quinta-feira, junho 12, 2014

Meu discurso na posse da Academia Rio-grandina de Letras no dia 06/06/14








Sra. Presidente Dalva Leal Martins, senhoras e senhores acadêmicos, autoridades presentes, queridos parentes e amigos.

As coisas acontecem de modo extraordinário. Por mais que pensemos, que reflitamos sobre determinadas situações, a vida impõe desafios. Como todas as pessoas, enfrentei muitos desafios, certamente desde os tempos escolares. Passei pela universidade, em dois cursos superiores, nas pós-graduações, no trabalho de professor e bibliotecário, no fazer da escrita. Além, é claro, dos desafios de todo ser humano, para sobreviver e conviver com os seus. Um desafio, porém, nunca antes havia imaginado é o que enfrento hoje: o de pertencer a esta casa, o que me parecia um desejo muito ambicioso e distante de meus objetivos literários. Entretanto, o fato de estar aqui e ser um, entre os meus confrades e confreiras, um membro da Academia Rio-grandina de Letras, me confere honra e me proporciona extrema alegria.  Nunca havia pensado nisso, até que o meu amigo e agora padrinho Sérgio Puccinelli me convidou certa vez. E eis que estou aqui, ao lado de vocês, recebendo este acolhimento e de cujo convívio muito serei enriquecido literária e intelectualmente.  
Após estas palavras iniciais, dedico-me ao meu patrono, Alfredo Ferreira Rodrigues, cuja qualidade intelectual foi grandemente propagada em sua obra, que registrou o seu fazer literário, o seu talento especial para as artes, revelando-o como um admirável historiador, além de escritor talentoso.  Alfredo Ferreira Rodrigues nasceu no distrito do Povo Novo e muito pequeno passou a residir em Pelotas, sendo que aos 16 anos, por sua elevada condição intelectual, começou a ministrar aulas de várias disciplinas. Trabalhou como revisor na Livraria Americana e mais tarde, passou a trabalhar em sua filial em Rio Grande, vindo a morar definitivamente em nossa cidade.
Dedicou-se a vários gêneros literários, tais como crônicas, ensaios, contos, relatos históricos e poesia. Sua intelectualidade o conduziu a ser historiador, poeta, ensaísta, biógrafo, charadista e professor. Nascido a 12 de setembro de 1865, Alfredo Ferreira Rodrigues foi um homem de seu tempo, preocupado em divulgar ao público a história e características singulares do RS. Interessou-se por toda a história nacional, mas especializou-se na história regional, divulgando-a  aos seus compatriotas, principalmente a partir da organização do Almanaque Literário e Estatístico do Rio Grande Sul. Este Anuário foi publicado a partir de 1889 e prosseguiu até 1917. Aqui, eram publicados diversos textos de entretenimento e artigos culturais de autores gaúchos, assim como os seus próprios contos, ensaios e crônicas, que eram ansiosamente esperados pela sociedade da época e rapidamente esgotado nas bancas. Foi um vencedor. Além do bem sucedido Almanaque Literário, publicou livros, livretos e artigos em diversos periódicos.
Apesar das inúmeras dificuldades que enfrentou, principalmente em âmbito financeiro, tinha um sonho que era o de elaborar um grande relato da Revolução Farroupilha, um movimento no qual possuía um interesse especial. Sua literatura, neste particular, se dava sob a ótica positivista da época, preocupado com a reconstrução histórica da formação rio-grandense. Para tanto, esforçou-se em reunir documentos históricos em todo o Estado, bem como em diversos lugares do Brasil e do exterior, de modo que a história do Rio Grande do Sul fosse amplamente detalhada e divulgada a partir de seus registros. Numa das citações do artigo do Prof. Francisco das Neves Alves, p.43. Revista Biblos. 2008. O autor Othelo Rosa observa: “Uma ordem meticulosa preside a tudo. As próprias cópias são feitas com limpeza e atenção máxima, de modo a excluir a possibilidade de erros de leitura e, principalmente, de erros de interpretação. E o que se sente, sobretudo, naqueles papéis empoeirados e velhos, naqueles recortes de jornais, naqueles cadernos bem cozidos, é o amor, o grande e profundo amor do homem pela história do Rio Grande do Sul”.   Costumava também fazer traduções do inglês, alemão e, inclusive traduziu o clássico “O corvo” do escritor americano Edgar Alan Poe, publicando-o no Almanaque. Foi homenageado por muitos Institutos, dos quais participava em seus quadros sociais, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco , da Bahia, de São Paulo, do Ceará, do RS, da Sociedade Geográfica de Lisboa, além de ser membro fundador da Academia Rio-Grandense de letras. Na virada do século XIX para o XX, foi um dos articuladores do monumento-túmulo de Bento Gonçalves, situado na Praça Tamandaré. Suas crônicas, contos, ensaios , relatos históricos, eram estruturados numa linguagem simples, econômica, mas ao mesmo tempo cheia de lirismo e intencionalidade política, quando o texto exigia e objetividade  ao se tratar de uma informação mais técnica, o que o tornou um dos maiores intelectuais da época. Um rio-grandino, que amava a sua terra e que queria deixar um legado, um registro, do seu fazer literário através de sua vida dedicada à literatura, revelando-o um grande historiador. Este homem ilustre é o patrono da cadeira n° 3, a qual humildemente passo a ocupar a partir desta data.

