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Um guri religioso




Fui um guri religioso. Talvez não tivesse a consciência de minha espiritualidade, muito menos, pensava no assunto, como todas crianças de minha idade. A participação das missas aos domingos, em geral muito associadas aos eventos que a escola promovia, as novenas e procissões, tudo produzia um componente espiritual que os rituais internalizavam em nossa mente. Todas as intervenções em nossa vida escolar eram focadas na “alfabetização” da religião, ou para ser mais correto, no catecismo vivo, que era a nossa vivência e experiência na igreja.  Lembro-me bem, quando estudava na Escola São Luís e participava da missa na Sagrada Família. Nunca quis ser coroinha, e evitei o quanto pude os pedidos dos padres. Não gostava daquela exposição, daquele cheiro de naftalina das roupas, do ar destemperado da senhora que se ocupava da sacristia, dos olhares de censura a qualquer brincadeira. Preferia ficar na “plateia” e experienciar a missa com meus pares. Claro que havia momentos, em que me envolvia inteiramente com a cerimônia, porque desde pequeno, sempre me dediquei de corpo e alma a alguma coisa que acreditasse (neste caso, obviamente  estimulado pela família). De todo modo, minha alma fugia de vez em quando, talvez alicerçada pela fantasia, já numa busca de manifestar na escrita o que presenciava e vivia naqueles momentos. Lembro do andar desembaraçado de Dona Iolanda, que estava sempre alerta com nossas conversas, esgueirando-se rápida por entre os bancos, juntando um livro de cantos aqui, outro ali, que por ora caía no chão. De repente, um peteleco rápido para abafar uma risada mais alta ou um desencadear de conversas fora de hora. Seu olhar parecia, entretanto sobrevoar as cabeças dos presentes. Olhava para o alto, como se houvesse uma força interior que a impelisse a agir com esmero e consideração  com a igreja. Também lembro dos colegas, afoitos, acho que até mais agitados do que eu, comentando qualquer coisa que lhes viesse à cabeça e que  não tinha nada a ver com a cerimônia. Um deles, era muito meu amigo. Vivia falando em futebol, queria a todo custo que eu assistisse os treinos do Rio Grande, que na época era na Buarque de Macedo. Fui algumas vezes, e noutras, nós mesmos treinávamos em nossas quadras de várzea. Ele era rápido volante, eu era muito ruim, quase sempre ficava no golo (chamávamos assim, na época e como é falado em Portugal, afinal, golo é um anglicismo português de goal, que significa objetivo, alvo). O grupo de meninas, o que era curioso, bem mais prolixo e, embora conversassem, rissem e fofocassem, eram mais  dissimuladas do que nós e via de regra, as punições recaíam em nossas cabeças. Sabiam tirar proveito de suas artimanhas naturais. Nós éramos uns bobos e pensávamos que jamais seríamos chamados à atenção, ou mesmo, nem dava tempo de pensarmos nisso.
Nesta época, havia as aulas dos primeiros anos. Vindo de uma escola que ficara apenas alguns dias, por causa de mudança de residência, passei a conviver com os colegas da São Luís. Ali, senti-me em casa. As aulas do primeiro ano primário eram divididas em duas disciplinas, matemática e linguagem, nas quais duas professoras se intercalavam. Até o  intervalo, a aula de linguagem era atribuída à Irmã Teresinha, cujos conhecimentos de gramática e mau humor se disseminavam na classe. Na segunda hora, era a vez da Irmã Celita com a tabuada e a aritmética.  Minha preferência era explicita pela segunda professora, embora aparentemente, fosse a mais severa. Sabia impor a sua vontade com extrema disciplina e a pressão que exercia sobre nós, me desafiava de algum modo. No início das aulas, era de praxe uma oração e, caso topasse com o  Pe. Beiró, pelo pátio da escola, usávamos a expressão “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, como cumprimento ortodoxo, ao que ele prontamente respondia “Para sempre seja louvado!”