sábado, setembro 17, 2016

CANDIDATO INFLAMADO

Bateram à porta com insistência. Instintivamente, me afastei, sondando outras possibilidades, que não fosse àquela, aterradora, de me deparar com o desconhecido, de me defrontar com a expectativa do outro, que via de regra não é a minha.

Uma visita inesperada, fora de hora, sem qualquer aviso; o pedido de dinheiro por um ser humano alterado na própria concepção de humanidade, onde olhos vermelhos se fundem em olheiras doídas, demonstrando mais humildade do que possui, obedecendo ao ritual produzido pelos desejos involuntários do vício, via de regra, aliado ao ato de roubar.

Talvez um pedido de comida, este sempre melhor aceito, embora menos frequente, quase sempre acompanhado da possibilidade de arrecadação extra, financeira. Ou a venda indecente de revistas religiosas e todo o vocabulário próprio, cujas expressões gastas e repletas de castigos já não atingem a alma de quem apenas aspira seguir a própria fé, ou não. Quando muito, atingem a consideração ao zelo dos vendedores, quando não extrapolam o bom senso e a paciência do comprador.

Uma outra investida em nossa porta, pode ser a entrega da revista ou do jornal, estes com auspiciosos desejos de desvendar o mundo, ou o que dizem dele, desde que não se aceite na sua integridade os conceitos e mensagens subliminares ou pelo menos, se escolha o veículo menos parcial da mídia.

Hoje em dia, a mídia tradicional já nem tem mensagens subliminares, ela entrega de vez a informação manipuladora da ideologia elitista.

Também ocorre a entrega de encartes, publicidade de lojas, de supermercados, de revendedoras de gás e água ou mesmo a visita do carteiro, com a mercadoria esperada e as contas inevitáveis de todo o mês ou avisos de débitos.

Além de todas estas injunções cruéis em nossa vida cotidiana, atualmente há a distribuição sistemática de panfletos.

Panfletos? Sim, panfletos políticos, santinhos, com a figura impudente e maquiada do candidato, via de regra, aquele cujas promessas nunca são avaliadas, quanto mais comprovada a sua eficiência.

São eles que nos chegam a todo o momento, abarrotando a nossa caixa de correspondência, quando não a virtual. Esta, elimina-se rapidamente, mas aquela, material, física e acompanhada da presença humana, é bem mais complicada de eliminar.

Não basta rasgar o papel, consumi-lo no fogo ou arremessá-lo na lata de lixo. É preciso desvendar a porta, abrir a caixa do correio e averiguar entre centenas de papéis inúteis, a maior das inutilidades que é o tal de santinho.

Estão sujando as ruas, conspurcando as calçadas, distribuindo papeis que logo serão atirados em qualquer canto por transeuntes enfarados, entediados e descuidados dos anseios políticos dos futuros candidatos.

Isso, que nem falei nos carros de som e as músicas infames que misturam o nome do candidato a ritimos populares.

Naturalmente, temos os nossos preferidos e é salutar que isto ocorra. Comungam com nossas ideias, ideologias ou conhecimentos da situação política da cidade, do estado e do país. E se não temos, merecemos por certo esta enxurrada de papéis disformes, com caras engessadas em sorrisos falsos e expectativas forçadas.

Mas, tudo o que foi relatado não configura o pior que pode acontecer à tranquilidade de um vivente.

O extremo da crueldade e falta de sorte, acontece quando o candidato se apresenta em nossa porta, via de regra acompanhado de um partidário servil, que acena a cabeça mil vezes concordando com o amigo.

Nestas alturas, o candidato apresenta a pretensa finalidade de resgatar um conhecimento efêmero, (quem sabe um colega do ginásio ou um amigo do irmão do mecânico que certa vez consertou o carro de nossa tia já falecida...), mas que para ele possui a eternidade do universo (pelo menos, agora).

Como refutar suas convicções, ouvir suas promessas, sem transparecer a cara de paisagem.

Afinal, para ele, não interessa a minha opinião contrária ao seu partido que apóia a política entreguista e traiçoeira. Para estes, não há saída melhor.

Não convém argumentar, nem demonstrar qualquer tendência à esquerda. Misturam tudo, como se churrasco levasse pimenta e molho inglês. Fazemos cara de paisagem agora e não votamos ou eles serão a própria paisagem sem vida, mural ruço e mofado, numa câmara cheia de traças e teias de aranha, nos próximos quatro anos.

Que abramos as portas para novos ares, mais adequados a nossas esperanças.

A fotografia da vida de Santa - CAP. 3

No 2º capítulo, Santa entrou na igreja ao lado do marido, observando a família. O filho, artista multimedia estava à esquerda dos demais, um pouco afastado dos parentes. Parecia intrigado com aquela exposição da mãe no dia de seu aniversário. Noutro banco, estavam a filha, uma promotora estadual que mostrava-se muito emocionada e o genro que acenava prudente. O outro filho, muito sisudo, esforçava-se em ajeitar a gravata e naquele momento, esboçar um sorriso. Mas uma outra surpresa foi capaz de desestabilizar Santa por completo, um relicário, um presente doado peloa igreja, através do bispo, que se mostrava sensibilizado. Era uma bússola, que provoca no marido de Santa uma certa indignação. Como hoje é sábado e nosso folhetim dramatico é publicado nas terças-feiras e no sábado, prosseguimos com o 3º capítulo. Divirtam-se!

CAPÍTULO 3

Fonte da ilustração: site www.morgfile.com

Nem dava para perceber, mas o dia seguinte para Santa havia sido por demais estressante. Estivera entretida entre fotografias, álbuns, além de idas às compras vez por outra, para aviar as tarefas de rotina.

Talvez não precisasse disso tudo, pensou consigo. Afinal era uma mulher rica, que dispunha de um número razoável de empregados; havia coisas porém, que se atribuía a necessidade de se ocupar.

De repente, após o almoço, ficou sozinha.

As vozes que ouvia eram de pessoas quase estranhas, apesar de conviverem há bastante tempo. Pessoas que lhe serviam, que traziam chás, ou transmitiam recados. Pessoas que mantinham o seu bem estar.

Mas não se sentia bem.

A quantas andava o marido, não sabia.

Os filhos já voltaram para as suas atividades.

O tempo passava quase insalubre.

Doíam-lhe as pernas. Doía-lhe o corpo.

Deixou que os últimos servidores se afastassem e deitou-se no velho sofá da saleta de leitura, ajeitou as pernas, deixando os tornozelos encostados no tecido, meio que estirados.

Precisava se refazer do cansaço do dia. Um dia sem nada para contar, sem ter o que lembrar.

A festa do dia anterior, as expressões de carinho, de congratulações. Tudo já era passado.

Agora restava o dia depois, aquele que não devia existir. Como uma ressaca, uma vontade de não fazer nada, um tédio acumulado.

Que fazer, se as coisas mudavam assim, tão repentinamente e ela não mais desfrutava o passado recente como coisa presente. Não, ela já não se dava a estes desfrutes.

Ela se repetia na rotina e a dor parecia bem mais intensa e duradoura. Uma dor de saudade, de distância dos seus, de vontade de permanecer junto. Uma dor a mais.

Ligou a tv, trocou várias vezes de canal.

A tragédia da vida cotidiana pintava todas as telas. Nada acrescentava ao espírito. Quando muito, um filme arrastado, ao qual nem tinha paciência de assistir.