Por outro lado, não posso me furtar de falar sobre o último ocupante da cadeira, que foi o Professor Fernando Lopes Pedone, um emérito bacharel de História, que tornou-se um dos reitores da Universidade Federal do Rio Grande. O Professor Pedone teve destacada atuação na criação de novos cursos da Universidade, em sua gestão, bem como foi o idealizador e criador do Campus Carreiros. Foi também o criador da Estação de Apoio ao Programa Brasileiro na Antártica (ESANTAR). Além de professor e historiador, falava inglês, francês, espanhol e italiano. Também foi laureado como comendador  agraciado com a medalha do Mérito naval, bem como com a Medalha Brigadeiro José da silva Paes, igualmente no grau de comendador. Um homem que exerceu com dignidade e louvor a sua profissão.

Bem, meus amigos, quer dizer que estou muito bem acompanhado.
E também, acho que a literatura é acima de tudo uma companheira. Ela exerce um papel fundamental na vida das pessoas. Mesmo que não percebamos, é através da literatura, que mostramos o que somos, o que queremos da vida, o que sonhamos. Sabemos que a literatura é uma manifestação artística e para muitos escritores, ela se esgota nesta proposta. Para outros porém, dos quais eu me incluo, a literatura deve ser um registro da realidade que recria,  como uma tentativa constante de transformação do mundo em que vivemos. Na minha opinião ela só tem verdadeira importância, se for crivada dos anseios de seu povo, se tiver um viés político. O mínimo que se espera é que haja, em alguma medida, o pensamento crítico sendo colocado em jogo, sendo trabalhado e compartilhado.  A arte da escrita não é puramente estética. A despeito do que escrevemos, haverá sempre a intencionalidade do autor com a conexão do mundo real, da sociedade e também com o seu mundo interior, moldado em suas experiências e apreensão da vida.  Faz-se política em qualquer gesto e tenho comigo que este brado deve corresponder ao clamor das minorias, dos excluídos, dos que não tem os privilégios, dos trabalhadores invisíveis. Acho que o homem é o algoz do próprio homem e a literatura está aí, para redimir esta sequela humana, para transformar o bruto, no belo, no artístico, no lírico, no imponderável, mas acima de tudo, mostrar que o rústico, o pobre, o ausente das benesses é tão intenso e dramático e pertencem ao mesmo mundo em que vivemos. Basta olhar para o lado. Não me interessa uma literatura calada, amordaçada, padronizada no senso comum, amarrada apenas à lógica literária e aos padrões estilísticos e de gênero. Interessa-me a literatura que não se cala às adversidades, aos desmandos, às ditaduras, à mídia manipulada e manipuladora. Interessa-me uma literatura que mostra o seu povo, que enaltece a sua linguagem e que acima de tudo, produza a reflexão. E que por fim, seja, além de tudo puramente literatura, na qual a emoção e o sonho se completem no lirismo e na beleza. Acho, inclusive que o autor é um ser dividido e complexo, como todo ser humano, mas que ao refletir sobre isso, extravasa sua emoção e sentimentos no seu ofício e talvez sofra com essa dicotomia.  O poema “Traduzir-se” de Ferreira Gullar,  musicado por Chico Buarque, exemplifica bem esta singularidade do escritor, quando diz: “Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira.
Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem.
Traduzir-se uma parte na outra parte – que é uma questão de vida ou morte – será arte?”
Como falei anteriormente, a vida é cheia de desafios. Mas alguns são conduzidos por mãos amigas que nos ajudam a transpô-los de algum modo. O desafio de ler e escrever, de procurar um significado no universo das letras. Aqui, tive a presença de meu pai, que me indicava o caminho, mostrando nos jornais, bem cedo, antes mesmo de ir à escola, as palavras, e nelas o seu conteúdo. A vontade de minha mãe em sempre ocupar-me com bons livros. E a partir destes momentos, o desejo de saber mais, de participar daquela gama de significados e formar outros, a ponto de construir as próprias escritas. Muito pequeno, comecei a escrever e mostrar à família e aos professores, aos amigos, as primeiras histórias. E estas histórias se confundiram numa metalinguagem produzindo outras histórias, no momento em que outras pessoas liam, formava-se uma nova trama. A princípio, um tio interessado, depois os amigos. Alguns ficaram com os velhos cadernos recheados de histórias melodramáticas, como o caso de meu colega do curso médio e de minha amiga Ângela Puccinelli, que aos poucos foi me devolvendo as velhas  lembranças através daquelas folhas presas em velhos espirais que havia guardado, laços de amizade da adolescência que se tornaram atemporais. E a vida se insinuou entre as histórias, que com o passar do tempo e a aprendizagem estética, foram tomando forma e cada vez mais maduras, mais literárias, até chegar a concursos, premiações e publicações. Neste momento, só tenho a agradecer, além de meus pais, minhas irmãs que sempre leram e debataram minhas histórias, meus cunhados e sobrinhos, minha mulher e  minha filha, companheiras fiéis em minha caminhada e minha sogra, uma contumaz leitora de meus romances e contos, além de todos os amigos que acompanharam minha trajetória. Mas os desafios prosseguiram e especialmente este acalentado pelo convite de meu padrinho Sérgio Puccinelli, que também, de certo modo, participou de minha história literária. Naqueles tempos idos, quando das discussões filosóficas e literárias, ao lado de minha amiga Ângela, ele, seu irmão, já tinha seus poemas guardados, e nós, pelo menos eu, nem sabíamos e talvez ficasse atento aos nossos sonhos da época. Pois ele, o nosso grande poeta, me escolheu para que eu participasse dessa confraria. Portanto,  quero afirmar a todos, que tudo farei para fazer juz a esta confiança em mim depositada. Não preciso falar muito de Sérgio, basta que leiamos a poesia “Estes ditos normais”,  para perceber-se a pessoa especial que é e o  grande poeta, que desvela a literatura, intensificando a sua função de revelar a transmutação do pensamento.

