vinham pelas frestas da veneziana de madeira amarela esvaneciam um pouco o cenário escuro. Apenas pequenos feixes de luz iluminavam o quarto, espraiando-se pela parede oposta à janela, produzindo figuras oscilantes. Nas paredes, fotos de atrizes de Hollywood em poses sensuais. Havia uma prateleira bem alta, acima da cama. Dei alguns passos, atolei os pés entre as molas do colchão, mas não me detive, inquieto. Trombei com os pés na mala, que serviam de anteparo para minhas investigações. A prateleira, cheia de objetos me atraía vigorosamente. Então subi na mala, para alcançar o meu objetivo. O meu pé direito afundou rapidamente, fazendo uma cratera, como se constituísse de papelão, tão frágil em sua consistência. Assustei-me, mas já que estava ali, não poderia desistir. Estiquei-me o mais que pude, alonguei o braço direito em direção ao topo da prateleira, enquanto apoiava-me na mão esquerda encostada na parede, para manter o equilíbrio. Empurrei o que pude, para descobrir com o tato, o que não conseguia ver. Achava contornos estranhos nos objetos, mas não conseguia adivinhar do que se tratava. Um deles, percebi que era apenas um porta-retrato. Peguei-o e atirei-o sobre a cama, sem consideração. Puxeis os demais para a frente, pois estavam afastados, ao fundo. Tratavam-se de pequenos objetos, na semelhança de santos ou bonecos, não conseguia identificar. Aos poucos, vieram na direção de minha cabeça, enquanto segurava um deles, os demais caíam desordenadamente, uns sobre os outros, estatelando-se na cama, ao lado do porta- retratos. Sentei-me rapidamente, para examinar o objeto de minha pesquisa. Eram figuras estranhas. Meus olhos grandes ficaram ainda maiores com a curiosidade. Minha boca entreaberta, nariz fungando, espirrando, provocado pela poeira e pelo cheiro estranho que exalavam. Pareciam divindades africanas, homens com cabeça de animais, um diabo de chifres enormes e capa vermelha. Larguei-os, assustado. Em seguida, detive-me na fotografia em preto em branco: uma mulher, loira, de cabelos crespos, que deveria ser uma namorada ou a mãe ou a irmã ou alguém de sua intimidade. Nada me interessava naquele momento, a não ser fugir dali a qualquer preço: esquecer as figuras estranhas e tão assustadoras, a fotografia que poderia ser de alguém que houvesse morrido há muito tempo, pois restara uma vela usada na prateleira que devia estar perto dos objetos. Olhei para a mala esburacada, quase destruída pela desatenção de meus pés, em desalento.

Pulei da cama e me deparei com a cara na porta, que não se abria de jeito nenhum. Procurei a chave nos bolsos da bermuda, abaixei-me, especulando pelo piso, embaixo da cama e nada. Havia sumido como por encanto. Certamente na euforia, eu a havia esquecido em algum lugar. Talvez na própria prateleira onde se encontravam os objetos. Estava quase em pânico. Aquelas coisas estranhas me assustavam e a aventura parecia ter acabado ali, ou apenas começado. Eu estava preso entre aquelas coisas inanimadas que me olhavam incessantemente a cada gesto que fazia, como se me acompanhassem, observando meus movimentos. Minhas mãos doíam, procurando em cada canto, em cada décimo do assoalho a maldita chave. Subi novamente na cama e fiz um esforço sobre-humano para alcançar a prateleira. Subir na mala, jamais. Não poderia danificar o que restara dela. Mas como chegar mais próximo, se não fazer da mala um trampolim? Não havia outra maneira melhor. Minha cabeça já não raciocinava perfeitamente. Estava confuso. Temia que os objetos me seguissem, subissem em minhas costas, segurassem o meu pescoço e me asfixiassem, irritados em que estavam por eu ter invadido um mundo que não me pertencia. Quando atingi a estante, senti meus dedos se deslocarem no nada, a não ser poeira, e a saliência abrupta da madeira, que me espetava uma farpa furtiva na mão. Definitivamente a chave não estava lá.

Então, desci da cama, num salto, quase em desespero. Pensei em gritar por meu pai, minha mãe, chamar o vizinho. Mas não tive coragem. Precisava encontrar a chave. Precisava sair dali. As horas passavam muito rapidamente, mas significavam uma eternidade, porque a cada minuto, mais um tempo disponível para o meu desespero. Então, em desespero, comecei a gritar em desvario, quase em súplica, pedindo por socorro, cheio de raiva, furor, ira, medo, pavor. Subi na cama, comecei a dar pontapés na mala, até atirá-la ao chão. Foi quando ouvi um tilintar metálico. A chave estava dentro da mala e caíra, quando a empurrei com violência. Com sofreguidão, peguei-a com firmeza, me dirigindo imediatamente à porta. A mão tremia, o braço não atinava ao que o gesto mandava, o corpo todo tremia. Ao abrir a porta, senti uma lufada de vento frio e a noite já se prenunciava em seus primeiros acordes. Um zunido de vento, um balançar de folhas, o revoar dos pássaros agasalhando-se nas copas e subitamente uma luz que despertava meus olhos meio cerrados. Na minha frente, o primo do interior, olhando-me de uma maneira mais estranha do que as imagens que encontrara. Sem fazer qualquer gesto, patético, mãos nos bolsos, boca aberta, esperando explicações. Mais adiante, meu pai, seguido de minha mãe, esbaforida, procurando-me, argumentando que não me encontraram em lugar algum da casa, nem do bairro. Queriam explicações.

Quis sumir naquele momento, agachar-me e passar de soslaio, como se nada do que sucedera me dissesse respeito. Mas não teve jeito: a mão pesada de meu pai, pousou no ombro esquerdo, perdidamente, como se ousasse ficar ali a vida inteira, até que eu desse uma explicação. Então falei: – não te preocupa, pai. Trabalho do colégio.

Saí correndo. Não me perguntaram nada. Foi muito forte o que falei, como se desabasse qualquer argumento. Trabalho da escola era sagrado. Mas que diabo de trabalho eu devia estar fazendo lá? Foi o que tentei explicar durante toda a noite. Era mais uma trama imaginosa que precisava criar.

terça-feira, julho 21, 2015

Tio Pedro e a Mangacha

Chamava-se Pedro. Tinha por hábito visitar-nos, mesmo que meus pais não estivessem em casa. Eu, embora adolescente, costumava prestar atenção as suas conversas. Por mais rebeldia que tivesse, não hostilizava as normas da família. Entretanto, intimamente, me incomodava a sua presença. Quando se aproximava e ao vê-lo, disfarçava o desconforto. Nunca era a visita esperada. Entretanto, me esforçava para recebê-lo e agir de forma semelhante a meu pai ou minha mãe. Ou ambos. Servir um café, um chimarrão, jogar conversa fora. O pior de tudo é que via de regra, suas conversas eram recheadas de lamúrias. Ou a vida estava cara demais, pela hora da morte, como dizia, ou os médicos sempre receitavam medicamentos desnecessários, bastava um melhoral para passar a febre, o refriado, a dor de ouvido e eles empurravam-lhe uma série de injeções com cálcio e vitamina c. Também se queixava do fígado. Se lhe doía a cabeça, o culpado era o fígado, se coçava a planta dos pés, o culpado era o fígado e se a digestão estava atravancada, o fígado também era o vilão. Quando estes assuntos não eram ventilados, começava a perguntar por meus pais, indagar sobre minhas irmãs e por fim, sobre meus estudos. E quando nada mais havia a dizer, fazia um silêncio sepulcral, para o qual eu amealhava todos os temas em meus pensamentos para interrompê-lo, mas nada que dissesse parecia aplicar-se ao meu tio. Aliás, pouco sabia sobre ele, a não ser que era um tio distante, se é que este parentesco existe. Nós pelo menos, o considerávamos nosso tio, mas talvez fosse apenas um velho amigo de meus pais. Às vezes, ficava observando-o. Tinha umas feições severas, um olhar arguto, embora, às vezes, parado no nada. Parecia-me que era um homem solitário, viúvo, cujos filhos não o consideravam muito. Costumava reclamar deles. Explicava sobre os pés de laranja que gostava de cultivar, além das bergamotas e goiabas. Gostava de descrever o plantio, as formas de proteção às raízes, aos caules, às folhas para que sobrevivessem ao frio e protegessem os frutos. Mas queixava-se dos filhos que não deixavam que as plantas crescessem, que revelassem o seu esplendor e pudessem ornamentar o pomar que tanto gostava. Eles não respeitavam o tempo de maturação dos frutos, muito menos as suas medidas de cultivo.

Apesar de toda pouca vontade de conversar com aquele tio que sempre vinha nas horas erradas, eu tinha um pouco de piedade dele. E ao aceitar um café, o papo ficava até mais interessante, porque talvez inebriado pela cafeína, ele mostrava-se mais entusiasmado e sua conversa tomava outros rumos. Certa vez, contou-me sobre uma atriz, que conhecera e para minha surpresa, se tornara sua namorada. Uma atriz? Um tio agricultor, dono de um pequeno sítio, um homem da terra, cujas únicas aventuras eram as de aprender novas formas de cultivo e a mania de investir em plantas exóticas, vindas de outras regiões. Como poderia ele ter se apaixonado por uma atriz? E onde acontecera isso? Pois me contara tudo, satisfeito, numa dessas visitas não enderaçadas a mim, mas a minha família, que mais uma vez estava ausente. Às vezes, até desconfiava de que ele gostava de conversar comigo e escolhia os dias e horas certas em que não encontraria meus pais. Mas isso é egocentrismo de adolescente. Pois, segundo o seu relato, ele a conhecera no Cabaré da Mangacha. Lembra-se, como se fosse hoje, como me contara no momento.

"Naquela época, ele estava passando um tempo na cidade, bem longe do sítio da família. Era um pequeno quarto alugado, pois estava procurando emprego no Frigorífico Swift, para afastar-se em definitivo do campo.