. Um texto burocrático, cujo conteúdo nem pensávamos no cumprimento. No terceiro e quarto ano, contávamos com Dona Isolda. Costumava usar um lenço de seda na cabeça, talvez pelo vento que sempre soprava rigoroso nestes invernos e primaveras longos de nossa infância. Era extrovertida, falava alto e como as demais, bastante  severa, tanto que me expulsou de aula certa vez, tendo que voltar no dia seguinte com a mãe (eu não era nada santo). Finalmente no 5° ano primário, a nossa professora voltou a ser  a Irmã Celita, aquela do primeiro. Vestia-se, habitualmente, de cinza, com um imenso rosário preto, que lhe caía da cintura até o bolso lateral. Ao invés da gola, que nem víamos, apenas uma lapela branca, imensa, que lhe ocultava o peito. Os cabelos também escondidos, sob um véu também cinza, com uma espécie de faixa branca, que quase cobria os olhos. Nos pés, calçados masculino. Seu nome civil era Irmã Maria Dalla Santa. Tenho um livro com a sua dedicatória, que me presenteou quando de minha formatura (chamava-se assim, o ritual de passagem para outro nível, no caso, o ginasial). Enfim, eu participava de todos os eventos religiosos, lembro bem das festas de maio, uma da preferidas de minha mãe, que fazia questão de levar as flores até o altar, naquele ritual de homenagem à Nossa Senhora.  E todas as festas tinham o seu sabor especial, a atmosfera que se criava de acordo com a época, em maio, a suavidade de Maria, o dia das mães, o mês inteiro dedicado à beleza das rosas, das flores brancas, das flores de maio, dos véus, dos mantos, da coroação, dos acordes festivos de Maria.  Na Semana Santa, as cores se mortificavam, num roxo triste da Senhora das Dores, na exposição e veneração da cruz e seu recolhimento, a ocultação dos santos, a ausência da alegria, o forte clamor da justiça ao Salvador, a adoração, o jejum. Em todos os rituais que se seguiam, desde a quinta feira, a oração velada e triste, os cânticos de dor, o arrependimento dos crentes, as dúvidas, os medos, a incerteza, a vigília e a redenção final, culminando com a esperada ressurreição. Em geral, eu e meu pai ficávamos algumas horas após a missa na vigília. Eram momentos em que eu sentia muito frio e o olhava meio desamparado, sabendo que ali permaneceria até quando ele houvesse decidido. No sábado, o Círio Pascal, sendo aceso na fogueira, à frente da Igreja entre glórias e o  ressoar do órgão. Na Páscoa, Glórias e Aleluias e a busca por ovos de chocolate, sempre em 2° lugar, após a cerimônia religiosa. Mas lá, nosso coração palpitava, ansioso.  Não demorava muito, surgiam as festas juninas, em que nos apresentávamos, com vestuário estranhamente caipira, como se fôssemos do interior de São Paulo ou do Nordeste. Lembro nitidamente das canções, especialmente uma em que nos apresentamos, numa espécie de quadrilha, que mais parecia do Nordeste do que de nossa região (ajeita o lenço, Mané, segura a saia, Rosinha, vamos todos pra festinha. O arraial está bonito, com bandeiras a enfeitar, a sanfona está tocando para quem quiser dançar), além da “Maria Chiquinha”, que fiz em dupla com uma menina.  Pelo calendário, nessa época, a procissão de Corpus Christi era um acontecimento. Para nós, um passeio muito divertido, pois saímos da Igrejinha, assim chamada a Sagrada Família, para nos deslocarmos pelo centro da cidade e o encerramento no pátio do Colégio Salesianos. Na volta, não vínhamos com a escola e parecia que a cidade livre estava a nosso alcance. Tudo festa. Finalmente, os quatro domingos do advento que antecediam ao Natal nos informavam que estávamos praticamente em férias do colégio e na noite do dia 25 de dezembro, cuja missa do galo era realmente à meia noite, os momentos eram de emoção e alegria, embora somente ganhássemos os presentes, quando amanhecesse.  Além dessas festividades, era comum em nossa Igreja, a celebração da festa da Sagrada Família, bem no início do ano, que era um dos pontos culminantes da comunidade. Dias de muito calor, nos quais gostaríamos de estar na praia ou em qualquer outro lugar, do que dentro da igreja. Olhava para os vitrais coloridos, que davam para o pátio da escola, de onde se insurgia um sol ousado, e ficava imaginando o mundo lá fora. Mas por outro lado, não havia como evitar, era de praxe comparecer, seguir meus pais que costumavam festejar a data com muita devoção. Tenho, inclusive uma lembrança muito viva das músicas da época. Uma delas foi a mais  marcante nestes momentos, e creio não muito conhecida, embora a que traduzia melhor o tema da celebração: “Jesus, Maria, São José, fortes também aos olhos do mundo, representantes de Nazaré, dignos do respeito mais profundo” e continuava “ soldados de Jesus, marchemos sob a cruz, na dor e na alegria” e por ai, seguia a canção religiosa. Nós, com os olhos vidrados na imagem da Sagrada Família, cantávamos como verdadeiros soldados, transportados pela letra, instigados com o tema que a letra exaltava:  enfrentar o sofrimento e  experimentar a alegria, apoiados na cruz, pautados pela causa do Senhor. A letra e a força da melodia, repercutiam em nossas mentes e corações, solidificando a fé. Em contrapartida, em  “Coração Santo, tu reinarás, do nosso encanto, sempre serás”, observa-se uma leveza no ritmo e na letra, uma poesia suave e densa que sugere um amor paterno, no qual  a partir da súplica emana  a certeza do carinho e da atenção. Na clássica  “Treze de maio” a saudação à Senhora é uma súplica que se multiplica numa demonstração de reconhecimento ao projeto da Virgem.  