“Estes ditos normais”

Que gente misteriosa e infeliz
Estes ditos normais:
Não fizeram nada do que eu fiz
Não fizeram muitas coisas mais
Não tiveram fome nem frio
Não foram lambidos por cães
Não viram a vida por um fio
Não clamaram por suas mães...
Tiveram a vida regrada
Casamento, prole sã
Nunca tomaram o desvio da estrada
Nunca enfrentaram o Leviatã.
Nunca viajaram no espaço
Viveram a vida sem estupor
Nunca fizeram o que eu faço
Nunca morreram de amor!

Muito obrigado.              

(Estes ditos normais: poema de Sergio Puccinelli, de seu livro "Poemas para uma tarde de chuva".)
PUCCINELLI,  Sergio. Poemas para uma tarde de chuva. Rio Grande: Casaletras, 2013.




quarta-feira, maio 28, 2014

Um guri religioso




Fui um guri religioso. Talvez não tivesse a consciência de minha espiritualidade, muito menos, pensava no assunto, como todas crianças de minha idade. A participação das missas aos domingos, em geral muito associadas aos eventos que a escola promovia, as novenas e procissões, tudo produzia um componente espiritual que os rituais internalizavam em nossa mente. Todas as intervenções em nossa vida escolar eram focadas na “alfabetização” da religião, ou para ser mais correto, no catecismo vivo, que era a nossa vivência e experiência na igreja.  Lembro-me bem, quando estudava na Escola São Luís e participava da missa na Sagrada Família. Nunca quis ser coroinha, e evitei o quanto pude os pedidos dos padres. Não gostava daquela exposição, daquele cheiro de naftalina das roupas, do ar destemperado da senhora que se ocupava da sacristia, dos olhares de censura a qualquer brincadeira. Preferia ficar na “plateia” e experienciar a missa com meus pares. Claro que havia momentos, em que me envolvia inteiramente com a cerimônia, porque desde pequeno, sempre me dediquei de corpo e alma a alguma coisa que acreditasse (neste caso, obviamente  estimulado pela família). De todo modo, minha alma fugia de vez em quando, talvez alicerçada pela fantasia, já numa busca de manifestar na escrita o que presenciava e vivia naqueles momentos. Lembro do andar desembaraçado de Dona Iolanda, que estava sempre alerta com nossas conversas, esgueirando-se rápida por entre os bancos, juntando um livro de cantos aqui, outro ali, que por ora caía no chão. De repente, um peteleco rápido para abafar uma risada mais alta ou um desencadear de conversas fora de hora. Seu olhar parecia, entretanto sobrevoar as cabeças dos presentes. Olhava para o alto, como se houvesse uma força interior que a impelisse a agir com esmero e consideração  com a igreja. Também lembro dos colegas, afoitos, acho que até mais agitados do que eu, comentando qualquer coisa que lhes viesse à cabeça e que  não tinha nada a ver com a cerimônia. Um deles, era muito meu amigo. Vivia falando em futebol, queria a todo custo que eu assistisse os treinos do Rio Grande, que na época era na Buarque de Macedo. Fui algumas vezes, e noutras, nós mesmos treinávamos em nossas quadras de várzea. Ele era rápido volante, eu era muito ruim, quase sempre ficava no golo (chamávamos assim, na época e como é falado em Portugal, afinal, golo é um anglicismo português de goal, que significa objetivo, alvo). O grupo de meninas, o que era curioso, bem mais prolixo e, embora conversassem, rissem e fofocassem, eram mais  dissimuladas do que nós e via de regra, as punições recaíam em nossas cabeças. Sabiam tirar proveito de suas artimanhas naturais. Nós éramos uns bobos e pensávamos que jamais seríamos chamados à atenção, ou mesmo, nem dava tempo de pensarmos nisso.
Nesta época, havia as aulas dos primeiros anos. Vindo de uma escola que ficara apenas alguns dias, por causa de mudança de residência, passei a conviver com os colegas da São Luís. Ali, senti-me em casa. As aulas do primeiro ano primário eram divididas em duas disciplinas, matemática e linguagem, nas quais duas professoras se intercalavam. Até o  intervalo, a aula de linguagem era atribuída à Irmã Teresinha, cujos conhecimentos de gramática e mau humor se disseminavam na classe. Na segunda hora, era a vez da Irmã Celita com a tabuada e a aritmética.  Minha preferência era explicita pela segunda professora, embora aparentemente, fosse a mais severa. Sabia impor a sua vontade com extrema disciplina e a pressão que exercia sobre nós, me desafiava de algum modo. No início das aulas, era de praxe uma oração e, caso topasse com o  Pe. Beiró, pelo pátio da escola, usávamos a expressão “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, como cumprimento ortodoxo, ao que ele prontamente respondia “Para sempre seja louvado!”