Vestira o chapéu e saira às pressas, fechando a porta atrás de si, sem olhar para os lados. A noite se agigantava escura. Ele dobrou a esquina, pegou o bonde que passava em frente ao abrigo de bondes e dirigiu-se para a rua Uruguaiana. Olhou para os lados. O veículo estava quase vazio, a não ser um homem meio barbudo, que desandava a cabeça a cada minuto, num sono sobressaltado. Quando chegou ao ponto, pagou ao cobrador e cumprimentou o motorneiro. Ficou ali parado, na esquina até o bonde desaparecer na rua em direção ao bairro portuário. Olhou para os lados, ensimesmado. Deu alguns passos e observou o prédio, um sobrado bem na esquina. Já ouvia a música da orquestra. Sentiu um certo estremecimento. Era a primeira vez que adentrava no grande salão. Sabia que o esperavam as danças, os shows, a orquestra e principalmente as mulheres que faziam do cabaret, o mais famoso da cidade.

Aproximou-se da porta. Um homem com uma farad colorida o recebeu e disse-lhe alguma coisa inaudível. Ouvia um piano tocar, uma voz feminina que se distanciava pela imensidão do aposento. O homem mandou-o entrar. Finalmente, chegara na Mangacha. Lá chegou a conhecer Dona Ludovina, que era a proprietária do estabelecimento.

Pois nessa noite, chegou à cidade uma atriz linda oriunda do Rio de Janeiro. Era uma morena maravilhosa, olhos amendoados, cabelos crespos e uma pele de seda. Tinha seios fartos e umas ancas de dar arrepios na espinha. Ele ficara embascado com o show, mas mais ainda pela presença daquela mulher lindíssima. Os engomadinhos estavam todos ouriçados, homens de terno e gravata, regados a uísque e notas de dollars embutidos nos couverts. Mas ela só tinha olhos para ele. Os homens se desdobravam em mesuras, galanteios e sorrisos afoitos, ele se resguardava num canto, com seu terno de linho amassado. Vez que outra, ela enderaçava olhares sugestivos que o deixavam louco. Mas o que ele poderia fazer, um quase analfabeto, um agricultor acostumado às atividades rústicas de sua terra, sem o verniz dos homens da cidade? Seus pensamentos se agitavam e seu coração batia descompassado. O que faria? A levaria até a rua Uruguaiana para tonar o bonde em direção ao centro e passariam a noite em seu quarto alugado, quase espelunca? Mas os olhares, os sorrisos e algumas palavras a meia boca se sucediam. E por fim, seu coração estremeceu de vez e suas pernas não se sustentavam sob a mesa, batendo uma na outra, quando ela se aproximou após o show, e entre palmas e assobios, sentou-se a sua mesa. Em seguida, apareceu uma garrafa de uísque importado. E dali em diante, não precisou explicar mais nada. Só sorrir e aproveitar a vida. Acabaram a noite no hotel onde ela se hospedara e por uma semana ficaram juntos.”

Claro que meu tio Pedro não me contou com esta riqueza de detalhes, só mais tarde fui saber as informações complementares e enriquecedoras através de meu pai.

Ele continou nos visitando por algum tempo. Nunca mais falou-me na história e na mulher que chamava de namorada, usando certa autocensura. As visitas foram rareando e quando ele aparecia, eu já tinha muitas atividades, já trabalhava e a fase da adolescência dera lugar a uma fase em que o tempo ficava cada vez mais escasso. Esquecera-o aos poucos, quase por completo. Mas, às vezes, recordo o seu jeito acabrunhado e introvertido, um pouco ranzinza e lamurioso, mas que vez que outra, parece abrir-se para a vida e conta sua trajetória enriquecida de histórias. E ao visitar algum sobrinho, fico me perguntando, será que não sou recebido assim, com cuidados e educação, como o fazia com o tio Pedro? A vida se repete, o tio chato e solitário de ontem, pode ser o visitante de hoje. Espero que não.

domingo, julho 19, 2015

Divagações de um futuro prefeito

Pescava às margens da lagoa, entre pequenas regiões escarpadas, formando uma enseada de rara beleza. Talvez pelo brilho do sol que se confundia pela luminosidade fraca, mas insistente da noite, ou pelo seu jeito de ver as coisas, especialmente naquele dia. Tinha consigo que as coisas mudariam e para melhor. Conversava com os peixes, em silêncio. Sabia que o escutavam. Encostou um pouco mais na ribanceira, soltou a barriga branca e empinada sobre o calção velho e deixou-se ficar assim, pensativo, malandreando no dia que findava. Passou a mão pelos cabelos grisalhos, enfiando os dedos desajeitados, puxando-os para trás. Este era o seu último dia sem a preocupação dos grandes gestos, das atitudes severas, dos compromissos inadiáveis. Deu vontade de dormir ali mesmo, deixar a mulher esticada na rede, como de hábito até que a aragem noturna a empurrasse para o interior da casa. Ficou ali, desistindo da pesca, desistindo de conversar com os peixes, pensando apenas no seu futuro. Um futuro tão diferente do que era a sua vida, um homem do mar e da agricultura, acostumado a sujar as unhas na lama, a engraxar os dedos no caldo oleoso do peixe, a estrebuchar as tripas, limpar as escamas, contar os trocados da venda. Além é claro, das manifestações políticas, que já há algum tempo faziam parte de sua vida. Mas era coisa pequena, coisa de sindicato de pescador: algumas lutas sobre o tempo do defeso, brigas particulares entre os seus, nada de muito porte. Agora iria assumir a direção de uma cidade. Aí a coisa pega. Diocleia não estava acostumada com aquela gente na cidade, ao contrário, tinha até as suas rixas com o povo esnobe, principalmente ela, que tinha dificuldades com as letras. Mas ele era muito senhor de si e sabia o que estava fazendo. Também tinha Moira, a morena da venda do Seu Chico. Essa ia ficar pra lá. Como é que ia viver sem os agrados daquela zinha? Mas tinha que deixar a sua ilha, a sua lagoa, as suas galinhas e as poucas plantações que enfeitavam sua horta e partir para a cidade. Lá começava a sua saga. Sem nada disso, sem a Moira, a morena dos peitos duros e a voz de taquara rachada. Só com a sua Diocleia. Essa não tinha jeito de largar. Agora seria a primeira dama. Dizem que tem político que conserva a mulher, como o único amor de sua vida. Ele não acreditava. Para ele, que tudo acontecera de repente, sem se preparar, era quase impossível. Talvez para os que viveram na luta politica durante muito tempo, juntos, eles e as esposas, mas não era o caso. E depois, como diz o povo, todo politico é meio sacana. Não pode fugir à regra. Ainda tem o futuro dos filhos para cuidar. O tempo passa rápido e mais dia, menos dia, ele tomarão o seu lugar. E precisam estar preparados. Um dia, a família Preto fará nome na cidade! E quem sabe, sejam prefeitos, filhos do prefeito, sobrinhos do prefeito, primos do prefeito, noras, genros, tios...

sexta-feira, julho 17, 2015

A dor

Tenho medo da dor. Da dor incólume dos que procuram o prazer. Da dor doída dos que abandonam. Da dor dos indefesos. Da dor estúpida dos perdidos e humilhados. Tenho medo sim, da dor. Não da dor física, somente, mas da dor da alma, esta que dilacera e corrói o espírito, que diminui o homem e institui o animal. Um animal que pode ser frágil, manso, passivo ou violento, inóspito, hostil. Um animal que luta, que esbraveja, que se vinga. Ou um animal que acolhe sem súplica o que a vida lhe dá, resgatando apenas o sentido da falta de sentido. O viver da não vida, o quase zumbi do ser. Pudera quem sabe fugir da dor e assim, covardemente anunciar ao mundo uma vitória inglória de quem não vence mas finge. Uma vitória insossa de quem permanece vivo, mas não vive. Quem sabe pudera enfrentar a dor e abrir as entranhas, e mesmo morrendo deixar entrar a luz da esperança. Uma esperança acolhida e amada, mergulhada no insofismável perecer. Se perecer é dor, melhor escolher outra saída. Quem sabe enfrentar sem dor. Viver apenas. Mas viver com a dor mastigada, alimentada, produzida, sem temor. Apenas vivê-la, como se respira, assim, suavemente, naturalmente. Sem luta, sem grandiloquência, sem vitória ou derrotas. Só viver. E viver é dor também.

quinta-feira, julho 16, 2015

A vida, de volta, por favor

Conto utilizando a personagem da ama de Julieta da peça de Shakespeare como protagonista nos dias atuais.Trata-se de um desafio literário.

Encontrei-a dobrada em dois, na mesa, braços cruzados, nariz enfiado no livro. Quando levantou a cabeça, pude ver-lhe os olhos e nem percebi que havia uma gota de desilusão pelo que tinha lido. Nem uma lágrima mais pousaria tão rápido no papel, quanto aquela sentida, que nem parecia humana. Aproximei-me e sentei ao seu lado. Não compreendia o peso do infortúnio que parecia suportar aquela mulher, já ida nos anos. Girei o salto do sapato no ladrilho irregular e falei desprevenido.

_Não pensei que este livro traria tantas recordações, e que tristes, me parecem.

Levantou a cabeça sem jeito, mas examinou no olhar todas as intenções que tentava ocultar. A voz era sonora e forte. Os modos de quem viu neste mundo, o que não encontrava no outro.

_Pois não, meu senhor, é que tenho que ficar assim, depois de quatro séculos. Se me pedissem para amolecer, não acreditaria. Mas o que a menina ia fazer, se não se aproveitar de uma velha ama para abandoná-la mais tarde? Dizem que a primeira onda feminista começou no século IXX, mas ouso vos assegurar que Julinha foi a responsável pelo primeiro movimento feminista no mundo! E em Verona! A menina foi pioneira em transgredir as regras. Misturou o belo no feio. Nunca me ouviu e se me ouviu, fez o que queria e não o que devia. Aliás, me fez de boba.