Seus pensamentos retomavam a infância, talvez a idade em que fora mais feliz.

As lembranças se acumulavam lentas, ultrapassando uma a outra numa tela distante. Tanto, que os olhos foram pesando e uma leve sonolência tomou conta.

Embora sem abrir os olhos, teve a sensação de ter alguém muito próximo.

Uma voz cálida que lhe dizia coisas difíceis de entender.

Aos poucos, a imagem foi surgindo, cada vez mais nítida e seu coração saltava em êxtase.

Um aroma suave de flores enchia o ar. Uma sensação de alegria genuína. Uma resposta a todas as dores e sofrimentos. Uma passagem para o bem.

Tinha a certeza de que a Virgem Maria estava ali, ao seu lado.

Encolheu-se no sofá, estremecendo. A voz cessou e um objeto tomava forma na mão da Virgem.

Uma bússola, tal como a sua, com a agulha apontando para o norte, indicando algum lugar por detrás das cortinas.

Santa tinha a sensação desfalecer.

A presença de Virgem Maria ali, na sua casa, com uma bússola devia ter um significado muito importante.

Alguma coisa que certamente mudaria a sua vida, que a transformaria numa outra pessoa, ou então, que ratificaria o rumo correto que alcançara na vida.

Mas por que aquela bússola na direção da janela?

O que havia lá, a não ser uma colina que se estendia até uma pequena ilha.

Por que ela surgira assim, daquela maneira, sem os habituais adereços, sem o rosário, sem as flores?

Por que trouxera um objeto que não agregava um símbolo significativo de sua missão?

Por que não aparecera como de hábito, apenas como a Senhora, a Mãe de Jesus, a Mulher que convidava ao conforto da oração ?

Por que a instigava daquela maneira, ela que sempre seguira os mandamentos, que fora uma mulher exemplar, uma benemérita da comunidade?

O que mais queria dela?

Que caminho estranho estava indicando para que seguisse?

Que chamado era aquele?

Por que ela não virara a bússola para outra direção, para o centro, por exemplo ou mesmo para o bairro onde se situava a catedral?

O que havia de tão importante naquele rumo?

Seria então este o caminho indicado pela Virgem? Uma trajetória desconhecida, a qual deveria se determinar a seguir?

Levantou-se num salto e abriu bem os olhos, mas a imagem não estava mais ali. Não havia nada, a não ser uma pequena brisa que balançava as cortinas da janela.

Então, com as pernas trôpegas aproximou-se da janela e olhou ao longe.

O que havia lá, além da colina, além daquela ilha solitária?

Uma região afastada, na qual vivia uma comunidade isolacionista?

Um povo estranho que se dizia sem regras nem leis?

Uns desviados da política, do poder, do governo.

Uns anarquistas, sem eira nem beira, que viviam às custas do que plantavam ou das trocas que faziam?

Santa estremeceu. Anarquistas? Seria este o caminho? Seria para que ela deveria seguir? Seria este o norte mostrado pela Virgem?

Começou a andar pela casa em absoluto desespero. Chamou os empregados.

Poucos apareceram. Não lhes disse nada. Pediu apenas que Linda, uma velha empregada que lhe servia há muitos anos, ficasse. Pediu que sentasse ao seu lado.

— A senhora quer que traga alguma coisa, Dona Santa? Um chá, um café?

— Não, não quero nada Linda. – a voz estava trêmula e uma ansiedade se fixava em cada sílaba – Linda, escute, se eu lhe dissesse que vi Nossa Senhora, você acreditaria?

Linda encarou a patroa, intrigada. Sempre fora religiosa, e já tinha visto muita coisa nessa vida, mas ver Nossa Senhora, assim, do nada, era demais.

Evitou porém, dizer qualquer coisa, mas por certo, concordaria com a patroa, para agradá-la.

— Você acha que estou louca, não é mesmo?

— Não, imagina, Dona Santa. Se a senhora disse, é porque é. Afinal, a senhora é tão religiosa. Nada mais justo que Ela aparecesse para a senhora.

Santa levantou-se e dirigiu-se à janela. Avistou um pássaro pousando suave no telhado vermelho que cobria a sacada lateral. As patas finas, o passo gracioso. Olhou para o alto e se benzeu.

Linda a observava, procurando certificar-se de que dissera a coisa certa. Dona Santa parecia transtornada. Melhor não contrariar.

Santa voltou-se e a interceptou, num ímpeto.

— Isso não importa, agora. Preciso saber de outra coisa.

— Como não importa, dona Santa? – insistiu, sem muita convicção. – É uma coisa maravilhosa! Se ela apareceu, é porque tem um motivo. A senhora lhe deve alguma coisa.

— Este é o problema, Linda, o motivo. Ela me pediu uma coisa extraordinária – afasta-se devagar da janela, aproximando-se da poltrona. Segura o encosto por trás, com as duas maos, dobrando o corpo e fala em tom quase confessional – Linda, ela quer que eu me envolva com aquela gente do lado de lá.

Linda ficou ainda mais confusa. – Aquela gente... do lado de lá...? – pergunta tentando adivinhar, sem saber a quem a patroa se referia.

Santa soltou o encosto do sofá e sentou-se na frente de Linda. Insistiu: — Você sabe sim a quem me refiro. O povo lá da colina, ou melhor, depois da colina. O tal povo da Ilha Libertária, parece que é assim que se autodenominam.

Deus me livre, aquela gente não presta. A Virgem não ia mandar a senhora pra aquelas bandas!

— Mas eu não sei ainda o que ela quer de mim, Linda – acrescenta, angustiada. – Talvez ela queira que eu me embrenhe naquela ilha, que convença aquele povo... ou... – refletindo – talvez eu deva dividir a minha fortuna, minhas jóias, meus bens.

— Como assim, dona Santa?

— Eu sei muito pouco deles, mas dizem que não aceitam dinheiro, que utilizam trocas. Eles são militantes contra o nosso sistema capitalista. Cristo também era assim, como eles. Cristo era um anarquista e queria dividir tudo com todos. E também ele não aceitava governos, nem senhores. – Santa respira fundo, agora a voz soa forte e precisa. Parece fazer um discurso.

Linda a observa sem entender o que realmente pretende. Esforça-se em achar uma frase para participar da conversa.

— Não quero contrariar a senhora, não, dona Santa, mas aquela gente lá não é normal. Como é que um povo pode viver assim, isolado de todo mundo, meu Deus? Pra mim, eles usam é drogas.

— Não é nada disso, Linda. Você não entendeu a proposta, mas eu estou refletindo e aos poucos, estou chegando lá. Quem pode afirmar que eles não estão certos? Talvez seja esta a minha missão, entrar naquela comunidade, participar das suas crenças, ajudá-los. Se eles não usam dinheiro, eu posso ajudar a vida deles com o meu. Dizem inclusive, que são naturalistas, que respeitam a natureza, que vivem com a maior simplicidade.

— Contam por aí, que eles vivem do que plantam – confirma Linda.

Santa levanta-se mais uma vez e caminha pela sala enquanto fala. Quem a visse, além de Linda, diria que se trata de outra pessoa. Uma pessoa que encontrou um norte, um novo objetivo na vida.