. Um texto burocrático, cujo conteúdo nem pensávamos no cumprimento. No terceiro e quarto ano, contávamos com Dona Isolda. Costumava usar um lenço de seda na cabeça, talvez pelo vento que sempre soprava rigoroso nestes invernos e primaveras longos de nossa infância. Era extrovertida, falava alto e como as demais, bastante  severa, tanto que me expulsou de aula certa vez, tendo que voltar no dia seguinte com a mãe (eu não era nada santo). Finalmente no 5° ano primário, a nossa professora voltou a ser  a Irmã Celita, aquela do primeiro. Vestia-se, habitualmente, de cinza, com um imenso rosário preto, que lhe caía da cintura até o bolso lateral. Ao invés da gola, que nem víamos, apenas uma lapela branca, imensa, que lhe ocultava o peito. Os cabelos também escondidos, sob um véu também cinza, com uma espécie de faixa branca, que quase cobria os olhos. Nos pés, calçados masculino. Seu nome civil era Irmã Maria Dalla Santa. Tenho um livro com a sua dedicatória, que me presenteou quando de minha formatura (chamava-se assim, o ritual de passagem para outro nível, no caso, o ginasial). Enfim, eu participava de todos os eventos religiosos, lembro bem das festas de maio, uma da preferidas de minha mãe, que fazia questão de levar as flores até o altar, naquele ritual de homenagem à Nossa Senhora.  E todas as festas tinham o seu sabor especial, a atmosfera que se criava de acordo com a época, em maio, a suavidade de Maria, o dia das mães, o mês inteiro dedicado à beleza das rosas, das flores brancas, das flores de maio, dos véus, dos mantos, da coroação, dos acordes festivos de Maria.  Na Semana Santa, as cores se mortificavam, num roxo triste da Senhora das Dores, na exposição e veneração da cruz e seu recolhimento, a ocultação dos santos, a ausência da alegria, o forte clamor da justiça ao Salvador, a adoração, o jejum. Em todos os rituais que se seguiam, desde a quinta feira, a oração velada e triste, os cânticos de dor, o arrependimento dos crentes, as dúvidas, os medos, a incerteza, a vigília e a redenção final, culminando com a esperada ressurreição. Em geral, eu e meu pai ficávamos algumas horas após a missa na vigília. Eram momentos em que eu sentia muito frio e o olhava meio desamparado, sabendo que ali permaneceria até quando ele houvesse decidido. No sábado, o Círio Pascal, sendo aceso na fogueira, à frente da Igreja entre glórias e o  ressoar do órgão. Na Páscoa, Glórias e Aleluias e a busca por ovos de chocolate, sempre em 2° lugar, após a cerimônia religiosa. Mas lá, nosso coração palpitava, ansioso.  Não demorava muito, surgiam as festas juninas, em que nos apresentávamos, com vestuário estranhamente caipira, como se fôssemos do interior de São Paulo ou do Nordeste. Lembro nitidamente das canções, especialmente uma em que nos apresentamos, numa espécie de quadrilha, que mais parecia do Nordeste do que de nossa região (ajeita o lenço, Mané, segura a saia, Rosinha, vamos todos pra festinha. O arraial está bonito, com bandeiras a enfeitar, a sanfona está tocando para quem quiser dançar), além da “Maria Chiquinha”, que fiz em dupla com uma menina.  Pelo calendário, nessa época, a procissão de Corpus Christi era um acontecimento. Para nós, um passeio muito divertido, pois saímos da Igrejinha, assim chamada a Sagrada Família, para nos deslocarmos pelo centro da cidade e o encerramento no pátio do Colégio Salesianos. Na volta, não vínhamos com a escola e parecia que a cidade livre estava a nosso alcance. Tudo festa. Finalmente, os quatro domingos do advento que antecediam ao Natal nos informavam que estávamos praticamente em férias do colégio e na noite do dia 25 de dezembro, cuja missa do galo era realmente à meia noite, os momentos eram de emoção e alegria, embora somente ganhássemos os presentes, quando amanhecesse.  Além dessas festividades, era comum em nossa Igreja, a celebração da festa da Sagrada Família, bem no início do ano, que era um dos pontos culminantes da comunidade. Dias de muito calor, nos quais gostaríamos de estar na praia ou em qualquer outro lugar, do que dentro da igreja. Olhava para os vitrais coloridos, que davam para o pátio da escola, de onde se insurgia um sol ousado, e ficava imaginando o mundo lá fora. Mas por outro lado, não havia como evitar, era de praxe comparecer, seguir meus pais que costumavam festejar a data com muita devoção. Tenho, inclusive uma lembrança muito viva das músicas da época. Uma delas foi a mais  marcante nestes momentos, e creio não muito conhecida, embora a que traduzia melhor o tema da celebração: “Jesus, Maria, São José, fortes também aos olhos do mundo, representantes de Nazaré, dignos do respeito mais profundo” e continuava “ soldados de Jesus, marchemos sob a cruz, na dor e na alegria” e por ai, seguia a canção religiosa. Nós, com os olhos vidrados na imagem da Sagrada Família, cantávamos como verdadeiros soldados, transportados pela letra, instigados com o tema que a letra exaltava:  enfrentar o sofrimento e  experimentar a alegria, apoiados na cruz, pautados pela causa do Senhor. A letra e a força da melodia, repercutiam em nossas mentes e corações, solidificando a fé. Em contrapartida, em  “Coração Santo, tu reinarás, do nosso encanto, sempre serás”, observa-se uma leveza no ritmo e na letra, uma poesia suave e densa que sugere um amor paterno, no qual  a partir da súplica emana  a certeza do carinho e da atenção. Na clássica  “Treze de maio” a saudação à Senhora é uma súplica que se multiplica numa demonstração de reconhecimento ao projeto da Virgem.  