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Meu discurso na posse da Academia Rio-grandina de Letras no dia 06/06/14








Sra. Presidente Dalva Leal Martins, senhoras e senhores acadêmicos, autoridades presentes, queridos parentes e amigos.

As coisas acontecem de modo extraordinário. Por mais que pensemos, que reflitamos sobre determinadas situações, a vida impõe desafios. Como todas as pessoas, enfrentei muitos desafios, certamente desde os tempos escolares. Passei pela universidade, em dois cursos superiores, nas pós-graduações, no trabalho de professor e bibliotecário, no fazer da escrita. Além, é claro, dos desafios de todo ser humano, para sobreviver e conviver com os seus. Um desafio, porém, nunca antes havia imaginado é o que enfrento hoje: o de pertencer a esta casa, o que me parecia um desejo muito ambicioso e distante de meus objetivos literários. Entretanto, o fato de estar aqui e ser um, entre os meus confrades e confreiras, um membro da Academia Rio-grandina de Letras, me confere honra e me proporciona extrema alegria.  Nunca havia pensado nisso, até que o meu amigo e agora padrinho Sérgio Puccinelli me convidou certa vez. E eis que estou aqui, ao lado de vocês, recebendo este acolhimento e de cujo convívio muito serei enriquecido literária e intelectualmente.  
Após estas palavras iniciais, dedico-me ao meu patrono, Alfredo Ferreira Rodrigues, cuja qualidade intelectual foi grandemente propagada em sua obra, que registrou o seu fazer literário, o seu talento especial para as artes, revelando-o como um admirável historiador, além de escritor talentoso.  Alfredo Ferreira Rodrigues nasceu no distrito do Povo Novo e muito pequeno passou a residir em Pelotas, sendo que aos 16 anos, por sua elevada condição intelectual, começou a ministrar aulas de várias disciplinas. Trabalhou como revisor na Livraria Americana e mais tarde, passou a trabalhar em sua filial em Rio Grande, vindo a morar definitivamente em nossa cidade.
Dedicou-se a vários gêneros literários, tais como crônicas, ensaios, contos, relatos históricos e poesia. Sua intelectualidade o conduziu a ser historiador, poeta, ensaísta, biógrafo, charadista e professor. Nascido a 12 de setembro de 1865, Alfredo Ferreira Rodrigues foi um homem de seu tempo, preocupado em divulgar ao público a história e características singulares do RS. Interessou-se por toda a história nacional, mas especializou-se na história regional, divulgando-a  aos seus compatriotas, principalmente a partir da organização do Almanaque Literário e Estatístico do Rio Grande Sul. Este Anuário foi publicado a partir de 1889 e prosseguiu até 1917. Aqui, eram publicados diversos textos de entretenimento e artigos culturais de autores gaúchos, assim como os seus próprios contos, ensaios e crônicas, que eram ansiosamente esperados pela sociedade da época e rapidamente esgotado nas bancas. Foi um vencedor. Além do bem sucedido Almanaque Literário, publicou livros, livretos e artigos em diversos periódicos.
Apesar das inúmeras dificuldades que enfrentou, principalmente em âmbito financeiro, tinha um sonho que era o de elaborar um grande relato da Revolução Farroupilha, um movimento no qual possuía um interesse especial. Sua literatura, neste particular, se dava sob a ótica positivista da época, preocupado com a reconstrução histórica da formação rio-grandense. Para tanto, esforçou-se em reunir documentos históricos em todo o Estado, bem como em diversos lugares do Brasil e do exterior, de modo que a história do Rio Grande do Sul fosse amplamente detalhada e divulgada a partir de seus registros. Numa das citações do artigo do Prof. Francisco das Neves Alves, p.43. Revista Biblos. 2008. O autor Othelo Rosa observa: “Uma ordem meticulosa preside a tudo. As próprias cópias são feitas com limpeza e atenção máxima, de modo a excluir a possibilidade de erros de leitura e, principalmente, de erros de interpretação. E o que se sente, sobretudo, naqueles papéis empoeirados e velhos, naqueles recortes de jornais, naqueles cadernos bem cozidos, é o amor, o grande e profundo amor do homem pela história do Rio Grande do Sul”.   Costumava também fazer traduções do inglês, alemão e, inclusive traduziu o clássico “O corvo” do escritor americano Edgar Alan Poe, publicando-o no Almanaque. Foi homenageado por muitos Institutos, dos quais participava em seus quadros sociais, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco , da Bahia, de São Paulo, do Ceará, do RS, da Sociedade Geográfica de Lisboa, além de ser membro fundador da Academia Rio-Grandense de letras. Na virada do século XIX para o XX, foi um dos articuladores do monumento-túmulo de Bento Gonçalves, situado na Praça Tamandaré. Suas crônicas, contos, ensaios , relatos históricos, eram estruturados numa linguagem simples, econômica, mas ao mesmo tempo cheia de lirismo e intencionalidade política, quando o texto exigia e objetividade  ao se tratar de uma informação mais técnica, o que o tornou um dos maiores intelectuais da época. Um rio-grandino, que amava a sua terra e que queria deixar um legado, um registro, do seu fazer literário através de sua vida dedicada à literatura, revelando-o um grande historiador. Este homem ilustre é o patrono da cadeira n° 3, a qual humildemente passo a ocupar a partir desta data.