– Eles são pessoas simples, que vivem do que plantam, você disse. Pois eu quero viver esta vida simples. Não foi o que Cristo disse aos dois irmãos ricos que lhe perguntaram como alcançariam o céu? Vá, vende tudo o que possuís e dá-o aos pobres. Pois bem, eu me acercarei destes pobres e seguirei as palavras de Jesus. A agulha da bússola apontava para aquela região. Pois lá, edificarei a minha seara.

— Dona Santa, não sei se deveria perguntar, mas os seus filhos vão aceitar isso?

— Claro, Linda. Todos entenderão que a partir de hoje, eu tenho um novo caminho a seguir. Portanto, vou reuni-los o mais breve possível, toda a família, para contar-lhes esta empreitada.

sexta-feira, setembro 16, 2016

Resenha sobre o meu romance “O eclipse de Serguei"

O romance “O eclipse de Serguei” produz a sensação ao leitor de estar incluído num mundo complexo e cheio de veleidades do qual não faz parte. Um mundo da ficção.

Entretanto, com o desenrolar da trama, é possível perceber que o mundo que se apresenta está bem ali, ao alcance da mão, ao folhear das páginas, é o nosso mundo real, onde transitam diversos personagens que podem ser as pessoas com as quais convivemos: o porteiro de nosso prédio, o professor da escola de nossos filhos, a vizinha ao lado.

O eclipse de Serguei é assim ousado, revelando a realidade crua de nossas vidas, nas quais a violência latente campeia devagar, insinuando-se em nossas relações, condutas e preconceitos.

No entanto, esta realidade acontece de uma maneira suave, sem pressa, de tal forma, que nos cativa e remete a um cenário muito peculiar e ao mesmo tempo familiar, inferindo em cada página, o desejo de nos inteirarmos das tramas desenvolvidas.

Há, sem dúvida, a emoção desenhada na cada fala dos personagens, nas descrições mais apuradas das situações apresentadas por personagens complexos e simples, como nós.

Uns, cheios de vida, idealismo e esperança, outros destituídos do senso de humanidade, centrados em seus sentimentos de posse ou convicções retrógradas.

Todos fazem parte da cultura embasada no fundamento falso de vida moderna, da aparência e da vantagem imediata, na qual o homem tem involuído ao invés de crescer.

Assim é Serguei, um homem que acredita fielmente em seu lugar na sociedade, como homem branco, de classe média, acostumado a seguir um código padronizado, há muito registrado em sua mente.

Possui uma vida medíocre, calcada nos conceitos mais primários, alicerçada na vontade imperiosa da mãe e do sentimento de solidão advindo de sua infância perdida.

Dois acontecimentos parecem ter embotado a sua criatividade e a vontade de lutar por si próprio: a perda do esperado fenômeno do eclipse solar e o desaparecimento estranho do pai, um militante de esquerda.

Serguei desempenha atividades monótonas num cartório e através de uma brecha de criatividade, exerce as funções de atendente num turno da biblioteca de um museu, pois considera que aqueles documentos tem uma história para contar.

Fica dividido, quando através da genealogia da noiva, Beatriz, descobre que a mesma é judia.

Influenciado pelas ideias conservadoras da mãe, sempre se dedicara a pensar que sua origem fosse mais nobre do que a da maioria dos mortais.

Para completar, em meio há tanta mediocridade do cartório, desfilam personagens como o funcionário puxa-saco, Anselmo, o próprio chefe, o Sr. Oliveira, do qual Serguei nutre uma admiração pelo poder que exerce e ao mesmo tempo uma certa desconfiança, o misterioso homem do café, que tem o sugestivo nome de Adolf, Dóris, a secretária que desempenha estranhas atividades e que vem a ser sua aliada, chegando a morar em sua casa, detentora de um plano fantástico para a sua liberdade e finalmente, talvez o único personagem íntegro e que possui dotes de inteligência,um negro, fato que deixa Serguei cada vez mais intrigado.

O clima de insatisfação vai crescendo até que ele descobre que Gomes, o funcionário do cartório que se suicidou, era muito parecido com ele.

Finalmente, se depara com a comunidade do cartório, e percebe que atrás daquele grupo bem costurado, há um líder, que pensa como ele, e por isso, considerado o “escolhido”.

Para tanto, chega um momento, em que ele não vê saída, a não ser assumir o seu lado neonazista e por ironia do destino, acaba encontrando no seu caminho perturbado, um homossexual.

Chegou a hora de se tornar um verdadeiro baluarte de sua verdade tantas vezes oprimida.

Torna-se um skinhead, seguindo os preceitos da mãe.

Finalmente, descobre que tal como o eclipse, que se dissipara, o seu passado não passava de uma nuvem de poeira forjada, insossa, padronizada, culminando com a descoberta do verdadeiro delator das atividades clandestinas de seu pai.

A quem seguiria Serguei?

Quem era ele afinal?

e-mail do autor: gcgilson4@gmail.com

terça-feira, setembro 13, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 2

No 1º capítulo de nosso folhetim dramático, conhecemos um pouco a personalidade de Santa, a matriarca da família, uma mulher extremamente religiosa, católica tradicional, que preparava-se para a sua festa de 60 anos na Igreja que conhecia desde criança. Enquanto se encaminha para a missa em sua homenagem, lembra de sua primeira comunhão, das impertinências do irmão, dos cuidados da mãe, da indiferença do pai em alguns momentos, enfim, de sua vida infantil naquele ambiente religioso. Agora, chegando ao momento de entrar na igreja, sentia uma dificuldade, um certo aperto no coração e por isso, fazia-se perguntas inquietantes. Veja a seguir, como hoje é terça-feira e o nosso folhetim é publicado aos sábados e nas terças, o 2º capítulo de nossa eletrizante história. Aqui, aparecerá a família de Santa e suas condutas bem diferentes de suas expectativas. Espero que gostem. Abraços.
CAPÍTULO 2

Quem a conduzia até ali? A sua vaidade? Não, uma mulher temente a Deus, uma dama dos círculos mais nobres da sociedade, uma mulher respeitada por ser o que realmente era. Não podia ceder agora. Não era o momento.

O marido se aproximou, intrigado. Segurou-a novamente pelo braço. Abriu aquele sorriso matreiro, que em algumas vezes a fizera pecar e a convenceu de vez.

— Vamos, vamos sim. Estou nervosa.

— Não é pra menos – antecipou satisfeito.

Os fotógrafos aproveitaram a pausa para mais flashes, quanto mais instantâneos, melhor.

Uma das ajudantes da coleta do ofertório, correu ao seu encontro para informar que logo tocariam a música de entrada, para ela se preparar.

Santa sorriu, obedeceu e deu passos serenos e firmes, ao lado do marido, na direção da porta da igreja.

As luzes se acenderam. Eram focos brilhantes de todos os lados, obedecendo a rigorosa decoração.

Santa pensou que fosse chorar, mas se conteve nas fisionomia dos seus, que se apresentavam nos bancos, um a um, aos quais ultrapassava, no andar cadenciado.

Estavam quase todos juntos, com exceção do filho mais novo, um pouco afastado; um artista multimídia, que observava todo o cenário, talvez engendrando uma futura apresentação de seu trabalho. Era magro, cabelo liso, caído na testa, de um dourado falso, que ocultava vez que outra o olho direito. Vestia-se casual e não parecia muito preocupado com detalhes de pompa.