_Entretanto, ela cresceu à tua imagem e semelhança – tirei uma caneta do bolso e um pequeno bloco. Anotei algumas coisas, enquanto falava.

_Todavia lutou pela classe dela. Caí aqui, por acaso. Talvez porque minha linguagem é normal, como a de qualquer cristão. Nada de epitalâmio – e falava torcendo a boca, afundando os sulcos e fazendo covinha no queixo – elegia, rapsódia, essas coisas de nobres. Julieta também as tinha. Eu falava de coração aberto. Por isso, estou aqui. Quem se aventuraria nos dias atuais, proferir tais versos, disparar o linguajar poético na hora do almoço, arremessando mucos sobre o bufê? Quanto mais, nessa epidemia de gripe, os vírus se acumulariam em desespero na boca prolixa dos nobres!

_ É verdade — assenti, olhando discreto a janela que se abria numa ponta de sol. Ela prosseguia, emblemática. Tinha consigo que conhecia mais do mundo do que qualquer navegante aventureiro.

_Podeis imaginar o Conde Páris, falando ao celular, usando verso alexandrino? Qual vivente ia suportar tal palavreado? Eu, ao contrário, respeitam o que digo.

_Parece que aprendeste a língua dos nobres.

_É claro, meu senhor, pois de bibliotecária à freira, e de freira à ama, passei por todas as culturas. E depois, vindo a esta nação dos trópicos, qual a língua que tem mais valor do que a dos magistrados. Longa vida às CPIs!

_Sei, sei, já me contaste isso um milhão de vezes. Mas Julieta, em sua beleza, seria uma perfeita top model, por exemplo — provoquei.

_ Creio que não, meu senhor. Veja a cena: a menina, arfante, ao lado do seu amado, mastigando monossílabos amorosos no aparelho de dentes, ah, porque neste mundo de loucos, não há quem não use celular, não aplique aparelho dentário e abuse da Internet. Estas coisas modernas!

_Seria terrível. Nada romântico — pontuei desolado. Tive a impressão que o homem de branco atravessou a sala, mas foi só impressão: estávamos sós, naquela cela fria. E ela nem percebia minhas conjecturas.

_Temos a Senhora Capuleto, mandando email para filha, em soneto Petrarca! Que desastre!

_Pensando bem, tens razão.

_Pois não tenho? Haveis de assentir que sou a pessoa indicada para adentrar nestes tempos presentes e aceitar o que se passa. Não vejo qual de meus contemporâneos teria o dom de camaleão, como eu. Bem sabeis, que posso me virar dum jeito ou do outro. Posso entender o que se passa no senado, na câmara, nos grandes duelos mundiais. Já imaginastes o quanto vi, não? Nada do que acontece hoje em dia, me impressiona.

_Disso não tenho dúvidas, mas uma coisa, não podes esconder de mim. Vi uma lágrima no teu olho. Ainda sofres pela pequena – incitei-a, maldoso.

_Naturalmente, pois eu a induzi ao encontro com o amado. Para ela, a morte significava o rompimento com maneira passiva de agir e pensar. No nosso tempo, a mulher não se dava a esses luxos! Entretanto, ela não foi companheira.

_Como assim?

_Sois bem lento, não? Já não te disse que a menina lutava pelas mulheres, para que elas tivessem o seu papel no mundo.

_Papo furado.

_Ninguém acredita. Tanto tempo passado e ninguém ainda acredita. Não é nada surpreendente aos seus conterrâneos, também não acreditaram na odisseia do trono. Há mais de 30 anos que o rei faz o que faz e somente agora é que se deram conta. Mas deixa pra lá.

_ Falas do Senado?

Escondeu um sorriso irônico e prosseguiu, na defensiva. Larguei a caneta e cruzei os braços, intrigado. Ela prosseguiu, enfática.

_Eu era uma delas, estava lá, precisava de uma companheira, alguém que lutasse pelos meus direitos também, que levantasse a bandeira das amas, das criadas, mas ela só pensou nas mulheres de sua estirpe. Uma nobre! – faz uma pausa e suspira — Afinal, até a Sra. Capuleto confirmava que sempre fui uma criada confiável, confidente e amiga. Julinha devia me agradecer, mas qual, se afastou de mim, irritada com meu zelo.

_Estás certa que foi por isso?

_Sim, para mim, ela se mostrava inteira, seus sentimentos à flor da pele, seus desejos mais íntimos. Houve um tempo em que ela seguiu outro caminho, que renegou meus conselhos. Nós éramos diferentes. Cada um que lutasse na sua própria classe.

_Mas ela tinha consciência disso?

_E eu tinha? Só muito intimamente, porém meu coração dizia o que era certo e o que era errado. Pelo menos, o que era conveniente para o momento. Ou para a situação. Ela foi boba. Por isso, não escapou do destino. Nenhum deles. Eu sim.

_Quer dizer que o que te salvou foi a língua.

_Foi o que sempre disseram. Que eu tinha língua grande. O amigo do Sr. Romeu, me chamava de alcoviteira e o Sr. Capuleto, certa vez, pôs-me a alcunha de “dona prudência”, puro escárnio. Disse-me bem assim: “guardai na boca a língua sabe-tudo. Ide ensinar vossas comadres”.

_Me refiro à maneira de falares — confirmei num meio sorriso.

_Não sei. Agora que me deleito neste livro, percebo que o bardo foi bondoso comigo. Quis me salvar, por isso, me purificou com o verso branco. Acho que o bardo me livrou dessa.

_Mas e depois?

_Depois nada. Figuração pura! Além disso, quem poderia querer prêmio maior. Alguém cujo nome quase não fora pronunciado! O Cavalheiro sabe o nome de algum lixeiro, coveiro, camareira ou coisa do gênero? Somos tão invisíveis quanto a poeira dos poderes! Ela encobre tudo e ninguém a vê!

Tentei falar alguma coisa, mas ela interrompeu, rápida: “Ama. Alguém que é só Ama pode querer alguma coisa mais da vida? Eu sou tão secundária que nem perceberam o meu desaparecimento!”

_Mas e daí? Que poderias mudar na trama?

_Na verdade, não sei o que mudaria, mas sei o que ainda posso fazer.

_Por exemplo?

_Que quereis que eu diga, num mundo no qual as pessoas continuam tão intolerantes quanto antes. Em todo o caso, em vosso país, ainda ama, não passo de ama dos livros – mais um silêncio proposital, um muxoxo e uma explicação rápida — que fazer se não apenas zelar pelos livros, já que não posso decidir seu destino? Num país em que os professores são iletrados, a bibliotecária não passa de uma ama, que serve para cuidar, guardar e empilhar no lugar certo.

_E que pretendes fazer?

_Até agora, nada. Mas como Julieta, quem sabe lutar pela classe. Fica difícil, pensar sozinha.

Pretendia pedir-lhe silêncio. Não era bom ser tão enfática na política, pois quando o fazia, o homem de branco se aproximava, e trazia consigo uma infinidade de medicamentos. Melhor não arriscar. Então, dourei a pílula: _Pelo que me consta, ela agiu intuitivamente, preocupada com o coração, apenas.

_E deu no que deu. Caso pensasse mais longe, teria frutos melhores. Mas deixemos a ovelhinha no lugar que lhe cabe. Nunca deixei de amá-la, afinal eu a criei como filha! Quanto a mim, quero mais é apreender os novos rumos.

_Achas que pode dar certo?

_Se não der, um litro de silicone em cada mama, resolve.

Fiquei quieto, me eximindo de emitir opinião. Aproximei-me e a vi no contorno da cortina. Da vidraça do postigo, observava seus olhos argutos, assinalando alguma coisa obscura na mente. De repente, voltou-se e prosseguiu, eufórica.

_Se voltar algum dia, me chamem apenas de Angélica. Depois dessa, acho que mereço, né? Se ele assim designou, que o use.

_Não temes ofendê-lo com teus resmungos?

_Se me criou com este caráter, sabe-o muito bem como aguentar-me. De todo modo, convém me manter neutra e seguir a vida.

Antecipo-me em perguntar-lhe se não considera a hipótese de voltar ao passado. Não responde. Fica pensativa, olhando o nada. Em seguida, levanta-se, larga o livro, pega o chapéu e ensaia alguns passos em direção à porta. Volta-se e pergunta: “Não achais perigoso?”

Fiquei quieto. Seria mais sensato não responder. Ela se afastou, então balbuciei baixinho: “Morrer duas vezes, é indigno. Que seja apenas um Romeu dos trópicos”. A porta se fechou e a janela foi ficando bem maior, mostrando um horizonte amplo, variado. Pela porta, espiava um baile à fantasia, uma avalanche de Marcos Polo, Napoleão Bonaparte, Cleópatra, Helena de Troia e tantos mais. Não vi nenhum brasileiro, apenas o homem de branco que pretendia acabar com a festa. Aproximou-se de minha mesa, puxou-me com cuidado a cabeça que estava enfiada no livro e olhou-me nos olhos dos quais não perceberia uma gota de desilusão do que havia lido. Acho que queria perguntar-me pela Ama. Só voltei-me quando repetiu amiúde: Romeu, Romeu...

quarta-feira, julho 15, 2015

MEU CARRASCO INTERIOR

Este texto foi produzido para um desafio de uma oficina literária. A ideia era descrever conflitos similares aos do romance "O ateneu" de Raul Pompeia, ao conto, nos dias de hoje.

Estava ofegante. Pudera, estava atrasado.Tentei passar pela hall sem ser notado, afinal, àquela hora, o Seu Miguel já teria abandonado o posto, para desfrutar do cigarro à porta do bar e jogar conversa fora com as atendentes. Empurrei com o tênis sujo a portinhola, atravessando a portaria em direção às salas de aula e meu coração se colocou em posição de defesa. Seu Miguel estava ali, patético, me observando dos pés a cabeça. Ao contrário do que imaginava, estava no seu devido lugar, às 8:30h cumprindo o seu dever de impedir a entrada dos retardatários.