Por outro lado, fui como toda criança, meio moleque. Embora respeitasse os professores, havia sempre uma brecha para a brincadeira, a desfaçatez e a risada fora de hora. Costumava fazer desenhos e mostrá-los aos colegas, criando a caricatura de um ou de outro. Algumas vezes, repetia o que professora dizia, com ironia, fingindo dar ordens aos demais, o que os fazia cair na risada. Via de regra era pego. Após o quinto ano e o famigerado exame de admissão, fui para o Colégio São Francisco. Lá, também a manifestação religiosa era a norma.  Íamos quase sempre à igreja para as confissões, nas quais, eu até inventava uns pecadinhos, já que repetia os mesmos toda a semana. Também lá participava dos eventos, principalmente da festa de Nossa Senhora de Fátima, embora ainda continuasse assíduo das missas da Sagrada Família. Em qualquer evento da  Igreja, o Pe. João sempre alertava para a nossa aparência. Costumava me chamar a atenção pelo cabelo, que segundo ele, deveria estar bem penteado para entrar na Casa de Deus. Convenhamos, que eu não tinha muito jeito para estas coisas, nem pente carregava no bolso da calça, embora fosse hábito entre os meninos e por isso, quase sempre, voltava para o pátio, para arrumar o cabelo. Muitas vezes, molhava o cabelo na torneira do banheiro para melhorar o aspecto. Eram outros tempos, de muita disciplina e hierarquia religiosa.  Além dessas participações, a minha vida social buscava outros patamares, muitas vezes, distantes dos dois focos principais de minha atuação: a Sagrada Família e o Colégio São Francisco. Aproveitava os momentos de lazer do Colégio Salesianos, uma escola na qual participava em virtude de possuir um componente especial, o cinema Leão XIII, que servia de chamariz para as missas da Igreja Auxiliadora. Eu me dividia entre a Igrejinha, indo a missa das 9:30, aos domingos, com o Pe. Elcy Beiró e o Padre Luis Costa e nos sábados,  na Auxiliadora, corria para a missa à tarde ou alguma reunião rápida para poder aproveitar os jogos e brincadeiras no pátio do colégio e finalmente assistir o que eu mais gostava, os filmes do Cine Leão XIII. Geralmente eram os clássicos religiosos, como “Os dez mandamentos” e “Marcelino Pão e vinho”. Como era um obcecado por cinema, não me furtava também ao matiné do Cine Avenida, que passava dois filmes, quase sempre um deles de cowboy e o outro de guerra. Havia um colega que morava na rua Dom Bosco, não muito longe de minha casa, que costumava assistir os filmes do APTSUP,  uma associação, acredito que um sindicato, que ficava na Buarque de Macedo, quase na Domingos de Almeida. Às vezes, íamos até lá, diversificando a nossa programação e  algumas vezes, visitamos o Cine Real, que ficava próximo ao bairro da Hidráulica.  Precisava fazer malabarismos para convencer a minha mãe a deixar-nos ir a tantos lugares, sem a presença de um adulto. Na São Luís, eu desenhava e já fazia pequenas redações. Acho que no São Francisco, eu burilei a escrita, estimulado pelo Irmão Plácido, que nos obrigava a fazer uma redação por dia.  Creio que ali, ficou mais claro pra mim, a vontade de me expressar pelas letras. A religião continua paralelamente à escrita, com outro enfoque, talvez mais maduro e menos encantado. Talvez eu persista no pensamento de Leonardo Boff, que diz que “a religião é a voz de uma consciência que não pode encontrar descanso no mundo assim como ele é e que tem com seu projeto transcende-lo”. E ainda “... as religiões, quando fecham a fonte donde se alimentam, predominam o “ritualismo”, o dogmatismo e poder sobre o carisma”. É provável que todos aqueles rituais tenham me transformado no homem religioso que sou hoje, sem ser um praticante confesso, mas sei que a fé é uma busca pessoal e inesgotável. Ficou a alegria da infância, a busca por novos caminhos, a literatura e esta é um trajetória da qual não me furtei, tal como  o incansável desejo de encontrar respostas.
http://kbimages.blogspot.com/url-code.jpg  ( ilustração acima foi retirada do site : http://www.tvsinopse.kinghost.net/art/m/marcelino3.htm)