No banco mais a frente, estava a filha de olhos vermelhos, uma lágrima insistente correndo pela bochecha e embargando a voz, quando se dirigia ao irmão mais velho, que parecia não entender nada do que dizia.

Era alta, elegante, vestida de preto, com uma rosa também preta no decote. Poucos brilhos, poucas joias, mas o suficiente para bordar uma figura deslumbrante.

O marido, em seu lado esquerdo, observava a cena silencioso, cumprindo talvez um compromisso inevitável. Estava vestido de acordo com a ocasião e suava aos borbotões. O cabelo puxado para trás, mostrando entradas proeminentes, um olhar obtuso à deriva e a boca de lábios finos, que ora resmungava o desconforto que sentia. A mulher, pouco o notava.

Santa logo percebeu que os amigos se aglomeravam um pouco atrás dos parentes.

As mulheres bem vestidas em generosos decotes, os homens formatados em ternos comportados. Um que outro se salientava pelo penteado mais ousado ou mesmo por cochichos e sorrisos fora de hora.

Santa por um momento, teve a impressão de ver a mãe, logo seguida pela babá, esgueirando-se pelos bancos e pedindo silêncio com aquele sorriso doce de publicidade. Via-a se enfileirando no corredor, ultrapassando as crianças que se perfilavam e lhes falava com agradável sonoridade. Um sorriso aqui, um muxoxo ali e ela liderava a situação, sempre seguida pela babá, que apalermada no burburinho, às vezes se perdia dela.

Mas foi só por um momento, em seguida se concentrou no altar.

Avistava de longe, o bispo se adiantar, e tinha a impressão que seus olhos estavam vermelhos.

Quem sabe ele também sonhara com aquele momento? Quem sabe ele imaginara a sua igreja cheia de pessoas ilustres, acomodando-se entre os bancos devidamente ornamentados, entre velas que se acendiam à trajetória de Santa e flores que pareciam se abrir, à sua passagem.

Talvez tudo fosse um sonho. Também para ele.

Mas, por certo, ele poderia ver no primeiro banco, um pouco, à esquerda, o prefeito e a mulher, assim, enlaçados, esbanjando afetuosidade e ótimo relacionamento, também um que outro vereador, tanto da situação quanto da oposição e até alguns candidatos, que não dispensavam a oportunidade de aparecerem.

Como não exultar com a igreja tão cheia de celebridades, de notáveis que abrilhantavam o evento!

Agora, ela e o marido estavam cada vez mais próximos da chegada.

Piscou para o filho artista, que estava à esquerda dos demais e ele a olhou intrigado, quem sabe se perguntando que papel fazia a sua mãe, naquele momento. Não sorriu, mas acenou lentamente, levantando uma mão absorta, no ar, que se abandonava em seguida, no colo, embora a mãe já disparasse o olhar para outra direção.

Ela agora dedicava-se ao trio: os dois irmãos e o genro. O filho, sisudo, mas que por ora abria-se num sorriso para a mãe. Ajeitava, sôfrego, a gravata, acondicionando-a de modo a ficar reta, o que parecia fora de seu alcance. Também estava ansioso.

A filha se apoiava no marido, os olhos marejados, quase se transformavam em soluço. Sorriu para a mãe, para não assustá-la. Também porque deveria conter-se: era uma promotora estadual, uma mulher afeita à singularidade da discrição, do cuidado, da sutileza. Devia evitar a emoção.

O genro limitou-se a acenar, prudente.

A música parou e Santa, ao lado do marido, se posicionou no primeiro banco, no local especialmente dedicado a eles, que ficava bem ao centro e próximo ao altar.

Respirou fundo e ouviu as primeiras palavras do bispo, as quais se referiam a ela, antes de iniciar a missa.

No sermão, mais uma vez o seu nome foi lembrado, desta vez, para discorrer toda a sua trajetória de mãe, esposa fiel e digna representante da sociedade, além de benfeitora e participante entusiasmada da comunidade.

De repente, o bispo desceu do púlpito e se aproximou do casal.

Todos os olhares imediatamente se voltaram para os dois. Ele solicitou que o coroinha lhe trouxesse uma pequena caixa.

Pegou-a com cuidado, enquanto o menino se afastava rapidamente para o seu lugar.

Santa aguardava a surpresa, com verdadeira expectativa.

O bispo então, abriu a caixa e retirou uma pequena joia, uma espécie de bússola estilizada, constituída de prata, ouro branco e alguns brilhantes incrustados. A pergunta que emendou à Santa tinha a finalidade maior que a plateia participasse, tal o esforço verbal que produziu, sem utilizar o microfone.

– Então, nossa benemérita amiga, sabe o que é esta pequena joia?

Santa engoliu em seco. Os olhos brilharam profundos, em lágrimas que se espalharam rápidas pela face. Utilizou um lenço que o marido com presteza lhe entregou, e tal como ela, sua expressão era de extrema perplexidade.

Antes mesmo que Santa respondesse, o marido resmungou, apalermado: – Minha avó se revirou no túmulo.

Santa o olhou espantada. O bispo fingiu não ouvir e repetiu a pergunta.

Ela então, respondeu, indecisa.

– Na verdade, não sei bem.

O bispo prosseguiu, entusiasmado: – Mas a comunidade se lembra muito bem, minha amiga. Esta joia foi o simbolo de sua apresentação à igreja.

Ela gostaria de perguntar – como assim ? – se não lembrava do que se tratava. Entretanto, se conteve, quieta.

Evitou qualquer gesto, a não ser o de enxugar as lágrimas.

Tinha consigo que tal objeto devia fazer parte de sua infância, que suscitava lembranças da mãe, da sua família, mas não conseguia identificar a razão de estar nas mãos do bispo.

Também havia aquela observação infeliz do marido. O que ele queria dizer com aquilo?

— Pois bem, sua mãe doou esta pequena relíquia para a igreja. Isso aconteceu no seu batizado, mas quis a Providência, que um padre de nossa comunidade, um velho e diligente capuchinho, guardasse-a com cuidado e ela permaneceu conosco até os dias de hoje. Ele se foi, a joia ficou e a história transcorreu. Este pequeno relicário, tenha a certeza, é o símbolo da sua fé. Por isso, tivemos a feliz e providencial ideia de devolvê-la à senhora, Dona Santa. Acho que esta bússola que indicou o seu caminho para a igreja, que transformou a sua trajetória numa vida santificada, esta bússola, hoje lhe pertence.

– Mas eu não posso aceitá-la.

– Aceite-a sim, porque é sua e de hoje em diante, norteará o restante de sua vida. É um objeto abençoado que só lhe transmitirá paz. Além disso, a senhora é a única pessoa indicada para ter uma bússola em sua vida. Quem sabe, não norteará mais pessoas para que se engajem no caminho do bem? Contamos com a senhora, Dona Santa.

– Santa teve a impressão que a voz do bispo se tornava um pouco rouca e uma emoção mais forte o atingia.

Então, fitou o marido, solicitando a sua intervenção.

Ele estremeceu levemente as pernas, denunciando a total incapacidade de decisão. Fitou-a, meio intrigado e abriu bem os olhos sob as sobrancelhas cerradas. Por um momento, parecia envolvido em terríveis pesadelos, mas subitamente, como se tomado por uma entidade salvadora, abriu-se num sorriso condescendente. https://pixabay.com/pt/users/josuemei72-141099/

Ela aceitou a joia.

