segunda-feira, maio 30, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 1º CAPÍTULO

Talvez não fosse o momento adequado para Rosa participar da reunião pela formação do novo coral da igreja. Estava decepcionada com o andamento das coisas. Nem mesmo Pe. João parecia muito entusiasmado com a ideia. Estavam tão acostumados com os velhos munícipes que a chegada do pessoal da nova hidrelétrica parecia um tanto incomum. Eram pessoas diferentes, tinham hábitos estranhos que não condiziam com os aceitos pela comunidade. Na verdade, a maestrina Rosa sabia que se tratava de puro preconceito.

Aquela cidade pequena e conservadora não aceitava nada que destoasse de seus princípios. Uma coisa, porém a deixava feliz: a presença de Raul, um membro não participante dos cultos religiosos, mas que se tornava a cada dia mais integrado ao grupo. Era simpático, sempre pronto a apreender os acordes novos, as diferentes nuances das músicas e aceitar presumíveis críticas. Era, além de tudo, muito entusiasmado com a nova tarefa que abraçara.

Rosa tinha certa atração por ele. Não propriamente uma atração física, mas um afeto que a despertava de algum modo mais vibrante do que com os demais. Nem sabia muito bem o motivo, talvez pela maneira carente com que se comportava, sentindo-se sempre sozinho desde que a mulher o abandonara há dois anos. Provavelmente suas manifestações fossem muito sinceras, o que chamava a atenção de Rosa e de alguns outros representantes do coral.

Havia outros três novos integrantes, de outras paragens, que não eram muito bem aceitos. Rosa pensava o quanto os seus colegas de coral eram cabeça dura. Afinal, preocupavam-se com a falta de novos participantes no grupo e agora que surgiram interessados, alguns faziam cara feia. De todo modo, tomaria uma atitude. Marcaria uma reunião para esta noite e exigiria a presença de todos.

Deixou o hotel onde trabalhava por longos 15 anos, comprou ração para o seu velho labrador que a acompanhava há tanto tempo, passou pela biblioteca pública para tirar cópias de uns jornais históricos da cidade, pois fazia uma pesquisa da música através do tempo, na sua cidade natal e voltava para casa.

Já passavam das sete da noite, estava esfriando e a escuridão tomava conta da rua. As árvores formavam figuras estranhas enfeitando as calçadas. De repente, aquele caminho que costumava fazer durante tantos anos, parecia mais longo e assustador. Sentia um certo temor como se alguém estivesse à espreita, esperando-a para atacá-la. Sabia que era só uma impressão absurda, mas mesmo com esta certeza, sentia-se insegura. Por sorte, não estava tão longe de casa e quando se deu conta, já podia atravessar a rua e entrar rapidamente no velho portão de ferro.

Percorreu a calçada estreita de lajotas irregulares, abriu a porta e olhou em torno. Nada havia de estranho, a não ser a mesma decoração despojada de quadros de pintores locais e a sala com móveis tão gastos que pareciam do século passado. Uma cortina pesada pendia do teto com um pé direito exagerado, denotando a arquitetura antiga da casa. A janela de postigos de madeira, pintados de verde e as vidraças coloridas compunham o ambiente um pouco descompassado. No canto da sala, uma mesa de mosaico. Nada mais a não ser um piano antigo e uma estante com livros, estranhamente fora do lugar. Não parecia uma sala de visitas, talvez uma biblioteca ou um gabinete de música ou de estudos.

Talvez fosse tudo isso. Ligou o interruptor, deu alguns passos atravessando outra pequena sala, com uma TV e algumas poltronas, quase vazia, a não ser um porta-revistas e um velho abajur perto da poltrona. Na poltrona, um notebook preso a uma tomada na parede recarregando a bateria. Numa mesinha de aproximação, os óculos esquecidos, talvez à espera de alguma leitura ou da próxima pesquisa no controle remoto. Olhou em torno, como se quisesse se certificar que tudo estava em ordem. Rosa era meticulosa, burocrática. Deixou uma pasta com partituras sobre a mesinha. Afastou-se de vez em direção à cozinha. Espiou pela janela que dava na pequena área e teve um sobressalto, com a sensação de que seu cão estivesse morto. Abriu a porta e correu ao seu encontro. O animal respirava, mas estava num sono profundo, como se houvesse tomado um sedativo potente. Chamou-o várias vezes, levantou com esforço a cabeça pesada do animal, mas este abria os olhos enviesados e voltava a dormir.

Rosa estremeceu. Seu cão de guarda, seu amigo de todas as horas estaria morrendo? Havia sido envenenado, talvez.

Então, correu até o armário da lavanderia, retirou uma lanterna, para examiná-lo melhor. Trouxe consigo também o celular, chamaria o veterinário imediatamente, descreveria o que estava acontecendo com o cachorro.

Na verdade, o que diria? Que ele estava dormindo? Não havia sinais de que estava doente.

Mas estava muito estranha esta dormideira toda. Um animal tão ágil, principalmente na sua presença e agora, ele nem se animava a mexer a cabeça em sua direção. O máximo que fazia era olhá-la de esgueiro e cerrar imediatamente os olhos, como se não conseguisse mantê-los abertos. Estava ali, caído, estático. Quando tentou ligar, um suor frio invadiu sua testa e um mal-estar geral a fez cambalear, quase desequilibrando-se do modo de como estava agachada junto ao animal. De repente suas costas pesavam toneladas e não conseguia se mover, paralisada. Temia voltar-se na direção da voz que soava ao seu lado, mas sabia que a reconhecia.

O vulto se esgueirava no outro lado da área, próximo à janela que dava para o quarto.

––Rosa, por favor...

Com muito esforço, virou-se, empunhando com a mão trêmula a lanterna na direção da pessoa que estava em sua casa. Num suspiro de alívio e pânico ao mesmo tempo, numa confusão de sentimentos, exclamou, apavorada:

–– Raul, o que está fazendo aqui? Como entrou na minha casa?

Raul esfregou os olhos, sentido o peso da luz. Pediu desculpas, afastou-se um pouco apoiando-se na parede oposta. Depois, aproximou-se e agachou-se ao seu lado, acariciando o cão.

–– Me diga, como se chama?

–– Nada original, D’tartagham, um dos três mosqueteiros.

Raul sorriu e continuou afagando o animal. Por fim, comentou:

–– Ele era apenas um aspirante. Não chegou a mosqueteiro, mas cresceu tanto na trama que Alexandre Dumas o promoveu aos poucos, ao almejado posto de mosqueteiro.

––Você conhece tudo dos três mosqueteiros?

––Não, imagina, quem sou eu pra ter tanto conhecimento. Só que gosto de investigar algumas coisas que me agradam. Sabia que a missão de D’artagham era apenas introduzir os demais na história? Ele não passava de um personagem secundário. Mas depois, teve muito realce.

Rosa levantou-se ficando ao lado do animal, como se o quisesse protegê-lo. Apesar da conversa um tanto absurda, manteve-se razoavelmente calma, controlando o nervosismo em que se encontrava. Queria explicações. Queria saber como o colega entrou na sua casa. Ele a observava, ainda sorrindo, levantando a cabeça com certo esforço. Em seguida, completa:

–– Ah, desculpe, minha amiga. Você nem vai acreditar. Acho que eu dei uma pirada legal.

––Por favor, Raul, seja mais explícito. Eu não estou entendendo nada. Além disso, estou muito preocupada com o meu cachorro. Olha o estado em que ele se encontra.

–– Não se preocupe, não é nada.

––Como não é nada? D`artagham quase não se mexe. Ele está estático, atordoado, parece fora do mundo.

–– É verdade.

— Mas então?

––Vamos começar do início.

Rosa cruza os braços, num gesto forçado, como pronta para repreendê-lo.

––Estou esperando.

Ele parece encabulado, olhando-a meio por baixo dos olhos.

Rosa desconfia, no entanto, que tudo não passa de encenação.

Raul prossegue:

––Bem, Rosa, sei que agi mal e espero sinceramente, que você me desculpe. Afinal de contas, invadi a sua casa. Mas é que eu estava num mato sem cachorro, desculpe o trocadilho. Eu estava esperando você, estou muito chateado com algumas coisas que estão acontecendo no nosso grupo, ouvi algumas coisas que não gostei, me senti ofendido, enfim. Bom, como disse, queria muito falar com você.

–– Está bem, por isso entrou aqui, não sei como. Mas depois me explica. Quero dar um jeito no D`artagham, preciso chamar o veterinário.

––Eu acho que não é preciso.

–– Por que você diz isso?

–– É o que eu ia explicar a você. Bom, resumindo o papo, eu estava aqui fumando um baseado. Acho que ele … bom ele fumou junto, só isso. E até acabou mastigando alguma bagana, sabe, deixei cair e ele...

–– O que você está dizendo? Entrou na minha casa para fumar maconha? E ainda diz que drogou o meu cachorro?

–– Não é bem assim, fique calma. Eu acho que ele estava muito perto e adormeceu, entende? Alguns cães ficam intoxicados. Outros, apenas meio lesados, entende? Então, não é pra se preocupar, daqui a pouco, ele fica bem.

Rosa o encarava, indignada. Não sabia se pelo estado do cachorro ou pela invasão em sua casa, com o agravo dele estar usando drogas. Ou tudo junto.

–– Por favor, Raul, saia daqui.

––Mas você não vai ouvir o que me aconteceu?

––Não. Outro dia, você me conta. Vá embora.

––Então, está bem. Tome a chave.

–– Como você tinha a minha chave?

––É o que queria explicar-lhe.

–– Você tem muito a me explicar realmente. Mas amanhã, na reunião, nós conversamos. Por favor, saia daqui.

Pegou a chave e seguiu-o até a porta da frente. Viu-o afastar-se na luz do poste até sumir totalmente na noite escura. Rosa estava confusa e irritada. Afinal o que teria acontecido para Raul agir daquela maneira? E esta história de maconha? Se ele era usuário, como nunca havia percebido? Se bem, que não se percebe claramente estas coisas, a não ser que a pessoa esteja sob o efeito da droga. E ela não tinha nenhuma experiência no assunto. Voltou para dentro, ensimesmada e com muita raiva pelo ocorrido. Tentou ligar para o veterinário, mas não conseguiu encontrá-lo. O celular sempre com a monótona mensagem de fora de área. Certamente, ele estava viajando ou metido em uma de suas reuniões, já que costumava se afastar por vários dias da cidade. Diziam as más línguas, que é engajado num grupo de ultraconservadores, que pretende dar um fim aos avanços sociais da humanidade, pelo menos nos representantes de sua cidade. Falácias do povo. O problema é que não conseguia contatá-lo àquela hora.

Rosa lembrou de Ricardo, o jovem médico que chegara à cidade e que estava hospedado no hotel em que trabalhava. Mas chamar um médico para tratar do seu cão, seria uma medida meio absurda. Certamente, ele se recusaria.

domingo, maio 29, 2016

O OUTRO

Estava assim à procura do tempo e o avistei sozinho. Parado que se encontrava à porta da igreja. Barba longa, desleixo involuntário. Pele escura, encardido.

Sol a pino, um boné velho, virado para o lado, uma gosma escorrendo no canto da boca entreaberta com dentes falhados, amarelos, mastigando levemente a vida.

Nos olhos, uma fuga estranha, um olhar para dentro, um não sei o que faço, que assustava.

Por um momento, senti certa náusea. Olhar aquele ser humano, e poder enxergar esta condição, me apavorava. Difícil para qualquer um entender. Difícil pensar no assunto e enfrentar a situação.

Aproximei-me com moedas pesadas, ajustadas na palma da mão, mergulhadas que estavam no bolso, escorregadias no tilintar dos dedos.