— O pirralho tá querendo me enganar, é? – e disparou um palavreado padrão que dispensava desculpa. Exigiu que eu sentasse na poltrona ao lado do balcão. Deu uma olhada na tela do monitor que registrava os corredores e salas de aula e informou que chamaria o diretor. Eu teria de esperar pela próxima aula e não poderia, sob hipótese alguma, me afastar.

Fiquei ali, roendo as unhas, mais preocupado com a pesquisa de Filosofia do que propriamente com a reprimenda do diretor. Quando o diretor dispensou-me com um carimbo de atraso na agenda, já se havia iniciado o intervalo. Esforcei-me em entrar na sala, ultrapassado pelos que se afastavam em marcha de guerra em direção ao pátio. Corria contra a corrente, sentindo o cheiro abafado dos humores que se agitavam em seus corpos ansiosos pela liberdade que corria lá fora. Uns questionavam a minha ausência, outros me premiavam com safanões, abrindo caminho, considerando que o obstáculo os incomodava. Alguns se aproximavam e cheiravam minha boca, perguntando o que eu tinha bebido. Eu é que me sentia nauseado pelo hálito putrefato das bactérias acomodadas, que ora se contorciam em suas bocas famintas, pululando na saliva acordada.

As gurias se juntavam em grupos, pequenas garças se entrincheirando, dando bicadas desenfreadas, procurando vermes desconhecidos para devorar. Não tinham o menor interesse em mim, a não ser no que dizia respeito aos trabalhos escolares. Era considerado nerd. Uma que outra, se aproximava, para mostrar-se catedrática em todos assuntos. Eram astutas e bobas.

Larguei a mochila, desanimado, e voltei para o pátio. Como era proibido permanecer na sala, eu ficaria à espreita, se possível, fugindo dos maus tratos ou das piadas grosseiras dos desafetos. Via de regra, eu me sentia pouco à vontade. Aliás, não ficava bem dentro da carcaça que era o meu corpo: franzino, pernas finas, olhos grandes num rosto pintado de espinhas.

Os guris não se preocupavam muito comigo, naquele momento. A não ser Tiago, um espécime estranho. Era desajustado ao meio, como eu, além de possuir um traço peculiar, que me induzia a afastar-me dele. Era um tolo. Obedecia passivo aos mandos e desmandos dos demais. Sua fisionomia era deprimente: alto, nariz comprido, pescoço vermelho, onde as veias desenhavam variações de fios azulados. A boca grande, os dentes desaparelhados, uma penugem etérea sobre os lábios e um olhar perdido de boi no pasto ralo. Diziam que tinha o hábito de masturbar-se ouvindo músicas sombrias, do estilo emo, que grassava entre pequenos bandos. Na verdade, eu temia ser comparado a ele. Receava juntar-me a um cara tão esquisito, com jeito de tarado e além de tudo, um parvo, um idiota completo. No meu mundo obscuro, entretanto, martelava uma dose dissimulada de culpa por me achar superior.

Do outro lado, próximo ao bar, estava Jura, esgueirando-se por entre um corredor polonês, fingindo que desfilava. Para todos, não passava de um veado exibicionista, que se imaginava mulher. Mas ele tinha alguns amigos, que nem ligavam para as suas preferências, ao contrário de mim, que tinha o estigma da timidez, do medo da aproximação, do rancor pela solidão provocada. Embora levasse encontrões de um que outro mais homofóbico, o Jura tinha lá os seus predicados. Era muito querido entre os professores, tinha a faculdade de organizar grupos e distribuir tarefas e interagia muito bem com as gurias. Além de tudo, a sua auto-estima era alicerçada num corpo forte e numa mente aparentemente resolvida.

Do meu ponto estratégico, podia observar os grupos que se formavam aqui, acolá, de acordo com as preferências ou a necessidade do encontro. As meninas se esforçavam em mostrar os dotes particulares, sacudindo os cabelos e bamboleando o corpo enquanto falavam. No pescoço, nas mãos e nos pulsos, inúmeros badulaques participavam dos movimentos, atiçando olhares, aguçando a curiosidade e a aproximação dos meninos. Michele era uma daquelas audaciosas. Tinha por hábito mascar chicletes, enquanto falava, e gesticulava em demasiado. Mascar não era o problema, o curioso é que o fazia com o aparelho dentário, que a deixava em maus lençóis, quando a engrenagem enguiçava com a goma. Nada demais para os meninos, habituados ao seu jeito ousado de se portar, como beijar de leve no rosto ruborizado, expressando coisas obscenas. Um que outro, mais arrojado tascava um beijo demorado, correspondido como poucos, servindo de modelo à turma.

Eu me surpreendia com tanta facilidade nas demonstrações de afeto e um estreito sentimento de raiva se apoderava aos poucos de mim. Passava, então, a odiar a todos, sem exceção, mesmo aqueles poucos que me dirigiam a palavra e que não zombavam de minhas atitudes. Estava tão absorvido em minhas mágoas, que não reparei a presença inoportuna de Jonas, um dos líderes dos movimentos de demonstração de força. Caminhava em minha direção, naquele modo pretensioso de quem tem a certeza de tudo, gingando o corpo malhado, fazendo estilo e publicidade. A proximidade daquela figura me causava estremecimento, até arrepios de temor, pois não tinha boas recordações do truculento. Tinha a impressão de que estava sempre me testando, havia no olhar, na postura e em toda a sua gesticulação ostensiva uma ameaça latente, uma acusação baseada numa dúvida interna que fazia questão de expressar. Costumava dar umas batidinhas em meu rosto, logo após um estranho gesto de afeto, alisando-me a pele, como se dissesse, “não te aproveita cara, eu sou macho!”Ele sempre deixava claro que duvidava de minha masculinidade e dessa forma, se aproveitava para me agredir.

Algumas meninas espiavam, entre comentários e risadas exageradas, a performance estudada de Jonas. Eu pairava como um galho seco, encolhido na sombra da parede do bar, que fazia um ele na calçada deserta de árvores. Me escondia da turba alegre, que fazia coro com as novidades da manhã, do dia, dos cotidianos férteis. Se eu pudesse, teria um livro na mão, naquele momento. Mas seria expulso do recinto. Jonas, por uma tragédia do destino, continuava ao meu encalço. Seus dentes salientes, atarraxados pelo aparelho lhe produziam um ar de ser interplanetário. Por que chegava daquela maneira rompante, de caçador que já tinha decidido o destino da presa? Examinou-me, assinalou qualquer coisa no meu pé e espetou minha barriga com o indicador, o que me deu uma fisgada intensa nas entranhas. Depois, deu as rituais alisadas no meu rosto e as batidas rotineiras.

— E aí, beleza?

— Beleza – respondi, acabrunhado.

— Por que tu não veio na hora combinada?

— Que hora?

–A hora do desafio. Nerd pensa demais, depois destrambelha. Agora ta decidido, tu vai fazer o trabalho, to avisando.

— Que trabalho?

— Qual é, comeu capim no café da manhã? To falando da Marina.

—Tu falas da professora?

— Não, da tua mãe. É claro, cara, da tia. Ela já sacaneou o suficiente, tu não achas?

— Sei lá cara. Acho que não to nessa.

— Ah, ta sim!Tu foi o escolhido.

— Por que me escolheram? Eu não pedi nada.

—Porque tu é o meu gurizinho – e falou sorrindo, me segurando o pescoço, com as duas mãos. Senti uma mistura de ódio e um frenesi, que não sabia muito bem identificar. Talvez porque nunca tivera qualquer envolvimento com nenhuma guria, eu estava numa fase de conflitos e ambiguidades. Ele se aproveitava da falta de jeito. Me largou, com raiva e clamou, indignado, na direção dos seguidores – e ai, moçada, vem clareá as idéia do nerd aqui. Parece que não entendeu o trato!

Um dos meninos, um baixinho parrudo, disparou ao meu encontro, e em gesto consentâneo, amarrou-me os cadarços dos tênis, um no outro. Todos caíram na risada e se afastaram quando o líder deu o sinal decisivo. — Ele vai cumpri o prometido – e se dirigindo a mim, ameaçador — se não, vai ser pior pra ti. Ou cumpre ou assume!

Na sala, eu não prestava a atenção na prova de matemática. Não me saíam da cabeça as ameaças de Jonas. Não era justo produzir um fake com o perfil da professora Marina no facebook. Queriam humilhá-la utilizando imagens falsas, incluindo comunidades eróticas, e tendo a sua foto manipulada, além de enviar e-mail para todos os professores e alunos com as alterações. E por que eu deveria fazer aquilo? Uma tarefa que seria fácil para qualquer um.

O prazo venceu. Depois de noites de tortura e sentimentos confusos, não cedi, mas o mundo desabava e não havia como reerguer-me dos escombros. Sabia que era o meu fim. Jonas me procurou mais uma vez, só que agora o encontro foi na biblioteca. Estávamos numa sala de estudos, ao fundo do acervo, onde não havia quase ninguém. Ele estava diferente. Não havia brutalidade em seus gestos. Sua postura estava quase tranquila, a não ser o pé, que movimentava, involuntário, embaixo da mesa.

—Então, podemos abrir pra turma?

—Abrir o que?

—Que tu que ser a minha guria?

—Cara, tu enlouqueceu.

—Tu não fez o combinado. Então não resta saída. Só que não vai ser só minha, mas de toda a escola!

—Então, o seguinte, me confessa uma coisa. Diz aí, que tudo foi armação, que tu só quiseste humilhar a professora porque ela disse a verdade sobre ti, não tem nada a ver com a turma, não tem nada a ver com a prova difícil, tem a ver só contigo — blefei, desatinado.

Neste momento, sua segurança desapareceu e voltou a ser agressivo.

—Olha, aqui, cara, não to te entendendo, ta ligado? Fecha esta matraca, se não vou te socá até acabar contigo.