Foi assim que Santa participou do momento mais doce de sua existência.

Mas a incongruência de seus pensamentos não demoraram a deixá-la ansiosa.

Uma joia tão importante para a igreja e que possuía um significado para a sua vida, deveria representar uma grande responsabilidade.

Suas mãos, por um momento, começaram a suar e seu coração tomou-se de pequenos saltos, agitando o sangue que corria nas veias.

Que mensagem seria aquela para a sua vida? Que caminhos deveria tomar de agora em diante? E o que o marido pretendia com aquele devaneio? Um mistério que somente o futuro resolveria.

Fonte da ilustração: Josué Miguel Escudero. in site: https://pixabay.com/pt/users/josuemei72-141099/

segunda-feira, setembro 12, 2016

Sonhos que jazem acordados

Fonte da ilustração: waldryano do site www.pixabay.com

Olhar-se no espelho, meio dormindo, assim pela manhã e deparar-se com uma face nova, que não a sua, não é tão surpreendente assim.

Acontece, às vezes, com qualquer mortal. Principalmente, se ele está completamente desiludido de seus sonhos.

Aconteceu com Gustavo, certa vez.

Olhou-se no espelho, demorado. Piscou um olho, a resposta simultânea assegurava que era ele. Mas tinha consigo, que alguma coisa estranha tinha acontecido naquela noite.

Afinal, o mundo desandara a seus pés.

Escrevera mil histórias, publicou algumas, contos, crônicas, artigos em revistas, até um romance, considerado o primogênito bem amado. Esperou afoito que acontecesse, que desabrochasse para as audiências, que o lessem sofregamente.

Nada aconteceu. Nem um comentário, nem uma notícia boa, nem uma página de jornal.

Tudo burocrático, organizado por ele e 10% pela editora.
Como pensava que teria este vigor todo para tocar em frente, conquistar as plateias, dar entrevistas, divulgar o seu produto.

Apenas um filho, acalentado em sonhos durante as viagens que fizera em torno da imaginação claustrófoba.

Nada acontecera. Fizera umas sessões de autógrafos, umas reuniões com os amigos. Vendera alguns livros, mas só isso.

Não foi adiante.

Teve que tomar uma decisão difícil. Botar a boca no trombone, gritar aos quatro ventos, mostrar o que tinha produzido e revelar ao mundo a enganação que sofrera, ingenuamente.

Pensara que seria ajudado pela editora, que teria sua obra fixada no mural dos autores, que veria resenhas nos jornais, em páginas da Internet. Ilusão.

Calar-se. Era a outra atitude.

Aquietar o espírito e conceber a si mesmo que a estrada bifurcava logo ali adiante e que não havia caminhos paralelos.

Foi o que fez ou o que se permitiu fazer.

Deprimiu-se. Foi desta vez, que se olhou no espelho e viu apenas um espectro de si mesmo, um reflexo apagado da própria figura.

Era apenas mais um, na busca de um troféu que não era o seu, de um prêmio que não lhe entregaram, de um reconhecimento que não tivera.

Gustavo ficou assim, se olhando por mais um minuto. Mas foi só.

Afinal, o tempo passava depressa.

Aquele hálito pegajoso no espelho, já não era mais seu. Era do espelho, que bafejava satisfeito na sua cara.

Abandonou-o de vez e disse para si mesmo que recomeçaria mesmo assim.

Não com aquela manifestação de espírito exacerbada, mas com a vontade de expressar-se sob qualquer circunstância, em qualquer suporte, em que pese as dificuldades para fazê-lo.

Quem sabe, num feedback de comentários, sinta novamente o sabor da luta.

sábado, setembro 10, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 1

Santa, a matriarca de uma família rica e respeitada, muito religiosa e benfeitora da comunidade prepara-se para uma ocasião especial, que é o seu aniversário de sessenta anos celebrado por uma missa. Aos poucos a fotografia de sua vida revela que a harmonia da família é apenas um flash da câmera e aos poucos, todos vão mostrando o seu discurso, em cujo tema a hipocrisia humana é flagrada.

Assim começa o nosso folhetim dramático.

A seguir o 1º capítulo (as publicações dos capítulos são feitas aos sábados e terças-feiras)

Fonte da ilustração: MichaelGaida. Do site www.pixbay.com

Nem sempre se tem a convicção de que a vida revela uma atmosfera de conforto ao espírito, mas para Santa, tudo parecia suave e doce, a ponto de transportá-la aos melhores momentos de sua infância.

Enquanto se dirigia para a igreja, lembrava da mãe, sempre zelosa com o vestuário e de seu cuidado obsessivo com o comportamento. Nada lhe escapava: um gesto sorrateiro, um olhar gracioso para o irmão, uma implicância com o véu. A vida andava numa trajetória densa e comportada. De acordo com seus princípios.

Era uma primavera, como a de hoje. Havia aquele friozinho insistente, produzido pelo vento que enrolava papéis na esquina. Talvez o único rodamoinho que se permitisse.

A mãe descera do carro, segurando o vestido, acomodando-o como podia, para manter-se em pé, sem que o mesmo lhe subisse à cabeça. Nesta tarefa quase inglória, conduzia as duas crianças. Não confiava na babá.

Um pouco mais atrás, taciturno, com as mãos coladas aos bolsos, surgia o pai, devagar, com uma aparência não tão comportada e mais acostumada a lugares profanos. A missa não parecia ser o melhor programa, mas ele a acompanhava.

Santa percebia o quanto o pai se aborrecia com aqueles rituais. A mãe, ao contrário, sentia-se renovada e feliz. Era mais do que um dever de cristã: uma alegria genuína.

Ao entrar na igreja, ela separara os irmãos, com a ajuda da babá. Um iria para a esquerda, ao lado dos meninos, e Santa seguia a sua turma que a aguardava próxima ao altar. Era a primeira comunhão, uma solenidade tão esperada.

O irmão se colocara na posição entre dois colegas menores, ajudado pela professora de catecismo. Antes mesmo de qualquer observação da professora, o menino voltou-se para trás, à procura da mãe e gritou com a voz aguda, atingindo o ápice, no leve burburinho: — Mamãe, a minha vela tá torta!

Houve uma risada geral das crianças próximas. A professora o advertiu que ficasse quieto, esclarecendo que aquela envergadura era produzida devido ao calor da mão, mas ele insistiu na reclamação.

Santa olhou para o irmão e escondeu o riso, com a mão em concha. A mãe, apesar da impossibilidade de conseguir outra vela, aproximou-se do menino, reprendendo-o, fazendo-o calar-se com dificuldade.

Quando os ânimos se acalmaram, ela se afastou rapidamente, já que a cerimônia não demoraria a iniciar.

Mãe, pai e babá sentaram-se um pouco atrás, confiantes em que poderiam orientá-los, tanto a um, quanto ao outro, apesar da distância física entre os irmãos e a própria distância entre os bancos.

Santa esvoaçava o véu e o vestido, assumindo uma postura digna, quase santificada, segurando o rosário entre as mãos enluvadas. Santa, que naquela época, era chamada de Santinha pelos pais, olhou de vesgueio, com cuidado, volteando levemente o pescoço. Pôde ver a mãe toda animada, mas o que mais a impressionou foi certificar-se de que havia uma lágrima salgando a face inexpressiva do pai. Uma emoção talvez atingisse aquele coração dissimulado, revelando a alma que evitava mostrar-se.

