segunda-feira, novembro 21, 2016

ZUMBI- 1695 - DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA

“Zumbi dos Palmares, delatado por Antonio Soares, é surpreendido pelo Cap. Furtado de Mendonça em seu reduto (talvez a serra Dois Irmãos). Apunhalado, resiste, mas é morto com 20 guerreiros. Tem a cabeça cortada, salgada e levada, com o pênis dentro da boca, ao governador Melo e Castro. No 3º centenário de sua morte, emergirá como o grande heróis da luta pela liberdade no Brasil. A data é o dia Nacional da Consciência Negra”. Fonte: www.vermelho.org.br.

Nos dias de hoje, questões são elaboradas e discutidas e abrangendo vários aspectos sobre a intricada situação do negro no Brasil.

Muitos há que acreditam que os preconceitos étnicos já debandaram e que os envolvidos nas questões raciais, nada mais fazem do que subjugar a inteligência das pessoas, quando afirmam sentirem-se prejudicados pelo preconceito.

Acham que não existe preconceito e se os há, ocorrem de maneira dispersa, atingindo apenas alguns menos qualificados no cenário intelectual, ou seja, os operários, as pessoas que trabalham apenas com as atividades físicas ou que sobrevivem sob o domínio de drogas e miséria generalizada.

Para estes, o preconceito até é suave, pois estes seres representam exatamente aquilo que a sociedade considera perverso. Como se perversidade fosse privilégio dos homens negros, dos pobres, dos desprovidos de bens materiais e intelectuais.

Estes que assim pensam, na verdade, impingem o desqualificativo de indivíduos de segunda classe, que embora não admitam publicamente, são convictos desta “verdade”e a revelam em seus pensamentos e condutas.

Entretanto, o que se percebe é que o homem desta geração não evoluiu como se esperava, pelo menos, a partir dos grandes movimentos dos anos 60, quando se lutava pela liberdade, pelo direito de ser como se é e de se respeitar o outro, independente de raça, credo, orientação sexual, classe social ou qualquer outra considerada “diferença” do status quo estabelecido.

Pensávamos que o homem mudara e se transformara num ser múltiplo, cultural, evoluido, marcado por sentimentos, que desencadeassem em atitudes de acordo com o seu olhar no mundo.

Desta forma, fugiria do senso comum, que padroniza todos os gostos, todos os sabores, todos os nuances, todas os matizes e transforma a vida num cinza sem graça e insosso.

Na época de 60, eu ainda não me conectara ao mundo novo, porque ainda era uma criança. No final dos 70 e em plena ditadura, já adolescente, entendi a duras penas, que o homem estava aprisionado num sistema de medo e escapismo da realidade.

Naquele momento, era preciso reinventar a vida, para não morrer de inanição e tédio. Muitos optaram pelas drogas. Outros, como eu no final dos 70, num período de transição entre a infância e adolescência, percebi que me cabia lutar a meu modo, ou seja pelo conhecimento, pela leitura, pela religião, pela música de protesto, pela escrita, pelo engajamento político através de grupos de jovens, lendo tudo que aparecia sobre ciência política e filosofia. Uma maneira de me ajustar àquele mundo que desimbestara a consumir os encontros, a separar as conversas e alienar os jovens.

Houve outros, mais velhos que se engajaram nas guerrilhas, nas lutas contra a ditadura e estes foram corajosos e verdadeiros amantes da Nação.

Parece-me entretanto, que esta luta foi em vão em muitos aspectos. Não me refiro à democracia estabelecida, (embora estremecida nos dias de hoje). Esta foi fruto, sem qualquer contestação dos inúmeros movimentos sociais e políticos.

Refiro-me ao legado do novo modo de pensar, das novas diretrizes nos relacionamentos humanos, que em nada se assemelhavam às atitudes patriarcais e autoritárias da época, ao contrário, lutavam contra tudo que era proibido.

Houve execessos, claro, como em qualquer vanguarda, tanto na sociedade alternativa, quanto nos movimentos de amor livre e drogas.

Na verdade, tudo que se pensava de um novo mundo e compartilhado, um tanto utópico, não se concretizou.

Ao contrario, a ignorância parece ser o ingrediente mais utilizado nas relações humanas nos dias de hoje.
Este pensamento canhestro e torpe é repercutido e disseminado em várias áreas.
Há pouco, uma mulher que participou de uma manifestação que pedia a intervenção militar no Congresso Nacional, denunciou um painel com a Bandeira Nacional e a Bandeira do Japão, em homenagem ao centenário da imigração japonesa no Brasil, confundindo-o como comunista. Para ela, a nossa bandeira nacional era comunista porque tinha o símbolo vermelho, questionando a nova bandeira do Brasil. Neste caso, a ignorância anda em Boeings de última geração, mas conhecimento a passos de jumento.

Neste mês da consciência negra, observamos que toda a história de luta, de aprendizagem, de busca de liberdade das gerações anteriores não trouxe os objetivos almejados.

Nem vem ao caso, aqui, tentar elucidar os motivos, inclusive, porque é imprescindível grandes pesquisas sociológicas para identificar estes retrocessos.

Talvez a violência, o esfacelamento do núcleo familiar, o uso intensivo da tecnologia em proveito apenas da divulgação individual, através das redes sociais, na tentativa de se inventar um personagem perfeito, onde as mazelas se escondem atrás dos perfis imaginários, a hipocrisia dos relacionamentos, o uso abusivo e inadequado das tecnologias, nao sei.

É necessário um verdadeiro tratado sociológico e antropológico para chegar a alguma conclusão.

Entretanto, o que se tem claramente estabelecido é, que o homem persiste na linha da ignorância cega e individualizada, e aqui, parafraseando o texto de Bruno Rico, em seu blog, uma ignorância que encerra os homens em seus condomínios, que não tem paciência em ouvir os protestos de um artista, sobre sua condição social ou o discurso sobre os problemas de seu país.

Segundo Bruno Rico, “ A ignorância sempre foi, e sempre será um dos maiores problemas do brasileiro, e engana-se quem pensa que ignorância tem a ver com pobreza ou grau de instrução, tem muita gente com a conta bancária lotada de cifras, com diploma não sei de onde, que é totalmente ignorante em diversos aspectos”.

Em 1695, Zumbi dos Palmares foi apunhalado e morto.

Além disso, foi vilipendiado, como ser humano, sem o direito de um julgamento digno.

Se tal fato ocorresse nos dias de hoje, os instrumentos de justiça seriam outros, mas as atitudes das pessoas não seriam as mesmas: preconceituosas, intolerantes, hipócritas, imbecis?

Um nível de extrema involução a que o brasileiro médio chegou.

Resta-nos esperar, que as coisas mudem, que os registros sejam mais limpos e que a história seja contada noutros moldes, menos reacionários e mais libertários.

Que o dia nacional da consciência negra se multiplique em muitos dias, e que se promovam também outras consciências, que o homem habite outros sentimentos tanto nas relações humanas, quanto para as interações com a arte, com a cultura, com as religiões ou a falta delas, com o livre pensar, com as orientações sexuais, com as ideologias, com a convivência sem divisões.

Que o homem tenha consciência!

Que evolua!

A fotografia da vida de Santa - CAP. 22

Capítulo 22

Aquela noite, Fernando não conseguira dormir. O plano de Alfredo era coisa de amador. Afinal, sequestrar o pai para que tivesse tempo de provar que a mãe era uma mulher lúcida e capaz de decidir sobre o seu patrimônio, era uma coisa absurda, a não ser que ele tivesse outros planos na cabeça. Talvez ele quisesse se livrar do velho para sempre. E se tudo desse errado? O Sr. Sandoval anda sempre acompanhado de seguranças, além de ser um homem esperto. Talvez o próprio Alfredo tenha uma maneira de deixá-lo sozinho para que ele o capturasse. E depois? O que aconteceria depois? Ele teria de sumir do país e como faria, sendo um homem em liberdade condicional.

Não podia fazer aquilo, era muito perigoso e se descobrissem ele não teria chances de se defender. Procuraria Alfredo e diria isso a ele. Procurou o número no celular e ligou para Alfredo pedindo que viesse procurá-lo. Teria que resolver esse problema ainda esta noite, não poderia continuar com aquela preocupação.

De repente, Fernando ouve um ruído, como se houvesse alguém na casa. Apaga a luz do quarto, ficando apenas com uma pequena luminosidade do celular. Desliga-o por fim e fica na penumbra, ouvindo passos que se aproximam. Procura rapidamente a arma sob o travesseiro, engatilha-a e fica à espreita. Pergunta quem está ali, mas não obtém resposta.

Afasta-se para um canto do quarto e se esconde próximo ao guarda-roupa.

Neste momento, percebe um homem na penumbra do corredor, que passa muito rápido, só iluminado pelas luzes oriundas da janela.

Corre para o outro lado, aproximando-se da porta. Grita com raiva, querendo saber quem está na sua casa e o que pretende.

Nisto, um tiro o atinge no ombro, fazendo-o cambalear, mesmo assim, atira na direção da figura que surgira de súbito na porta. Entretanto, a pessoa parece muito ágil e conhecedora do que está praticando, pois atira mais uma vez, num disparo definitivo. Em seguida, afasta-se na direção do corredor que conduz à porta.

Fernando, por sua vez dá vários disparos, mas sente-se cada vez mais fraco, tombando no chão. Não percebera que um tiro o atingira no peito e desesperado, arrasta-se com as últimas forças que possui para a sala ao lado. Perecebe que agira errado, deixando o celular no quarto e não podendo pedir socorro.

Algum tempo depois, Alfredo chega na casa de Fernando. Observa que a porta da frente está entreaberta e imagina que ele prefere que seja discreto, provavelmente temendo que a vizinhança pense que ele tem alguma relação afetiva com ele. É um idiota, pensa. Será que nos dias atuais, alguém está preocupado com quem chega na casa dos vizinhos, logo ele, um homem discreto e consciente de sua posição na sociedade. Mas como lidar com um matuto como aquele, que embora tenha tido uma educação acadêmica, não havia evoluído em sua mentalidade.

Alfredo empurra a porta devagar e chama por Fernando. Não obtem resposta e fica um pouco assustado. Afinal de contas, ele é um homem que tem muitos inimigos, que matou um colega de trabalho, não é uma pessoa confiável. Talvez não devesse ter se envolvido com ele, mas agora era tarde demais. Já fizera a proposta e não havia como recusar.

Chama mais um vez e decide ligar o interruptor, iluminando o corredor que desemboca na sala e nos quartos.

Dá alguns passos e observa Fernando estirado com a cabeça encostada no pé de uma poltrona.

Apavorado, percebe que um filete de sangue escorre da boca do rapaz e seus olhos estão abertos como se estivesse morto.

Para certificar-se, aproxima-se e abaixando-se ao seu lado, examina a carótida, percebe que é tarde demais. Fernando está morto.

Levanta-se num salto, as pernas tremem e suas mãos parecem não obedecer os gestos, paralisadas.

Encosta-se na parede e fica ali, sem saber o que fazer, quando ouve passos que se aproximam.

Tenta esconder-se, deve ser a pessoa que o matou que voltou para asseverar-se de que o homem estava realmente morto ou pretendia outra coisa.

Para sua surpresa, entretanto, é a voz indignada de Letícia que ouve:

– Alfredo, o que você fez?

Alfredo tenta responder, mas o maxilar parece ajustado de modo a não se mover, tal o bater de dentes como se um frio extremo o atingisse.