Acho que o assustei, porque me olhou de soslaio, meio apalermado, temendo talvez uma sacudida, um pedido que saísse, ou uma ordem de evacuação do espaço.

Que nada. Sorriu ao ver o brilho das moedas, bem maior para os seus olhos. Segurou-as rápido e afagou a minha consciência, no beneplácito da ação.

Senti-me culpado. Dar moedas, quando poderia oferecer qualquer coisa que me tornasse um pouco mais próximo, mais intimo, mais afetuoso. Quem sabe, uma pergunta, uma palavra qualquer. Um desejo inconsciente de relacionamento. Bobagem.

Naquelas condições, o máximo que faria é esfregar o dorso da mão nos olhos, ante a minha figura emoldurada nos últimos vestígios de sol, que ainda iluminavam a praça.

Em volta, pessoas caminhavam rápidas, preocupadas consigo, temerosas de assaltos, envolvidas em suas pequenas paixões do dia, se as tivessem, sobressaindo talvez às mediocridades do cotidiano.

Quem sabe viver plenamente era enfrentar estas contingências da civilização atual.

Quem sabe este confronto não faz parte de nossas existências, para alicerçarmos nossos pequenos desafios, percorrer os degraus às vezes mais acima, outras bem inferiores, irregulares sempre.

Talvez fosse assim este ato de coragem de enfrentar a vida, suas vicissitudes, seus vazios, suas perdas e monótonas contradições, seu dia a dia morno, estável e seguro.

Que seguro? Se precisas fossem as armas que nos apontam. Se não fossem ainda miradas através de olhos humanos, de mãos frágeis, vagabundas, certamente poucos de nós restariam.

Ou só eles, os fortes, os modificados geneticamente, os robôs, os clones, os desumanos. E seriamos então a constituição de todas estas raças artificiais. E nem armas, nem moedas, nem afetos nos trariam à vida. Certamente, tudo descambaria para a vala comum da insanidade.

Mas ainda o vejo ali, deitado, uma perna esticada, mostrando os músculos danificados, através da calça rasgada até o joelho, sujo e fedorento.

As mãos ensimesmadas uma na outra, esfregando-se, fingindo frio, fazendo tilintar as moedas que brilham nos bolsos.

A cabeça encostada no canto da porta, à esquerda, pendente, pedindo socorro.

Cabelos sebosos, amarfanhados, divididos na nuca no confronto da madeira.

Por que continuo observando-o se nada tenho a oferecer.

Talvez este olhar complacente, que raramente possuo. Talvez este jeito despojado, esta vontade esquisita de ir ao poço de mim mesmo e descobrir ali, um pedaço da humanidade, aí, repartida em mil cabeças, cada uma ruminando o seu destino, alijadas de um processo de cidadania que a poucos contempla.

Talvez seja ele um protótipo de nossas insensatezes, de nossas precárias participações da comunidade, do nosso desejo fraco do coletivo.

Afasto-me e temo encontrá-lo novamente.

Por certo, tremerei o coração, mas não por ele. Recordo Hemingway, e entendo por quem os sinos dobram. Eles dobram também por ti.

Meu coração estremece, solitário e doído, por mim.

Fonte da ilustração: http://moradorderua.zip.net

quinta-feira, maio 19, 2016

O ALBATROZ E O VOO INTERROMPIDO

Às vezes, observo as aves sobrevoando a lagoa ou mesmo em voos rasantes nas dunas irregulares do Cassino. No céu, algumas em relevante altitude, mas todas com uma elegância que nos encanta e enche o coração de esperança.

Lembro então da lenda do albatroz, que seguia o navio de Fernão de Magalhães, auxiliando-o na rota, pois após uma tempestade havia se perdido, chegando próximo à Antártica. Ele guiou o navio, afastando-o dos ventos glaciais, mas um marinheiro o matou usando-o como alvo.

O barco naufragou e o único sobrevivente, o marinheiro atirador, teve como castigo a incumbência de contar ao mundo a história do pobre albatroz.

Em determinadas situações, o homem age como o marinheiro desavisado e mata a única esperança de sobrevivência. Ou apenas ele sobrevive por algum tempo em sua traição, mesmo que sua embarcação ainda navegue por águas ilegais. Ocorre um arremedo de vida, de liberdade vigiada e nem sempre a história contada poderá resgatar a solidariedade perdida.

O albatroz morre e mesmo que sua condição de bússola tenha algum respaldo na natureza, o voo livre fora interrompido em definitivo, rasgando a cartilha das aves.

Fonte da ilustração: Portal Brasil — http://www.brasil.gov.br/meio-ambiente/2015/03.

quarta-feira, maio 04, 2016

O papeleiro, a biblioteca e a Instituição Acadêmica

 

Esta crônica foi publicada no Jornal do Cassino, em 2009. Pela atualidade do tema, achei conveniente publicá-la também neste blog.

O artigo da jornalista Marielise Ferreira, na edição de domingo, 30/12/08, de Zero Hora, traz o texto sugestivo “Do lixo para as prateleiras, com o seguinte subtítulo: papeleiro funda biblioteca em Passo Fundo e leva a literatura à periferia.

No decorrer do texto, deparei-me surpreso e ao mesmo tempo emocionado com a atitude do Sr. Valdelírio Nunes de Souza, homem de origem simples, que estudou até a 5ª série fundamental, cuja sensibilidade aliada ao reconhecimento da importância dos livros, (os quais considera tesouros) abdicou do lucro de sua venda, para constituir uma biblioteca, visando compartilhá-la com os seus.

Nesta altura, fico me perguntando, enquanto bibliotecário e servidor público, o que temos feito com as nossas bibliotecas, o quanto de importância dedicamos a sua estrutura, ao seu acesso, à disponibilidade da comunidade.

Talvez nos dediquemos com profunda dedicação às atividades cotidianas da biblioteca, desde o processamento técnico dos documentos até a sua distribuição no acervo físico.

Quem sabe falta-nos uma integração maior entre os pares, uma mesma expectativa que conduza à mudança, que tire a poeira antiga dos velhos padrões. Talvez nos falte a sensibilidade e a ousadia do enfrentamento da realidade que nos cabe, imposta pelo mundo globalizado, cujas políticas desastrosas de governos anteriores nos transmitiram como herança jamais desejada. Talvez nos acomodemos no cenário de dificuldades que nos cerca e não bisbilhotemos a disposição do vizinho, o projeto “elencado” entre outros tantos para a transformação da realidade. Talvez não saibamos reivindicar nossos direitos e se o fazemos, somos barrados incólumes, por uma cultura ultrapassada e adversa de que recebe quem grita mais (ou chora mais).

Por outro lado, estas divagações me reportam às propostas dos candidatos a cargos superiores das instituições, que via de regra, em suas plataformas políticas, metaforizam a biblioteca como elemento aglutinador da comunidade acadêmica, utilizando-se exaustivamente de figuras criativas, produzindo apostos que a relacionam a órgãos nobres do corpo, quase sagrados. São estes: o cérebro, o coração, a própria mente, quando não muito, o subconsciente ou quem sabe, com o evoluir do abstracionismo mental, o próprio espírito subjacente que paira na atmosfera da academia.

Entretanto, se me parece, estes órgãos e demais processos psíquicos e até espirituais, aos poucos perdem o seu poder de barganha, sendo substituídos por um órgão mais obscuro, não tão elevado, talvez um excretor, não que este não possua extrema importância no desempenho do corpo humano.

Se não vejamos, experimente o leitor acessar a página da biblioteca em um portal de uma instituição educacional. É uma tarefa quase inglória, caso não tivéssemos a pertinácia e desenvolvêssemos uma performance física para tanto. (E aqui falo em dezenas de instituições pesquisadas, excetuando-se a Furg, que já colocou em sua página um link para a biblioteca). Em geral, o nome biblioteca, que às vezes, surge emoldurada por serviços, centro de bibliografia, rede de informação, vem tão escondido que tememos tratar-se de palavrão, proibido a crianças desavisadas ao mergulharem no mundo da informação.

Não me absolvo enquanto profissional da área, porque atirado na rotina das questões pontuais, prescinda de utilizar os recursos de marketing, empregando as ferramentas indispensáveis para mostrar a biblioteca ao mundo, colocando-a no lugar em que merece, seja através de blogs, fóruns, ou na solicitação insistente aos órgãos responsáveis pela divulgação, corroborando assim na luta ferrenha para mostrar nosso trabalho.

Que a biblioteca não seja propagada, abençoada, aliciada, almejada, amada somente nos períodos de eleição, mas que seja plena, visível e alicerçada em suas metas, durante o ano todo. Que cumpra a sua missão, que identifique os seus recursos, que indique caminhos, que vislumbre trajetórias novas e ágeis, que ouse.

Talvez, assim, sigamos o exemplo do Sr. Valdelírio Nunes de Souza, um verdadeiro bibliotecário, cujo único título é reconhecer na sua concepção de vida, um projeto maior, no qual faz as escolhas que seu coração exige. Não apenas um especialista em sua área singular, um mestre na redoma ou um doutor em campanha.

Que sejamos assim, Valdelírios em nossa trajetória profissional e de vida, porque o mundo não espera, a roda das oportunidades e decisões gira e outros tomarão o nosso papel.

domingo, abril 24, 2016

Olhar noir

Nem sabia se devia sair, mas em dado momento, sentiu-se mal. Uma mulher de sua estirpe, por mais que aquele povo representasse a elite, havia entre eles alguns estapafúrdios, que demonstravam uma dissonância com o movimento, que a deixava irritada.

Estava muito calor, homens suados e sem charme, vestidos em camisetas bregas pedindo autógrafos e às vezes, dando encontrões maliciosos. Se ao menos partisse de um garoto malhado, barriga tanquinho, barba mal feita e boca sensual, daquelas que suplicam um beijo cinematográfico. Que nada, havia até uns velhos decrépitos, de bermuda branca e sandalha de velcro, uh, que coisa execrável! Era hora de dar o fora, uma atriz de seu cabedal, filha de militar, que fora casada com diretores e até mágicos, inclusive se tornado virgem a pedido do policial, aquele cafajeste! Mas deixa pra lá, agora ela ainda dá os seus pitacos nos novinhos!

Afastou-se do grupo constrangedor. Ouvia o seu nome a todo momento, Susi Silveira, Susi Silveira, o que produzia uma amaciada no ego. Entretanto, havia alguém diferente na turba famigerada: um rapaz fascinante, que a atraiu de imediato. Percebeu o seu olhar incisivo, revelando um sorriso que a desconcertava. Foi num destes mimos que a vida às vezes nos propicia, que o viu aproximar-se, segurar-lhe o braço, e em seguida envolver-lhe a cintura. Ela o beijou com avidez, enfiando a língua naquela boca sedenta, girando até o céu da boca e sentindo o hálito quente e agradável de um verão que retornava.

Chamou seu assessor e pediu que o motorista os levassem para um bar descolado, bem afastado da praia. Descobriu que estudava publicidade, sonhava em ser ator e a considerava uma mulher encantadora, além de ter enorme tesão por suas pernas perfeitas. Susi estava feliz: não é sempre que aparece um deus assim!

Em seguida, foram para o seu apartamento na Barra, um local onde os paparazzi não a encontrariam. Cumprimentaram o porteiro e ela o beijou com despudor no elevador.

No quarto, a sacada para a praia, o rapaz com o olhar perdido ao longe. Ela tomou um banho e voltou envolta na toalha. Pediu que ele fizesse o mesmo, mas de modo inusitado, ele disse que desceria para tomar ar. Garantiu que voltaria com enorme tesão, o que a deixou mais animada.

Esperou como uma dama. Quem sabe, seria este o seu novo amor? Porém, o tempo passou e o rapaz não voltava. Ligou para o porteiro, sem obter resposta. Ficou ansiosa. Se aquele cara fosse um marginal, um bandido? Não, ele era um estudante que lutava contra a corrupção, um cara da zona sul, da elite.