Por outro lado, não posso me furtar de falar sobre o último ocupante da cadeira, que foi o Professor Fernando Lopes Pedone, um emérito bacharel de História, que tornou-se um dos reitores da Universidade Federal do Rio Grande. O Professor Pedone teve destacada atuação na criação de novos cursos da Universidade, em sua gestão, bem como foi o idealizador e criador do Campus Carreiros. Foi também o criador da Estação de Apoio ao Programa Brasileiro na Antártica (ESANTAR). Além de professor e historiador, falava inglês, francês, espanhol e italiano. Também foi laureado como comendador  agraciado com a medalha do Mérito naval, bem como com a Medalha Brigadeiro José da silva Paes, igualmente no grau de comendador. Um homem que exerceu com dignidade e louvor a sua profissão.

Bem, meus amigos, quer dizer que estou muito bem acompanhado.
E também, acho que a literatura é acima de tudo uma companheira. Ela exerce um papel fundamental na vida das pessoas. Mesmo que não percebamos, é através da literatura, que mostramos o que somos, o que queremos da vida, o que sonhamos. Sabemos que a literatura é uma manifestação artística e para muitos escritores, ela se esgota nesta proposta. Para outros porém, dos quais eu me incluo, a literatura deve ser um registro da realidade que recria,  como uma tentativa constante de transformação do mundo em que vivemos. Na minha opinião ela só tem verdadeira importância, se for crivada dos anseios de seu povo, se tiver um viés político. O mínimo que se espera é que haja, em alguma medida, o pensamento crítico sendo colocado em jogo, sendo trabalhado e compartilhado.  A arte da escrita não é puramente estética. A despeito do que escrevemos, haverá sempre a intencionalidade do autor com a conexão do mundo real, da sociedade e também com o seu mundo interior, moldado em suas experiências e apreensão da vida.  Faz-se política em qualquer gesto e tenho comigo que este brado deve corresponder ao clamor das minorias, dos excluídos, dos que não tem os privilégios, dos trabalhadores invisíveis. Acho que o homem é o algoz do próprio homem e a literatura está aí, para redimir esta sequela humana, para transformar o bruto, no belo, no artístico, no lírico, no imponderável, mas acima de tudo, mostrar que o rústico, o pobre, o ausente das benesses é tão intenso e dramático e pertencem ao mesmo mundo em que vivemos. Basta olhar para o lado. Não me interessa uma literatura calada, amordaçada, padronizada no senso comum, amarrada apenas à lógica literária e aos padrões estilísticos e de gênero. Interessa-me a literatura que não se cala às adversidades, aos desmandos, às ditaduras, à mídia manipulada e manipuladora. Interessa-me uma literatura que mostra o seu povo, que enaltece a sua linguagem e que acima de tudo, produza a reflexão. E que por fim, seja, além de tudo puramente literatura, na qual a emoção e o sonho se completem no lirismo e na beleza. Acho, inclusive que o autor é um ser dividido e complexo, como todo ser humano, mas que ao refletir sobre isso, extravasa sua emoção e sentimentos no seu ofício e talvez sofra com essa dicotomia.  O poema “Traduzir-se” de Ferreira Gullar,  musicado por Chico Buarque, exemplifica bem esta singularidade do escritor, quando diz: “Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira.
Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem.