Observa que Tavinho também está ao lado da irmã e sem entender o que está acontecendo, reúne todas as forças que possui para defender-se:

– Eu não fiz nada, está louca! Cheguei aqui e o encontrei assim, caído. O cara está muito ferido.

Tavinho se aproxima do corpo e exclama, apavorado:

– Ferido não! Ele está morto, mortinho da silva. Quem foi que o matou?

Alfredo precisa explicar por que está ali, naquele momento, mas apenas se defende, porque na verdade, não tem o que dizer, não sabe o que aconteceu, quem matou Fernando. Como defesa, também os questiona, agora mais seguro, através do poder adrenalina.

– E vou saber? Mas e vocês, o que fazem aqui?

Letícia responde, exasperada:

– Viemos conversar com ele, a pedido de mamãe.

– Mas agora, o que vai acontecer? Este cara foi assassinado há pouco, tenho certeza. Ele me ligou, pediu que eu viesse, pois queria acertar umas coisas, um negócio que estávamos fazendo.

– Um negócio? Desde quando você tem negócios com o jardineiro? A menos, que seus interesses fossem outros. - responde com ironia.

– O que você está imaginando, Letícia? Acha que eu vim aqui para transar com o cara?

Tavinho intervém, muito nervoso:

– Pessoal, vamos parar com esta briga idiota. Precisamos sair daqui, não podemos ficar nem mais um minuto. Não se esqueça Alfredo, as suas digitais estão no morto. A polícia pode pensar que você o matou.

– Nós os três, porque vocês tocaram em portas, maçanetas. – Responde Alfredo, alterado.

Letícia, percebendo a situação de perigo em que se encontra, grita em verdadeiro pânico:

– Tavinho, faça alguma coisa. De uma limpada por aí. Eu não quero me envolver nisso. Sou uma promotora, meu Deus, só faltava essa.

Tavinho concorda e começa a circular pela sala, em redor do morto e dos objetos que presumivelmente foram tocados, usando um lenço de papel.

– Então vamos limpar tudo. Você Alfredo, procure álcool na cozinha, na despensa ou seja onde for e limpe onde você tocou no cara, sei lá, tire as suas digitais.

Alfredo fica em silêncio, pensativo, sem mover-se. Letícia pergunta, indignada:

– Você quer que a polícia chegue, quem sabe algum vizinho já chamou a polícia, vai ficar aí pensando em vez de procurar fazer o que o Tavinho falou?

– E se nos livrássemos do corpo? – pergunta Alfredo.

– Como assim? Se você não tem nada a ver com isso, pra que se livrar do corpo?

– Porque tem as minhas digitais, Letícia, eu o examinei, peguei a arma que ele tem por perto. Pensei que havia se suicidado.

– Você é um idiota, mesmo! E o que você queria com ele?

– O mesmo que vocês. Eu descobri umas coisas relacionadas ao nosso pai.

– E o qual era o seu plano?

Tavinho os interrompe, alarmado:

– Pessoal, vamos limpar os vestígios rapidamente e dar o fora daqui. Esqueceram que quem o matou, pode voltar a qualquer momento?

– É verdade e o desgraçado por estar por aí e se é uma vingança, pode pensar que temos algum envolvimento com ele. – Responde Letícia. Em seguida, observa Alfredo que parece enxugar uma lágrima e acena a cabeça com censura. Acredita que tem razão ao pensar que o irmão tinha algum interesse no jardineiro. Não se contendo, pergunta, irônica:

– Parece que você sentiu muito a morte do coitado. Está aí enxugando as lágrimas.

– Não pense besteiras, Letícia. Não vê que perdiu uma lente, e estou incomodado com isso. Mas não se preocupe, desde que estava no carro, tinha este desconforto nos olhos. Deve ter sido lá.

Ela não responde, mas não acredita em nenhuma de suas palavras.

Em seguida, após fazerem o combinado, os três saem da casa de Alfredo e afastam-se de imediato em direção aos seus carros.

No prédio da frente, a luz de uma janela se apaga e pode-se avistar apenas a chama de um cigarro.

sábado, novembro 19, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 21

Nosso folhetim dramático e exagerado é publicado às terças-feiras e aos sábados. A seguir mais um capítulo, agora nos capítulos finais, no qual os desfechos aos poucos vão acontecendo. Boa diversão!

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/chá-preto-e-branco-bule-de-chá-1001654/

Capítulo 21

Santa desliga o celular e se surpreende com a visita de Letícia. A filha dificilmente apareceria, a menos que fosse chamada para algum encontro de família, como no caso das reuniões que aconteceram há pouco. De todo modo, estava feliz com a presença da filha, embora a achasse um pouco estranha. Leticia tomava chá ao seu lado, na varanda que desembocava num jardim enorme, do qual se avistava algumas montanhas. O por do sol ficava muito bonito, naquela região.

Santa observa a filha com carinho e mostra-se afável. Percebe, no entanto um certo desconforto, que não caracteriza a personalidade de Letícia, afinal sempre categórica e arrogante.

– Fico muito contente que você tenha vindo, Letícia. Anda sempre tão ocupada com o seu serviço, não consegue encontrar um tempo para nada a não ser o seu escritório e o tribunal.

– Não é tanto assim, mamãe. Na verdade, ando um pouco preocupada, com vocês dois: Você e papai.

– Seu pai está bem. Não se queixou mais de nada.

– Mas e você, com aquela história de dividir o patrimônio, de manter aquelas condições absurdas. Estas coisas ainda estão em pé?

– Claro, Letícia. Foi uma missão que recebi de Nossa Senhora e não posso me furtar a obedecê-la. Ela quer o bem das pessoas, a união da família.

– Mamãe, não acha que está exagerando?

– Nós já conversamos sobre isso, Letícia. Tivemos uma reunião para discutir. Para mim, é assunto encerrado.

– Mas Linda me disse que a senhora não anda nada bem.

– Como assim?

– A senhora anda nervosa, esquecendo de coisas importantes, parece que anda alheia a tudo que acontece em casa.

– Esta Linda está me saindo pior do que a encomenda. Mas você acredita nela ou em mim, Letícia?

– Em você, mamãe, é claro. Mas ao mesmo tempo, acho tudo um absurdo. A senhora acha que porque uma bússola emperrou virada não sei pra onde, e a partir de tudo isso, resolveu mandar nas nossas vidas, nós temos que fazer o que quer?

– Minha filha, eu fui bem clara. Contei-lhe sobre o que aconteceu, falei sobre a ilha isolada com a qual eu terei que participar de sua vida, de sua gente, de me transformar numa parceira e utilizar a parte de meu patrimônio para ajudar aquela gente. E se for o caso, ir embora desta casa para sempre.

– Como pode pensar neste absurdo! A senhora parece não estar bem da cabeça!

– É o que querem imputar em mim, uma loucura, não é isso?

– Eu não disse isso, mamãe.

– O que importa, agora? Você não acha que é muito fácil fazer o que eu peço, o que a Virgem me ditou? No seu caso, seria o privilégio da maternidade, terem um filho e se tornarem mais religiosos. O que isto tem de mal, meu Deus?

– Tem que ninguém pode dispor da vida das pessoas assim, de uma hora para outra.

– Mas eu dei um tempo, seis meses. É só ter um pouco de paciência e boa vontade.

– Acha que isso é honesto, mamãe? Dividir a nossa fortuna, o nosso patrimônio em prol de uma causa que nem sabemos muito bem do que se trata. Essa gente dessa ilha, acha que poderá fazer alguma coisa por eles?

– O bispo Martim vai me ajudar.

– O bispo Martim é um canalha. Teve até um caso com a mãe de meu pai.

– Foram coisas do passado e uma das condições, você sabe, era ele contar para a família e se redimir.

– São todos uns hipócritas!Basta abrir o jogo, se confessarem uns aos outros e tudo fica muito bem. O Ricardo andava me traindo, era isso que ficou bem claro na reunião e eu tenho que aturar! Mas ele se alinha com o que penso, ou cai fora.

– E você, o que pretende fazer Letícia?

– Eu vim aqui pedir-lhe que desista desta loucura, mamãe.

– Não posso, minha filha. E saiba, que estou tendo oposição em muitos setores desta casa. Muita gente está contra mim.

– É claro, imagine Tavinho querer levar uma vida regrada, mudar de curso ou coisa parecida. E o próprio Alfredo, acha que ele vai casar algum dia? Ponha na sua cabeça de uma vez por todas, Alfredo é gay, ele jamais casaria com uma mulher, está me entendendo? A senhora não pode obrigá-lo a isso!

– Por que não? Por que não satisfazer a Virgem?

– Porque é desumano, mamãe!

– Então me diga, a reunião que esteve com seu pai não foi desumana? Por que não me convidaram? E Linda, naquela desfaçatez, você acha que ela não está contra mim e em conluio com o seu pai? Sabe o que eles querem que aconteça, que eu seja dada como louca e fiquem com toda a fortuna. Todos vocês!

– Mamãe, a senhora está sendo injusta. Meu pai está preocupado com a senhora. É verdade que a senhora tem proporcionado dúvidas, porque as coisas que diz, que pensa não apropriadas, pense bem.

– São de uma pessoa louca, é isso.

– Não foi isso que quis dizer.

– Mas foi o que pensou, porque é mais fácil acreditar que eu seja louca, do que ter fé, acreditar que eu vi a Virgem se materializar aqui, na minha casa e apontar a bússola para aquela região, aquele povo. Ela só quer o bem de todos e a verdade.Bastam que aceitem se confessarem e mudar de vida, só isso.

– Só uma coisa eu não entendo nesta história toda.

– A que você se refere.

–À presença de Linda, que a senhora tanto insistiu para que ela participasse da reunião. Agora diz que ela está em conluio com o meu pai. Por que a presença dessa mulher era tão importante na nossa reunião? Já bastava o chato do bispo Martim, ainda tinha Linda. Por que mamãe?

– Seu pai não explicou para vocês? Não, ele não teve coragem, é claro. Decidiu ir por outro caminho mais fácil, insinuando que eu havia enlouquecido.

– Então me fale, me diga a verdade. Eu quero estar ao seu lado, eu quero ouvi-la.

– Temos um jardineiro nesta casa, que foi trazido por Linda para trabalhar aqui. Até poucos dias atrás, morava com ela, naquela casa dos fundos, mas agora se mudou para uma antiga casa onde morava antigamente, antes de ser preso.

– O que? Tem um presidiário que trabalha aqui?

– Na verdade, ele está em licença condicional, pois já tem direito, ficou preso durante cinco anos e teve bom comportamento.

– Mas isto é uma verdadeira catástrofe, um ex-presidiário trabalhando nesta casa.

– Pois bem, ele é sobrinho de Linda. Informe-se mais sobre ela, converse com ele, convide seus irmãos a fazê-lo, de repente descobrem mais coisas do que eu. Mas olhe, ele apesar de tudo, é um bom rapaz, eu até o contratei para ajudar-me.

– Ajudá-la? Um bandido!

– Fernando não é um bandido, Letícia. Ele é um homem que teve alguns percalços, andou com maus elementos, mas quer se redimir. Ela vai ajudar-me a descobrir tudo o que estão tramando sobre mim. Se você não acredita, procure informar-se. Fale com Tavinho, quem sabe, ele tem outras ideias.

Letícia fica calada. Talvez sua mãe esteja inventando toda aquela história e sua insanidade esteja aumentando a cada dia. Mas ainda havia alguma coisa dúbia nisso tudo, a presença de Linda na reunião, a qual ela não informara o motivo.