Vestiu-se, desceu os 23 andares e observou da porta do elevador, que o silêncio imperava no prédio. Dirigiu-se à portaria. Não havia ninguém. Caminhou pelo hall do edifício e avistou a sala dos funcionários.

Aproximou-se, tentou bater na porta, mas aquietou-se, quem sabe, o porteiro estava ali, cumprindo alguma tarefa. Mesmo assim, decidiu entrar, precisava saber onde estava o rapaz que … afinal, como era mesmo o seu nome?

Empurrou a porta com força e na penumbra, ouviu suspiros e frases inintelingiveis. Seus olhos acostumaram-se um pouco e percebeu que dois homens nus disputavam um prazer que se revelava quase em desespero, resgatado em suas bocas, seus corpos, seus membros intumecidos. Tudo isso ela viu, até mesmo o olhar que se projetou, quase num foco de cinema noir, aqueles olhos claros e límpidos que a encaravam transtornados.

Lá embaixo, o assessor sorrindo, feliz pela ousadia da amiga correu ao seu encontro, perguntando, curioso: – Então, não me esconde nada! Como é que foi, amiga?

O motorista encostado no carro, levantou os olhos do visor do celular e misterioso, exclamou: – Por essa, nem Bolsonaro esperava!

sexta-feira, abril 08, 2016

OS DEZ TEXTOS MAIS ACESSADOS DO BLOG

1º O uruguai e seus carros antigos

2º Metáforas cruéis: desqualificação de mulheres e negros

3º Trabalho voluntário no Hospital Psiquiátrico: uma provocação para a vida

4º Um passeio no gordini, com meu pai

5º Pequena resenha do filme “De porta em porta”(Door to door)

6º Minha apreensão da vida e a dos outros

7º Caminhos traçados

8º Comentários emocionantes sobre a crônica “Refugiados em seus sonhos publicada em abril/2015

9º O amor e a piedade: sentimentos distintos

10º Uma diretora valente

quinta-feira, abril 07, 2016

Roteiro de viagem

Parodiando o conto "Circuito fechado"de Ricardo Ramos, eu fiz como exercício para nosso Curso de Formação de escritores o conto "Roteiro de viagem".
Quarto.cama.travesseiro. criado-mudo. alarme. celular. pijama. banheiro. sanitário. pia. sabonete.dentifrício. escova. boxe.chuveiro.toalha. pente.cabelo. cueca. camisa.calça. meia. sapato.agasalho.carteira. mochila. celular.sala.chave. porta.quadra.esquina.rodoviária. box. ônibus. carteira. passagem. poltrona.celular. tablet. sono. manhã.pessoas. conversas. ruas. sinaleiras. rodovia. paradouro. comanda.banheiro. mictório. pia. toalha.bufê.sonho. café.balcão. mesa. cadeira.café. sonho. adoçante. guardanapo.caixa.comanda.tridente.carteira. dinheiro. ônibus. poltrona. celular. tablet. livro. textos. sono. conversas. sons. celular. buzinas. rodovia.rodoviária. banheiro. mictório. descarga. pia. sabonete. toalha. restaurante. salada de frutas. café. tridente.táxi.motorista. conversas. ruas. sinais. placas. veículos. trânsito. engarrafamento. viaduto. celular. mensagem. mulher. filha. mensagem. whatsApp. farmácia. prédio. portaria. porteiro. elevador. sala. curso. pessoas. professora. cadeira. mochila. piso. folhas. café. balas. conversas. café. aula. ar. celular. pesssoas. elevador. portaria. porteiro. ruas. táxi. motorista. gps. conversas. ruas. sinais. trânsito. engarrafamento. viaduto. celular. mensagens. carteira. dinheiro. rodoviária. guichê. passagem. restaurante. café. pastel. água. tridente. box.ônibus. poltrona. celular. tablet. sono. rodovia. noite.paradouro. comanda.café. croassant. mictório. pia. sabonete. toalha. balcão.caixa. comanda. carteira. dinheiro. ônibus. poltrona.sono. silêncio. rodovia. ruas. cidade.centro. mochila.agasalho. rodoviária. esquina. quadra. porta.chave.sala.mulher. filha. conversas. quarto.sapato. meia. calça. camisa. cueca. toalha. boxe. chuveiro. pia.escova. dentifrício.pijama. quarto.criado-mudo.celular.cama.travesseiro.sono.

quinta-feira, março 31, 2016

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI EM FLORES II

Rosas se espalhavam pelo alambrado, tingindo de vermelho o cenário, no qual se avistavam pequenos pedaços de azul da parede do prédio.

Quase não se via o outro lado da cerca, tão fortes estavam as rosas.

Tínhamos a impressão que o verde era apenas um adereço à beleza e ao perfume que revelavam.

Houve momentos em que cresceram tanto, que atingiram o jardim por trás da cerca, envolvendo-se nas margaridas, nas frágeis papoulas ou nos vigorosos cravos amarelos.

Achavamos que o vermelho suplantava as cores da discórdia, do ódio, da intolerância.

Pensávamos que o desafio estava tomado, que o sangue vertido nas lutas pela democracia representava os anseios de uma sociedade fragilizada por anos e anos de dissociação cidadã de sua pátria. Achávamos por fim que a sociedade estava madura.

Mas as pétalas foram caindo aos poucos, lentamente, no subterrâneo dos insetos devoradores, minando as raízes, as folhas, os galhos. Minando o verde da esperança até chegar no vermelho. O vermelho símbolo de tantas lutas, para estas formigas, pulgões e toda a sorte de predadores estimula o ódio, a intolerância, o desamor, o desrespeito, o embate furioso contra as leis, contra a democracia, o golpe.

Pois as pétalas se espalhavam, as rosas vermelhas que enfeitavam e transformavam milhares de cenários cinzas e pobres em espaços de esperança e melhoria, hoje estão sendo dizimadas através da mão canhestra do carrasco, até mesmo dos alienados que seguem o fluxo dos desinformados (ou manipulados).

Mas o mundo gira, e as flores tem a temperança da natureza, há tempo de brotar e por certo nem todas serão destruídas, porque a terra é fértil e o adubo está aí, pra ser espalhado.

terça-feira, março 22, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XXII

HOJE, TERÇA-FEIRA 22/03/2016, APRESENTAMOS A SEGUIR AS EMOÇÕES FINAIS DE NOSSO FOLHETIM RASGADO, O 22º E ÚLTIMO CAPÍTULO DE PÁSSARO INCAUTO NA JANELA. OBRIGADO PELOS LEITORES QUE ACOMPANHARAM A HISTÓRIA.

Capítulo 22

Úrsula ouviu barulho no elevador e alertou os ouvidos, na espera de que o alvo fosse o seu endereço.

Atualmente, vivia sempre esperando que alguém chegasse, e a convidasse para tomar um chá, passear pelo parque, ou quem sabe, sobreviver numa dose de uísque.

Provavelmente Dulcina voltava para a faxina, quando bateram na porta, entretanto, seu coração bateu acelerado. E se fosse Susana, se o tribunal do júri a tivesse absolvido e ela estivesse pronta para acompanhá-la na maior pesquisa de sua vida.

Com algum esforço, antecipou-se até a porta. Abriu-a rapidamente, machucando a mão na maçaneta.

Não conseguiu evitar a decepção, quando um homem a aguardava com uma calma indefinida no olhar. A barba crescida, totalmente branca, o cabelo alinhado, embora ralo, com uma leve caída desenhando o perfil.

Úrsula percebia alguma coisa familiar naquela figura, mas não conseguia identificar o quê.

Seu coração estava aflito, apertado e por um momento, estremeceu completamente. Teve a ilusão de que Jaime estava ali, a sua espera, talvez para acusá-la de não ter participado como ele do movimento contra o regime, ou por não ter colaborado na sua biografia.

Sentiu-se fraca e temendo cair, acomodou-se na coluna próxima à porta e ficou ali, paralisada, como se estivesse à frente do espectro do marido. Ou do carrasco.

Um suor intenso inundava-lhe as têmporas e nem o sorriso afável do homem a afastava do torpor que sentia. Ele, percebendo que alguma coisa desagradável acontecia, apressou-se em apresentar-se.

–Úrsula, não está me reconhecendo? É normal, faz tanto tempo. Mas olhe, você é a mesma de quando a conheci.

Ela não reagiu. Nenhuma palavra articulava. Quem era aquele homem? O que queria dela? Como sabia o seu nome e lhe falava com tanta intimidade que a deixava ainda mais apavorada?

– Desculpe, acho que não vim num bom momento. Eu sou Gregório Bastos, o professor de português, lembra, amigo de seu marido.

Gregório Bastos, sim, como ela poderia esquecer. Era ele, um ativista que fora torturado durante muitos meses, tendo que se exilar do Brasil e que participara de todos os movimentos ao lado de Jaime. Além disso, eram extremamente amigos.

Agora percebia aquele mesmo olhar tranquilo, a voz clara, a linguagem correta, como se estivesse sempre dialogando com os alunos.

Não havia dúvidas, era ele. Apenas mais velho, com os cabelos e a barba branca, mas os mesmos olhos claros na pele avermelhada, o mesmo jeito brando e agradável de segurar a mão com firmeza num cumprimento demorado. O mesmo tom seguro ao dizer o que pensava.

A repressão o teria transformado? Quem era aquele homem após tantos anos?

– Bem, acho que realmente estou importunando você, mas não se preocupe. Eu voltarei outro dia.

– Não, por favor, fique – respondeu com voz sumida. Ele sorriu:_agora me reconheceu, Úrsula?

– Sim, Gregório. Eu o reconheci.

– O tempo passou e a gente se afastou demais. Mas há um momento para o encontro, quem sabe é agora, não é mesmo?

Ele tinha esta mania de instigar uma atitude, mesmo que não se quisesse. Além disso, sempre tinha uma solução para tudo. Um conciliador. Um homem de bem.

– Entre, Gregório. Pode acreditar, estou muito feliz que esteja aqui. É que ainda não me recuperei do susto.

– Pensou que eu estivesse morto?

– Não, é que faz tanto tempo e há muitas lembranças deste passado.

– Não vamos ficar falando em tempo, porque ele só existe porque falamos nele. O tempo é o que vivemos, registramos. Se não fazemos nada, nada significa. Não é tempo. Que nos interessa a ampulheta desandando aquela areia, nos deixando malucos? Interessa-nos a vida que vivemos no dia a dia, na cumplicidade dos gestos simples e solidários, do viver parelho, não paralelo. Você também não pensa assim, Úrsula?

Ela sorriu, ainda um pouco zonza. Confessa que ficara meio confusa com a conversa, mas pede que entre.
Gregório prossegue, entusiasmado. Segura as suas mãos e acrescenta, carinhoso : – desculpe se a embaracei Úrsula, juro que não era minha intenção. Ela afasta as mãos e recua um pouco o corpo, num recato que nem sabia que ainda experimentava. Um leve fulgor invadiu a face.

Gregório entra e instala-se no sofá, sem antes observar o velho piano em que recorda Úrsula tantas vezes, ali sentada, tocando suas eternas canções, embalando os sonhos de todos que se reuniam naquela sala.

– Você se lembra, Úrsula? Enquanto nós ficávamos horas discutindo estratégias para atingir o inimigo, você ficava no seu piano, um pouco distante, enchendo nossos ouvidos, pelo menos de alguma poesia.

– Não me lembre isso, me sinto tão culpada.

– Que isso, não se sinta culpada. Você deixava o ambiente menos tenso. Nós gostávamos muito.

–É verdade?

–Claro. Jaime nunca lhe falou?

–Jaime dizia tantas coisas para me agradar.