—Então é verdade – arrisquei.

—Verdade o quê? Ta zoando de mim?

Pensei em ameaçá-lo, afirmando que o trato estava gravado no meu celular, mas ele percebeu a minha tramóia. Indignado, começou a bater em cada partícula do meu corpo, empurrando-me contra a parede envidraçada, ensopando as mãos no sangue que me escorria do nariz. Foi então, que num ímpeto desesperado, reagi e lhe acertei um murro tão forte, que o deixou atônito, pelo inesperado e o desequilibrou de encontro à mesa, se estatelando no chão. Aproveitei a queda e calcei seu pescoço com o solado do tênis, enquanto ele tentava desviar o rosto e serpentear o corpo para fugir da postura ultrajante. Eu não lhe dava chance. Quem me visse naquele momento, certamente perceberia um brilho ferino, selvagem em meu olhar. Minha boca sangrava, mas eu cuspia uma dose prazerosa em sua cara, confirmando, pelo menos naquele momento, a minha superioridade.

A porta foi escancarada e Seu Miguel, ao lado de outro funcionário me segurou pelos ombros, pelos cotovelos, retirando-me da sala como um animal acuado. Percebi que atrás deles, os meninos se acotovelavam, pasmados, olhos argutos, bocas que se abriam intermitentes, produzindo sons que eu não conseguia ouvir. Sabia, no entanto, que chegara a minha hora, não importava o custo. Uma leve brisa lambeu meus cabelos e meu coração se acomodou, quieto. Confessava a mim mesmo, que pretendia matá-lo de verdade, embora meu corpo sinalizasse muitas vezes, uma leve excitação na sua presença. Uma lágrima, porém, correu do meu olho apesar do desfecho clichê. Por pior que seja o carrasco, ele sempre nos seduz.

sexta-feira, julho 10, 2015

Crônica sobre o filme Mon Oncle

Esticando um olhar mais aprofundado sobre os hilários e às vezes, patéticos personagens de Meu tio, “Mon Oncle”, com a direção de Jacques Tati (1958), observa-se, numa análise, ainda que de forma despretensiosa, características marcantes de personagens que talvez servissem apenas de contraponto para o desenrolar da trama. Na verdade, todo o conteúdo e análise dos diferentes tipos que tecem a urdidura da história já foram exaustivamente explanados em muitos artigos espalhados na rede ou mesmo publicados em periódicos especializados. Fica-nos, portanto uma pequena abertura, um buraco na fechadura, que em algumas vezes passa desapercebido, mas que ao conduzirmos a linha do olhar até o horizonte, acompanha-se, por certo, a trajetória do fio que enverga e sustenta a pandorga no ar. Falo de Gérard, o filho do casal, que ao lado do tio considerado subversivo aos conceitos da sociedade burguesa, e alienado da comunidade familiar, descobre novos horizontes em sua vida rasteira. Ao reunir-se aos meninos do outro lado da cidade, da periferia, montando as varetas de bambu, soltando pandorgas, atravessando caminhos íngremes, atirando pedras, escondidos atrás das montanhas e rindo-se sem parar, ao perceber as pessoas distraídas pelas pedras ou pelos gritos, chocam-se com o poste que lhes servia de obstáculo à passagem. Trata-se de uma alegria genuína, inocente, verdadeira, distante das armadilhas da pseudo-tecnologia ultra moderna, do padronizado exercitar- se na casa, do inalterado programa de todas as manhãs e noites, seguindo como de praxe, o senso comum. O progresso como fonte principal de satisfação, a ostentação, o luxo, a hipocrisia, a frustração, a humilhação, a padronização de procedimentos, o resvalar na mediocridade cotidiana. E lambuzar-se dela. O tio, Senhor Hulot, por seu lado, conduzindo o menino, conduz a sua própria identidade, evitando ser aviltada pelo emprego oferecido pelo cunhado. Emociona-se com a elegante inocência da jovem andando de bicicleta, com o sorriso generoso do sobrinho e seu olhar arguto e perspicaz, com a vida que brota lá fora. Ao ingressar no mundo sectário, dividido sem partilhas, não se ajusta aos padrões identificados pela sociedade. Marginaliza-se, mas aquieta o coração, quando observa que o sobrinho aprendeu alguma coisa. Deixou a pele vibrar com uma lufada de vida, que lhe permitira aos poucos abrir o coração. Quem sabe não influenciará os da casa, desde que suas mentes e corações não se acovardem com o conforto aparente de quem se sente assim protegido e forte?

domingo, julho 05, 2015

OS TEXTOS MAIS LIDOS ENTRE 28/06/2015 a 05/07/2015

A seguir os textos mais lidos no período de
Em algumas postagens durante o mês, disponibilizarei aqui a relação dos textos mais lidos no período de uma semana ou mesmo no de um mês. Agradeço aos internautas o grande número de acessos que a cada dia aumenta mais a estatística. Fico feliz em saber reconhecido o meu trabalho e deixo aqui o convite para que comentem, na medida do possível, o texto que leram. Aceitarei com carinho as suas críticas.
1º lugar: Metáforas cruéis : desqualificação das mulheres e negros
2º lugar: Não estava lá
3º lugar: O professor e o golpe
4º lugar: Eu e os carros antigos
5º lugar: Desafio : salve as florestas
6º lugar: Então, me explica
7º lugar: Vida empalhada
8º lugar: Saco de plumas
9º lugar: Sorri
10º lugar: A rebeldia dos guris e gurias da LES

quinta-feira, julho 02, 2015

Não estava lá

Como não sai de casa, não tive dificuldade em abrir a garagem e me deparar com dezenas de carros impedindo minha saída. Nem chegar ao centro e nas cercanias do porto velho, tentar estacionar exaustivamente e acabar desistindo e ficando tão longe, que o melhor seria ficar em casa. Mas como não sai de casa, não tive a urgência em entrar em filas, pagar contas e ajustar os saldos para desembolsar quantias que talvez precisasse transferir a credores ou a contas de empresas que vendem produtos online. Nem deveria importar-me com as voltas que daria para chegar à padaria ou correr ao supermercado para fazer as últimas compras do dia. Ou quem sabe, me aborreceria alarmado com os preços, acostumado que estava a sorrir com a baixa inflação. Mas como não sai de casa, evitei tudo isso e talvez evitasse olhar para trás e sorrir para um amigo na fila ou mesmo acenar para um colega que me aparecesse na calçada, enquanto esperava o cruzamento das vias proibidas. Ou talvez fosse ao shopping e tomasse um café expresso, enquanto decidisse o que teria que comprar (ou fazer). Mas como não sai de casa, tudo isso ficou para outro dia. Ou talvez não. Pois como não sai de casa, nem vi as pessoas gritarem alto os seus protestos nem se manifestarem contra ou a favor deste ou daquele evento. E como não sai de casa, nem preocupei com o sol na moleira, com o protetor solar grudento, nem em vestir-me adequadamente para andar na rua. Como não sai de casa, não vi a algazarra dos vereadores, nem a polêmica formada pelo tema crucial da educação, nem mesmo os policiais que formaram uma barreira humana para impedir o acesso da população. Mas como não sai de casa, nem me preocupei com nada disso. Nem com propostas de educação, que para alguns significavam um retrocesso, nem o retrocesso que alguns significavam. Mas como não sai de casa, não vi nem a banda passar, porque não passou em minha janela. Se passou, foi por lá, entre os gritos e assobios, entre os xingamentos e as discussões, entre a luz e a sombra. Como não sai de casa, nem soube que o assunto havia sido discutido há um tempo atrás e os representantes do povo nem tinham percebido a sua importância e só se deram conta, no momento da votação. Nem vi que os mesmos que vociferavam contra as questões de gênero eram os mesmos que muitas vezes, se aproveitavam desta condição para se locupletarem em seus prazeres. Mas como não sai de casa, não me vesti de várias cores, nem fiquei entre os indecisos. Nem sei quem ficou em cima do muro, quem desceu ou o transpôs. Nem sei quem disse sim ou não. Como não sai de casa, não voltei indignado nem feliz, nem ouvi a música que entoa meus trajetos. Nem fiquei ansioso com o toque do celular, que me manda mensagens alucinadamente. Nem parei o carro para saber se havia alguma coisa importante para ser lida. Nem desviei da moto que se atravessou, bamboleando entre as filas que se agigantavam na avenida, nem me irritei com o motorista do ônibus, que ziguezagueava entrando e saindo do acostamento e investindo toda hora na fila engarrafada. Nem liguei os faróis, nem ouvi a rádio discutindo futebol ou amenidades, nem discussões mais acaloradas da comunidade. Nem mesmo soube do que acontecia, porque não estava lá. Nem perguntei também, se os que estiveram lá sabiam com profundidade o plano de educação que debatiam? Se haviam discutido com a sociedade os argumentos que eram levantados? Se não estavam somente preocupados com os votos que teriam nas próximas eleições? Não, não pude perguntar, porque não estava lá. Mas eles estavam.

quarta-feira, junho 24, 2015

Vida empalhada

Não sei se era noite de lua ou escuridão total, nem se as luzes artificiais da rua iluminavam as frestas das persianas. Sabia, no entanto, que suava frio e ouvia os escarros da velha, no quarto contíguo. Puxava um cigarro, certamente, ouvindo vozes, como de hábito. Doía-me sua solidão, suas horas contadas sem futuro. Mesmo que ouvisse suas histórias na infância, não me furtava em ouvi-la ainda hoje, embora desandasse em enfadonha canseira. Não tinha o que fazer com ela, a não ser esperar que se escoassem os dias, as noites, o tempo que lhe restava. Levantei-me devagar e espiei pela porta entreaberta. Estava como eu pensava, mascando aquele cigarro velho, babado, queimando os dedos, do que restava de chama. Aproximei-me, cauteloso, entre as aves empalhadas que simbolizavam a sua mais torpe herança. Avisto-a com pesar. Me parece aflita. Olhou-me por baixo dos olhos quase ocultos nas bolsas enegrecidas. Desviou-os rápido, como se quisesse esquecer de vez, a minha figura. Perguntei por que não dormia. Entoou a voz grave, de cordas vocais gastas, afirmando que nesta noite, seria a decisão.