– E quanto à presença de Linda, você ainda não esclareceu.

– Pois bem, já que seu pai não lhe disse, nem aos seus irmãos, eu vou contar-lhe agora. Isso fazia parte de uma das condições e Linda, que fora minha empregada e amiga por tanto tempo, tinha que desabafar, redimir-se também do erro e contar a todos a verdade. Também seu pai seria desmascarado e a verdade seria completa, para ambos os lados.

– Não estou entendendo nada.

– Linda teve um filho com seu pai.

– O que? Só faltava essa! Meu pai, com aquela mulher? Não pode ser mamãe, não pode ser!

– E eu fico me perguntando, se os dois não querem ficar juntos e por isso a solução seria me porem a escanteio. Você não pensa assim, Letícia?

– Eu não sei o que pensar, mamãe, agora não sei de nada. Tenho vontade de encontrar aquela mulher e quebrar as fuças dela!

– Não, na verdade precisamos examinar todos os lados. Saber se ela está unida a Sandoval, ou se está planejando sozinha ou se ele tem os seus próprios planos. Mas desconfio de que um está contra o outro, embora fingindo que possuem o mesmo objetivo.

– E você descobriu alguma coisa?

– Descobri. No dia da reunião de vocês, eu pedi a Linda que gravasse toda a discussão atrás da cortina, mas ela disse que não havia conseguido, que tinha se enganado ou coisa parecida. Mas eu descobri que havia gravado tudo.

– E como, a senhora pegou o celular dela?

– Não, ela enviou a gravação por mensagem para uma amiga, uma mulher que a acompanha na igreja, sempre que vai ao rosário. Eu a procurei e pedi o celular, o qual entregaria mais tarde. É uma senhora simples, que não entende muito da coisa. Foi fácil conseguir.

– Mas como soube que estava com ela?

– No dia da reunião, fui à igeja, lembra? Sentei-me ao lado dessa senhora, chama-se Lúcia e percebi que ela recebia uma mensagem intermitente. Ela não entendia nada, eu então tentei ajudá-la. Era a gravação na íntegra de Linda.

– E ela, o que fez?

– Nada, deu-me o celular para que eu passasse a gravação para o meu. Entreguei-a depois, dizendo que não era nada demais. Apenas uma mensagem de Linda.

– E Linda, não descobriu nada?

– Acredito que não. Esta senhora é muito atrapalhada nestas tecnologias, com certeza nem tocou no assunto. Entregou a gravação para Linda e ficou nisso mesmo.

– Então, o que faremos mamãe, eu estou apavorada com tudo isso.

– Eu dei a sugestão de vocês procurarem este rapaz, ele sabe muito mais do que parece. Não vá sozinha, convença o Tavinho, que é muito mais atilado para estas coisas.

– E sua situação com papai, como está?

– Distante, cada vez pior. Nós quase não nos vemos, ele passa o dia fora. Acho que além da empresa, ele vai para as rodadas de jogos. Mas tudo bem, as minhas condições foram dadas e não voltarei atrás. Agora me diga, Letícia, você acredita em sua mãe? Acha ainda que sou uma maluca, uma alucinada?

– Não sei de nada, mamãe, não quero me precipitar, mas tenha certeza de que o que me disse, me balançou bastante. Vou falar com Tavinho sim, quem sabe, a gente descobre mais coisas sobre esta mulher e a põe no olho da rua!

Neste momento, Linda bate à porta, perguntando se precisam de mais chá. Letícia a olha com frieza. Ela continua, sorridente.

– Fico tão feliz que minha amiga não esteja sozinha. Ela anda tão solitária, ultimamente.

– Linda, limite-se a servir o chá. Deixe que eu cuide da solidão de mamãe.

– Eu pensei que poderia ajudá-la, Dona Santa tem tido umas crises bem difíceis.

– De que está falando, Linda? – pergunta Santa, intrigada.

–Não me leve a mal, Dona Santa, mas é que nós já conversamos sobre isso, lembra?

– Não, não lembro de nada.

– É verdade, aí é que está o problema.

– Linda, não tenho paciência para papo fora de hora. Quero conversar com minha mãe, por favor, se você nos der licença.

Linda retira-se, piscando o olha para Santa, com certa cumplicidade. Santa suspira, desolada.

sexta-feira, novembro 18, 2016

Bandeira do povo brasileiro

Quantas vezes, tremulaste abrandando as nuvens cinzas e deixando o céu mais azul.

Quantos olhos infantis te miravam, ensaiando teu hino e experimentando a emoção de teu emblema.

Quantas vezes, mãos juvenis te ergueram, levantaram no mastro, garbosa e alvissareira de novos rumos e esperanças da Nação.

Quantas vezes, foste chamada por vozes ufanistas, num patriotismo para poucos, num mundo de excessão. Foste assim usada, para ser um símbolo apenas de pensamentos restritos, não ligados ao povo, em períodos em que tua presença não era herança de todos.

Quantas vezes, cobriste ombros e corações de quem lutava por direito à liberdade e mostraste teu desempenho nas faces confiantes dos que lutavam por teu país.

Quantas vezes, lembram de ti nos hinos, nas glórias e nos feitos e esquecem quem teceu tuas entranhas e o vigor com que te vestes.

Hoje te vejo desperta no céu, bandeira, pavilhão de amor e glória e espero que representes o povo a quem te serve como discípulo fiel e não te trai.

Salve lindo pendão da esperança, como diz a letra de Olavo Bilac. E que esta esperança sejamos nós, somente nós, o povo brasileiro.

quarta-feira, novembro 16, 2016

Um amontoado de ossos

Percebia um corpo franzino que se esgueirava rápido, por entre as árvores. A noite já se aproximava e o parque, aos poucos, ficava deserto. De repente, ela sentou num dos bancos, de súbito, como houvesse se assustado de alguma coisa. Eu podia vê-la de longe, e por um momento, pensei fotografá-la com o celular. Mas foi só por um momento. Meu coração disparou, assustado, pois a mulher despencou literalmente no chão. Corri até o banco onde estava e abaixei-me, tentando descobrir o que estava acontecendo.

Ela estava no chão, a cabeça estirada próxima aos pés do banco. Ao seu lado, um cachorro preto olhava compassivo, como se soubesse o que acontecera. Ou como se fosse de rotina.

Tentei acordá-la, olhei para os lados, para ver algum passante por perto que me acudisse. Um que outro olhava de longe e se afastava ainda mais.

Peguei a sua cabeça entre as mãos. Era tão pequena aquela cabeça, que parecia um crânio vazio, sem cabelos, sem pele, sem couro cabeludo, apenas ossos. Tão leve, que nem parecia de um adulto. Pior, de um ser humano.

Ela abriu os olhos que se revelavam ainda maiores, efeito do rosto mirrado. Parecia ensimesmada, como quem diz, o que este cara quer aqui? O que faz ao meu lado? Moveu a cabeça, tentou levantar-se. Então, perguntei se havia se machucado. Não respondeu.

Conseguiu sentar-se ali no chão mesmo. Esticou as pernas finas, envolta em andrajos sujos e os braços seguravam-nas como se tentasse se equilibrar.

Percebia que as mãos tremiam. As mãos eram grandes e disformes, com sulcos esbranquiçados na ponta dos dedos. A pele preta nem tinha uma cor definida, como se o sol, o tempo, o vento ou qualquer fenômeno da natureza a tivesse desbotado.

Tentei ajudá-la a levantar. Ela me empurrou. Tinha medo de mim. Queria afastar-se de qualquer modo. Por certo, dispensava a minha proximidade. Eu era um estranho, que se intrometia na sua vida.

A roupa que cobria seu corpo estava em pedaços. Nem sei se devia chamar de roupa, tal era o estado de sujeira e farrapos em que se encontrava. Havia uma sacola velha sobre o banco, com mais trapos guardados, eu supunha. Ela segurou-a, empurrou o cão com o pé descalço e para minha surpresa, não foi embora. Voltou a sentar no banco e ficou ali, calada, enfiada em suas mais profundas lembranças ou na falta delas. Mascava um ar de nostalgia que me doía o coração.

Nem sei porque eu continuava ali. O fato é que precisava fazer alguma coisa.

Não sentei ao seu lado, pois sei que se o fizesse, ela se afastaria, por mais dificuldade que tivesse. Fiquei em pé, meio distante, eu e o cachorro que agora se preocupava com o seu rabo, procurando-o em círculo. Mesmo assim, perguntei:

— Você está bem agora?

Ela não me olhou. Ao contrário, levantou a cabeça para o horizonte. As árvores ficavam atrás e sol ante seus olhos. O sol que enfraquecia, cujos raios já nem se viam, só uma luminosidade difusa que também ia morrendo. Daqui a pouco, a noite chegava. O que ela faria à noite?

— Você bateu com a cabeça. Não está doendo?

Desta vez, ela se virou em minha direção e pude ver um certo brilho nos olhos. Um brilho que me incentivou a continuar.

— Não está com fome?

Ela disse alguma coisa. A voz era gutural, inaudível. Talvez não falasse com alguém há muito tempo. Mesmo assim, ela proferiu alguma coisa, o que era um avanço. O maior desafio agora, era entender o que queria. Voltei a perguntar se estava com fome.

Ela esboçou um sorriso, onde se via mais gengiva do que dentes. Foi aí que ela apontou para o cachorro.

— O cachorro? Ele está com fome?

— Cachorra.

Agora entendi, ela me corrigia e com bastante consistência. Era a sua companheira, por certo.

— Cida.

—Cida? – Perguntei meio bobo.

Falava da cachorra ou dela? Quem era Cida? Cida, Aparecida, devia ser ela.

Mas ela repetiu a frase, afirmando que Cida estava com fome.

Como insistir na pergunta e revelar, que no fundo, eu a confundia com o animal? Não somente pelo nome, mas pela condição em que se encontrava. Tudo acontecia em nível interno, quase inconsciente, em que meus pensamentos se misturavam com centenas de experiências que não conseguia interpretar.

Quem seria aquela mulher mirrada, de vida espremida, desatenta de tudo. Havia mais vida na cadela, certamente.

Uma mulher infeliz. Uma mulher que acabara de cair, de desmaiar e que se preocupava com a fiel companheira, que estava faminta.

Então, indaguei, tentando ser entendido:

— E você, não está com fome?

Ela abaixou a cabeça, como quem diz, que interessa agora. Alguém tem que se salvar. Que se salve Cida.

Confirmei que traria algum alimento para Cida e também para ela.

Ela me olhou mais uma vez, pensei até que seria a última, porque seus olhos estavam tão vazios e perdidos, que pensei que fosse morrer naquele momento.

Afastei-me rápido, atravessei o parque, procurei um quiosque no outro lado da rua e em seguida, estava de volta. Cida parecia desconfiar de meu propósito, pois me seguia o tempo todo. A cada contorno que fazia, ela me acompanhava solidária. Quando me dava conta de voltar-me, tinha a impressão que me olhava agradecida.

Comprei um sanduíche e já na saída do bar, ela o engoliu quase instantaneamente. A baba ainda escorria da boca, quando lambia o prato de isopor.

Atravessei a pequena viela que conduzia até o interior do parque. Vi ao longe, já quase na escuridão, um amontoado de ossos, encostado no banco. A mulher estava com a cabeça baixa, coberta por um pano, que lhe ocultava a boca.