Os dois silenciam por um breve momento. Úrsula então decide oferecer-lhe uma bebida.

–Não se preocupe comigo, Úrsula. Já não bebo como antigamente, acho que nenhum de nós, não é mesmo? De qualquer maneira, o que eu gostaria mesmo é de um cafébem forte. O café aguça a mente.

Úrsula se esquiva, indecisa. Dulcina não está, teria que ir à cozinha, deixá-lo ali e não conseguia entender a si mesma, mas sentia-se impedida, os gestos imprecisos. Estava ainda perturbada.

Ele percebe a hesitação.

– Se você não se importa, eu lhe ajudo a fazer o café.

–Não diga isso.

–Digo sim. Vamos para a cozinha que eu mesmo preparo. Nestes anos todos sozinho, eu aprendi tudo nesta minha vida.

–Você está sozinho?

–Há mais de dez anos que Berta me deixou. E não tivemos filhos, você sabe.

Ela não sabia. Na verdade, não sabia nada sobre o seu passado recente. Enquanto se dirigem à cozinha, ele conversa com uma energia que a surpreende.

Uma pergunta não lhe sai da mente: qual é o motivo da visita.

Enquanto tomam o café, Úrsula fica mais à vontade. A mesa, às vezes, une as pessoas, talvez pela proximidade, por estarem no mesmo nível, por partilharem do mesmo prazer. Não sabe. Ele parece adivinhar a indagação.

– Não lhe disse que o café aguça a mente, deixa a gente mais solto, mais vibrante? Você me parece bem melhor.

Úrsula irrita-se com a observação. Quem é ele para julgar o seu estado de espírito. Ele então, complementa.

–Eu também sou assim. Quando alguma coisa me incomoda, quando recebo uma visita inesperada, às vezes, até desagradável, convido para um café. Assim, fica-se mais perto da pessoa e se desenvolve melhor o raciocínio. Esta bebida sagrada também ajuda.

–Então é um estratagema seu. Você pediu o café de caso pensado.

–Sim e não. Na verdade, eu gosto muito de café e pensei que você também gostasse. Por outro lado, é uma boa desculpa para ficarmos mais próximos, você não acha, Úrsula?

–Não sei, Gregório. Até agora, eu não descobri o motivo da sua visita. Tem um motivo, não tem?

–Naturalmente. Desde que eu conheci o Vinícius, tenho pensado muito em você.

–Vinícius?

–Você não o conhece?

–Nem imagino de quem se trata.

–Ah, então me desculpe. Acho que fui indelicado. Mas pelo que ele me falou, eu tinha certeza de que vocês se conheciam, inclusive porque ele está trabalhando na biografia do Jaime.

–Trabalhando? Como assim? Quem está fazendo a biografia do Jaime é Susana Medeiros, a jornalista do Diário de Hoje.

– Ah, exatamente. Não se inquiete, Úrsula, não há equívoco nenhum, nem ninguém está roubando o trabalho da sua jornalista. É verdade, ele me falou sobre ela. Inclusive, pensei que fosse me procurar, porque segundo ele, sou uma fonte privilegiada.

–Mas quem é este tal de Vinícius?

–É o editor do jornal, o chefe dela. Está muito interessado na biografia. Pretendem fazer uma série de reportagens revelando ao público o período de exceção que o Brasil viveu. Querem mostrar a cicatriz, revelar a ferida, sem esconder nada. Espero que ajude à sociedade a analisar o movimento como um período histórico que deve ser discutido, aprofundado, sem medo. Não há mais motivo para se esconder mais nada neste País, você não acha? Devem abrir os porões da ditadura. Você não acha isso, Úrsula?

–Gregório, você tem essa mania de querer sempre a minha opinião. Eu não sei de nada.

Ele a fita, afetuoso. Fala pausado.

–Você tem razão, Úrsula. Eu não devo questionar nada, nem ninguém. Mas como lhe disse, tenho pensado muito em você, desde que conheci o Vinicius. Agora, você já sabe o motivo. É porque quero ajudar esta moça a concluir o seu trabalho, quero que além das reportagens, ela publique um excelente livro, em que a verdade venha à tona. Que a história de Jaime seja um exemplo, para que nunca mais em nosso País, aconteça algo semelhante ao que lhe aconteceu. Você não concorda? Espere, espere, não vou perguntar nada.

–Mas eu concordo, Gregório. Eu concordo e juro que vou ajudá-lo. Jaime será o protagonista que exemplificará toda a saga de horrores que a nossa geração vivenciou e lutou contra. Ou pelo menos, a geração mais nova do que a minha, que foi muito atuante. Jaime e você foram quase exceções. Já eram homens maduros, estabilizados em seus empregos que resolveram compartilhar suas ideologias, lutar por suas ideias. Pensar um País diferente para nossos filhos e netos. O que eu não fiz naquela época, o que omiti, vou fazer agora, de uma outra maneira, é claro, mas vou tentar participar.

Jaime segura-lhe as mãos com carinho. Percebe que uma lágrima escorre rápida pela face de Úrsula.

–Você fez, Úrsula. Você fez muito. Você o amou.

Ela levanta a cabeça e por um momento seus olhares compartilham da mesma visão, vendo um no outro, o que seus corações balbuciam baixinho, indecisos, à espera.

Úrsula desfaz-se do enlevo, soltando-se as mãos e levantando-se, dirige-se à sala, sendo seguida pelo olhar afetuoso de Gregório.

Ela dá alguns passos, tamborila levemente as teclas do piano, aproxima-se da janela, mas não olha para a rua. Como um pássaro incauto se debate na vidraça. Mas só por um instante.

Agora desfruta a quietude da alma.

Instintivamente, levanta a cabeça em direção ao quadro de Rita Rayworth. Volta-se rapidamente e torna a olhar, porque tem a impressão de que ela piscou o olho, maliciosa.

FIM


sexta-feira, março 18, 2016

Pra não dizer que não falei em flores

A manobra foi lenta e gradual. Bem estudada, desenhada segundo os meandros mais complicados que se apresentavam.

Usava-se das estratégias arquitetadas com cuidado, apreensão, focalizando o ponto de partida, que seria a vitória final. Sem retrocesso, sem voltar ao ponto de partida, sem pedidos esdrúxulos de recuos providenciais ou renúncia ao poder tomado pelos dedos fortes que empunharam as bandeiras das escolhas.

E a mão foi firme, optando por linhas vibrantes, que condissessem com os objetivos do desenho, principalmente, no ferir despudoradamente o tecido, sem antes porém escolher a dedo o fio necessário, aquele que abrange todo o molde, transformando uma imagem disforme num alto-relevo emergente.

Usar o dedal com precisão, para que não se esparja o sangue e arruíne a estrutura, puxar devagar a linha, com cuidado, quase com carinho, enfiando-a na agulha e trazendo para próximo ao peito, para não perder o equilíbrio e deixar que se escoe por entre os dedos, como água que jamais será retomada.

Esquecer o carretel ou o novelo e focar nas meadas, nas quais as linhas se dispõem paralelas revelando os vários tons, permitindo o descortinar da criatura sendo produzida.

Assim se deu a manobra lenta e gradual de se mostrar o talento no desdobrar do bordado, desde as costuras mais simples, porém necessárias, até os floreios mais personalizados.

quinta-feira, março 17, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XXI - PENÚLTIMO

A SEGUIR (17/03/2016) O 21º CAPÍTULO DO NOSSO FOLHETIM RASGADO "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA". ESTE É O PENÚLTIMO CAPÍTULO. NA PRÓXIMA TERÇA-FEIRA, DIA 22/03/2016, APRESENTAREMOS O ÚLTIMO CAPÍTULO DE NOSSA HISTÓRIA.

Capítulo 21


Fonte da ilustração: Blog "Vientos del Brasil"http://blogs.elpais.com/vientos-de-brasil/2013/10/ de Juan Arias

Não se pode afirmar que tudo transcorre na rotina, que um dia sobrepõe ao outro naturalmente, sem que nada de novo aconteça.

Sempre que olho na janela, ainda vejo resquícios do dia anterior, ou das noites que passaram insólitas sem me trazer nada de bom, as não ser as dores habituais nas costas, na alma, no coração. Talvez Susana seja condenada, não por ter realizado a eutanásia, mas por homicídio, tudo porque uma testemunha a viu abreviar a vida do pai. Estes casos não chegam à justiça, porque o médico age a pedido do doente ou dos seus parentes, se incapacitado para tomar alguma decisão sobre a sua vida. Talvez este seja o primeiro registro de alguém condenado por eutanásia no Brasil e eu não pude fazer nada para ajudá-la.

Não adiantaria ceder às chantagens de Roberta Célia, porque ela teria sempre este trunfo nas mãos, para viver eternamente acusando-a.

Não, o melhor seria enfrentar a situação. Ela precisava recuperar o passado, exorcizar de sua vida o peso da culpa e do remorso, mais em função da sociedade do que de seu espírito. Enquanto a justiça elabora o processo, seu advogado encontrou um atenuante, visto que o destino inexorável, também lhe reservou pequenas brechas para a salvação.

Após voltar de uma entrevista, cumprindo a pauta de jornalista, deixara o gravador ligado, sem jamais imaginar que registraria para sempre o último pedido de seu pai.

A justiça, às vezes, se dá, por caminhos estranhos.

Eu estou só, ainda na minha janela, não tenho o velho para espionar, nem pessoas interessantes surgiram para que tivesse um novo cenário para passar o tempo.

Entretanto, se por um lado, estou tranquila, porque não estou tão solitária, por outro, sinto-me atingida por extrema angústia, por ter ficado ausente ao clamor dos que lutavam na ditadura, quando Jaime era uma voz urgente na imprensa, quando se reunia a grupos para travar lutas que denunciavam os desmandos que ocorriam no País.

Esta angústia hoje me consome, porque desperdicei a oportunidade de me envolver, de tomar uma atitude ativista. Ao contrário, me exilei da história, me omiti entre os combatentes do regime, me acovardei.

Quando Jaime foi até Serra Pelada e fez aquela matéria que incomodou tantos os militares, eu não me rebelei, não fiquei inteira do seu lado. Ao contrário, me insurgi contra ele, achei que estava se envolvendo em seara alheia, que não devia se meter em política. Mas eu também fazia política, só que do lado contrário, apoiando de certa forma a tese do regime vigente. É o que pretendiam, alienar a população, execrar qualquer opinião contrária, subjugar as ideias. Eu me omiti. Ficou-me este soco no estômago, este vazio, esta vontade de gritar, de dizer-lhe porque me intimidei, porque não fui até os quartéis, porque não o procurei em desespero.

Talvez por isso, eu resista tanto em expor a sua história, em mostrar o seu engajamento contra a repressão, a sua ousadia, o seu heroísmo. Talvez, eu somente me importe comigo mesma, porque sei que a vida dele é muito mais valorosa, muito mais digna, muito mais interessante e exemplar, para ser contada. Tudo, porque lutou e foi um homem amoroso com o seu país, com a sua pátria. Não queria entregá-la de mão beijada nas mãos dos torturadores, dos usurpadores da vida brasileira, dos queriam transformá-la num reduto onde poucos tinham privilégios e o povo se alienava empanturrando-se de futebol, carnaval e a falsa integração nacional.

Sinto o grito na garganta, o grito que não dei, a marca que não deixei, o gosto amargo que engoli.

Sinto-me fraca e triste.

E quanto mais ele se sobressaía na sua fortaleza, menor eu me tornava.

Agora, não mais importa. Alicerçava a minha dor na perda de meu filho, no ódio de minha nora, na indiferença de meus irmãos, na irritação com Dulcina, no cuidado com o velho do apartamento da frente, na dificuldade de meu passado, na insônia interminável.

Agora eu sei que somente queria esquecer o passado que negligenciei neste longos anos de pesado arbítrio.