Sempre me tratava de um modo distante, como se temesse qualquer aproximação. O nariz adunco, os cabelos ralos pendurados sobre os ombros. Alguns fiapos pretos. Às vezes, sentia um pouco de náusea. Talvez pela fragilidade que me incomodava, a dependência, o tempo escasso de viver. Mas estava curioso. De que decisão, ela se referia?

Me olhou desconfiada. Esboçou um leve sorriso. Respo0ndeu mansinho. –Nem eu entendo, moço.

Lembrei dos dias em que era forte, espera, arguta. Vidente, rezadeira, mulher de muitos saberes. Cobrava dia e noite o aluguel do quarto infame que me sugeriu como moradia. Agora mora comigo, como uma herança que não consigo dispensar, como um cão sarnento que temo abandonar e me venha lamber os pés. Eu sozinho, talvez tanto quanto ela. Também sem perspectivas, tão dependente. Por isso, me exaspera sua figura patética, esperando o fim dos dias. Às vezes, acho que a odeio. Mas não tenho onde ir, os míseros tostões que me sobram não dão pra me afastar daqui, para ter uma casa que seja realmente minha. Enfrento devagar a ojeriza. Paciente. Fico em silêncio. Daqui a pouco, ela começa a falar. Como de costume. Não foge do padrão.

– Esta casa foi muito grande. Protegeu famílias inteiras. Mas todos foram embora. – me olha de soslaio, por um segundo e pergunta: – tá ouvindo o vento? Tá fazendo corrupio, lá fora, levantando poeira. Sempre foi um sinal.

Sentei-me próximo, puxando uma cadeira de palha. Ela não levantou a cabeça, mas prosseguiu enfática, apesar da voz estremecida e falha.

– Tá chegando a hora e você precisa cumprir o destino. A minha vida não tem mais cuidado. Tá na hora de debandar.

– Como assim?

– Acabar com ela. Você tem esta missão.

Fiquei petrificado, mas a ideia não me era de todo estranha. Não havia mais tempo. De repente, ficava aí, feito figura de cera, imagem desmaiada de quem já dera as cartas, um dia. Quem sabe era uma oferta, um convite, como aquele que fazem às personalidades, às celebridades internacionais. E para elas cuja imagem sobrepuja qualquer outro aspecto humano, nada mais coerente do que a frase “o convite para virar estátua no Madame Tussauds lhe chegou em boa hora”. Tal como uma estátua do museu, talvez lhe permitisse a chance de permanecer como presença empalhada entre nós. Por que não seguir o seu conselho e transformá-la num daqueles seres embalsamados que preparava no porão da casa?

Mas como fazer o negócio? Não dava pra matar a velha, assim, com a cara limpa. Tinha que tomar alguma coisa forte. Tinha que me transformar.

Cães ladravam na noite escura. Ela tinha acessos de tosse. Depois parava, mas logo iniciava um som surdo, quase suspiro, na dificuldade em respirar. Devia tomar alguma atitude, pro bem ou pro mal. Foi quando bateram à porta de meu quarto. A velha ouviu e ficou quieta. Fui abrir e a luz escassa me deixava ver uns olhos escuros, que assim mesmo brilhavam. Não pareciam humanos. Bobagem. Precisava atender, ver o que queriam, naquele frio e lonjura danada! O homem tirou o chapéu e pediu para entrar. Perguntei o que queria. Era tarde. Trazer desassossego a uma casa quase deserta? Então, ele falou, se escondendo ainda mais na escuridão.

– Sou de tempo mais antigo que ela. Quando essa vida tinha outros ares. Quando tudo parecia não ter fim.

Por que se dirigia a mim, como ela? Era como se falasse através dela, feito ventríloquo. Não tive coragem de perguntar. Mas ele disse.

– Vim cumprir o destino.

– De que está falando? Não acredito em destino, disse isso à velha.

–É melhor se preparar. Fim da trilha.

– Sei o que pretende. Não me engana. Quer me matar.

– Matar é uma coisa que não faço. Vá pela casa, passeie pelos quartos, vá até a cozinha. Procure o quarto da velha.

Não entendia o que queria dizer, mas não havia como retrucar. Melhor obedecer do que morrer. Fiz o que mandou: andei pela casa toda. Examinei cada peça, cada quarto, fui até no banheiro. A casa estava em petição de miséria. Não tinha certeza, mas tinha a impressão de que estava sendo seguido. Uma sombra, um bafejo em meu ouvido. Um frio no estômago. Por fim, bati na porta do quarto. Precisava falar com a velha, quem sabe, já tinha acontecido. Quem sabe, teria morrido? Bati devagar, na primeira vez. Depois com mais força. Por fim, percebi que a porta estava aberta. Entrei, observando as paredes descascadas. Alguma poeira rolava pelo teto. No entanto, ela não estava lá. Havia uma cama desfeita, cobertas atiradas ao chão, a luz fraca do abajur piscando intermitente, alguns livros sobre a mesa de cabeceira. Então, assustado, voltei-me para a porta, que se fechava de súbito. Olhei para os lados, procurei a janela que dava para a rua, aquela janela em que a velha ficava espiando o mundo. Mas não havia janela, não havia rua. E o pior de tudo, aquele era o meu quarto. Por que entrara ali, no meu quarto? O que acontecera com a velha? Fiquei tão sozinho e desolado, que me deu uma estranha compulsão de sair correndo e fugir daquela casa que não era minha, mas que se parecia muito com a da infância, de minha vida atual. A velha não existia mais e o homem que estava à minha porta, também desaparecera. E esta solidão imensa que se intensificava. Aproximei-me da porta, com raiva. Não ficaria ali, nem mais um segundo. Nem que eu mesmo me transformasse em estátua de Madame Tussauds. Seria até melhor. Ficaria sempre com o mesmo sorriso, mostrando dias felizes, sem essa velha solidão que me consumia.

sábado, junho 20, 2015

Skinheads

Infelizmente, falar-se de skinheads no mundo atual, inclusive no Brasil, é deparar-se com uma maneira de pensar, que está cada dia mais presente nas nossas escolas, no bairro em que moramos, nas festas que comparecemos, até mesmo na própria família. Há endeusamento geral na internet, inclusive homenagens aos integralistas do passado. Os adeptos à ideologia neonazista se proliferam, sem que percebamos a sua presença. Mas basta que fiquemos atentos às investidas nos debates de alguns grupos, ou de pessoas que jamais imaginaríamos ter tais pensamentos reacionários e as surpresas se sucedem. O mundo parece que involuiu, os jovens em vez de avançarem, estão regredindo nos seus conceitos, com idéias cada vez mais retrógradas e conservadoras. Se não, lembremos do caso Geise, a moça de vestido curto que foi ameaçada na Universidade. Não nos cabe aqui julgar se ela queria mesmo ser assediada, se queria aparecer na mídia, se pretendia posar nua e tornar-se mais uma "celebridade" vazia e transitória dos dias pós-modernos. O problema consiste nesta retomada do conservadorismo, da forma disfaçada e hipócrita da sociedade em se relacionar. Os skinheads ampliaram o seu elenco de ódio, além dos judeus, homossexuais, negros, passaram a ser intolerantes a qualquer diferença, à miséria, à pobreza, aos imigrantes, aos nordestinos, enfim, aos que fogem do paradigma estruturado do senso comum de suas cabeças pouco pensantes. Eles estão aí, agredindo a todos e agredindo-se inconscientemente. Este tema é tratado no meu livro "o eclipse de Serguei", no qual faço o possível para demonstrar o sofrimento e o ódio de um candidato a skinhead, mostrando a sua tragetória e o perfil formado (e deformado) a partir de uma ideologia conservadora e intolerante

sábado, junho 13, 2015

O PROFESSOR E O GOLPE

O professor de filosofia observava a pequena multidão que se aglomerava em frente à prefeitura, naquele 31 de março de 64. Percebeu que na sacada, reuniam-se muitos representantes do partido trabalhista. Caixas de som ligadas, microfone instalado e discursos inflamados se seguiam. Havia um burburinho grande e vários carros estacionados próximos à praça. Um dos motoristas ouvia atento, a rádio nacional. As ondas curtas vinham e iam, produzindo ruídos na compreensão das notícias. O professor afastou-se de um grupo mais animado e aproximou-se do motorista que ouvia rádio, percebendo a dificuldade com que tentava assimilar o que ouvia. Mesmo assim, tentou saber se o que tinha apreendido das conversas itinerantes tinham algum fundamento. Conversaram alguns minutos. O assunto não podia ser outro. Brasília estava em pé de guerra e as notícias assinalavam que João Goulart seria deposto. Um dos políticos falava no microfone a altos brados. Parecia antecipar-se aos acontecimentos.

O professor encostou-se no carro e observou o cenário que de repente se descontruía a sua frente. As pessoas se olhavam e discutiam com a convicção de que não entendiam o que acontecia. Estavam confusas, desarmadas. O pequeno grupo que estava na sacada começou a dispersar-se. Em menos de cinco minutos, as caixas de som sumiram e o microfone calou-se. As informações que surgiam eram desencontradas, inclusive falavam em um presumível triunvirato de poder no Brasil, com as três forças armadas. O professor logo lembrou de Roma, que no ano de 59 a.C, Gaius Julius César, Pompeu e Marco Lucínio Crasso se uniram para governar Roma. A história estaria dando marcha à ré? Em seguida, o professor tal como os demais retirou-se de frente do paço municipal, despedindo-se do motorista e agradecendo as informações. Voltou para as suas aulas, para o seu trabalho, sua família.