Santa ou Santinha virou a cabeça feliz. Fitou a cruz e agradeceu emocionada o singular encontro espiritual do pai. Nem se deu conta de que o irmão era chamado à atenção pelo diálogo inesperado com um colega, talvez até contando piadas.

Agora, após tanto tempo, estava ela naquele carro, sentindo a sensação primitiva da primeira comunhão, dos primeiros gestos de afeição à religião, pela sensação quase explícita de se encontrar com Jesus. Estava ela, se encaminhando à rica catedral, não como a criança que explorava um mundo novo, mas a mulher de 60 anos, Dona Santa, que havia enfrentado tantos percalços na vida, mas que se abastecia plenamente dos frutos religiosos, para se manter uma mulher digna.

Além de tudo, era uma benfeitora, participante da Igreja como ministra da comunhão, querida na comunidade e que agora se preparava para enfrentar um dos dias mais felizes de sua vida: a festa de seu aniversário.

Desceu do carro ao lado do marido. Ela estava exuberante, no vestido esvoaçante, que lembrava um pouco aquele da primeira comunhão, descontando as proporções exageradas de massa corporal que adquirira. Mas era assim: um vestido leve, que lhe descia até a canela, num tom verde- água, pernas emolduradas por um sapato de salto preto, que acompanhava a bolsa da mesma cor. As pernas também já não eram as mesmas, os sapatos mal cabiam nos pés, tão inchadas se encontravam. O passo, entretanto era firme tal como o daquela época.

O olhar, embora guarnecido por pequenas bolsas, atenuadas pela maquiagem, ainda apresentava o mesmo brilho e a mesma curiosidade que a abastecia nos momentos de plena euforia.

Quem a observasse ao sair do carro, e havia uma centena de curiosos próximos à catedral, perceberia um penteado simples, no cabelo doirado, preso num coque suave, com contornos quase infantis, que lhe caíam nos olhos pequenas mechas douradas, como uma franja mal comportada. Seus olhos azuis acinzentados davam uma cumplicidade de magia e festa, produzindo uma delicadeza cúmplice com o acontecimento. Era uma mulher jovial e ainda muito bonita.

O marido, ao contrário, apesar da estatura esguia, sua constituição física era um tanto desarmoniosa: os braços imensos para o corpo franzino, as pernas finas, cujas calças balançam ao mínimo movimento, um nariz alongado e olhos sumidos, quase fechados sob sobrancelhas extremamente cerradas. Tinha, porém uma coisa que o salvava: o sorriso largo e amigável. Não se podia dizer o mesmo da voz, que via de regra, balançava os tons mais diminutos, tornando-os estridentes e intoleráveis. Falava aos gritos, e costumava ser prolixo. Entretanto, era um bom homem, não tão chegado às coisas do céu, mas criara uma família com seu temperamento comportado de industrial pequeno, mas bem sucedido.

Os dois se aproximaram da igreja. Por um momento, Santa soltou o seu braço, parou e recuou alguns passos, como se não se atrevesse a entrar naquela igreja da qual participara inúmeras vezes. E o fizera nas situações mais diversas, desde as dedicadas às ajudas comunitárias até em planejamentos onde passava noites a fio, para resolver determinadas pendengas na comunidade. Outras vezes, ficara apenas rezando para que os seus projetos se coadunassem com os do Senhor e a coisa andasse, talvez não como desejasse, mas de acordo com a vontade do Altíssimo.

Entretanto, não estava pronta ainda. Suas pernas tremiam e suas mãos se apegavam ao peito, como se protegessem de alguma coisa desconhecida e inexorável, que fosse arremessá-la para longe e tirá-la do caminho proposto.

sexta-feira, setembro 09, 2016

As divagações e sonhos de Marina

Seus pés pequenos mergulhavam, solitários, na água morna. O sol ardia, escaldante, nas têmporas. Mas aquele minuto de sol significava mais do que tudo que precisava fazer. Quase deslizava na água. A ponta dos dedos observavam mariscos, a areia da praia que afundava na pressão do calcanhar, as pequenas conchas que teciam a rede de espumas que se espalhava. Era lindo e ela sabia disso. Suas pernas finas e ágeis davam, de vez enquanto, pulos, como uma rã em busca de insetos. E assim, passavam a correr, mal pisando a água clara e morna, limpando a planta dos pés, deixando-as mais brancas ainda. Os pés e as pernas eram escuras, como o resto do corpo, mas as plantas eram claras, tão claras que tinha a impressão que as tinham pintado. Agora estavam quase murchas. O sol a pino produzia gotas de suor na testa ampla. Os olhos grandes, argutos, analisavam apenas o que lhe convinha: o conviver com o que a natureza oferecia. E não era pouco. Ali ficou, nos saltos e em cada um, vislumbrava um pensamento rápido de quem sonha. O vestido já molhado não obedecia aos gestos e se ajustava às pernas. Não havia vento, nem frio. Só aquela brisa suave e a sensação boa de estar sozinha. Há tanto tempo permanecia assim no vazio de sua vida, sem ninguém, que estava até acostumada. O vazio, que experimentava agora, era diferente. Era gostoso. Um vazio de pessoas, embora um momento pleno de si mesma.

Ouviu um assobio bem longe de seus ouvidos, mas o suficiente para parar de supetão. De repente, seus pés se acomodaram na areia, afundaram na água morna e se enterravam devagar, pelas canelas finas, quase na altura do joelho, já alcançando o vestido. Vestido que pairava quieto, sobre a água. Uma pequena deusa, que se vestia de santa e olhava ao longe, com cara de menina bondosa. Na verdade, não era tão menina assim. Já tinha os seus 14 anos e apesar de mirrada, parecendo um pouco mais do que 11, já se considerava uma mocinha.

O assobio insistiu, estava mais próximo. Dava arrepio voltar à realidade, assim, de repente. Que bom se pudesse ficar saltitando pela água do mar, chutando as espumas, fazendo rodopios com o corpo. Mas de sonho, já vivera até demais. Melhor aquietar-se no mundo que a esperava. Um mundo desconhecido, do qual não dava conta.

Às vezes, se imaginava branca, de olhos claros. Aliás, quando pensava em si, não tinha uma identidade negra. Quando se olhava no espelho, não era ela, que via. Era uma outra menina, com um olhar diferente, muito mais sério, com uns lábios apertados que não descreviam o que sentia.

E esse assobio que penetrava nos seus ouvidos. Alguém se aproximava, alguém muito familiar que causava esse desassossego. Quando Omar se aproximou, ela já era outra. Seu olhar maduro, os gestos robotizados, lábios apertados.

Omar perguntou, ríspido, se ela não voltaria ao trabalho. “As doceiras lhe esperam. Ou pensa que os doces se vendem, sozinhos, de mão em mão?”