Eu nunca levantei bandeira, nunca o segui, nunca o apoiei o meu marido na atividade política.

Ao contrário, me acomodei na minha profissão, transformando o pranto de tantas Marias e tantos Jaimes, lá fora, em notas musicais no meu piano. E, infelizmente, eu tinha conhecimento de episódios terríveis, sangrentos, em que o cidadão comum era apontado como um pulha, um homem de segunda categoria, que não deveria sequer ser ouvido. O que na verdade valia, era a força, a exceção, o arbítrio, o poder autoritário.

Todos se acovardaram. Todos temeram por suas vidas, sua estabilidade, seu canto. Ele, entretanto, lutou como pôde, até morrer. Até ser preso, torturado, transformado num ser desfigurado, sem pensamentos, sem linguagem, sem opinião, sem atitude, sem vida. Podaram-lhe a liberdade, quando o impediram de escrever, quando o impediram de transmudar em realidade o que via pelas lentes obscuras da censura.

Ainda há esta ferida aberta, que não cicatriza, enquanto o processo político sofrido pelo País nos anos de chumbo não for devidamente aprofundado, para mostrar às futuras gerações, a nossa história real, sem o dourar conciliador e cínico da grande mídia.

Ainda me pergunto e me questiono, o que realmente aconteceu com Jaime, enquanto centenas de mulheres deste País devem se fazer as mesmas perguntas, a cerca de seus maridos, seus amantes, seus filhos. Elas talvez tenham tido a dignidade de gritar também naqueles dias cinzas e nublados. Eu apenas conservei os meus dias de luz.

Ainda bem que acordei em tempo para ajudar Susana a escrever o livro. Ninguém mais tomará o lugar de Jaime.

terça-feira, março 15, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XX

HOJE TERÇA-FEIRA 15/03/2016 PROSSEGUE NOSSO FOLHETIM RASGADO, COM MAIS REVELAÇÕES. QUEM SERÁ O HOMEM QUE ÚRSULA VÊ NA JANELA DE SEU APARTAMENTO? ESTA E OUTRAS RESPOSTAS ESTÃO NO 20º CAPÍTULO A SEGUIR.

Capítulo 20

Imagine, Dulcina, que não entendia o que acontecia naquele cenário clean, preparado ao gosto antisséptico de meu irmão. Ele tinha o controle de tudo, de quem conhece todos os segredos, de quem possui todas as chaves, todas as respostas.

Ele olhou-nos a mim e a Susana como se fôssemos seres de outro planeta. Eu, porque estava velha e acabada, ela porque era uma estranha no ninho, embora, com o passar do tempo, percebemos que não era tão estranha assim.

O teatro foi planejado com muita competência. Imagine que Roberta Célia estava lá, sentada a minha frente, e ele sabe que a odeio. Além disso, teve a desfaçatez de dizer que sempre sonhou que nos tornássemos amigas, algum dia! Eu tive vontade de virar aquela mesa com vasos e lírios e tudo o mais que tinha em cima. Não fiz nada, me controlei como pude. Para ele, o que menos interessava naquele momento era o falecido, que jazia no salão enorme somente guarnecido por empregados regiamente pagos com a fortuna que ajudou a construir, tenha certeza.

Era apenas o fio condutor de toda a trama, o protagonista da urdidura magistralmente arquitetada. Inclusive, fez um discurso emocionado sobre a convivência de cada um dos presentes com Brian. Por fim, ele desferiu o último golpe, manipulando cuidadosamente os fios, sem qualquer constrangimento. Foi neste momento, que se dirigiu à Susana: inclusive você, Susana. Por isso está aqui e tem o direito de saber quem é.

Não houve vivente que não se voltasse imediatamente para ela, como se estivesse envolvida numa trapaça indefensável. Falavam entre si, tecendo comentários, indagando-se uns aos outros do que se tratava. Eu percebi que até os funcionários mais chegados, que vieram com Carlos do exterior, manifestavam-se. Parecia que uma catástrofe se abatia entre nós. Até a maldita da Roberta Célia perguntou alguma coisa ao advogado. Este mantinha-se quieto, com certo ar de desdém, como se também ele tivesse sua própria opinião sobre o caso.

Ao ver Susana vermelha, sem saber o que dizer, perguntei-lhe de imediato, curiosa e intrigada com a situação. Na verdade, estava tão indecisa quanto ela. Vi os olhos frios de Roberta Célia me alfinetando com uma fúria desconhecida. Carmem silenciara após uma reprimenda ao namorado.

– Como assim? Eu nunca o vi, antes.

Carlos foi convincente. – Você viu, sim. Você conviveu com ele, em mais de uma oportunidade, tanto no hospital, quanto... bem, no apartamento, você não chegou a visitá-lo, pelo que eu saiba.

– No hospital?

– Quer que eu refresque a sua memória, Susana? – Roberta Célia perguntou, irônica.

Não contive a raiva: – o que esta megera tem a ver com isso?

– Quando seu pai estava internado naquela clínica, Brian também havia se hospitalizado, na mesma época. Ele voltou para casa dentro de uma semana, mas seu pai, sinto muito – meu irmão encerrou num hiato. Susana gritou, arrebatada, antes de se afastar rapidamente da sala.

– Agora entendo onde vocês querem chegar. Foi tudo arranjado.

– Susana, minha querida, volte aqui. Espere, eu vou com você.

Carlos aproximou-se e segurou-me o braço.

– Deixe-a minha irmã. Não temos nada com a dor dela. Ela se consome aos poucos. É seu fado, seu destino.

– O que vocês querem com ela, seus miseráveis? Que palhaçada é esta? Quem é este Brian que depois de morto quer nos destruir a todos?

–Vá até a sala, minha irmã. Olhe o homem que está lá. Veja com seus próprios olhos e depois me diga, se não o conhece.

Desvencilhei o braço com raiva. Chamei por Susana, mas ela descia as escadas tão rapidamente, que não consegui alcançá-la.

Aproximei-me do caixão, ante o olhar disperso dos funcionários que velavam o corpo. Não consegui refrear o espanto. Minha voz elevou-se sonora e atormentada.

– Meus Deus! É o velho! O velho assassino! O que ele está fazendo aqui?

Carlos já estava ao meu lado, pousando delicado a mão sobre meu ombro.

– Ele nunca foi assassino. Brian era um doce de criatura. Era um anjo.

– Eu sei, ele matou a esposa e a emparedou.

– Não seja boba. A doença de Brian o deixava alucinado. Tudo que ele via ou lia, tal como filmes ou romances, ele creditava a si próprio. Brian nunca foi casado, nem teve filhos.

– Mas e Gustavo? Ele falava de Gustavo, o filho. Ele tinha remorsos.

– Era uma das histórias que havia lido e adotado como suas. Era um homem bom minha irmã e você esteve tão próxima a ele.

–E por que você não me contou?

– Não tive coragem de lhe pedir nada. Afinal, você me culpava por não ter comparecido ao enterro de seu filho, não era justo que eu pedisse qualquer coisa pelo Brian.

– Mas você esteve ali, com ele?

– Nunca. Apenas pagava profissionais para cuidarem dele, até o fim. Agora, você já sabe, porque o conhecia.

– Por que ali, meu Deus, defronte a minha ao meu apartamento?

– Há coisas que não se explicam minha irmã, como nos folhetins baratos. Ou melhor, tem uma explicação sim, se lhe interessa. Brian morava naquele bairro, aliás, eu o conheci, numa das poucas visitas que lhe fiz. Então, nada mais digno do que encontrar um lugar próximo onde ele sempre viveu.

– E Susana, por que você a humilhou desta maneira?

– Não, você esta enganada. Apenas eu queria que todos soubessem que convidei as pessoas que conviveram com Brian de alguma maneira, mesmo que à distância, como você.

– Que coisa absurda, irracional. E ainda traz aquela zinha para nos azucrinar. Sabe que ela esta fazendo chantagem com Susana?

– Não me envolvo nestes assuntos, minha irmã. Mas voltemos, a reunião está no final e não quero perturbar ainda mais o Brian com esta conversa sem sentido. Vamos?

–Vou pra minha casa. Vou atrás da minha amiga, não vou deixá-la sozinha neste momento difícil. Vocês armaram uma arapuca, pois que se prendam sozinhos nela.

–Você é uma ingrata, Úrsula.

–E você é um palerma. Infelizmente, não passa disso!

sexta-feira, março 11, 2016

A GOTA DERRAMOU

Sabia o quanto ainda o esperaria. Guardou os chinelos, desfez-se do roupão e deu uma arrumada na casa. Tinha consigo que precisava cumprir o método. Rotina. Repetida, contínua, perfeita. Não devia se prestar a devaneios, a pensar coisas que não se referissem à família. Bem que pensava em si, às vezes. Pensava numa vida fulgurante, cheia de brilhos, luzes ofuscantes nos olhos cinzentos. Como seus olhos poderiam ter um tom assim? A mãe, via de regra, a chamava de olhos de gato. Achava-a, no fundo, estranha. Mas que fazer, se até sua mãe a criticava com tanta acidez.

A vida lhe parecia dura, às vezes. Era uma mulher perfeita: boa mãe, ótima esposa, excelente dona de casa. Não era uma mulher de seu tempo. Não trabalhava fora, como as amigas. Amigas? Muito poucas, aquelas que sobraram dos bancos de escola, das poucas baladas que participara, das noites de verão, quando ficava na casa de uma tia, lá em Florianópolis. Eram dias felizes, em que conhecera rapazes diferentes dos de sua cidade. Talvez pelo clima, ou pela liberdade das férias, traziam consigo uma vivacidade e delicadeza que ela desconhecia.

Mas foi por pouco tempo. Logo voltou à vidinha medíocre de balconista de farmácia. Sabia de cor todos os medicamentos, pelo menos, os mais usados ou mais vendidos. Costumava dar conselhos, indicava alguns, informava os benefícios, investia no cuidado com os presumíveis compradores. Era assim o seu jeito, calma, despretensiosa, desinteressada, quase amiga.

Depois conheceu Fábio. Foi no ano em que faria vestibular. Pretendia cursar letras, nem sabia bem o porquê, talvez porque gostasse de ler. Isso, faz até hoje. Gosta de esparramar-se na cama, enfiar os óculos na ponta do nariz e ler horas a fio os romances mais melosos que encontra. Neles se transporta, viaja a países em que o coração é protagonista. E sente-se ali, envolvida no cenário, como se fizesse parte da trama. Vive e vibra com os personagens. Isso se intensificou desde que casou. Passou a ler com mais frequência. Uma das atividades das quais Fábio não dá a mínima importância. Ainda bem. Nestes momentos, se sente livre, dona de si, tranquila.

Quando casou, desistiu do vestibular, desistiu do curso de letras, desistiu da faculdade. Casou. Era o sonho. O sonho de toda uma geração, talvez não da sua, mas a de sua mãe, ou sua avó. Faz tempo que ocorreu o movimento feminista. Mas ela nunca concordou com aqueles extremos. Homem é homem, tem as coisas de homem. As dificuldades de homem, os desejos de homem, as necessidades de homem. Homem luta, homem provém, homem vence. Mulher é diferente. Mulher é suave, doce, caseira, vive para a família. Mulher observa, aplaude, é plateia. Mulher agradece, obedece. Mulher é romântica. Mulher ama.

Ela pensa muito nisto e talvez por isso tenha vivido uma vida tão coerente com sua realidade. A realidade de uma dona de casa.