Por outro lado, fui como toda criança, meio moleque. Embora respeitasse os professores, havia sempre uma brecha para a brincadeira, a desfaçatez e a risada fora de hora. Costumava fazer desenhos e mostrá-los aos colegas, criando a caricatura de um ou de outro. Algumas vezes, repetia o que professora dizia, com ironia, fingindo dar ordens aos demais, o que os fazia cair na risada. Via de regra era pego. Após o quinto ano e o famigerado exame de admissão, fui para o Colégio São Francisco. Lá, também a manifestação religiosa era a norma.  Íamos quase sempre à igreja para as confissões, nas quais, eu até inventava uns pecadinhos, já que repetia os mesmos toda a semana. Também lá participava dos eventos, principalmente da festa de Nossa Senhora de Fátima, embora ainda continuasse assíduo das missas da Sagrada Família. Em qualquer evento da  Igreja, o Pe. João sempre alertava para a nossa aparência. Costumava me chamar a atenção pelo cabelo, que segundo ele, deveria estar bem penteado para entrar na Casa de Deus. Convenhamos, que eu não tinha muito jeito para estas coisas, nem pente carregava no bolso da calça, embora fosse hábito entre os meninos e por isso, quase sempre, voltava para o pátio, para arrumar o cabelo. Muitas vezes, molhava o cabelo na torneira do banheiro para melhorar o aspecto. Eram outros tempos, de muita disciplina e hierarquia religiosa.  Além dessas participações, a minha vida social buscava outros patamares, muitas vezes, distantes dos dois focos principais de minha atuação: a Sagrada Família e o Colégio São Francisco. Aproveitava os momentos de lazer do Colégio Salesianos, uma escola na qual participava em virtude de possuir um componente especial, o cinema Leão XIII, que servia de chamariz para as missas da Igreja Auxiliadora. Eu me dividia entre a Igrejinha, indo a missa das 9:30, aos domingos, com o Pe. Elcy Beiró e o Padre Luis Costa e nos sábados,  na Auxiliadora, corria para a missa à tarde ou alguma reunião rápida para poder aproveitar os jogos e brincadeiras no pátio do colégio e finalmente assistir o que eu mais gostava, os filmes do Cine Leão XIII. Geralmente eram os clássicos religiosos, como “Os dez mandamentos” e “Marcelino Pão e vinho”. Como era um obcecado por cinema, não me furtava também ao matiné do Cine Avenida, que passava dois filmes, quase sempre um deles de cowboy e o outro de guerra. Havia um colega que morava na rua Dom Bosco, não muito longe de minha casa, que costumava assistir os filmes do APTSUP,  uma associação, acredito que um sindicato, que ficava na Buarque de Macedo, quase na Domingos de Almeida. Às vezes, íamos até lá, diversificando a nossa programação e  algumas vezes, visitamos o Cine Real, que ficava próximo ao bairro da Hidráulica.  Precisava fazer malabarismos para convencer a minha mãe a deixar-nos ir a tantos lugares, sem a presença de um adulto. Na São Luís, eu desenhava e já fazia pequenas redações. Acho que no São Francisco, eu burilei a escrita, estimulado pelo Irmão Plácido, que nos obrigava a fazer uma redação por dia.  Creio que ali, ficou mais claro pra mim, a vontade de me expressar pelas letras. A religião continua paralelamente à escrita, com outro enfoque, talvez mais maduro e menos encantado. Talvez eu persista no pensamento de Leonardo Boff, que diz que “a religião é a voz de uma consciência que não pode encontrar descanso no mundo assim como ele é e que tem com seu projeto transcende-lo”. E ainda “... as religiões, quando fecham a fonte donde se alimentam, predominam o “ritualismo”, o dogmatismo e poder sobre o carisma”. É provável que todos aqueles rituais tenham me transformado no homem religioso que sou hoje, sem ser um praticante confesso, mas sei que a fé é uma busca pessoal e inesgotável. Ficou a alegria da infância, a busca por novos caminhos, a literatura e esta é um trajetória da qual não me furtei, tal como  o incansável desejo de encontrar respostas.
http://kbimages.blogspot.com/url-code.jpg  ( ilustração acima foi retirada do site : http://www.tvsinopse.kinghost.net/art/m/marcelino3.htm)

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