À noite, a lua nova dava seus ares de despedindo, dando lugar à minguante para os próximos céus nublados. O mundo amanheceu cinzento. A cidade parecia outra, na qual se temia conversar nas esquinas, falar em política ou articular a palavra golpe. Na rádio, Brizola resistia com a campanha da legalidade, mas logo percebeu que seria um terrível derramento de sangue e desistiu. Alguns dias mais tarde, cassaram o prefeito. A imprensa salientou, garbosa, que a prefeitura não estava acéfala, pois assumira o vice. Não por muito tempo, pois renunciara e logo assumiu um capitão reformado do exército. Havia um interventor. Começava a operação limpeza. Muitas pessoas foram presas, levadas para o navio Canopus, um presídio improvisado, aclamado pela imprensa da época como belonave, abarrotado de líderes vermelhos e agitadores. Professores eram retirados da sala de aula, pais de família investigados e estudantes perseguidos; isso acontecia a quem pensasse diferente da força reacionária que surgia enfurecida pelo Brasil, ou que aos olhos do poder, expressasse alguma faceta que os contrariasse. Muito simples: é contra o regime, é vermelho, comunista. Deve ser punido. E tudo acontecia com as bençãos de várias instituições, inclusive da Igreja Católica, com excessão de algumas dissidências que honravam as palavras de Cristo. O professor de filosofia era um dos conspiradores do bem comum. Tanto, que foi taxado de terrorista e mal exemplo aos alunos e à sociedade.

Em dado momento, foi interrogado em sua casa, com a intenção clara de o prenderem. Seria mais um preso político jogado naquele navio, para aprender a ser um homem que não envergonhasse a nação. Nem percebiam que a nação chorava constrangida e mal conceituada pelo mundo afora.

Naquele momento, reuniram a família, a mulher e os filhos, citando todos os seus crimes contra o País, inclusive rechaçando o seu conhecimento científico e acadêmico, que para eles não valia nada. Deram voz de prisão, fizeram-no juntar seus pertences, ante o olhar apavorado dos parentes. Examinaram minuciosamente todos os objetos para se certificarem que estavam de acordo com as normas da prisão que estavam efetuando. Apenas uma muda de roupa, um par de sapatos sem cadarços, um barbeador elétrico, alguns objetos de higiene. Nisso, perceberam que havia um livro entre os pertences. Um deles, mais afoito, aproximou-se, abriu-o e estupefato, perguntou: – O senhor pretende levar este livro? Não se da conta que é uma confissão de que não passa de um comunista?

O segundo, que parecia mais calmo, aproximou-se, pegou o livro e largou-o sobre a mesa. Deu um leve sorriso, de quem não entendeu nada, mas concordou com o colega. Ainda ouviu a pergunta irônica do primeiro: – O que tu acha Aristides? O homem não tá encrencado?

Aristides concordou com um aceno de cabeça.

O professor, apesar da aparência amarga, ainda esboçou um sorriso pelo absurdo da pergunta. Asseverou que levaria o livro. Por fim, perguntou o motivo por que tanto ódio contra Machado de Assis. Nisto, o soldado deu dois passos para trás, como se iniciasse uma marcha, na qual daria meia volta. Mas não o fez: estancou e segurou o livro, abrindo-o na página do título. Começou a lê-lo, a princípio devagar, depois, releu palavra por palavra, quase declamando e para cada uma dava uma explicação.

– Memórias póstumas … Memórias, coisa de comunista! tu não acha Aristides?

Silêncio absoluto. Ele proseguu: — de Brás, isso é coisa de petrobrás, eletrobrás, monopólio, tu não acha Aristides?

O outro esboçou a primeira reação, tentando articular uma frase, talvez lembrando que a briga da petrobrás vinha desde o Getúlio, onde o Jango, como ministro na época não aceitava a interferência americana, mas nada disse, foi interrompido pelo soldado leitor, que exclamou vitorioso, os olhos muito vermelhos, a voz embargada de forçada nacionalidade — Cubas! Aqui não tem mais conversa, amigo! Comunista puro! Vermelho de merda! Tu tá lendo um livro que fala em Cuba!

Aristides, desta vez sorriu, franco. O amigo sabia o que dizia!

O professor foi preso, torturado e mais tarde exilado no Chile. Se fosse vivo, talvez fizesse um estudo sociológico, antropológico ou seja lá que viés percorresse para encontrar algum motivo, por menor que fosse, de que Memórias póstumas de Brás Cuba é um livro comunista. Ou enlouquecesse de vez!

quarta-feira, junho 10, 2015

Eu e os carros antigos

Tenho esta mania de fotografar carros antigos. Nem é interesse por determinados modelos ou por conhecimento de motores ou marcas importantes. Nem tenho qualquer coleção, mesmo porque é preciso demandar um bom dinheiro para este tipo de hobby. Entretanto, sempre que vou a Montevidéu e noutras cidades do interior do Uruguai, tento fotografar aqueles automóveis datados de épocas tão antigas e que parecem contar muito de seu passado. Fico talvez, na minha posição de escritor, inventando histórias. Mas histórias plausíveis, que talvez fossem tão verdadeiras como se as vivêssemos. Uma lembrança que me vem em momentos, como num déjà vu de algo que nao vivi. Há os que falam em universo paralelo para este tipo de evento, mas evitarei este tema, até por não ter certezas absolutas. Deixo para os pesquisadores e os escritores de ficção científica. Penso, porém naquele carro verde e pequeno da década de 50, que deve ter servido por muitos anos a uma família de imigrantes italianos, que veio se instalar em Montevidéu, uma cidade com tantos pizzaiolos e donos de restaurantes. Quem sabe ele levava o filho à escola, uma dificuldade para a época, porque não havia tantos funcionários para prover o negócio que começava, onde toda a família participava. Ou, quem sabe aquele carro bege ou amarelo claro que me parece um citroen, andando displicente pelas ruas de Punta del Este, fazendo furor, tendo atrás do volante uma morena de olhos grandes e lenço estampado, parando uma livraria e descendo garbosa com uma bolsa da da cor do sapato. Um escândalo para uma cidade cosmopolita, não só por ser uma mulher no volante, mos anos 40, como uma mulher tão espalhafatosa. Mas se dirigia a uma livraria, não ao botequim. Por outro lado, que pensar daquele sedã imenso, de cor preta, provavelmente dos anos 60, pilotado por um homem de óculos pesados e cabelos estiirados para trás, salientando as entradas reluzentes, com um cigarro fumegante nos lábios e um olhar conspirador. Que faria, estacionando em frente à intendência de montevidéu, levando consigo uma pasta preta, talvez conduzindo um dossiê e um olhar arrogante? E no Brasil, dá pra imaginar um homem magro, usando o seu eterno chapéu panamá amassado, a bordo de um automóvel inimaginável, até por ser o primeiro a ser usado em terras brasileiras? Passeava lentamente pelas ruas, talvez chegando a 20 ou 30 km por hora, levantando poeira, deixando as mulheres atônitas, os homens entusiasmados e as crianças eufóricas e assustadas com o bicho que andava sozinho. Certamente os mais velhos não aprovavam aquela máquina que provavelmente destruiria o mundo. Ficavam assustados e arredios. Mas ele passeava, fagueiro e sorridente, pois já tivera sonhos bem mais altos. Afinal, não passava do inventor do avião, Santos Dumont. Pois foi este gênio a trazer o primeiro automóvel de motor a explosão para o Brasil. Era um Peugeot. E ele foi o primeiro a reclamar do estado das ruas. Mas deixemos as histórias para o seu passado ou para a imaginação para recontar a vida de uma forma diferente, mas paradoxalmente, parecida. Daí a verossimilhança tão difundida na literatura. Por outro lado, tenho verdadeira fixação por estes carros, de qualquer marca ou ano, principalmente os de décadas bem atrás. Acho estranho que em países como o Uruguai e também em algumas cidades do interior da Argentina, continuem circulando pelas ruas e até por rodovias. Carros que aparentemente estão em péssimo estado, embora o seu motor possa estar tinindo. Ainda não fui a Cuba, que é o maior museu de carros antigos do mundo, principalmente das décadas de 40 e 50; lá teria muitos carros para fotografar, mas os que vejo por aqui, tão perto, já me bastam. Muito interessante visitar os museus de automóveis antigos, como o de Gramado, ou assistir o desfile de colecionadores. Entretanto, o que me impressiona mais são os que estão em franco estado de trabalho, ou seja, atravessando estradas e servindo seus donos por aí. Em cidades como Maldonado, Mello, Colônia do Sacramento, Chuy, Rochas, San Carlos(cidade irmã de Rio Grande, RS) e até em Punta del Este, além da própria Montevideu, pude ver carros deste tipo. Ricos em história e sonhos para os imaginativos. O interessante de tudo isso é que muitos dos carros que fotografei estavam parados a frente de suas casas, ou em garagens, cujos donos apareciam e os utilizavam como nós fazemos com nossos veículos atuais. Também vi motos muito antigas e com fios enjambrados, em atividade, e fico me perguntando, como é o relacionamento do trânsito com o policiamento rodoviário. Como são efetivadas as multas? Em todo o caso, o trânsito naquele país me parece muito disciplinado e o povo bastante tranquilo. Também vi carros antigos na cidade de São tomé, na Argentina, que faz fronteira com o Brasil, através da ponte da integração com São Borja. Uma cidade muito bonita, organizada e limpa. Colônia do Sacramento, entretanto, tem outras peculiaridades marcantes, além dos carros antigos. É separada de Buenos Aires pelo Rio de la Plata, onde pode-se atravessar por buquebus, num trajeto em torno de 50 km. Nela, pode-se admirar a memória viva, pois sua arquitetura original é de casas antigas e coloridas e seus velhos lampiões. É preservada e declarada pela Unesco como patrimônio da humanidade. Entre as suas ruas estreitas e de pedras irregulares, a mais conhecida chama-se Calle de los Suspiros, por acolher no passado os marinheiros que buscavam companhias antes de embarcarem. Atualmente, os turistas observam maravilhosos as casas baixas e gastas pelo tempo, embora muito bem conservadas. Sua origem portuguesa é visível na fortaleza fundada no fim do seculo XVII e os canhões que enfeitam as calçadas são os símbolos das disputas entre os portugueses e espanhóis, que por quase um século se alternaram no poder. Se por um lado, permaneceram as construções portuguesas de pedra do periodo colonial, por outro ficaram as casas de tijolos e com varanda, erguidas pelos espanhóis. Uma coisa interessante que ficou como lembrança destas disputas, foi a igreja em estilo espanhol, que esconde embaixo do reboco branco, uma igreja portuguesa feita de pedras, cujas paredes e colunas foram construídas pelos portugueses. Como no século posterior, os espanhóis deixaram a igreja lisa e branca, a de pedra ficou por dentro. Por outro lado, voltando ao nosso tema, percebemos que há um enorme quantidade de carros antigos circulando pelas ruas e que alguns, já desativados, servem como atração, a partir de adaptações para restaurantes ou floreiras que enfeitam a rua. Uma paixão que principalmente, a meu ver, os uruguaios possuem, mas uma paixão que também usufro ardentemente. Como disse, nada que eu conheça com propriedade os diversos modelos, suas origens, fábricas montadoras e países onde foram criados. São designs antigos, datados, mas que me dão a certeza de que o passado revive, não como atributos melancólicos, ou com intenções retrógradas. Não, ao contrário. Quero que tudo evolua, que o mundo cresça nos seus diferentes aspectos e neste, especialmente, da industrialização automotiva, que atinja inúmeros avanços, embora não deixando de reconhecer e adaptar os belos desenhos e performances de antigamente. Um carro é só um objeto. Mas as impressões que provocam, estas sim, podem levar a devaneios, sonhos, desejos inexplicaveis, emoções, especialmente porque a mão do homem está ali, embutida, e a união destes elementos transforma a realidade numa coisa elaborada e criativa. Os carros e sua memória. Uma memória que nao tive, que nao vivi, que pouco conheci no passado. Mas um memória que me cai bem, que me faz pensar e imaginar. Só na imaginação e no sonho, encontramos o sentido da vida, a vontade de vivermos coisas tão boas como aquelas passadas ou pelo menos, imaginadas. Quem sabe, um passeio no parque, um piquenique no campo, uma mirada na praia. Um olhar mais atento à nautreza. O despertar de uma nova história. E sempre partilhando a companhia daqueles velhos automóveis. Um bem sempre presente.