Marina baixou a cabeça, ou melhor enviesou os olhos o mais que pode. Não lhe interessava argumentar sobre a água, nem se desculpar, muito menos encarar aquele homem que não lhe transmitia nenhuma segurança. Afastou-se na sua frente, na direção das cozinhas do velho restaurante. Em pouco tempo, voltaria para a praia, agora não mais deserta, nem agradável aos pés e olhos. Apenas a areia escaldante, o grito rouco da propaganda, o abrir e fechar de cestas, divulgando a mercadoria. E assim, as horas passaram e quando se deu conta, estava em casa, entre centenas de crianças que se embrulhavam como presentes nos cobertores ralos. Ela agora sentia um pouco de frio, mas a memória da água morna e das espumas ainda estavam presentes. Foi com isso que sonhou, pois dormiu num sono só. Só acordou com o chamado do sino habitual para a higiene e o café da manhã. Havia poucas meninas com as quais se relacionava. Uma que outra lhe passava mais confiança. Com estas costumava falar de Omar.

Apesar da raiva que sentia dele, por tratá-la com um certo desprezo, ele lhe despertava alguma coisa lá dentro. Talvez fosse esse o motivo de tanta raiva. Afinal, Omar não era um homem feio: forte, cara dura, braços e pernas musculosas. Tinha um olhar obtuso que não levava a lugar nenhum, a não ser um gestual peculiar de empáfia. Mas não o achava feio. Se não fosse tão mal...pensou.

― Qual é a dele – perguntou uma das meninas – anda sempre atrás de você.

― O negócio dele é vender doces. Estou lá para isso. Tenho que me arranjar.

― Você é quem sabe. Por mim, eu dava um chega pra lá neste cara. Ele marca de cima, parece seu namorado

Marina enrubesceu. Seu coração batucou no peito, agora de raiva da colega. Ela não tinha namorado e quanto a Omar, estava descartado, afinal ele era muito mais velho do que ela, apenas o sócio do restaurante perto da praia, e jamais pensaria nela como namorada. Além disso, diziam que ele andava metido com gente da cidade, isto é, tinha uma mulher que morava no centro. O interesse dele era exclusivamente ganhar dinheiro. Mas vai explicar isso para a colega. Melhor levantar-se rápida do café e arrumar as suas coisas.

As noites passavam sem graça para Marina. Por vezes, pensava numa família que não teve. Afinal quem seria o pai? Talvez alguém muito parecido com Omar, um homem frio, cheio de salamaleques, metido a dono de tudo. A mãe? Desaparecera no mundo, certamente quando ela nascera, pois fora morar naquela Casa de Meninas. E jamais fora escolhida para ser filha de alguém. Ninguém queria uma menina negra, mirrada, de nariz sujo e olhos grandes como ela. Agora, porém, era outra pessoa. Uma pessoa diferente. Talvez não tanto quanto gostaria, mas uma pessoa que pensa consigo, sem se interessar mais com a opinião de ninguém. Afinal, nunca se importaram com ela. A não ser uma ou outra pessoa que a ajudou na Casa ou mesmo no restaurante, do qual vendia os doces na praia. As noites se alongavam, intermináveis. Tinha vontade de sair da Casa de Meninas, por rumo na sua vida. Mas nem tudo acontecia como se imaginava, ou quase nada. Acha que viverá a vida vendendo doces. Até morrer.

Um dia recebeu um livro de um instrutor. Leu algumas paginas, enjoou. Mas vez que outra, abria aquelas folhas amassadas e lia um ou dois parágrafos. Apesar da dificuldade na leitura, sempre gostava do que lia. Talvez algum dia, lesse o livro todo. O instrutor foi embora e deixou como herança o livro. Bem diferente de Omar. Ao contrário deste, o instrutor era um homem educado, generoso, tranquilo. Sabia conversar com facilidade, sabia dar conselhos. Mas dava-os de modo que o receptor nem se desse conta da mensagem. Ou se desse conta apenas do conteúdo, sem saber que estava sendo doutrinado. Era isso que as meninas diziam. “O instrutor de educação física sabia doutrinar a gente, parece um padre”. Mas ele foi embora de uma maneira triste, decepcionante. Até hoje, Marina não acreditava na versão que deram. Não pode ser, ele era um homem tão íntegro, tão verdadeiro. Ele não faria o que disseram. Mas todos juravam que era verdade. Que aquilo aconteceu mesmo.

Marina se lembrava como se fosse hoje. A professora irrompeu na sala, aos soluços. Tratava-se de dona Sarita, uma mulher já passada nos quarenta, que se julgou ofendida pelo assédio do instrutor. Ela fora chamada à atenção pela diretora da Casa e certamente seria demitida, se houvesse participado dos galanteios do instrutor, isto é, se os tivesse aceitado, assim se comentava na época. Foi uma situação desesperadora, porque ela teimava que era inocente, que não tinha aceito aquelas obscenidades em plena sala de aula. Era o que diziam. Ela ficou e ele acabou indo embora.

Marina nunca gostara de dona Sarita. Preferia que o instrutor ficasse. Mas isso, ela não podia decidir.

Fonte da ilustração.: www.pixbay.com

segunda-feira, setembro 05, 2016

Os pecados de Xavier

Se ocorresse nos dias atuais, do politicamente correto e do convervadorismo tacanho, por certo Xavier seria taxado de, no mínimo, irresponsável. Lá pelos anos 80, não havia tanta integração entre as pessoas, afinal, não havia internet, muito menos redes sociais. Quem se conhecia, o máximo que gravitava entre os bate-papos era o que se contava à amiúde. As fofocas do alto escalão se deixava às revistas especializadas.

Xavier era um cara divertido, no alto de seus quarenta e poucos, com mulher e filho, tinha alguns interesses que desapontavam os amigos mais chegados, mas produzia certa curiosidade em se descobrir os meandros em que os interesses se realizavam. Ele não costumava falar, mas quando encontrava um amigo, exagerava nos detalhes, nos momentos mais impetuosos, aguçando a lascividade intrínsica do ser humano.

Ninguém sabia ao certo o que fazia, como eram as suas noites de diversão, principalmente nos fins de semana. Ele, via de regra, voltava ao trabalho numa penúria de boêmio, revelando a segunda-feira o registro da ressaca espiritual e física.

Mas Xavier sabia o que fazia. Quando comentava algum detalhe, preenchia-o com tantas expectativas, que tornava o interlocutor um passivo ouvinte, quase no desespero de descobrir o que pouco era exposto.

Certa vez, Xavier resolveu abrir o bico. Só, que expert na área de levar vantagem, impunha uma condição, ao que os colegas se olhavam intrigados e até, insatisfeitos em ceder em alguma coisa. Não era uma coisa qualquer, era algo digno de transformação de todo o grupo de trabalho, a ponto de mudarem as lideranças ao descobrirem pecados inadmissíveis àquele bando.

Xavier tinha os seus caprichos e só contaria se fizessem como dissera. E o que queria ele?

O que de tão cabuloso fazia em suas noitadas festivas? E quais eram os pecados dos colegas?

Era exatamente isso que ele desejava: cada detalhe que contasse de sua vida desregrada seria recheado de minúcias da vida certinha ou não tanto, dos colegas.

Foi num happy hour que ele deu o veredicto. Ninguém acreditava no que dizia. Estavam juntos Márcio, o economista, Juarez, o relacões públicas, Manoel e Frederico, que chamavam de Fred, os funcionários do atendimento ao público e Rodrigo, o estagiário que era pau pra toda obra.