Aproximei-me com o lanche. Tentei entregar-lhe, mas ela nem me reconheceu. Cheirava alguma coisa numa lata e se enrolava ainda mais no trapo sujo.

Cida afastou-se de mim e se aproximou rápida, da dona. Sentou-se ao seu lado, como se compartilhasse o seu drama. Permaneceu ali, esperando. Talvez esperasse horas por alguma reação. Ou não esperasse nada. Nem um afago na cabeça, um sorriso, um coçar na barriga. Talvez apenas esperasse um empurrão em suas coxas magras. Era de hábito. Um hábito bom, do qual ela já se acostumara. Era o carinho que lhe restara.

De todo modo, estava alimentada. De vez enquanto, seu olhar pairava no movimento tépido das folhas das árvores, investigando algum movimento diferente. Mas eram apenas as folhas, agora amarelecidas pelas lâmpadas que se moviam na noite cada vez mais escura. Somente voltou-se, encantada, quando joguei o lanche que trouxera ao seu encontro. Agora, não o devorou de uma vez, abanou levemente o rabo, satisfeita e o deixou por um momento ali, talvez pensando que não era para ela. Cheirou, cheirou e o engoliu em seguida. Mais devagar, a bem da verdade, mas o engoliu por inteiro.

Afastei-me. Segurei firme a mochila temeroso em voltar a atravessar o parque, pela penumbra que se antecipava. Apalpei o celular, pelo lado de fora, para ter a certeza de que ela estava ali.

Depois, afastei-me devagar e dei uma última olhada para a cena.

Cida voltava a observar as árvores.
13/03/2023 23:37:53

terça-feira, novembro 15, 2016

Um quarto na tarde

Este é um conto elaborado a partir do desafio de uma oficina literária. O desafio seria utilizar um personagem semelhante à Séverine do filme “Belle de jour”, A bela da tarde.


Talvez estivesse assim abandonada, assim alijada de seus momentos de liberdade absoluta, onde não houvesse ninguém para atrapalhar seus planos. Quem sabe numa ilha deserta, mar aberto, longe de qualquer civilização. Que nada, estava estirada na cama, envolta em cobertas amassadas, mascando o travor da vida que se esvaía, no colchão inchado. A revolta tomava conta de seu ser. O ódio talvez endereçado a si própria deixava distantes os que a atormentavam. Estava assim, desorientada, embrulhada em seus pensamentos, como aquelas cobertas nas quais se descobriam os pés. O frio vinha menos das frestas das venezianas, sem vidraças do que o que a consumia por dentro.

Ela levantou com esforço, espiou para fora: um olhar conturbado, aranhas tecendo redes turvas nas frestas.

Ah, se pudesse desfrutar o ar poluído das ruas, o caminhar reticente dos indecisos, o assombramento noturno dos poetas. Não, devia mastigar a dor, assim, devagarinho, entre um sobressalto aqui e um aconchego ali. Aconchego que se despede em cada esquina, em cada olhar disperso, em cada aceno sem adeus. Um aconchego provisório, desigual, desmanchado na superficialidade do encontro. Ou desencontro, não sabia.

Voltou-se, passeando o olhar pelo quarto, assinando com sangue na parede branca. Seus dedos outrora ágeis, hoje pareciam enrijecidos e entorpecidos pelo golpe que dera a si mesma. Não tinha coragem de se olhar no espelho. Talvez, se o fizesse, se espantasse com o desgrenhado dos cabelos, com a maquiagem borrada e traços arrastados sobre os olhos, mendigando lágrimas de palhaço.

Não pudera. Não tinha este destemor próprio dos heróis, que se elevam ante as tragédias e ascendem a patamares mais altos, mesmo que vencidos.

Não, ela não tinha mais recursos naquele campo de guerra.

Então, sentou-se na cama e juntou as pernas, abaixando a cabeça sobre os joelhos, enquanto os cabelos lambiam as pernas brancas, sem meias.

Talvez chorasse agora. Talvez seu corpo reagisse de alguma maneira: mesmo torta e indigna.

Na posição onde se encontrava, se abrisse os olhos, veria o corpo do homem morto, estendido no chão daquele quarto vulgar de motel.

Talvez retirasse a camisa ensanguentada pelo disparo e juntasse as forças que sobraram para retirá-lo , levá-lo até o carro e desaparecer com as provas definitivas. Talvez caminhasse, finalmente, pela calçada com passos reticentes e balanço frugal. Quem sabe encerraria a tarde, antes que a noite a devorasse.

Mas não fez nada, ou melhor, puxou do criado-mudo um copo e encheu-o de uísque barato até a borda. Tomou o que lhe bastava para aceitar o que o pesadelo lhe oferecia. Ou a vida, ou a morte.

Puxou a blusa, sungando o sutiã que lhe apertava o seio. Tudo parecia incomodá-la, até o piercing do umbigo que já não coçava desde a semana passada, quando a cicatrização aderira ao corpo estranho. De repente, seu passado não a incomodava tanto quanto os penduricalhos de sua vida perdida. Nem os brincos banhados à prata, nem as pulseiras que se engalfinhavam enquanto movimentava os braços pra lá e pra cá, nos momentos de euforia, nem os colares que lhe emolduravam o colo.

Um colo lindo, lhe diziam os amantes que a procuravam, uma promessa de afeto quase maternal, cuja fantasia não era deles, mas sua.

Parou de chorar e de beber. Devia se desfazer das bijuterias, dos adereços com os quais vestia o personagem e voltar à realidade.

Algumas luzes banhavam as paredes de vez em quando e os ruídos da rua abrandavam a sonolência da tarde. As horas corriam e ela estava presa à cama, como se algemas potentes a prendessem como objeto de adorno, sem outra função, senão compor a cena.

Doíam-lhe os pés, afundados nos sapatos vermelhos de salto agulha. Deixava-se ficar, patética, observando o nada. Sua boca estremecia e seu coração combatia no peito, enfrentando a dor forte e destrutiva.

O celular tocou. E tocou várias vezes, até ela alongar o braço em sua direção, naquele movimento compassado de sonho, uma ansiedade no gesto que não se completava.

Na última vez, ouviu a voz masculina do outro lado. Esperava ser oriunda de um lugar bem distante, pensou.

Foi aí que respondeu. Foi aí que quase reagiu.

A voz insistia:

– Laura, quero saber o que houve com você. Fale o que está havendo, mulher. Por que não aparece? Quer me deixar louco?

Olhou para o rosto do homem aos pés da cama. Teve a impressão que um olho vagamente se mexeu e teve um calafrio. Encolheu mais as pernas, puxando-as para a cama, riscando com o salto o parquê vagabundo.

Por fim, respondeu com voz fraca:

– Estou aqui, não se preocupe.

A voz masculina gritou, vigorosa:

– Aqui, onde? Que mistério é esse, mulher?

— Acho que não tem mais jeito, Otávio. Agora não dá mais.

— Não dá, como assim? Não quer mais ficar comigo?

— Na verdade, tenho uma vida que você não conhece. Um mundo só meu, onde posso dispor como quiser da minha liberdade. Mas agora, até mesmo esta vida chegou ao fim. Acabou.

— De que você está falando, Laura? Quer se explicar, pelo amor de Deus!

— Não tenho saída. Estou desesperada.

— Fique aí, que eu vou lhe buscar. Só me diga onde é. Onde fica este seu mundo absurdo.

— Acho que agora, só me restará a realidade da prisão. A minha vida ao seu lado e a outra, aqui fora, eram muito parecidas. Talvez uma completasse a outra. Mas agora, o baralho desandou. Não tem mais jogo duplo.

— Você não diz coisa com coisa. Que está havendo? Me dê o endereço onde você está, me dê este maldito endereço! – o marido parecia chegar ao desespero – Espere, não desligue, me diga onde você está Laura, escute, eu lhe peço, me diga...

Após, breve silêncio, ela prosseguiu mais tranquila:

— Sabe, Otávio, quando eu era adolescente, assisti a um filme cheio de lirismo, sensualidade e beleza: “Belle de jour”, “A bela da tarde”. Você já ouviu falar neste filme, Otávio?

— Do que você está falando, Laura?

— O diretor é Buñuel. Você já ouviu falar de Buñuel, Otávio? Não, claro que não. Você tem outras coisas mais importantes com que se preocupar, não? Pois bem, eu queria ser a bela da tarde, eu sonhei em ser a bela da tarde, tal como Séverine de Catherine Deneuve e talvez, como ela, eu também tenha perdido a chance de me conhecer.

Laura desliga o celular e se afasta da cama. Passa a mão pelos cabelos com delicadeza, arranjando-os sobre os ombros, prenhe de uma estranha paz.

As vozes da rua parecem cessar. Certamente a noite avançava rápida como pensara, mas não a devorara, como imaginara também. Talvez, a saída estivesse ainda por acontecer.

Aproximou-se da porta, abriu uma fresta e espiou pelo corredor. Ao longe, o vulto de um homem se desenhava, dobrando em direção a outros pavimentos. Por um momento, ele parou e olhou para trás, como se pressentisse a sua presença. Então, ela escondeu-se, empurrando rapidamente a porta, sem batê-la.

Esperou alguns minutos e a abriu novamente. Quando o fez, seu coração deu saltos atropelados, deixando-a desorientada, como se entrasse num labirinto com proporções indefinidas. O homem estava ali, na porta. Um olhar maduro de quem aguarda o momento adequado. Moreno, bigode escuro e costeletas antiquadas. Num impulso, empurrou a porta, mas ele a impediu com o joelho.

— Que está havendo, moça, pode me dizer?

— E o que você acha que pode acontecer com uma mulher nesta espelunca?

— Não sei. Podia ser coisa séria. Está esperando alguém?

— Estava, mas tô dando o fora. O cara não veio, sabe como é, a macheza não está lá estas coisas, hoje em dia.

— Mas não é o meu caso. Se quiser, a gente pode fazer o programa que você perdeu.

— Pode ser. Mas eu cobro bem.

— Então me deixa entrar.

— Não, não pode ser aqui. – Respondeu, ansiosa, mais súplica, do que convite. – Me leve para o seu quarto.

— Eu sou o porteiro desta espelunca que você falou, sabia?

— Mas deve ter um lugar. Vamos, não quero ficar aqui, o cara pode chegar e a coisa vai degringolar.

— Então está bem. Vou ver uma chave.

— Espere, me faça um favor — retira um cartão da bolsa e o entrega – ligue para este número, é do cara, diga pra ele vir me buscar mais tarde.

— Você enlouqueceu, quer queimar o meu filme? Ah, garota, deixa de história.

— É uma brincadeira, um jogo, não seja bobo — sorriu maliciosa — daqui a meia hora, ele aparece, vem me buscar. Olha, é meu amante, não é um desconhecido. Eu não posso ficar sozinha aqui, depois... do nosso encontro. Me faça este favor.

— E por que você não liga?

— Porque não tem graça. O interessante é que alguém ligue para ele, pra ficar com um pouquinho de ciúmes, entende?

— Esta história está muito esquisita. Mas espera aí, eu ligo lá debaixo.

— Mas e a chave do outro quarto?

O homem retirou um molhe de chaves do bolso e entregou a de número vinte e dois, avisando-a que era no andar inferior. Em seguida, afastou-se.