terça-feira, junho 09, 2015

METÁFORAS CRUÉIS : desqualificação das mulheres e negros


Certa vez, em uma disciplina de um curso de pós-graduação em linguística, avaliamos uma série de adjetivos ou substantivos adjetivados que soam lisonjeiros para os homens e ao contrário, para as mulheres produziam conotação pejorativa, pois a própria palavra utilizada possui juízo de valor, tanto para um lado quanto para o outro. Estas distorções linguísticas são foco de vários estudos de cursos de pós-graduação e muito bem explanadas em vários artigos. Sabe-se entretanto, que a língua é apenas um instrumento que é fruto da cultura dos cidadãos de um país.

Estes adjetivos constituem metáforas que desquafilicam o sujeito feminino e qualificam o masculino. Se não, vejamos alguns exemplos, que foram exaustivamente avaliados em vários trabalhos, mas que cabe aqui, identificá-lo en passant. O adjetivo vadia, para a mulher tem a ver com promiscuidade, assim como vagabunda. No caso do homem, o termo vagabundo ou vadio, tem a abordagem do trabalho, mas pode incluir também um significado positivo, como garanhão, altamente elogioso na nossa sociedade. No caso de se chamar um homem de cão, ou cachorrão, pode haver uma conotação negativa, mas nunca no aspecto sexual. Inclusive, ser um "cachorrão"", infere aspectos positivos, dependendo do contexto. Mulher chamada de cadela, no entanto é considerada uma prostituta. A desqualificação feminina se dá sempre no âmbito da sexualidade. Mulher aventureira, pistoleira, da vida ou galinha (puta). O homem aventureiro, que viaja, que arrisca, pistoleiro, um matador, homem da vida, que adquiriu sabedoria, o galo é aquele que tem um orgasmo rápido e certeiro. O adjetivo puto pode vir, além da conotação sexual, com vários significados como nervoso, irritado, bravo. Fulano está puto da vida. No caso feminino, esta última conotação é menos usada. Chamar um homem de cavalo, pode designar um indivíduo grosseiro, sem educação. No caso da mulher, chamá-la de égua, designa meretriz. O homem que é um touro, é aquele forte, bravo, fogoso e robusto. Uma mulher vaca é a mulher leviana, aquela que aceita qualquer homem. O homem chamado de lobo é o considerado sanguinário, a mulher loba é uma meretriz, o mesmo caso de mariposa. Piranha designa uma mulher de vida licenciosa, meretriz. Estas metáforas zoomórficas são destacadas por E. V. Leitão, em 1988, no livro " A mulher da língua do povo" (LEITÃO, E.V., 1988).

Mas esta desqualificação da mulher ocorre também em relação às pessoas de etnia negra (homens e mulheres), em virtude da cor, através de uma herança cultural que sempre marginalizou os negros. Para tanto, observa-se, não adjetivos, mas metáforas produzidas por expressões cotidianas que constroem um verdadeiro dicionário. Outro dia, li um texto de Setephanie Ribeiro, no site do Pragmatismo Político, que emumerava 13 expressões que ela considerava formadoras do racismo contemporâneo. Vou descrever algumas aqui, na tentativa de relacioná-las com a desqualificação feminina observada anteriormente. Umas delas, é "serviço de preto” expressão utilizada para associar a um trabalho desleixado. Remonta ao passado escravocrata, quando afirma que o negro era malandro, negligente e seu trabalho era ruim. Outra expressão é “morena, mulata“ seguidos de "tipo exportação”. Neste caso, embraquece-se a pessoa, transformando-a em morena ou mulata, e o pior "tipo exportação", no meu ver, seria sugerir uma aceitação da mulher negra pelo estrangeiro. Uma venda do material humano, como um objeto no mercado. Uma terceira expressão é aquela “não sou tuas negas”. Neste caso, a frase deixa explícito que com as negras, tudo é possível, e com as demais não se pode fazer o mesmo, lembrando o comportamento de assédio e estupros com as mulheres negras escravizadas. “Cabelo ruim, cabelo duro, etc.”para designar características do cabelo afro como algo pouco estético, fora dos padrões europeus. “Nasceu com o pé na cozinha”, neste caso, a expressão indica as origens das mulheres negras, associadas aos serviços domésticos, já que as escravas podiam ficar na cozinha e, inclusive, segundo a autora, dormiam ali mesmo.

Percebemos enfim, que vale a regra do poder reacionário, escravagista, machista e branco sobre as categorias analisadas. Tanto a mulher quanto a etnia negra, tem a desvantagem de apresentar estereótipos que os desqualificam como sujeitos. Não se pode dizer que há preconceito em relação à mulher, mas sim que todos os adjetivos são frutos de cultura machista e retrógrada que sempre privilegia o homem, principalmente no aspecto sexual, no qual a mulher é sempre inferiorizada. No caso das expressões que investem contra o negro, percebe-se aqui um franco racismo, muitas vezes disfarçado na terrível expressão “alma de branco”, que o autor também destaca. Para estes, lembro daquela música “alma não tem cor” de André Abujamra, cantada por Chico César, Zeca Baleiro, pelo grupo Perota Chingo, entre outros.

"Alma não tem cor

Porque eu sou branco?

Alma não tem cor

Porque eu sou preto?

Você conhece tudo

Você conhece o reggae

Você conhece tudo

Você só não se conhece”
Fonte: LEITÃO, E. V. A mulher da língua do povo. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.
PEREIRA, Edilene Machado; RODRIGUES, Vera. Amor não tem cor?! Gênero e raça/cor na seletividade afetiva de homens e mulheres negros(as) na Bahia e no Rio Grande do Sul. In: https://www.abpn.org.br/Revista/index.php/edicoes/article/viewArticle/87
RIBEIRO, Stephanie. 13 expressões racistas que precisam sair do seu vocabulário. In: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/05/13-expressoes-racistas-que-precisam-sair-do-seu-vocabulario.html
http://blogueirasnegras.org/author/stephanie/
ZAMPARONI, Valdemir D. Os estudos africanos no Brasil. In: Dhttp://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=522


quinta-feira, junho 04, 2015

Registros

Não sou de guardar muitas coisas. Um texto aqui, um chaveiro ali, uma fotografia lá. Há coisas que não se guarda, na verdade, se resguarda do extravio. Há outras que nos parecem uma espécie de registro, uma lembrança de um acontecimento importante em nossas vidas, uma informação do passado, uma memória. Guardo alguns recortes que nunca leio. Fotografias que dificilmente olho. Guardo textos antigos que jamais analiso. Um coisa, tenho certeza, guardo sim e com prazer: cartões do dia dos pais e outros homenageando a minha profissão dados por minha filha, afilhados e sobrinhos. Estes, de vez enquanto, espio agradecido. Observo as letrinhas desenhadas, o jeito despojado de oferecer carinho e mais do que tudo, a espontaneidade do momento. É muito bom. Outras lembranças burocráticas, nem tanto. Em todo caso, há que se guardar. Guardar é esperar que algum dia, se utilize dessas pequenas relíquias para compor uma memória organizada, quem sabe? Uma coisa, tenho certeza, as lembranças de encontros, de apertos de mãos, de despedidas, de afagos, esses sim, são sempre bem registrados e a todo momento, vem na lembrança com a euforia que lhes é peculiar ou a saudade que os constitui. Lembranças boas ou más sempre estão conosco. É preciso burilá-las e deixar que venham ao lume as que nos transmitem paz. Coisas de bibliotecário.

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