quinta-feira, maio 15, 2014

Não se preocupem com a relação copa – eleição

Não se preocupem com a relação copa – eleição


A copa só teve influência no moral dos brasileiros, em 1970, porque o Brasil era um país de esquecidos. O povo não era nada, não votava, não elegia, não falava, era amordaçado. Mas precisava ser feliz. Era necessário que transbordasse de alegria e acreditasse que tudo estava maravilhoso. Era um país de faz de conta e nada melhor para ocultar nos porões, a  extrema miséria que grassava, a derrocada da cidadania, a morte da liberdade. Nada melhor do que mostrar a todo mundo que éramos um povo feliz, um povo que tinha o melhor futebol do mundo, que conseguira assistir ao vivo pela tv, ao lado da novela Irmãos Coragem que dava 100 pontos de audiência à Globo, a mantenedora cúmplice do status quo de nossa vida política. Neste quesito, a mídia foi talentosa:  realçava a nossa alegria, o  nosso viver bem, embora milhares de pessoas morressem de fome e estivéssemos criando uma dívida pública estratosférica, com uma rodovia fantasma que se dizia ligaria o Brasil de ponta a ponta e enaltecida diariamente por Amaral Neto, o maior publicitário da ditadura. Nosso povo adormecido nem sonhava que se gerava a maior corrupção da história, que somente agora alguns fatos vão surgindo e revelando a sangria em nossa economia. Tudo era tão fácil, que os torturadores tinham um cartão de crédito para gastarem o que quiserem para manter a organização (e hoje, há os que se revoltam contra as bolsas sociais). Tudo era samba e alegria. Mas agora, não se preocupem. O futebol não influencia não tem a menor influência nas eleições, porque tudo é transparente, todos podem democraticamente pensar e opinar o que quiserem sem a mordaça do poder. Em 2002, o Brasil sagrou-se campeão, num ano de eleição e Fernando Henrique perdeu. Portanto, fiquem tranquilos. Se a Dilma ganhar, será por uma contingência politica de aceitação de seu governo pela população, vença ou não a seleção brasileira.  Senhoras nervosas com a seleção, divididas em seu amor pelo nosso maior representante esportivo do País, não fiquem tristes e desiludidas. Não sofram com essa dicotomia. Um coração que arde, que sofre, que torce e ao mesmo tempo sonha com a perda de seu bem amado, o Brasil. Não se punam. Vistam a camiseta verde e amarela. Torçam, torçam à vontade, pois pode ocorrer a vitória de seu candidato. Basta que ele mostre a que veio e seu compromisso com a população, inclusive informando os benefícios de sua administração no passado. Torçam e sejam felizes. O Brasil é maior do que estas picuinhas. Ah, mas se fizerem algum protesto, por favor, não derrubem ônibus, nem queimem pneus ou destruam caixas eletrônicos. Nem participem da famigerada marcha pela família, um velório anunciado. O País não merece.