Laura entrou no quarto, pegou suas coisas e afastou-se rapidamente, descendo as escadas conforme o indicado pelo porteiro. Caminhou pelos corredores vazios, com a impressão de que a seguiam. Um gato deitava sua sombra no corredor, ultrapassando a janela basculante e saltando sobre o telhado que desembocava noutro prédio. Ela estremeceu, mas sorriu aliviada. Foi por pouco tempo. De repente, a angústia retornou, sem que pudesse refletir. Não bastava fechar a porta do quarto, para que o homicídio não mais existisse. Não bastava confessar ao marido, para que tudo voltasse a ser como era antes.

Quando avistou o número vinte e dois, ela parou na porta, com o coração mais agitado. E se tudo não passasse de uma cilada? Se o porteiro soubesse de tudo e estivesse ali, esperando-a para entregá-la à polícia ou mesmo fazer-lhe chantagem para extorquir-lhe dinheiro.

Por outro lado, vinha-lhe à mente o seu olhar agressivo, despindo-a totalmente, obrigando-a a cometer o sexo que não queria, transformando a sedução que o estimulara em cena grotesca de filme b.

E como reagiria o marido, depois de tudo isso, ao saber de sua vida dupla, de seus casos amorosos, de seu mundo de fantasia?

A morte, o medo, a prisão. A sorte ronronava a sua porta, não deixando-a atravessar a janela. O salto havia sido alto demais.

Por isso, decidiu fugir, desceu as escadas rapidamente, e parou estupefata, ao ouvir a voz do porteiro ao telefone.

— Seu Otávio, hoje aconteceu o que temíamos. Há sangue no lençol. O jogo não pode continuar.

segunda-feira, novembro 14, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 20

Capítulo 20

Quando anoitece, Fernando retorna para a casa onde decidira residir em definitivo. Uma casa que lhe traz muitas recordações, mas está disposto a enfrentá-las e conviver com elas. Afinal, foi a sua vida durante tanto tempo. Quem sabe, agora, ele a reconstrói e esquece para sempre o trabalho de jardineiro. Sabe que precisa andar na linha, para não voltar para a prisão, pois não suportaria voltar para aquele hospício.

Entra em casa e ao ligar o interruptor assusta-se com a presença de Linda, esperando-o na sala.

— O que está fazendo aqui? Como a senhora entrou?

Linda sorri e aproxima-se para abraçá-lo. A primeira reação de Fernando é afastar-se, mas lembrou-se das palavras de Alfredo, de que deveria ser cínico e não enfrentá-la. Então, dá um leve beijo na testa e afasta-se novamente perguntando como ela havia entrado.

— Desculpe, meu querido, não queria assustá-lo.

— Mas a senhora me assustou. Como vou imaginar que alguém estará aqui, dentro de minha casa? E se lhe dou um tiro?

— Você não faria isso. Sei que não pode usar armas.

— Mas eu tenho uma arma para defender-me. Por favor, minha tia, esqueça esse assunto. Não falamos em armas nesta casa.

— Não se preocupe comigo. Você sabe que estou sempre ao seu lado e farei tudo para protegê-lo.

Um pouco mais tranquilo, Fernando senta-se numa poltrona e observa que a casa está arrumada. Linda também senta-se a sua frente e , como se adivinhasse os seus pensamentos, comenta que organizara o que pudera, mas que a casa precisava de uma faxina mais esmerada.

— Sim, eu vou fazer isso. Mas por que estava no escuro?

— Eu estava descansando os olhos, pensando um pouco no passado. Ainda havia luz quando vim para cá, arrumei tudo e me sentei a esperá-lo. Foi escurecendo e fiquei aqui, quieta.

— Você tinha a chave da casa?

— Sim, é claro que eu tinha. Quando sua irmã ainda morava aqui, ela me dera a chave para vir quando precisasse de mim. Foi bem no período em que você esteve preso e ela, coitada, acabou estava muito deprimida. Depois foi embora, você sabe.

Fernando tenta mudar de assunto. Acrescenta que não tem nada para oferecer-lhe, pois ainda não comprara nada para a casa.

— Outro dia, eu virei aqui e você me fará um café. Hoje, está bem assim.

— A senhora teve a tarde de folga?

— Sim, como você. Parece que teve folga à tarde, também.

— Eu tive que resolver um problema.

— E está tudo bem? Quero dizer, em relação aos seus problemas com a justiça.

— Estou me mantendo de acordo com as normas. Acho que isso basta.

— Sem dúvida. Fico contente que você esteja superando tudo isso. Mas deve ter muito cuidado, você sabe que qualquer deslize, pode voltar para aquele inferno.

Alfredo concorda com um aceno. Linda prossegue, enfática:

— Por isso tem que tomar cuidado com quem anda, com quem conversa. Você não pode se meter em nenhuma furada. Quando o cara vai preso, ele fica marcado para toda a vida.

— Estou cansado desta história.

— Desculpe, só queria ajudá-lo.

— Eu sei, tia, mas por favor, não vamos mais falar nisso. – faz uma pausa e pergunta, tentando demonstrar serenidade – Mas me diga, tia, como vão os seus serviços com dona Santa? Parece que estão numa encrenca danada!

— Por que você diz isso?

— É o que todo mundo fala, que ninguém se entende naquela casa, é reunião em cima de reunião e os filhos ficam um para cada lado.

— É isso que você sabe?

— Tem mais alguma coisa?

— Não, na verdade eu sei muito pouco do que acontece naquela casa.

— E dona Santa não lhe conta nada? Não faz confidências?

— Dona Santa é uma mulher muito discreta. Não costuma falar sobre a sua vida.

— Então está tudo tranquilo, apenas fofocas dos empregados.

— Certamente. De minha parte, está tudo muito tranquilo. Dona Santa e eu somos muito amigas.

Fernando levanta-se,dirige-se à janela e observa a rua, por algum tempo, impaciente. Depois, abaixa a persiana e volta-se para Linda, perguntando:
— Mas a senhora não veio aqui apenas para arrumar a minha casa. Deve haver algum motivo.

Linda sorri, afetuosa.

— Você tem razão.

— Ah sim? – interessa-se, voltando a sentar-se. Ela prossegue no mesmo tom.

— Eu queria falar com você, mas não naquela casa. Foi muito bom você ter se mudado, por vários motivos, você sabe.

— Não, não sei. Quero dizer, sei os meus motivos, como por exemplo, ter mais individualidade, a minha vida própria. Morar naquela casinha, nos fundos daquela mansão me deixava sem ar.

— Você está sendo ingrato comigo. Eu fiz tudo para que se mudasse para lá, tivesse onde ficar.

— Sei tia, não me refiro à senhora. Mas sabe, que preciso ficar um pouco sozinho. Todos precisamos, não? Mas quais seriam os outros motivos?

— Você ter mais liberdade e não se envolver com a família. Não quero que fique como eu, uma pessoa da família, mas que na verdade, não passa de uma empregada.

— Mas você acabou de dizer que você e dona Santa são muito amigas. Eu pensei que era feliz naquela casa.

— E sou feliz. Sou muito feliz, porque me acostumei. Porque faz muito tempo que moro ali, e nem saberia mais viver noutro lugar. Mas você é jovem, tem uma vida pela frente. Deve construir a sua própria vida, a sua história.

— É verdade. Então me diga, sobre o que queria falar-me.

— Na verdade, eu vim alertá-lo.

— A senhora já fez isso, pediu que eu não entrasse numa furada.

— Sim, mas vou ser mais explícita agora. Eu acho que você não deve envolver-se com dona Santa.

— Como assim?

— Como lhe disse, eu gosto muito dela, mas também sei que ela não está bem de saúde. Outro dia, ela me pediu para chamá-lo, pois queria conversar com você. Eu tenho medo que ela acabe envolvendo-o em problemas.

— Não sei a que a senhora se refere. Há pouco, disse que tudo estava bem, que não havia nada de anormal na família.

— Meu filho, é que eu procuro não me intrometer nos problemas deles. Eles são eles, nós somos nós.

— A senhora está sendo contraditória.

— Fernando, por favor, tente compreender. Já que quer saber, eu vou lhe explicar o que sei, somente isso, porque não quero que você entre numa fria, como falei. Dona Santa está com problemas mentais, está confusa, se esquecendo de fatos importantes da vida dela e ao mesmo tempo, inventando outras histórias.

— Está ficando louca, então.

— Não sei, não sei. Talvez seja apenas uma fase, um problema provisório, talvez até uma depressão que vai passar um dia.

— E por isso, a senhora não quer que eu fale com ela.

— Não, de modo algum. Eu não disse isso. Eu não quero que você acredite no que ela diz. Aquele dia em que ela quis falar com você, deve ter pedido alguma coisa.

— Não pediu nada, ou seja, pediu.

— Eu não disse? Ela não está bem! O que ela queria?

— Queria que eu fosse na igreja e falasse com o bispo Martim.

— Com o bispo Martim? Não estou entendendo.

— Pois é, nada demais. Ela queria apenas uns documentos antigos, parece que a igreja tem documentos da família, certidões, coisas deste tipo.

— Que estranho! Por que não pediu a mim?

— Talvez não quisesse incomodá-la.

— Mas que documentos são esses?

— Como lhe disse, não sei ao certo. Acho que são certidões, registros da história da família.

— E você os pegou?

— Ele ficou de me entregar na semana que vem.

— Ah, então o assunto não tinha nada a ver com o sr. Sandoval?

— Não, ela nem falou nele. Por que teria?

— Não sei, dona Santa anda muito estranha. Mas olhe, que isto fique entre nós. Eu não quero de maneira alguma que isso se espalhe. Coitada, não merece ser criticada por aí, só porque anda meio confusa. De sua parte, acho melhor se afastar um pouco, e quando ela pedir alguma coisa, passe para mim a incumbência. Eu farei o serviço.
— Está bem, minha tia. Pode ficar traquila. Mas de qualquer modo, não há por que se preocupar. Eu quero distância daquela família. Quero viver a minha vida e logo que puder, que passar esse periodo difícil, eu vou cair fora.

Ela sorri, satisfeita. Em seguida, pede para Fernando chamar um táxi. Quando a vê afastar-se, Fernando liga para Santa.

sábado, novembro 12, 2016

O IDIOTA DE DOSTOIÉVSKI

Em 11 de novembro de 1821 nasceu o escritor russo Fyodor Dostoievsky, uma das mais importantes referências literárias na história.
Um dos seus mais relevantes romances, que revelam muito de sua visão da sociedade da época e de sua incapacidade de compreensão do individualismo que chegava com a modernidade, é o Idiota, um romance que traduz a realidade do escritor.

O protagonista, um príncipe chamado Liév Nickoláeivitch Míchkin sofria de epilepsia, uma doença considerada na época em que o livro foi publicado, 1869, como uma desordem psiquiátrica.

Ele foi internado num sanatório na Suiça por vários anos para tratar da doença e retornaria a Petersburgo, para receber uma herança deixada por um parente de seu seu pai. Ali ele pretendia retomar a sua vida.

A trama se desenvolve a partir da sua inadaptação à sociedade corrupta, incompatível com a sua integridade, lealdade  e senso de justiça.
 

Trata-se de uma narrativa densa, que envolve uma gama de personagens e situações que se desencadeiam nos vários entrechos que se cruzam, enfocando a personalidade austera, virtuosa e íntegra de Míchkin, que se opunha às demandas sociais manifestadas na esperteza, individualidade e injustiça.
 

Por outro lado, a obra apresenta uma narrativa tensa, por tratar-se de um romance de cunho psicológico, cujo pano de fundo é a doença e tudo que a cerca, transmitindo uma dramaticidade que influi nos personagens, tanto no protagonista, considerado um idiota, em virtude de suas convulsões e transitórios “apagamentos”, bem como em relação aos demais que demonstram o preconceito relacionado à enfermidade.