Bem que de vez em quando, surge aquela faísca que lhe atinge os olhos de gata cinza e dá uma sacudida na alma. Um estremecer nas pernas. Um tremor no coração. E se fosse tudo diferente? Se a vida existisse além da cozinha, além dos cuidados da casa, dos filhos, do marido. Se ultrapassasse aquela janela de vidro, opaca pelo sereno da manhã e atingisse os trilhos que passam ali, tão perto, quase ao lado? Uns trilhos que se perdem e se encontram, embora paralelos, com outros, formando novos caminhos? Uns trilhos que a conduzissem a outros extremos, outras saídas, que permitissem ações de conquistas e aventuras? E se seu nome não fosse Maria Helena? E seu marido não fosse Fábio Costa? E se não tivesse marido? E se tivesse um amante?

Agora estremece as mãos, que esfriam rápidas e as bochechas fervilham, vermelhas. Por momentos, morde as bochechas por dentro, fazendo um gesto de desgosto ou displicência, não sabe.

Sente forte remorso. Lembra do marido, tão solícito, trabalhando duro para manter uma vida digna. Lembra dos filhos correndo pelo shopping, em busca dos brinquedos, dos lanches, dos jogos, enquanto ela passeia pelas lojas de departamentos, procurando blusas para compor o visual para um passeio que não fará.

Se pudesse voltar a praia, caminhar descalça pela areia, sentindo a espuma bordar-lhe os dedos. Ah, seria bom aquela brisa, aquele ar mais puro impregnando-lhe as narinas, aquele sol flamejante envolvendo seu corpo inteiro. Ela vestida num maiô preto, os cabelos clareados e lisos da chapinha estirados nas costas bronzeadas. O olhar cinza quase furta-cor, na claridade inconfundível da atmosfera de verão.

Ah, seria tão bom sentir estas sensações e não se perder entre as paredes do apartamento, esperando que as coisas aconteçam de acordo com o tempo dos outros. O tempo do marido, dos filhos, o tempo das horas.

Mas já foi um bom tempo. Um tempo em que Fábio voltava mais rápido pra casa. Costumava elogiar seus quitutes, seu bem cuidado com a casa, os bordados das toalhas, a mesa do jantar enfeitada. Tudo brilhava como seus olhos. Às vezes, ele a beijava. Beijava devagarinho, encostando os seus lábios finos nos seus carnudos, a sua língua envolvia-lhe como um pássaro oferecendo comida. Uma comida que a saciava, que a deixava louca, que a consumia. Mas aos poucos, os carinhos e os elogios foram rareando. Como tudo na vida. Já seu corpo não o despertava. Seu olhar pouco expressava algum sentimento ou sensação e sua voz, ah, sua voz, fugia pra longe. Pra outros prados que não ali. Muitas vezes distante. Muitas vezes, perdido em divagações, em mundos que só ele conhecia. Coisas de homem. As gotas enchiam o pote. Rareavam espaços. Por certo, transbordariam, procurariam outros veios produzindo caminhos diversos, formando novos espaços, onde ela não cabia. Outro mundo surgia que não o seu. E a violência, aos poucos foi tomando conta do que outrora era carinho e atenção. Foi ficando omissão e dor. Um dor que se alastrava tão forte que o melhor era ficar quieta, calma, serena, como sempre fora. Assim, a dor passava. Como a mãe recomendava: te encobre no cobertor, o frio passa e acaba a dor. Se não tiver frio, não tem dor. Mas fica quieta. Te acalma. Mesmo assim, a dor continuava latente, cada vez mais forte, atingindo a profundidade do osso, sugerindo morte.

Um dia, o olho roxo. Outro, hematoma no braço. Ele cada vez mais violento.

Às vezes, ela tinha pena dele. Era um homem bom, mas tinha lá seus problemas, por certo não aguentava mais a situação. Devia estar pressionado pelo trabalho, pela vida, pelas finanças. Afinal, ele provia. Ele custeava tudo aquilo, a sua vida, o seu prazer, o seu próprio trabalho.

Mas a dor física não é o suficiente. Só doeu de fato, quando ele a desconsiderou como pessoa, como ser humano, como mulher. Quando ele disse que ela era um trapo, uma inútil, uma vadia. Quando a deixou com tantas dúvidas sobre si mesma, que o pote entornou, de vez. A gota derramou. Mágoa. Foi quando usou a única arma que tinha. Não era sedução, nem beleza, nem cultura. A única arma que a defenderia. A casa, a comida, os filhos. Ele se rendeu e morreu de dor.

quarta-feira, março 09, 2016

O PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XIX

O NOSSO FOLHETIM CONTINUA AGORA JÁ CHEGANDO A QUINTA-FEIRA, 10/03/16 COM NOVOS DESDOBRAMENTOS DAS RELAÇÕES DE ÚRSULA. UMA HISTÓRIA DE MULHERES, NA TENTATIVA DE PENETRAR NO UNIVERSO FEMININO, COM A DIFICULDADE NORMAL DE UMA AUTOR DE CULTURA MASCULINA. ESPERO QUE TENHA SUCESSO. ESTE É O 19º CAPÍTULO, QUE APRESENTO COM MUITO PRAZER.

Capítulo 18


FONTE DA FOTOGRAFIA: AUTOR WILSON FONSECA DA ROSA, GRANDE ESCRITOR, POETA E FOTÓGRAFO RIO-GRANDINO.

Capítulo 19

Sabe, Dulcina, às vezes me pergunto porque acabo indo nas suas águas. Na verdade, sempre refutei tudo o que você me dizia, todas as histórias que em geral achava idiotas, sem sentido. Nunca a vi como um ser humano, estou sendo muito sincera comigo, sabe? Você pra mim, nunca passou daqueles servidores invisíveis, quase descartáveis, que a gente se depara por algumas horas. Que a gente precisa, mas finge que não vê. Que me interessava a sua vida, as suas atitudes desleixadas, o seu jeito simplório de me contar o que lhe acontecia no metrô, na esquina de casa, na feira? Eu tinha outra vida para viver. Outros caminhos para percorrer que não os seus. Ou não. Talvez meus caminhos fossem muito curtos e sem nenhuma aventura e vinha você, falando alto, esbravejando da suas atividades cotidianas, jogando na cara a sua vida intensa. Se esparramando pelo meu tapete, transbordando na minha sala, na minha cozinha, na minha vida insalubre. Não, eu não queria saber de você. Eu odiava essa sua energia.

Sabe que é a primeira vez que falo assim, neste tom? Logo que aquela porta se abria, instintivamente eu recusava me mostrar. Apenas me fechava no casulo e fazia de conta que estava sozinha. Você era menos do que o espremedor de suco da cozinha. Não posso fingir, era muito difícil a nossa relação. Era realmente um sacrifício.
¬¬

–Era mais fácil o retrato, né? Do seu nível.

–Que nível, Dulcina, isso lá é nível? Rita era uma grande atriz, sem sombra de dúvidas, mas como ela existem milhares. No fundo, eu me escondia no passado. É quase um caminho sem volta.

–Só isso?
¬

–Claro que não. Mas agora, não vale a pena decifrar as minhas atitudes. Você as conhece mais do que eu.

–Tá tudo tão estranho, não acha, dona Úrsula? Ta ficando tudo tão leve, tão alternativo.

–Alternativo? Que coisa esquisita você disse. Não tem sentido, Dulcina. Aliás, nesta vida, nada tem sentido. Dulcina, lembra do velho aí da frente?

–Se lembro. O velho assassino. Emparedou a mulher coitada, no meio da sala. Eu vi o concreto mais saliente, nem rebocou direito, o diabo. Para de rir, dona Úrsula, é verdade. Eu juro que vi.

– Dulcina, olhe bem pro retrato da Rita. Você não acha que ela está falando?

– Não sei não. Mas que ela está olhando pra gente, ah, isso ela tá.

–Acho que ela vai contar a nossa história.

–Em inglês?

–Com legenda, não seja boba. E você entende inglês, por acaso?

–Tinha uma moça lá na quadra que sabia inglês mais do que muito professor de curso por aí. Também, coitada, trabalhava na beira do cais.

–Espere.... fique em silêncio. Acho que ela vai... Não deixa, pra lá. Vamos esquecê-la e falar sobre nós. O que é que eu estava falando mesmo?

Impossível não perceber que as duas estão ligadas por laços além dos convencionais de amizade. É um fio condutor que une estas mulheres completamente diferentes. Para mim, que convivo há tanto tempo com Ms. Úrsula, nesta pequena galeria que organizou pra mim, só tenho a lamentar o quanto está perdida. A vida tem sido dura, como costuma dizer, mas também tem lhe proporcionado momentos de aprimoramento, aprendizagem. Seria salutar que os aproveitasse dignamente. Parece que hoje pretendem celebrar a vida de qualquer jeito, como se fossem duas adolescentes. Não há dúvida que optou pelo caminho mais fácil e inadequado. Mas não estou aqui para julgá-las. Talvez o meu dever seja este: narrar o desencadeamento desta história, a partir de meu observatório particular. Afinal, conversamos há tantos anos.

Ms. Úrsula desaba literalmente na poltrona, sem importar-se com as atitudes que este ato impensado pode trazer-lhe. Provavelmente uma dor intensa na coluna, uma lassidão nos músculos. Vejo-a, aos poucos, resvalando, e enquanto estira as pernas negligente, puxa do fundo do pulmão uma fumaça que se esforça em constituir pequenos círculos. Está exultante. A criada desliza no piso encerado, falando em altos brados, trazendo uma espécie de bebida nativa, a qual denomina caipirinha. Não sei onde isto vai parar. De qualquer modo, a vida, pelo menos, neste momento lhes sorri. E tudo é motivo para risada.

Ms. Dulcina, finalmente acocorada ao solo, instiga a patroa a terminar a história que começara.

– Mas o que a senhora está dizendo é verdade, mesmo dona Úrsula?

Ms. Úrsula está vermelha. Por um momento para, fitando o nada. A voz arrastada, reflexiva. Em seguida, porém reaviva a memória, pois grita, destemperada: – verdade verdadeira. O pobre velho era ele. Nem eu acreditava, menina! Susana ficou passada!

A serviçal se debate no chão, frouxa de rir. Parece que a visão do mundo ficou tão zen, que a deixa em perfeito bem estar com a natureza. Fala em tom absurdo.

– Mulhé, eu não acredito, se não fosse a senhora que está me contando, uma pessoa do seu nível, da sua estirpe, eu não acreditava. Falei bem, hem dona Úrsula, estirpe, não é coisa de gente chic?

–Você ta me saindo melhor do que a encomenda, Dulcina. Já nem cabe no embrulho.

–Embrulho é coisa de pobre! Não to entendendo nada!

–É que você está crescendo, sua incompreensível! E como pode dizer coisa de pobre, é a expressão mais preconceituosa que já vi!

Quando se dá conta, volta a rir, confortada que ficara com a explicação. Mas o que fica claro, neste momento, é que o assunto anterior é extremamente interessante, apesar das inúmeras interrupções. Ms. Dulcina volta a ele, sem mais delongas: – e a história da mulher emparedada? Então era tudo invenção da sua cabeça?

– Claro que não. Pensa que sou maluca? Aliás, hoje é o dia em que me sinto mais lúcida na minha vida, desde que meu filho morreu.

– Não vamos falar em tristeza. Nós já fizemos um trato, se lembra?

– Não lembro de trato nenhum.

– Pois se não, vamos fazer agora – com um cotovelo no chão e as pernas juntas, meio dobradas para trás, estica a palma da mão em direção a de Ms. Úrsula – seguinte, a partir de agora, vamos selar um trato. Nada de sofrimento, de dor de corno, de filho perdido, nada disso. Vamos só nos divertir. Pelo menos, esta noite.

–Pelo menos, esta noite, Dulcina.

Ao baterem as palmas das mãos, Dulcina recupera o copo da bebida e o oferece à Ms. Úrsula. Esta se atrapalha e pergunta: – que faço com o cigarro?