terça-feira, abril 01, 2014

TEMPOS DIFÍCEIS


TEMPOS DIFÍCEIS

Corria o início dos anos 80 e a Polícia Federal, como todas instituições que possuíam ingerência na vida dos cidadãos, no país,  tinha suas próprias normas, ou talvez seu jeito arbitrário de conduzir os deveres e direitos (?) dos homens de bem. Num destes dias de primavera, estava numa parada de ônibus, banho tomado, roupa alinhada, maleta sob o braço, à espera rotineira do transporte urbano. Nada que me estimulasse ou me deixasse alerto para as surpresas do cotidiano. Ao contrário, naquela tarde, especialmente, eu estava tranquilo. Coração quieto, sem muitas preocupações, a não ser pensamentos fugazes sobre a aula de filologia, que considerava um tanto monótona. À noite, a rotina se completaria com o trabalho na biblioteca da Universidade, mas naquele momento, nada me causava maiores devaneios. Tudo rotineiro, como um ritual elaborado sob normas pré-estabelecidas, quase medíocre. Meu companheiro de ponto de ônibus, um senhor que me parecia escriturário, ou balconista de loja de sapatos, nem sei porque me causava esta impressão, aproximou-se e reclamou do atraso do coletivo. Perguntou-me as horas e a pergunta ficou indefinidamente no ar. Repentinamente, um opala preto parou rangendo pneus, produzindo uma indefinível atmosfera de abafamento, de coisa fora do lugar, de inapropriação de espaço e tempo. Como subitamente nos roubassem aquele momento. Uma figura estranha que se interpunha entre nós, como um alienígena na sala de aula. Dois homens correram ao nosso encontro, mais dois no carro,  rapidamente, armas em punho, exigindo documentos, questionamos, perguntamos o motivo, seguimos seus passos, entregamos carteiras de identidades, atravessamos ruas, entramos numa casa, quase barraco, invadindo o que nos parecia uma transgressão. Diziam-se da polícia federal, investigaram todos os compartimentos, imiscuíram-se em todas as fendas, todos os buracos, todas as frestas. Reviraram camas, derrubaram vasos, mastigaram flores, desfraldaram emblemas, espiaram livros, derrubaram estantes. Cavaram jardins, encontraram objetos e principalmente o tão almejado: trouxinhas de maconha. Mostraram-nos. Esfregaram em nossos rostos. Perguntaram se conhecíamos. Resposta negativa. Mostraram novamente, informaram, pediram que gravássemos na mente bem o conteúdo. Trouxinhas de maconha. Rapidamente, surgiu a noticia de que o homem procurado, se aproximava. Esconderam-se, nós mais atrás, apavorados, alienados daquele mundo brutal, do qual fôramos incluídos à força. Olhos à espreita, coração à larga, batendo desatinado. Um misto de revolta, raiva e pena. Piedade pelo que chegava. Raiva pelos que esperavam. Um deles correu ao encontro do homem e todos apareceram, cercando-o, algemando-o, levando-o ao nosso encontro, testemunhas forjadas no momento fortuito. A mulher que o acompanhava dobrou a esquina, com uma criança no colo. Ainda a vi afastar-se, dobrando os joelhos, acelerando os passos, fugindo. Mais umas muambas, e nada tão transgressor quanto àquela  abordagem. Olhei por impulso para meu companheiro de ponto de ônibus e vi na retina o terror que se desenhava como máscara na fisionomia. Eu devia estar assim também. Em seguida, levaram o homem aos gritos, nós juntos, querendo afastar-nos, esclarecer de alguma forma que não tínhamos nada com isso, que não éramos testemunhas, que apenas estávamos cumprindo mais um dia rotineiro de nossas vidas, mas não podíamos. Fomos todos para o opala, no banco da frente, os dois primeiros homens que nos abordaram, no detrás, acolherados como animais de caça, eu, o prisioneiro, meu parceiro de espera de ônibus, e mais dois truculentos que ajudaram na operação. O opala cedeu nas rodas, mas voou rápido em direção ao centro de operações da polícia federal. Lá passei a tarde, sentado numa cadeira, ouvindo sugestões de como me deveria portar nos depoimentos, sendo a cada momento, importunado por policiais que impunham sua presença como garantia de que cumpriam o dever e precisavam de nossa assinatura. À minha frente, preso numa jaula, o homem algemado me olhava de soslaio de vez enquanto, forjando fumaça pelas ventas, acabrunhado, assustado, humilhado. Que estaria pensando naquele momento. Que eu ou o companheiro havíamos delatado suas atividades, se nem o conhecíamos? Estaríamos à mercê dos policiais que exigiam que disséssemos que havíamos participado de livre e espontânea vontade da operação e ao mesmo tempo ao arbítrio de um cara que poderia ser perigoso, sentindo-se ameaçado por nossas prováveis declarações?
Refleti sobre tudo isso naquela tarde. No dia em que finalmente fui chamado para depor, fiquei frente a frente com o preso. Meu amigo, desesperado, desapareceu do mapa. Acho que agiu certo. Ao entrar no gabinete onde se daria o depoimento, um policial que participara da operação, me advertiu, com um olhar sinistro, convenientemente interpretado para compor o teatro de seus propósitos arbitrários. Afastei-me dele, fechando a porta atrás de mim e sentei-me numa cadeira, próxima ao escrivão, defronte ao juiz e tendo o olhar fixo do homem considerado culpado.  Fiquei entre a cruz e a espada. Uma lá fora, na ante-sala. Outra aqui, quieta, esperando o resultado, desafiadora. Olhei para um lado, para o outro. Aquietei-me. Observei os procedimentos. Ouvi as considerações, as perguntas e iniciei o meu depoimento. Decidi ser eu mesmo, talvez agora um desafio inconsciente ao sistema injusto que não protegia o cidadão e punha-o ao alvitre de decisões ditatoriais. Declarei ao juiz em sonora expressividade, que estava ali subjugado a uma espécie de despotismo.  Na verdade, eu estava ali prestando um depoimento sobre uma pessoa que desconhecia completamente, nunca a tinha visto, nem sabia de suas atividades, nem onde morava e nem ao menos tinha qualquer interesse sobre sua vida. Neste momento, o juiz deixou os óculos caírem-lhe ao queixo, o escrivão parou de datilografar por um instante e ensaiou um movimento no ar, quase etéreo, um tanto feminino, como se não acreditasse no que estava ouvindo. Do outro lado, pela primeira vez, o algemado levantou os olhos e me encarou detidamente. Acho que até que suspirou aliviado. Ouviu-se um leve zum-zum-zum, o juiz limpou a garganta, o escrivão deitou o cotovelo direito na barra de espaços, produzindo um som arrastado de engrenagens, os guardas encostados à porta se mexeram, aliviando os ombros, olhando-se em atitude comprometedora. O juiz me olhou afetuoso. Quase balbuciou com voz suave: _Por favor, continue.  Eu prossegui, enfático, desta vez, referindo-me aos policiais que me abordaram. Considerei que infringiram a lei, porque eu não queria invadir casa alguma, muito menos ser forçado a perder a aula, além disso, haviam tomado o documento, o que me obrigou a segui-los. Não concordava de forma alguma com aquele procedimento. Nisso, o juiz interrompeu o meu depoimento. Fez uma versão bem simplificada para o escrivão, que batia trêmulo nas teclas metálicas. Dispensou-me imediatamente. Respirei curto. Ali, estava livre, mas lá fora, o que me esperaria? Atravessei a porta, passos incertos,  pernas meio bambas, joelhos quase batendo um no outro, encarando por alguns minutos os dois policiais que me acenavam, sustentando presença, reafirmando que me conheciam e que eu cumprira o meu dever. Acenei afirmativamente e me afastei rápido dali. Nunca mais vi o companheiro de parada de ônibus. Aliás, nunca mais esqueci o endereço da casa que ajudei a investigar. Tempos difíceis. Tempos em que se engolia em seco e se fingia que a autoridade era competente, como se dizia na época. Mas, na verdade, competência é apenas uma expressão que informa relatividade. Depende a que competência nos referimos. Minha vida não mudou muito. A rotina não foi novamente despertada, mas ficou um gosto amargo de derrota, de humilhação, de no fundo, ter-se a certeza de que a verdade expressada, fora maquiada para conservar o sistema e tudo que se dissera não passara de páginas em branco. E ainda há quem tenha saudades daquele tempo.