Este preconceito se dá através de atitudes grosseiras, levando Michkin ao isolamento.

Dentro deste universo, onde as atitudes ficam reféns dos preconceitos e descaminhos próprios de personalidades deformadas, a construção do ritmo da trama acontece sob permanente tensão.

Neste cenário, o autor delineia a perspectiva social, que segundo sua ótica literária e sua ideologia, a questão básica é a construção de um personagem perfeito.

Na construção do protagonista, observa-se características fundamentais de Jesus Cristo e atitudes e sentimentos muito próximos a Dom Quixote.

Na verdade, há elementos quixotescos, embora não propriamente cômicos, mas certamente o aspecto utópico, muito explorado no romance de Cervantes.

Pode-se afirmar que idiotice, neste caso refere-se à utopia, que é a ausência de lugar, ou seja, um lugar que não existe, que é apenas um sonho, uma fantasia. O ideal. O protagonista não é de lugar nenhum e a sociedade não consegue compreendê-lo.
   

Já a referência a Jesus Cristo revela-se no seu caráter social, onde o outro tem um peso igual ao seu na medida da justiça, do amor, da verdade e da honestidade. Ele ama o seu semelhante, tal como Cristo, e pretende distribuir o seu modo de sentir e ver a vida, na sociedade em que vive.

Entretanto, este despreendimento causa um estranhamento, um desconforto para a comunidade que não absorveu os seus conceitos, ao contrário, manifesta-se de forma oposta à que ele pensa.

É criteriosa no seu convívio, porque não lhe interessa a coletividade, nem o bem comum, mas sim a individualidade, o direito de cada um, não os seus deveres. Muito menos, os conceitos éticos, virtuosos ou morais.
 

A única condição de sobrevivência era o bom senso de preservar a sua vida e de se reunir em sociedade.

Míschkin é um homem sensato, além de seu caráter virtuoso.

Ele representa não somente um ideal humano, mas um ideal russo, que se contrapõe à cultura europeia. Para ele, a Europa estava se afundando num materialismo enquanto que a Rússia ainda propagava o espírito como fonte para uma vida melhor.

É um problema importante, inclusive sob o ponto de vista da efetividade do direito.

Quanto mais bom senso, as pessoas tiverem, menos lei. Não são necessárias leis para estruturarem regras para a sociedade, quando esta caminha no rumo certo, quando esta obedece a regras definidas e solidárias, cujo bom senso é utilizado.

Dostoévisk propôs, no fundo, esta questao da Rússia tradicional. Educar para deveres e não apenas exigir os direitos, como o grupo de Petersburgo agia. 

Neste enfoque, há uma noção clara de coletividade, tal como Míchkin se expressava. 

Nesta questão de direito, percebe-se que pelo fato de Míschkin ser um príncipe, o cruzamento das relações ligadas ao poder se estabelecem.

Durante toda a trama há questões juridicas, como a reivindicação de sua fortuna. Isso é relevante, porque ele nao enfrenta a questão simplesmente do ponto de vista matemático, ele se pergunta sobre a responsabilidade que tem sobre o outro, ou seja, uma questão paradigmática.

Trata-se de uma atitude surpreendente até para os dias atuais, porque o indivíduo que se envolve em pendengas jurídicas, preocupa-se com o seu direito, não com o seu dever, ou o direito do outro.

Ele, ao contrário, é alguém que se ocupa das outras pessoas, que se envolve emotivamente e possui uma postura ética que a modernidade nao entende.

No final do livro, retorna para a Suíça, o isolamento originário. Entretanto, o personagem em confronto com a sociedade corrompida pelos valores, não encontra um lugar neste meio.
 

Por fim, através dos confrontos de Míchkin e seus relacionamentos, percebe-se que o individualismo perpassa o texto. Apesar da construção excessivamente idealista do personagem, não ocorre uma interatividade que confirme o caráter bondoso do personagem através de mudanças nos demais.

Ele não toma atitudes que os ajude a serem pessoas melhores e que os qualifique a vivenciar uma mudança de paradigma naquela sociedade obtusa e obsoleta com a qual não se identificava. Ao contrário, ele tem uma impossibilidade prática para agir, pois não angaria apoio no grupo e embora, propondo soluções, ainda teme ser mal compreendido em seus ideiais e acaba não realizando nada.

Para comprovar a regra, ele tem uma ação efetiva com uma personagem, a qual a ajuda, recompondo a sua imagem social.

Por outro lado, sua ação se estabelece a partir da ajuda das crianças, talvez aí esteja a grande lição do autor, pois estas ainda não estão imbuídas de individualismo, não perderam a esponteneidade, ao ponto de compreender suas aspirações.
 

Por fim, pode-se afirmar que o romance expressa uma dramaticidade intensa, mostrando um homem inadaptado no grupo em que vive, porque está fora dos padrões estabelecidos.

O autor pretende além de traçar um perfil psicológico, mostrar a sociedade corrupta da época, a modernidade que chegava na Europa, através da industrialização, tornando as pessoas cada vez mais individualistas, integradas a uma cultura materialista que ele abominava.

Por outro lado, queria conservar e enaltecer a força espiritual da Rússia. Segundo ele, o sentimento patriarcal e ortodoxo era o caminho para a realização pessoal de seu País.
 

O idiota, de Dostoiévski é um excelente romance que vale à pena ler ou reler pelo seu conteúdo social e psicológico, através da construção humanística de seus personagens.

No Brasil, temos a tradução diretamente da língua russa, por Paulo Bezerra, do russo, 3.ª ed., Editora 34, 2010. 

A fotografia da vida de Santa - CAP. 19

Capítulo 19

No carro, faz-se um silêncio pesado. Parece que nenhum dos dois sabe o que dizer. Fernando porém ensaia alguns temas como o próprio trabalho, o tempo em que ficou desempregado e a proposta da tia para trabalhar na casa de Santa. Alfredo parece entediado. Não lhe interessa aquele assunto, muito menos falar sobre a vida profissional de Fernando.

Fernando conclui, satisfeito:

— Parece que somos amigos há muito tempo. Engraçado, quando há empatia, o assunto flui, não é mesmo?

Na verdade, não era o que estava acontecendo entre os dois, mas Alfredo concorda. Por fim, pergunta:

— Não acha que devemos parar num bar? Como lhe disse, seria bom conversarmos com mais calma.

Fernando sorri, confiante. Em pouco tempo, estão num bar, tomando uma cerveja.

— Então, me diga, o que é que você queria me dizer?

— Não sei, Fernando. É que sou um homem muito solitário.

— Mas nós não somos amigos. Sou apenas o jardineiro de sua mãe.

— Há pouco tempo, você disse que havia empatia entre nós.

— É verdade, mas… deixa pra lá. Não precisamos de um motivo para tomar uma cerveja, não é mesmo?

— Tem um motivo.

— Como assim?

— Você sabe que venho observando-o há algum tempo, deve ter percebido, não?

— Olha aqui, Alfredo, só quero lhe dizer uma coisa: eu não sou gay.

— Meu Deus, o preconceito é uma coisa terrível.

— Não, eu não tenho preconceito, se tivesse, não estaria neste bar, desculpe a franqueza, conversando com você.

— Você acha que dou pinta?

— Não, você parece mais macho do que muito cara que conheço, mas todo mundo sabe…

— Não se trata disso, Fernando. Não tem nada a ver com orientação sexual. Na verdade, eu nunca pensei em ter um caso com você, se é isto que o está afligindo.

— Ah, sim.

— Como disse, eu venho observando você, além disso, você sabe, sou advogado. Sei que não é uma coisa muito honesta, mas no meu meio, sabe-se de tudo.

— Que eu fui presidiário?

— É verdade. Eu sei tudo sobre a sua vida, sei também que você matou um homem.

— E o que isso tem a ver com o nosso papo?

— Quero que você me ajude. Acho que você é a única pessoa com quem posso contar.

— E o que você quer de mim?

Alfredo entorna o copo, sentindo a bebida gelada escorrer-lhe pela garganta. O suor empapa-lhe o colarinho da camisa. Por um momento, tem a sensação de que está conversando com a pessoa errada, na hora errada, mas agora não há como recuar. Solta o copo e abre um pouco a camisa, enquanto olha fixamente para Fernando.

— Sei que as coisas estão difíceis para você. Olhe, eu não tenho nenhuma intenção de prejudicá-lo, só falei isso porque você precisava saber com quem está lidando. Não podia simplesmente fingir que somente o conhecia como o jardineiro de minha mãe.

— Muito bem, até aí, eu concordo. Mas não entendi qual é a sua intenção.

— Bem, na verdade, eu preciso de um favor.

— Um favor? De repente, todo mundo precisa de um favor meu.

— Por que você diz isso?

— Nada. Esquece.

Alfredo faz uma pausa, pensativo. Em seguida, pergunta se Fernando não quer outra bebida.

— Você não acha que está bebendo muito para quem está dirigindo?

— É verdade, mas você não quer repetir a dose?

— Não. Gosto de beber com amigos, desculpe. Acho que esta já é de bom tamanho.

— Acho que você tem razão. É a segunda vez que afirma que não somos amigos.

Fernando fica calado, olhando para o copo. Alfredo prossegue, um tanto ansioso.

— Claro, claro, não faz diferença.

— Meu amigo, não enrola. Me diz como posso ajudá-lo.

— Preciso explicar-lhe com calma. O assunto é delicado.

Fernando decide pedir outra cerveja, considerando que o assunto será longo. Faz o pedido e o garçom se aproxima, trazendo a bebida em seguida. Alfredo então, põe as cartas na mesa.

— Bem, Fernando, a minha família está passando por um momento muito complicado. Vou resumir a parte que interessa e depois, vejamos como você pode me ajudar.

— Você se refere a sua mãe?

— Um pouco sobre ela sim, mas o problema maior é o meu pai.

— Seu Sandoval?

— Ele está com uns planos malucos, está sendo desonesto com minha mãe e eu preciso ajudá-la de qualquer maneira. Não vou deixar que a considerem louca.

Fernando lembra-se da conversa que tivera com Santa e do segredo que ela lhe confiara. Teria a ver com o que Alfredo falava neste momento?

— E o que você quer que eu faça?

— Quero que dê um susto no meu pai. Não quero matá-lo, não faria isso, mas quero que ele desapareça por uns tempos.

— Cara, eu não sou bandido. O que está havendo hem, todo mundo ta querendo me ferrar, é isso? Eu estou em liberdade condicional, querem que eu volte pra cadeia?

— Escute, Fernando, você vive naquela casa, praticamente todo o dia. Sei que desde que foi para lá, tem ficado na casa dos fundos, junto com Linda. Você deve estar a par de tudo.

— Eu vou sair de lá. Você sabe para onde estou indo agora.

— Tudo bem, você vai voltar para a casa que era de seus pais, mas continuará trabalhando em minha casa.

— Como assim, um susto?

— Eu pensei muito quando você pretendeu se mudar. É uma casa abandonada, num lugar afastado. Eu quero que você o leve para lá, por uns tempos, até que eu resolva todos os problemas de minha mãe.

— Você quer que eu sequestre o velho?

— Sim, mas será por um mês.

— Você não parece advogado, né, a menos que queira me ferrar mesmo! Então não sabe que toda a polícia vai procurar o velho na minha casa? Será o primeiro local que procurarão.