Traduzir-se uma parte na outra parte – que é uma questão de vida ou morte – será arte?”
Como falei anteriormente, a vida é cheia de desafios. Mas alguns são conduzidos por mãos amigas que nos ajudam a transpô-los de algum modo. O desafio de ler e escrever, de procurar um significado no universo das letras. Aqui, tive a presença de meu pai, que me indicava o caminho, mostrando nos jornais, bem cedo, antes mesmo de ir à escola, as palavras, e nelas o seu conteúdo. A vontade de minha mãe em sempre ocupar-me com bons livros. E a partir destes momentos, o desejo de saber mais, de participar daquela gama de significados e formar outros, a ponto de construir as próprias escritas. Muito pequeno, comecei a escrever e mostrar à família e aos professores, aos amigos, as primeiras histórias. E estas histórias se confundiram numa metalinguagem produzindo outras histórias, no momento em que outras pessoas liam, formava-se uma nova trama. A princípio, um tio interessado, depois os amigos. Alguns ficaram com os velhos cadernos recheados de histórias melodramáticas, como o caso de meu colega do curso médio e de minha amiga Ângela Puccinelli, que aos poucos foi me devolvendo as velhas  lembranças através daquelas folhas presas em velhos espirais que havia guardado, laços de amizade da adolescência que se tornaram atemporais. E a vida se insinuou entre as histórias, que com o passar do tempo e a aprendizagem estética, foram tomando forma e cada vez mais maduras, mais literárias, até chegar a concursos, premiações e publicações. Neste momento, só tenho a agradecer, além de meus pais, minhas irmãs que sempre leram e debataram minhas histórias, meus cunhados e sobrinhos, minha mulher e  minha filha, companheiras fiéis em minha caminhada e minha sogra, uma contumaz leitora de meus romances e contos, além de todos os amigos que acompanharam minha trajetória. Mas os desafios prosseguiram e especialmente este acalentado pelo convite de meu padrinho Sérgio Puccinelli, que também, de certo modo, participou de minha história literária. Naqueles tempos idos, quando das discussões filosóficas e literárias, ao lado de minha amiga Ângela, ele, seu irmão, já tinha seus poemas guardados, e nós, pelo menos eu, nem sabíamos e talvez ficasse atento aos nossos sonhos da época. Pois ele, o nosso grande poeta, me escolheu para que eu participasse dessa confraria. Portanto,  quero afirmar a todos, que tudo farei para fazer juz a esta confiança em mim depositada. Não preciso falar muito de Sérgio, basta que leiamos a poesia “Estes ditos normais”,  para perceber-se a pessoa especial que é e o  grande poeta, que desvela a literatura, intensificando a sua função de revelar a transmutação do pensamento.

“Estes ditos normais”

Que gente misteriosa e infeliz
Estes ditos normais:
Não fizeram nada do que eu fiz
Não fizeram muitas coisas mais
Não tiveram fome nem frio
Não foram lambidos por cães
Não viram a vida por um fio
Não clamaram por suas mães...
Tiveram a vida regrada
Casamento, prole sã
Nunca tomaram o desvio da estrada
Nunca enfrentaram o Leviatã.
Nunca viajaram no espaço
Viveram a vida sem estupor
Nunca fizeram o que eu faço
Nunca morreram de amor!

Muito obrigado.              

(Estes ditos normais: poema de Sergio Puccinelli, de seu livro "Poemas para uma tarde de chuva".)
PUCCINELLI,  Sergio. Poemas para uma tarde de chuva. Rio Grande: Casaletras, 2013.




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