– É coletivo. Dá uma azeitada na máquina, mas devagar, que a senhora anda meio enferrujada. Enquanto isso, eu dou uma tragada... A senhora não acha este aroma maravilhoso?

– Dos deuses, Dulcina.

Ficam em silêncio por alguns minutos. Dulcina então se levanta e põe um cd a tocar. Não é seu gênero musical, mas muitas vezes ouviu a patroa executá-lo ao piano, e principalmente ouvi-lo.

– Night and day. Sabe o que é um jazz, Dulcina? Também não interessa. Temos muito tempo para conversar sobre tudo. Sabe que eu nunca tomei uma caipirinha tão saborosa?

–Tempo é o que não nos falta. A gente tem toda a noite pra colocar o papo em dia.

–A gente tem toda a noite. Eu não durmo mesmo. Mas sabe o que eu gostaria de fazer, Dulcina? Sabe qual é o meu sonho?

– Não sei, não. O meu é ficar aqui, puxando este fuminho, jogando conversa fora. Já tá de bom tamanho. Única coisa que penso é no negão. Deve tá pagando todos os pecados!

–Esqueça o negão, menina. Ele tá noutra. Você mesma não disse que ele foi parar no hospício? E lembre do nosso trato.
¬

–A senhora ta engraçada, dona Úrsula.

– Me dá o coletivo, é a minha vez.

Após um fechar de olhos, num torpor de prazer, ela retoma a palavra, nariz obstruído, como se acometida por uma renite letal.

–O meu sonho era ir pra Serra Pelada. Lá, onde o Jaime passou grande parte de sua vida.

Se Madan me contasse, eu jamais acreditaria. Seria o último lugar para alguém conhecer, ao menos que ela queira conhecer água barrenta e a serra que se tornou um verdadeiro abismo. Mas, como declinei inicialmente, não estou aqui para analisar suas atitudes.

Quando ela retomou a história que começara, eu tentei me desligar, e finalmente foi o que fiz. Deixei que narrasse. Não queria me envolver naquele idílio tão horizontal.

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XVIII

NESTA QUARTA, PUBLICAMOS O 18º CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM RASGADO, UM CAPÍTULO ESPECIAL ONDE AS DORES E ALEGRIAS DAS MULHERES SE REVELAM. UMA TRAMA EM QUE A PROTAGONISTA É A MULHER, QUALQUER QUE SEJA A SUA ONDIÇÃO SOCIAL. NA QUINTA VOLTAMOS COM OS CAPÍTULOS NORMAIS.

Capítulo 18

Sinto a alma confrangida. As pernas bambas, pesadas, e nestes poucos passos que dou, me afastando do quarto, tenho a impressão que carrego um fardo insuportável. Sentar nesta poltrona da sala de estar, me iludindo que nada mudou, que o mundo gira na mesma posição, que tudo está como antes... talvez seja isso que procuro. Apenas esticar minhas pernas no pufe e esquecer... esquecer... Esquecer que existe um vazio tão grande lá fora. Que além da minha janela, não há nada. Apenas um quarto vazio, um luto fechado que temo enfrentar.

Sabe Rita, quando papai se foi, Carlos não apareceu. Não sei se foi por covardia, ou porque estava feliz demais nos países árabes para mergulhar na triste realidade de nosso mundo. Carmem chorava muito, exageradamente, ao lado do caixão, aberto, sobre a mesa da sala de estar. Todos rodeavam o esquife. Às vezes, ela encostava a cabeça no corpo de papai e ficava ali, alguns minutos, desfrutando a dor que parecia ser só dela. Eu andava às voltas com mamãe. Ela não se permitia depender de nós, temia mostrar-se fraca, declarar seu sentimento, extravasar a sua dor. Ao contrário, isolava-se nos cantos, fingindo que as coisas ainda estavam no seu controle. Quando a deixei por alguns segundos, para trazer-lhe um chá, ela me seguiu até a cozinha. Segurou-me o braço e encarou-me com seus olhos castanhos, afundando nas olheiras de sofrimento. Voltei-me, ansiosa, ainda com a chaleira de água quente na mão. Ela exigiu que a largasse sobre o fogão. Aquilo não tinha a menor importância. Perguntou incisiva: – por que o Carlos não veio?

Tentei explicar-lhe o que não tinha sentido, falar-lhe o que não sabia, revelar o que meu coração doído escondia.

Não foi possível. Ela soltou-me o braço, voltou-se para a janela da cozinha, como se devesse afrontar o sol fraco de inverno que invadia o ambiente. Que fazia aquele sol injusto num dia de pura escuridão? Que forças da natureza eram mais persistentes e vorazes do que a dor que sentia? Que poder ocultavam em suas entranhas, contra o qual não podia lutar?

Abaixou os olhos, voltou-se bruscamente, aproximou-se de mim, como se me culpasse. Gritou exasperada: – por que ele não quis enterrar o seu pai? Por que ele o abandonou assim? Maldito! Que não volte nunca mais a esta casa!

–Não fale assim, mamãe. Deve ter seus motivos. Está muito longe.

Ela franziu a boca enrugada. Apertou os olhos com ódio e quando os abriu, havia uma luminosidade fria, um luar engessado. Pediu que esquecesse o chá e completou: –venha, vamos enterrar seu pai.

–Mamãe, ainda faltam duas horas.

–Chega de cinema. Já foi tempo suficiente para exposição!

Eu a segui sem coragem de refutar. Aquele corredor que nos levava até a sala era interminável. Léguas de distância, em que apenas conseguia observar seus sapatos pisando firmes no piso encerado. Não conseguia abrir a boca, a respiração curta, difícil. Não chorava, porque havia um sofrimento mais intenso do que simplesmente a morte, que nos unia naquele momento. No final do corredor, percebi que seus pés falsearam e aproximei-me, tocando-lhe no ombro. Era o único apoio que parecia tolerar.

Na sala, Carmem correu ao nosso encontro. Ela se desvencilhou de nós e foi sentar-se numa das poltronas que lhe foram imediatamente cedidas pelas pessoas que as ocupavam.

–Que está acontecendo, Úrsula?

Fitei minha irmã, como se não a reconhecesse. Vinha de um mundo distante, talvez aquele do sol fraco que batia na mesa e aquecia os copos. Deixei-a ali, parada, tentando dizer alguma coisa. Dirigi-me aos agentes funerários e repassei as ordens de minha mãe.

–E ele voltou um dia?

Úrsula deu um salto, atordoada. De repente, sucumbia num emaranhado de sons e pensamentos do passado que se relacionavam de maneira inusitada. Os ecos de tempos idos se tornavam reais, extraordinários, próximos, tão íntimos que receava se distanciar da realidade, partindo para o desconhecido. Seu coração oscilou intrigado, dentro do peito. Sentiu uma leve fisgada na cabeça e o suor escorreu rapidamente pelas têmporas. Deixou-se ficar aterrada na poltrona, como se desandasse numa montanha de entulhos, mergulhando no nada, uma mistura de lama e pedra, como se a casa ruísse literalmente. Não mais existiam as janelas, os parapeitos onde descansava seus braços, a sacada onde levantava a ponta dos pés para espiar mais longe e uma imensa cratera se formava, destruindo o cenário de suas observações. A luneta se quebrara e todo o seu passado se destruía, não deixando registros. Tentou falar, mas a voz não saía e por certo, seu coração pararia de funcionar a qualquer momento. Um pesadelo terrível que a mantinha apavorada, num canto qualquer da casa para ser soterrada para sempre e ninguém jamais procuraria por ela. Mas a voz do passado insistiu, invadindo a penumbra da sala. Temeu por fim, que Rita finalmente, ali, presente, lhe fizesse perguntas e lhe trouxesse respostas. Tentou levantar-se, as pernas trêmulas, joelhos batendo involuntários. Não ficou mais do que um minuto em pé. Afundou novamente na poltrona, deixando cair os braços inertes, pensando haver morrido. Mas seus olhos estavam muito abertos e assustados. Quando pôde e nem sabe quando, perguntou com a voz trêmula, os lábios secos, esbranquiçados.
¬

–Quem está aí?

–Sou eu, dona Úrsula. Se esquece que eu trabalho nesta casa?

Modo contínuo, um lampejo de raiva a invadiu. A voz metálica e ao mesmo tempo grave de Dulcina, o falar sem bom senso a deixa perturbada e confusa. A dor de cabeça ficou mais intensa e as mãos agora suaram em profusão. Forçou os olhos claros na penumbra, franzindo o cenho. Respirou fundo, aprumou-se na cadeira e sua atitude seria a de esbofetear a empregada. Mas não tinha energia para mover mais do que o cotovelo que se acomodava no ajeitar do corpo. Sua voz soou esganiçada, sem tonalidade, sem freio.

–Que está fazendo aqui, sua desaforada? Por que não foi para a sua casa?

Dulcina, ao contrário de temer qualquer represália, aproxima-se. Não parece irritada com a patroa. Na verdade, não lhe dá muito crédito. Acha que tudo que expressa em relação a ela, não passa de pura rabugice. Percebe, no entanto, que ela está fragilizada e tomada por uma grande tristeza. Sem importar-se com os resmungos, senta-se na poltrona ao lado.

Úrsula apenas observa a sala iluminada pelas luzes da rua. Talvez finja para si mesma que está sozinha no aposento. Mas logo, parece recuperar-se do susto e pergunta no tom habitual, de censura.

–Por que ficou no escuro, pra me espionar?

Dulcina não responde. Seus lábios mal pronunciam alguma coisa inaudível, porque tem muito a dizer. Os cabelos alisados, caem-lhe na testa, mas uma pequena protuberância dos fios os deixam levantados na raiz, em virtude do fatal crescimento. Na boca, um batom rosa claro, que não combina com a cútis morena. Os braços caem pesados sobre o as pernas que se apoiam na calça legging prata. Suas ideias estão muito claras, tão límpidas quanto o rio que passava perto da pequena estância no qual o pai era caseiro. Costumava tomar banho no rio junto aos irmãos, um poderio maciço de meninos que se acumulavam ano a ano. Durou pouco tempo, aquele cenário de paz, pois o pai um dia embirrou que iria para a cidade, que caseiro não era vida pra homem de cidade e acabaram todos morando na favela.

Úrsula vira a cabeça para o lado, evitando olhá-la. Desconfia que Dulcina pretende alguma coisa, como um cão que se aquerencia procurando agrado. Sabe o quanto é atrevida e despudorada, além de não respeitar a sua individualidade.

Dulcina intúi os pensamentos da patroa.

–Sei que a senhora não ta pra conversa, hoje.

Ursula responde sem mudar a posição. Vez que outra, arrisca um olhar oblíquo. Pode haver ainda surpresas maiores nas reações de Dulcina? Mesmo assim, a conclusão é seca.

–Ainda bem que você percebe isso. Então chispa daqui.

–Ei, pega leve, patroa. Não me trata assim, que não sou mulher de brigada. Além disso, o tempo dos escravos já passou.

–E você já passou dos limites. O que quer aqui, Dulcina? – pergunta mastigando as palavras com ansiedade, desta vez, encarando-a.

Dulcina sorri, complacente.

–Tá melhorando, já até falou o meu nome.

–E como queria que a chamasse? De amiga?

Dulcina finge não entender a ironia. Espicha um pouco o pescoço, arregala ainda mais os olhos e despacha, com voz chorosa: – é que a senhora tava falando tão bonito, que até pensei que era comigo.

–Com você? Você está louca? Não se dê a estes desfrutes!

–Eu sei, era com a tal de Rita. Sei que a senhora gosta mais de um quadro do que de mim. Mas é que eu pensei... Tem muita coisa é parecida nesta vida de Deus e por incrível que pareça, aconteceu uma coisa muito igual comigo.