— Não, ninguém o procurar, não se preocupe, porque direi que ele decidiu viajar. Invento qualquer coisa em relação à empresa. Não se preocupe, não acontecerá nada com você.

— Que família desgraçada, hem!

— Por que diz isso?

— Porque a sua mãe também está planejando contra o velho.

— Como assim?

— Contra ele e minha tia. Parece que os dois estão de conluio, estão querendo enlouquecer ela, foi o que me contou. Então, ela quer que eu descubra tudo e consiga provas para mostrar a vocês, a toda a família o que eles estão aprontando.

— Meu Deus, eu tinha razão. Meu pai quer ficar com toda a fortuna, sozinho.

— Mas tem mais coisa aí, você sabia que seu pai tem um filho com Linda? Foi o segredo que sua mãe me revelou.

— Miserável! Eu não sabia de nada!

— Os dois tem um plano, mas não sei ainda se estão juntos por conveniência ou por que minha tia o chantageou.

— Então, o meu plano tem muito mais razão de existir. Este canalha não pode ficar impune!

— Mas o que você pretende fazer com o sumiço do velho?

— Nesse meio tempo eu pretendia provar que minha mãe é uma pessoa lúcida e capaz. Não posso deixar que ele participe do processo, porque vai moldar a situação de acordo com seus objetivos. Mas, agora sabendo o que sei, que você me disse, o caso muda de figura.

— Por que?

— Porque é muito mais grave do que eu pensava. Nós sumimos com ele e você aperta com sua tia. Nós vamos provar que os dois estavam planejando se livrarem de minha mãe.

— Eu não posso fazer nada contra minha tia, porque ela me ameaça, me joga na cadeia novamente.

— Mas você pode fingir que não sabe de nada e começa a se preocupar com ela, perguntar coisas. Não pode enfrentá-la, apenas. Tem que ser cínico.

— E o que eu ganho com isso?

— Eu posso lhe dar um bom dinheiro, é isso que interessa, não é mesmo?

— E o que eu faço com a proposta de sua mãe?

— Faça a sua parte, descubra tudo com a sua tia, não é o que ela quer?

— Sim, inclusive sobre os remédios. Sua mãe desconfia que minha tia está lhe dando calmantes fortíssimos, para que se esqueça das coisas.

— Muito bem, faça isso. E faça o que lhe pedi, tenha certeza que só tem a ganhar.

— E como vou fazer isso? Eu já lhe disse, eu errei uma vez, fiz uma burrada, acabei matando um homem, mas não sou um bandido. Eu não quero voltar pra prisão!

— Só tem uma maneira: fazer a coisa certa. Pode deixar, eu vou ajudá-lo.

Fernando coça a cabeça, intrigado.

quinta-feira, novembro 10, 2016

Como se desenvolve a criação

Quando escrevo, procuro difundir ao máximo as ideias pertinentes à história que está sendo construída.

Entretanto, os caminhos se diversificam e aos poucos, percebo que se algum preceito ou ponto de vista está na tentativa de ser disseminado, não passa desta etapa, porque a história segue um rumo quase determinado pelo crescimento ou não dos personagens.

Nada de extraordinário, apenas uma reflexão no fazer literatura, que, via de regra, pensamos ter as rédeas do texto nas mãos, mas o conteúdo foge de acordo com a imaginação e criatividade.

Na verdade, aí é que se dá a literatura, uma forma diferente de ver o mundo, de representar a realidade e não apenas mostrá-la com precisão jornalística.

Às vezes, torna-se necessário a desconstrução do texto para produzirmos o tão falado estranhamento, que pode trazer ao leitor a reflexão do tema que tratamos.

No entanto, a coisa deve surgir com naturalidade, sem acomodar muito a história a ponto de torná-la artificial.

É preciso saber unir a história que queremos contar com o desejo de chegar ao coração e à mente do leitor, sem vilipendiar nossos sentimentos e concepções de vida.

quarta-feira, novembro 09, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 18

Nosso folhetim dramático encaminha-se para os últimos capítulos. A seguir o capítulo 18, mas logo, logo chegaremos ao desfecho final.

Capítulo 18

As cores estavam esmaecidas. Paredes descascadas, velhas. Quando ele entrou e avistou a cena melancólica sentiu as pernas estremecerem e um rubor estranho percorrer-lhe o rosto. Aquele cheiro de coisa velha, mofada, o ar sofrido que o envolvia. Deu meia volta, pensando em fugir, mas desistiu. Parou na porta, segurando o marco, talvez para evitar afastar-se de vez. Seus olhos estavam perdidos. Não queria ver aquela coisa dissoluta que se transformara a sua casa. A sua vida, o seu passado.

Entrou devagar atravessando a sala em direção ao corredor que desembocava numa área que outrora fora verde. Quem sabe, respiraria melhor, ali. Seu coração estava agitado. Suas mãos suavam.

Procurou por alguma coisa no quarto. Sim, o quarto, antes de chegar a área. Era o seu quarto.

Aproximou-se da cama, deitou-se e ficou olhando para o teto. Estava tudo sujo, com teias de aranha e um cheiro de mofo que exalava dos cantos úmidos.

As palavras de Santa ainda martelavam em sua cabeça. Sabia que precisava ficar de um lado e estava com muitas dúvidas.

Fernando recostou-se na cabeceira e segurou a cabeça com as mãos. Por que sofria tanto, afinal a tia não significava muito para ele, a não ser que o havia ajudado a trabalhar naquela casa. Fizera-lhe um bem, é verdade, mas estava sempre ao seu encalço, rondando com uma certa ameaça, dizendo-lhe que um dia precisaria dele e que não poderia falhar. Se não a ajudasse, muito mais do que perder o emprego, seria perder a liberdade.

Na verdade, ela o usava, mas deixava o barco correr. Não podia fazer nada mesmo, estava bem daquele jeito. Tinha um trabalho, ninguém o incomodava.

Mas agora, havia aquele segredo que ele sabia e que talvez pudesse livrá-lo de seu jugo.

Por outro lado, teria de ajudar a patroa e fazer o que lhe pedira. Tinha que pensar.

Fazia tempo que não dormia naquela casa, que um dia fora de sua família e que agora estava abandonada.

Fazia tempo que não retornava ao seu quarto, às suas coisas, que deixara para trás, quando fora preso.

Ele agora senta-se na cama e revira as gavetas do criado mudo. Uma série de papéis, documentos, bulas de remédio. Talvez ainda houvesse alguma droga, mas não era isso que precisava naquele momento.

Levanta-se então e procura numa cômoda, abre várias gavetas e numa delas, encontra um embrulho com um elástico envolvendo-o.

Abre-o devagar, pensativo. Sabe do que se trata. Rasga o papel e retira uma arma, examina-a, engata o silenciador e fica apontando-a na direção da janela. Talvez precise usá-la.

Atira-se na cama novamente, e aponta várias vezes para o teto.

De repente, seus olhos se anuviam e sente uma forte raiva por Linda, ao mesmo tempo em que detesta Santa.

Afinal, as duas estão manipulando-o para conseguir os seus objetivos. O que ele nem desconfiava é que a tia tivera um filho no passado com o patrão. Onde estaria este rapaz?

O celular dá um alarme do whatsApp. Desbloqueia rapidamente a tela e vê a imagem de Alfredo surgir instantânea.

Pensa se deve responder-lhe. Fica em silêncio.

Em seguida, decide tomar a iniciativa que vinha protelando. Responde a mensagem. Alguns segundos depois, ele informa o endereço.

Solta o celular ali mesmo, na cama e sorri.

Quem sabe, as coisas podem melhorar para o seu lado, pensa.

Há tempos, o filho de dona Santa o olha de um modo estranho que parece convidá-lo a alguma coisa proibida.

Ao mesmo tempo em que se aproxima, também se afasta e o deixa entre os jardins, como se fosse um acessório que devesse observar e talvez achar bonito.

Algumas vezes, trocaram algumas palavras, nada demais, mas percebia em seu olhar uma intensidade que produzia muitas interrogações, nunca respondidas. Quem sabe, estava na hora de descobrir e encontrar um caminho para a sua vida que não estava nada tranquila, ultimamente.

Fernando já estava pensando em ir embora, quando tocaram a campainha.

Foi até a porta da frente e abriu-a para Alfredo, que o olhava angustiado.

Convidou-o a entrar, mas Alfredo exitava, dizendo que estava confuso e talvez fosse melhor conversarem noutro lugar.

— Mas qual é o problema? Esta casa era de meus pais, eu morei muito tempo aqui, agora estava abandonada e estou decidido a vir para cá. Por que você não quer entrar?

— Não é isso, quero dizer. Acho que deveríamos sair para um lugar público. Quem sabe, tomarmos uma cerveja.

— Do que é que você tem medo?

Alfredo olhou para os lados. Na esquina, um homem parecia observá-lo, caminhando pela calçada e voltando para o que ele supunha ser uma farmácia. Tudo, no entanto, parecia deserto.

— Eu não tenho medo de nada. É que nós nos vemos na casa de minha mãe, trocamos uma ou duas palavras, aliás, pouco vou lá.

— Mas então, o que você quer de mim?

Alfredo estremece. Olha novamente para esquina e observa que o homem se afastou em definitivo. Prossegue, ansioso:

— Você sabe, conversar um pouco. Mas acho que me enganei, forcei a barra com você, me desculpe, acho que fui longe demais.

— Não, espere, onde quer ir? Eu vou com você.

Alfredo se surpreende e responde, um pouco mais calmo:

— Estou com o carro aí na frente.

Fernando responde que é só o tempo de fechar a casa. Ao entrar, reflete no encontro que tivera com Santa e agora enfrenta o filho.

Sorri. Parece que a família está fechando o cerco.

Devem ter bons motivos para procurá-lo, principalmente Alfredo, pensa irônico.

Guarda a arma no bolso da calça e após fechar a casa, corre na direção do carro.

Alfredo o espera, sorrindo.

sexta-feira, novembro 04, 2016

A redação, a Apollo 11 e o grêmio literário

Eu estava à cata de informações para uma redação, na imaturidade de meus 13 anos.

Os acessos eram difíceis, embora houvesse os jornais, a TV, as revistas e principalmente a imaginação.

Naquele julho de 69, a Apollo 11 era a primeira missão de sucesso, com Neil Armstrong pisando na lua e surgindo nas telas da TV, numa imagem entrecortada de chuviscos e emoção.

Eu elaborara a redação com cuidado, tentando ser o mais verídico possível, sem ser previsível.

Naturalmente não possuía esta percepção de previsibilidade, mas por pura intuição, eu tentava ser original, no esforço de transformar o texto num produto bem elaborado.

Enveredava sempre que podia, pela imaginação, transportando meu mundo interior fundamentado na fantasia do espaço para o papel, procurando decifrar a perspectiva que possuia no avanço espacial.

Aquela nave maravilhosa, desenhando no céu uma centelha de luz, trazendo a nós, terráqueos, uma visão tão próxima da lua, com a certeza de que os astronautas pisavam pela primeira vez no solo inatingível.

Desta forma, realizei a redação, se não a melhor, uma das melhores de minha carreira de estudante.

Certo dia, o diretor da escola, um frade austero, de olhar frio e perscrutador, adentrou a sala, invadindo a aula de português.

Nosso professor, Irmão PL. recebeu-o com cortesia.

Um meio sorriso nos lábios, uma ansiedade contida, um torcer de mãos sob a batina branca, talvez na mesma expectativa em que estávamos mergulhados.