e-mail: gcgilson4@gmail.com
Gilson Borges Corrêa

sexta-feira, janeiro 31, 2014

Contratempos num passeio de bicicleta na praia


Não sou muito bom em tarefas manuais. Não tenho as habilidades básicas, nem para trocar o cartucho na impressora, mexer com parafusos ou arrumar a correia da bicicleta. Não é meu jeito, que fazer. Tenho outras habilidades, graças a Deus. Mas devido a esta falta de jeito, muitas vezes, passo por perrengues nada agradáveis. Outro dia, ao entardecer, estava passeando de bicicleta pela praia, um fim de tarde lindo, o sol se pondo e as águas translúcidas pela pouca luz que restava. Dava gosto de ver. Fui indo, com o vento a favor, em direção à barra e nem me dei conta que a noite chegava rapidamente. Resolvi voltar e de repente, a correia da bicicleta travou. Na verdade, deslocou-se das engrenagens da coroa da pedivela (rodas denteadas, pesquisei) e a catraca da roda traseira.  Então, virei a bicicleta e tentei recolocá-la, sem nenhum sucesso. Engraxei as mãos, tingi as unhas e os dedos, mas tudo o que fazia, aumentava mais o enredo que se formava. Quanto mais tentava resgatar o emaranhado, mais se embaraçava a correia e a coisa ficava pior. Não tinha jeito. Enredava mais e mais. Por vezes, a coisa quase se acertava. Olhava detidamente tentando descobrir o imenso quebra-cabeças que se formava. Puxei com cuidado uma parte da corrente que me parecia mais solta, mas para minha surpresa, ela se engatava de um lado e se soltava do outro, formando umas argolas difíceis de desmanchar. Sentei-me no chão, emoldurando o calção de areia, molhado que estava da praia, pois havia tomado um banho rápido antes. Tentei desta vez, fazer uma limpeza, sem ter qualquer instrumento adequado, a não ser minhas próprias mãos. Encontrei uma espécie de taquara, acho que era isso, talvez de pandorga ( ainda utilizam taquara nas pandorgas, como no meu tempo?) e investi decidido na limpeza da areia molhada que se acumulava entre os dentes. Quem sabe assim, ficava mais fácil de colocar a engrenagem em ordem. Pura ilusão, cada vez que eu tentava engatar uma parte, a outra se destrambelhava toda, tornando tudo um caos. Comecei a pensar que deveria seguir em frente, a pé. Levantei-me, cheio de areia, os chinelos transbordando lama, por ter passado no riacho, produzindo rápido a mistura que os deixava praticamente fora de uso. Mas não havia alternativa. A noite se aproximava, as pessoas rareavam cada vez mais e eu precisava tomar uma atitude, ou seja, a única viável para aquele momento insólito: voltar para casa com a bicicleta a cabresto. Fiquei tanto tempo envolvido com aquela tarefa sem resultado, que a noite chegou rapidamente e com ela, o vento que se intensificava, me empurrando para a direção oposta. Tinha a impressão que estava num deserto, com ondas de areia que se formavam ante meus pés como nuvens brancas, que se misturavam céleres com as pequenas lagoas que atravessava, voando na direção das dunas. Assim é o Cassino, quando o tempo muda. Ao longe, observava na luz tênue, os cata-ventos que se espraiavam na névoa e uma nuvem escura se afunilava no céu, ameaçadora, anunciando uma tempestade que talvez surgisse a qualquer momento. Sentia o vento fustigar meu tórax sem camisa e um frio inesperado me atingia, nem sei se pela influência da natureza ou pela ansiedade que se intensificava. Não era nada assustador, daqui a pouco estaria em casa, talvez 40 minutos ou 1 hora de caminhada, nada demais. Mas o cansaço e a luta embrenhada contra o vento produziam a atmosfera necessária para o medo. Entretanto, nem tudo parecia perdido, apesar da minha inabilidade em consertar coisas ou fazer trabalhos manuais, havia a possibilidade de ajuda de alguém. Quem sabe alguém que viesse num dos carros que vez que outra passavam por mim, quem sabe um deles pararia e me ajudasse. Ou mesmo o caminhão da limpeza, que imaginava que passasse àquela hora na praia. Por outro lado, conjecturava que eles nem pensariam em parar, afinal, a noite se aproximava, o tempo estava ruim, o vento forte e eu poderia ser um marginal que oferecesse algum perigo. Por certo, não parariam. Ninguém me ajudaria àquele hora. Mas meus pensamentos se dissiparam como gelo na água. Foi de repente que aconteceu e nem tive tempo de refletir. Avistei um rapaz de bicicleta, não conseguia visualizar bem, mas sabia que era alguém numa bicicleta e que certamente poderia  me ajudar. Chamei-o e ele, por um momento, me fitou, talvez pensando no que eu queria. Insisti, explicando que não conseguia arrumar a correia. Acho que ele imediatamente compreendeu o meu desespero, pois prontamente aproximou-se e já deu dicas, além de começar a destravar a correia. Eu posicionara a bicicleta com as rodas para cima, o que ele refutou como um método equivocado. O correto seria deixá-la na posição normal, apenas levantando-a um pouco e mexendo na roda de trás. Ele cuidadosamente acionou as engrenagens de modo a  se juntarem à correia, ajustando-as completamente, primeiramente a parte que fica na roda traseira, em seguida, limitou-se a arrumar a coroa nos pedais. Foi aos poucos, colocando-a no lugar e informando como deveria proceder, visto que havia uma distorção na roda de trás, que deveria ser consertada. Não sabia como agradecer-lhe, inclusive pedi desculpas por ter-lhe interrompido a caminhada. Para ele, não houve problemas. É o tipo de pessoa que faz questão de prestar auxílio com a maior disponibilidade, foi o que pude perceber. Afastou-se ouvindo ainda os meus agradecimentos. Seguiu o seu caminho e eu, o meu. Estava leve, aliviado, problema resolvido. Foi tão fácil pra ele. Tão difícil pra mim. Fiquei então, pensando, que ainda há pessoas que fazem gentilezas, que ajudam a quem precisa, de modo despretensioso, apenas com o desejo de cumprir uma boa ação. Provavelmente, nem tem esta consciência, mas lhes é próprio esta faculdade. Ele me salvou de uma situação difícil e levou consigo uma leveza de alma, que certamente deve ter sentido, pela ajuda que prestou. Realmente não tenho habilidades motoras, meu habitat é a escrita, e por isso, descrevo a sensibilidade da ajuda de outrem. Ainda há tempo pra gentileza. Isso é muito bom. Alvissareiro.

Postagem em destaque

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

PULICAÇÕES MAIS VISITADAS