Úrsula levanta-se com esforço, apoiando as mãos nos braços da poltrona. Afasta-se devagar, pensativa. Dirige-se à janela e descansa, como de hábito, os cotovelos no parapeito. Olha para a rua deserta, apenas luzes fracas de uma noite que avança sem pedir licença. Fica intrigada com as palavras de Dulcina. Não admite ousadias, muito menos intimidades, mas é impossível não surpreender-se. Pela primeira vez na vida, ela se mostrava melancólica, sofrendo tal como ela.

Observou que as janelas do apartamento da frente estavam fechadas. Nem um rasgo de luz, um fiapo de esperança. Levantou a cabeça para o alto, tentou ver o céu, as estrelas, mas apenas colunas de concreto pontilhadas de infinitas luzes artificiais se desenhavam, lá no alto. Então, falou quase para si mesma.

–Você sabia que eu nunca durmo, Dulcina? Você que parece saber de tudo, nunca se deu conta que fico na minha janela, dias e noites, noites eternas, observando a vida dos outros.

–Eu não sabia dona Úrsula.

–Você sabia que eu perdi um filho, quando ele tinha apenas trinta anos? Você sabia em que circunstancias ele morreu?

Dulcina abre a boca, como se estivesse na sala de aula e fosse pega desprevenida. Aquela lição não estava na sua grade de estudos. Tentou falar um “mais ou menos”, mas aquietou-se, temerosa. Balbuciou qualquer bobagem, logo abafada pela voz de Úrsula.

–Você sabia que fui muito amada por um grande homem, um jornalista, que também morreu, que me deixou aqui, sozinha? A vida tem sido dura comigo, Dulcina.

Ah isso ela sabia, mas não teve tempo de responder. A outra prosseguiu, enfática.

–Você sabe de onde vim agora? Do enterro do amante do meu irmão, não é hilário? E você sabe quem era ele? Não isso, você não sabe Dulcina. Você não sabe nada da minha vida e vem me falar que converso com um quadro. Quem é você para me chamar de louca?

Uma pequena pausa e Dulcina desabafou, rapidamente.

–Eu sei, dona Úrsula, não se preocupe. Coisa de gente rica. Sei que a tal Rita é sua amiga há muito tempo, que nem a mulher do tal escritor que tinha o seu nome. Do tal Gabriel Marques. E eu, já fui uma atriz.

–Não, você não foi, Dulcina. Existiu uma grande atriz com o seu nome.

–Mas poderia ter sido.

Úrsula se cala. Se tivesse um cigarro, talvez fumasse tal como a Rita Hayworth no seu Gilda. Não se afasta da janela, sente-se presa, como se as pernas pesassem ao solo. Talvez necessite daquele anteparo, para não olhar diretamente para Dulcina ou para esquecer que existia alguém no apartamento da frente. Uma lágrima insiste em correr, lembrando-lhe Enrico Caruso. Se pudesse, também ouvira a furtiva lacrima e choraria de vez. Extravasaria todo o sentimento contido. Toda a dor encolhida no peito.

Dulcina a observa na luz da rua. Sabe que a patroa está angustiada e precisa dela tanto quanto ela, naquele momento. Por isso, insiste no assunto.

–Quando a senhora falava na morte da sua mãe, eu me senti ali, na sua pele, tentando segurar as pontas, juntando a raiva de saber que o irmão não vinha e a aflição para amparar a sua mãe, sem demonstrar o que estava sentindo.

–Eu não disse que estava com raiva.

–E precisa, dona Úrsula? Então não lhe conheço? E não é de hoje! Claro que naquela época, eu nem sabia que a senhora existia – e sorrindo com os dois dentes centrais mais salientes – aliás, eu nem era nascida. Mas e a sua irmã, hem, era meio fingida. Deu pra ver direitinho, como num filme.

– Dulcina, se eu quisesse contar tudo isso a você, a teria chamado até aqui. Não quero repisar este assunto.

–Eu sei, eu sei. A senhora prefere a Rita, porque ela não responde. Coitada, só ouve, mas não pense que ela é melhor do que eu. Se eu sou atrevida, como a senhora diz, ela deve ser muito pior. Dá pra ver o olhar abusado que ela encara as pessoas. Parece mulher da vida!

Úrsula continua na janela e sem voltar-se, pede a Dulcina um copo de água. Aproveita a saída e encaminha-se com dificuldade para a poltrona onde estava. Com a mão ainda trêmula, liga o abajur próximo à mesa, ao lado e pega um livro. Folheia-o devagar e quando Dulcina surge com o copo numa bandeja, finge não perceber sua presença. A empregada descansa o copo ao seu lado, ali mesmo na mesa, pedindo que tome. Permanece humildemente, em pé e observa que a patroa a obedece, sorvendo o líquido em poucos goles.

Úrsula a fita demoradamente. Talvez a luz do abajur ratifique de uma vez por todas, de que se trata realmente daquela atrevida da Dulcina que está ali, interpelando-a. Com o tom de voz mais suave, convida-a a sentar-se ao seu lado. Dulcina não se faz de rogada. Puxa, desajeitada, as calças nas cochas, que sungadas, elevam-se na cintura, sentando-se em seguida.

–Dulcina, você está com algum problema?

–Sabe, dona Úrsula, to. Mas quem não tem, né?

–Isto é verdade.

–Mas eu lembrei da minha mãe, quando morreu, os oito filhos, todos na volta do caixão. Oito, na verdade, foram os que sobraram. Depois que o pai desertou da estância e a gente parou na rua da amargura, o mais que ele soube fazer foi filho e beber cachaça. Uma carreira, uns de 9, 10, até de 3. Eu era a mais velha. Já tinha 16. O que a minha mãe ganhou foi um caixão vagabundo doado pela prefeitura. A madeira era tão fraca que parecia de caixa de maçã, sabe? Não tinha nem cor. Se algum desavisado, os primos que estavam sempre correndo, de lá pra cá, esbarrassem nele, era capaz de se espatifar.

–Meu Deus, isso é possível?

–A senhora não sabia? Quem não tem dinheiro, recebe da prefeitura e não tem como velar. Fica pouco tempo e logo vai pro cemitério. Nós fomos todos juntos, no ônibus cor de alumínio. Era um ônibus velho, caindo aos pedaços. Nós sentados na volta e o caixão no meio, entre os bancos.

–E seu pai?

– O velho bebia, naquele dia, tava enfiado no barril. Por isso, sofri essa mesma sensação que a senhora teve. Tive muita raiva dele.

–Ele não compareceu?

–Não, quando ele chegou torto que nem vara verde, já tinham enterrado a coitada. Então eu corri ele de casa.

–E depois?

–Naquela noite, não aguentei. Tinha que tomá uma atitude. Depois, tudo voltou ao normal. Eu trabalhava numa lancheria pra sustentar os irmãos.

– E ele?

–Ele também não aguentou o tranco. Um dia, desapareceu com uma dona. Nunca mais voltou.

–Eu fiz você lembrar de tudo isso, Dulcina? Me desculpe.

–Não se desculpa, não, dona Úrsula. Foi bom. A senhora fala de um jeito diferente. Eu não sei usar as mesmas palavras. Às vezes, sai uma merda.

– Dá tudo no mesmo. A vida, às vezes é uma merda, Dulcina.

–A senhora tem cada uma. Com é que pode, uma mulher do seu nível, inteligente, que toca piano, falar palavrão.

Úrsula não se ocupa da faísca que vê nos olhos de Dulcina. Relaciona com cuidado o que ouve e acrescenta: – mas se você lembrou tudo isso, é que tem um motivo especial.

Dulcina se cala alguns segundos. Respira fundo, sabe que não tem saída, deve seguir em frente.

– É que to na pior. O negão pirou – gira a mão fechada em punho no olho direito, mais coçando um prurido do que escondendo uma lágrima.

– Como assim, o seu namorado?

– É, namorido, a senhora sabe – despacha rápido, ágil – ele já tava usando umas pesadas. Exagerou na dose. Andou vendendo os meus móveis, até a TV que comprei na liquidação. Eu suportei o que pude. Mas agora, delatei pra policia. Foi parar no hospício.

–Ah, e não é perigoso pra você?

–Tudo nesta vida é perigoso, dona Úrsula.

–Você tem razão, Dulcina.

Dulcina levanta-se e passeia à vontade pela sala, seguida pelo olhar da patroa. Examina demorada, a figura de Rita Rayworth, como se estivesse à frente de um quadro de um pintor célebre, no museu. Em seguida, num movimento estratégico, apressa-se em falar: – dona Ursula, se eu fosse mais inteligente, mais educada, mais parecida com essa aí, a senhora ia se abrir mais comigo, não é?

–Não sei Dulcina. Acho que a gente anda em caminhos divergentes. A gente não se encontra. Mas, alguma coisa temos em comum.

– O que? – Dulcina pergunta dando uns passos miúdos, aproximando-se um pouco da poltrona. Ursula suspira, reflexiva.

–A dor da perda. A dor da mulher sozinha, da mulher que luta, da mulher que ama, que odeia. Sabe Dulcina, é uma dor pulgente, uma dor que a mulher carrega desde o berço, desde o nascimento. A mulher precisa lutar sempre para demonstrar ao mundo que é capaz, que é inteligente, que é, enfim, um ser humano. A humanidade, muitas vezes, se esquece disso.

Dulcina enche os olhos dágua. Aumenta as passadas e senta-se novamente ao lado da patroa, agora com as duas mãos fechadas em punho, uma em cada olho, amparando as lágrimas. Úrsula se aproxima e a abraça. Um afeto no rosto, uma lágrima que compensa. Dulcina ainda responde, baixinho – então é isso.

Afasta-se da patroa, levanta-se torcendo o salto no piso. Enxuga novamente os olhos na mesma atitude infantil. O vozeirão torna-se franzino, fraco.

–Eu vou deixar a senhora descansar.

Ursula antecipa-se rapidamente, quase numa súplica.

–Não, Dulcina, espere. Você não quer passar a noite aqui?

–Eu, que nem a Rita?

–Pare com esta bobagem de Rita. Você me constrange. É você sim, sim, sua boba. Eu não estou bem, você também. Pra que voltar pra casa.

Dulcina faz menção de abraçá-la novamente e ela a reprime.

–Por hoje, chega de abraços. Se como disse, você é igual a Rita, não precisa me agradecer. Eu a convidei.

–Dona Úrsula, tive uma ideia. Quem sabe, a gente melhora o nosso astral.

–Melhorar? Impossível.

Ela retira da bolsa um pequeno embrulho branco, que coloca sobre a mesa ao lado da poltrona, com cuidado. Úrsula se espanta.

–O que é isso, criatura?

Abre-o e pede que a patroa cheire.

–Você está louca? Isto é... isto é...

–Isto mesmo! A senhora já experimentou alguma vez?

–Nunca! Imagine, na minha idade. Pensa que sou louca! E depois, é uma contravenção.

–A senhora é tão engraçada, dona Ursula. Tirei do negão, ele nem se deu conta, coitado. Tava do outro lado. Mas até foi bom, os policiais não encontraram nada com ele. Também isso nem ia contá, porque a da pesada, a que leva pro outro lado, eles já tinham pego.

–Mas maconha? Você acha que vou experimentar maconha?

–E por que não?

sexta-feira, março 04, 2016

Oásis imaginário

Deixa de falácias

Neste oásis imaginário

Olhar petrificado

Folhas mortas caídas na janela

Secas

Nada a dizer

O orgulho de ser sozinho

Do sucesso, o desejo

De superar, a vontade

Nada que venha somar

Teu olhar já morto, petrificado

Na janela de folhas secas

Recorda o que foi ontem

E teme o que será amanhã

O oásis é dos outros

Não teu. Pobre poeta cansado

Dores que não matam, mas machucam

Dores do medo de não ser o melhor.

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