Ele era alto, cabelo ralo, nariz adunco, mãos grandes e dedos peludos. Tinha um olhar tranquilo, mas havia neles uma interrogação, que me inquietava.

Talvez não exatamente por sua conduta, mas pela minha maneira peculiar de observar as pessoas e considerá-las um produto promissor para minhas histórias.

Eu fiquei circunspecto, sem muita expectativa, a não ser imaginar que o assnto que levara o diretor à sala de aula, seria algum tipo de norma reformulada ou talvez um feriado religioso, no qual participaríamos em alguma solenidade.

Eu, magro, mãos sobre a mesa, olhar atento, cabelo caído na testa, a la Beatles, observava o cenário já meio enfadado.

Meus colegas cochichavam, faziam mil esforços intelectuais para descobrir o motivo do diretor aparecer assim, de súbito.

De repente, ele manifestou-se através de uma fala burocrática, citando a turma que, segundo ele estava bem orientada na aula de língua portuguesa , deu os conselhos de praxe e por fim, citou o meu nome.

O meu nome? Perguntei-me atônito, a que se referia.

Claro que perguntei mentalmente, sem abrir a boca ou piscar os olhos.

Alguns segundos e o diretor pediu que eu me levantasse.

Obedeci, pernas trêmulas, joelhos batendo um no outro, coração aos pulos.

Não sabia o que pensar, o que dizer, o que imaginar.

Nem passava pela minha mente confusa, qualquer indagação que não fosse uma temerosa culpa por alguma conduta indevida.

Ele então, mandou que eu sentasse, o que fiz de imediato, deixando cair os braços sobre a carteira, mãos presas na caneta, desenhando quase involuntário no caderno, tentando fugir daquela atmosfera de incerteza.

Ele prosseguiu elogiando a redação que eu fizera, acrescentando que havia sido muito bem avaliada pelos professores e que, em virtude da qualidade do texto seria publicada no jornal da cidade.

Quando afastou-se, os colegas todos me olharam, juntamente com o professor, que parecia abalado, pois nada dissera a respeito. Nem me cumprimentara.

Houve mil brincadeiras e muitos apelidos, culminando por me chamarem de poeta.

Para eles, qualquer um que escrevesse razoavelmente era um poeta.

Ou talvez fizessem uma leitura pejorativa, realçando que a sensibilidade não era prerrogativa de meninos. Não sei. Coisas que talvez Freud explicasse. Afinal, era um tempo de uma ideologia tecnicista, na qual as artes e filosofias foram excluídas.

No intervalo, as brincadeira se sucediam, mas eu estava feliz, porque o meu texto fora analisado, elogiado e comprovado publicamente que tinha qualidade.

Com o passar do tempo, eu tinha ainda mais ânimo para escrever, não somente as redações obrigatórias da escola, como outras histórias, que criava em total liberdade de meus pensamentos e imaginação.

Neste período, elaborava contos ou imensos romances, pontuados de ação, aventura e emoção, abrangendo deste modo, os sentimentos que imaginava aos personagens e suas tramas.

Era uma dramaturgia intuitiva e repleta de clichês, mas que ampliava a minha imaginação e de certo modo, o conhecimento literário, além de ampliar o gosto pela leitura.

Nos sábados, em que se realizava o grêmio literário da escola, costumávamos assistir os trabalhos feitos pelos colegas, cujas diversas turmas se reuniam e havia muitas apresentações, com a participação dos professores de português e inclusive de outras disciplinas que confraternizavam com os seus alunos.

Geralmente, alguns pais convidados também faziam parte da plateia.

Enumeravam-se poesias, crônicas e contos, que apresentados em sala de aula, e considerados os melhores trabalhos, eram apresentados à comunidade escolar.

Em determinado momento, o professor que apresentava os alunos, chamou um dos meus colegas de turma.

Todos ficamos aguardando na expectativa da apresentação.

Era um menino de cara rechonchuda, vermelha e um sorriso imenso nos lábios, considerado o guri popular da turma.

Já aplaudido pelo grupos de alunos e pais, abriu uma página datilografada e antes que se pronunciasse a respeito do tema, o professor anunciou tratar-se de uma redação sobre a chegada do homem à lua, ou seja, a Apollo 11.

Meu coração revirou-se, em saltos.

Os colegas voltaram-se de imediato para mim, criticavam e afirmavam que se tratava de minha redação, o que implicava em eu estar lá, no palco, lendo-a.

Perguntavam afoitos, por que eu não dizia nada?

O menino começou a ler, voz clara e bem colocada. Não modificou nenhuma palavra, nenhum artigo, nenhuma pausa.

Meu coração sim, quase pausava.

Meus lábios tremiam, tensos, incapazes de pronunciar uma sílaba sequer, músculos paralisados, pernas cravadas no chão, como estacas inanimadas.

O professor de português, ao nosso lado, impassível. Não foi capaz de informar que aquele texto havia sido escrito por mim. Não fora capaz de defender-me.

Como eu, no meio daquele público de adultos e crianças, poderia sair gritando que a tal composição era minha, que havia sido inclusive publicada no diário da cidade e elogiada pelo diretor da escola?

Não teria coragem para tanto.

Ali, conheci a mão pesada do apadrinhamento, da covardia dos mestres, do interesse dos superiores.

Deixaram-me na lona, Davi perdido, sem enfrentar nenhuma fera ou qualquer gigante.

Perdido, acabrunhado e triste.

Ali, conhecera a duras penas, o significado de plágio. Mais do que o plágio, a predileção por um aluno em detrimento do outro.

Se ao menos, nomeassem o autor do texto, eu me conformaria, mas todos os créditos foram para ele. Todos os louros. Todos os aplausos.

Pra mim, sobrou o constrangimento de não ter me levantado contra aquela injustiça.

Sobrou a crítica dos colegas, por meu acanhamento.

Sobrou a autocrítica por minha fraqueza.

Felizmente, sobrou também a vontade de lutar, de mostrar ao mundo o meu fazer literário, sem o medo do fracasso, pois se ocorrer, será somente meu.

Mas como tudo é aprendizagem e sublimação, a mágoa se transformou em representação na narrativa literária e só existe para vestir um personagem.

terça-feira, novembro 01, 2016

O piquenique

Aquela noite seria longa, mas provavelmente eu tenha caído no sono em seguida. A manhã chegou tão rápida que me ocupei de minhas coisas de modo a não perder um detalhe, a não esquecer a bola de vôlei, o estilingue e os guides.

A mala era pequena, eu não tinha aquelas mochilas modernas, não, era uma mala esquisita de lona e papelão.

Quando levantei, às 6 horas mais ou menos, tudo estava pronto, ou quase pronto à mesa, pois a condução que nos levaria ao passeio sairia às 7:30 horas.

Minha mãe se desdobrava em fazer o lanche e mais do que isso, dar os habituais conselhos. Não pega muito sol, te cuida dos lugares perigosos, olha os precipícios, fica sempre atento e não te afasta do grupo, muito menos da professora. Ela será o teu guia.

Não precisava de tudo aquilo, mas era de praxe.

As horas passavam rápidas, mas a escola ficava apenas quatro quadras de minha casa. Nada que fosse atrasar-me.

Eu estava ansioso. Ouvia com uma mão na mala e outra na xícara, atento ao que meu coração dizia, avesso ao discurso de minha mãe. Aliás, a preocupação dela era exasperante para qualquer mortal, mas para mim, que ouvira aquele lero-lero desde a noite anterior ou talvez a semana toda, era demasiado.

Certamente, todas as mães fazem a mesma coisa, todas engrossam o caldo das lamentações, dos medos, dos avisos e finalmente dos abraços e beijos, numa disposição enfática para que tudo dê certo, que o piquenique seja maravilhoso e que os filhos voltem sãos e vivos.

Minha mãe, é claro, não fugia à regra.

Meu pai, a esta hora, já estava longe, a caminho do trabalho e minhas irmãs nem sonhavam em levantar-se, ocupadas em que estavam em seus sonhos de adolescente.

Já eram praticamente sete horas quando tudo estava pronto.

Minha mãe insistiu em levar-me até a escola, tinha recomendações a fazer à professora, informar-se sobre horários e prováveis eventos durante o percurso, paradas no meio do caminho, horário para almoçar, os infinitos perigos que poderiam rondar os despreparados meninos, principalmente o dela, e ter a certeza absoluta que tudo correria bem.

Fui implacável, entretanto. Afinal era um menino de 10 anos, ela que me deixasse sozinho que eu me acomodava do meu jeito.

Fiz de tudo, até promessas que agiria de acordo com o que ela tinha recomendado, que faria o lanche na hora certa, evitaria os precipícios e principalmente que obedeceria à professora.

Tanto insisti, que ela concordou, desanimada, talvez refletindo se devia aceitar o meu pedido.

Foi o suficiente para eu pegar a mala, ajustá-la em meu corpo mirrado e correr para a rua em direção à escola.

Ela não me deixou chegar ao portão.

Abraçou-me, beijou-me, encheu-me de recomendações, aquelas mesmas que havia insistido em carimbar em minha mente, que a estas alturas estava conturbada pela ansiedade.

Depois dos abraços, afastei-me devagar. Ainda ouvi a sua voz desejando uma boa viagem e a sugestão que eu sentasse mais ou menos na metade do ônibus, porque era mais seguro. Na frente, sabe Deus, o que pode acontecer. Em caso de acidente, o primeiro que é atingido... parou aí. Acho que temeu prosseguir a frase e que o vaticínio involuntário acontecesse.

Então, sorriu e me acenou do portão.

Fui quase correndo em direção à escola. Estava feliz. Meu coração dizia que seria um piquenique daqueles!

Era o meu dia de liberdade, de ação, de vida e nenhum daqueles avisos ainda martelavam na minha cabeça.

Entretanto, chegando próximo à escola, para ser exato, faltando uma quadra, o ônibus repleto de alunos começou a mover-se, fazendo uma curva e dobrando em seguida na direção contrária ao meu movimento.

Meu coração bateu assustado.

Corri feito louco, tentando ocupar o lugar que era meu, o dia que se apresentava a mim, a vida que se desenrolava naquele veículo.

Ainda ouvia a cantoria das crianças, quando o ônibus dobrou na esquina.

Cheguei na escola desesperado e sem que dissesse nada, ouvi o porteiro anunciar que o ônibus esperara 20 minutos. O horário correto era às 7:00 e não às 7:30 como havia pensado.

Na verdade, pensei em tudo. Tive todas as recomendações do mundo. Só errei a hora da saída do ônibus.

À tarde, o veículo passou na esquina de casa, abarrotado de crianças ainda com toda a energia, cantando. Eu chorei.

Os dez textos mais acessados no mês de outubro ( 02/10 a 31/10/16)

1º. AS AULAS DE DONA MARINA

2º. O menino e o livro

3º. Webrádio de qualidade, com a melhor programação

4º. Trabalho voluntário no Hospital Psiquiátrico: uma provocação para a vida

5º. A margem oposta

6º. A fotografia da vida de Santa - CAP. 13

7º. Meu pai, a jawa e o Irmão Cassiano

8º. A fotografia da vida de Santa - CAP. 11

9º. A fotografia da vida de Santa - CAP. 9

10º. Alguns aspectos do filme “A

pele em que habito” de Pedro Almodóvar

Fonte da ilustração: fotografia do poeta e escritor Wilson Rosa da Fonseca.

Postagem em destaque

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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