Entre um chop e outro, Xavier decidiu colocar as regras na mesa. Claro que todos arrepiaram. Olharam-se de vesgueio, intrigados. Mas que fazer? Por que não contar? E o que contar de suas vidas medíocres, tão iguais, tão insossas, tão diferentes da exuberante de Xavier?

Afinal, a bebida já os fazia abrir as golas das camisas e desabotoar os sentimentos. Estavam se livrando das amarras, aos poucos, não tanto quanto Xavier, porém quem sabe não seria este o momento?

E nesse meio de conversas e risadas cada vez mais frouxas, Xavier fez um comentário de um colega. Todos fizeram silêncio. Até que ele repetiu. Era sobre Juarez, o relações públicas da empresa. Ele saiu da pasmaceira e perguntou: — O que foi que você disse?

— Nada demais Juarez, mas muito engraçado. Eu vi que você leva um copo plástico pro mictório.

Os demais começaram a rir. Juarez interpelou, já irritado: — Não sei do que você ta falando.

— Mas você leva o copo, não vai dizer que não?

— Pra que, Juarez? Pra … – e Manoel faz um gesto obsceno, indicando masturbação – é pra isso mesmo?

— Cala a boca Manoel, deixa de ser ridículo - gritou o exarcebado Juarez.

— Desculpa aí, amigão, mas eu sei pra que você leva o copo — e Xavier prossegue, caindo na risada — tem uma utilidade aí. Você enche o copo dágua, derrama devagarinho no vaso e mija à vontade.

— E o que tem isso? Aprendi com um cara estrangeiro, dizia que ajudava - olha aqui, não devo explicações a vocês. Vãos se fuder!

Fred então saiu na defesa de Juarez.

Fred era um cara baixinho, de cabelo crespo, muito preto e barba cerrada. Olhou para os lados, encarou Xavier e disparou: — Sei que você tá tentando fugir da coisa. Não me engana Xavier, chamando a atenção pro problema do Juarez, você – foi interrompido com a reclamação de Juarez – não é problema! – e continuou – que seja, não é problema, o fato é que o Xavier se aproveitou disso pra não contar a sua vida de sacanagem.

— Ué, eu disse que cada um tinha que contar uma falha, um pecadinho. Tá todo mundo com auréola de santo aí. E você Fred, que tá reclamando, vai, conta o seu.

— A minha vida é calma como o rio que passa sob a ponte. Vocês sabem que sou casado há pouco e tudo que acontece é dentro das quatro paredes.

Xavier, parecendo saber de alguma coisa, pergunta, irônico: — Mas me diga, parece que vocês andaram meio assustados numa noite dessas. Não foi esta pasmaceira que você tá falando.

O outro sem graça, reclama: – Bobagem, nem sei do que ta falando.

— Da vizinha do quarto andar.

Juarez, agora mais relaxado, cai na risada – Então aí tem coisa. O que tem a vizinha do 4º andar?

— Vocês estão malucos? Não tem nada a ver.

— Claro que não – prossegue Xavier – mas ela andou espalhando umas coisas por aí. Não sei como soube, acho que pela sua mulher mesmo.

— Foi um sonho.

—Então explica. Fala pra nós, cara.

— Eo que esta vizinha enxerida falou?

— Ela acha que nao passou de uma brincadeira.

— Pois se você sabe, conta você Xavier. Você não é o alcoviteiro da vida de todo mundo?

— Aí não tem graça -concluiu Xavier. Manoel então insistiu: — O que aconteceu afinal, Fred?

—Ah, caras, uma história maluca. Mas neste caso, os pecados são da Mara, a minha mulher.

— O que foi que ela fez?

— Sei lá, era umas três horas da madrugada, ela ouviu ruídos fora do quarto. Levantou-se da cama sobressaltada e apavorada se encostou no meu ouvido, falando baixinho que o marido estava ali. Imagine, eu, claro que estava ali. Não entendi nada!

— Mas e daí? – fomenta ainda mais Xavier.

— Sem muito entender, me levantei enlouquecido, pulei pela janela só de cueca. Na queda, arrebentei o pequeno muro que separa o jardim da frente, do corredor e bati com a bunda nas pedras. Eu tava num transe, acho, tamanha era a minha ira. Mas, como se me acordasse de repente, pulei a janela de volta, ensandecido. Gritei irritado para Mara: – Sua louca, maluca, sua pirada. Olha como to, todo machucado, porra. Teu marido sou eu!

Fez uma pausa e prosseguiu com suspense: — Sabe o que ela me respondeu? Sabe o que ela teve a cara dura de responder?

Rodrigo, o estagiario concluiu: — Depois de mandar você procurar o marido que era você mesmo, nem sei o que pensar. O que ela respondeu?

— “Ah é pulou a janela porquê? Tá de consciência pesada?” Vê se não é maluca, mesmo?

Todos cairam na risada, uns diziam que era um sonho, ou um pesadelo. Mas ficava a dúvida, em que marido ela estava pensando, ou melhor sonhando? Será que ela achava que estava com o amante e que o marido havia chegado, ou seja, o próprio Fred?

Xavier por fim, vaticinou: — Vai ser duro de eu contar a minha história, porque meu amigo, aqui o pecador não foi você. – e olhando ao redor, perguntou exaltado – quem se habilita?

Ninguém abriu a boca. Olhavam para Fred com a pulga atrás da orelha.

domingo, setembro 04, 2016

O que vem na lancha?

Rogério atravessou o paço municipal com efetiva energia. Estava satisfeito consigo. Daqui a pouco, aquela casa seria sua. O mundo lhe renderia homenagens, as pessoas em geral falariam nele, a maioria pelos seus benefícios que faria à cidade. Uns invejosos falariam mal, mas que falassem. Não lhe interessava. Importava agora o pleito que estava por vir e ele como candidato, certamente seria o vencedor. Ninguém o tirava do páreo, de jeito nenhum.

Em seguida, estava no cais e parou por um momento, observando a lagoa. Na verdade, a laguna, um homem com a autoridade que teria, devia usar o termo correto. A laguna o encantava, às vezes, principalmente nestes dias de pouco sol, com alguma neblina, mas com um calor envolvente, prenúncio de alguma chuva. Podiam pensar que era loucura este pensamento, mas este rebuliço da natureza o envolvia completamente. Era como nas urnas e os efeitos nem sempre passivos, às vezes desvastadores.

Uma lancha se aproximava e ele decidiu sentar num dos bancos no espaço florido próximo ao cais. Ficou observando-a, vendo os passageiros ansiosos em descer, olhando para o nada, entretidos em suas vidas medíocres, habituados a repetir aquela mesma rotina enfadonha, enquanto ele ia ali para aliviar a alma. Ele podia fazer isso, diferente de todos os mortais.

Alguns pingos de chuva começaram a cair e já não era apenas a neblina, eram pingos que aumentavam em quantidade de gotas e velocidade. Uma chuva que não deixava respirar. Achou por bem afastar-se rapidamente em direção ao mercado.

Um pouco molhado, o paletó respingado e algumas gotas na camisa branca revelando os pelos do peito escondidos, sentiu-se um pouco como todos aqueles que faziam parte da comunidade do mercado público. Homens mal vestidos, cabelos desenvoltos, camisas regatas e moletons num dia de chuva e calor. Esqueceu-os, embora sempre aos sorrisos para um e para outro. Andou pelas bancas, observou as frutas, os queijos, os peixes, muitos peixes com centenas de aromas variados. Pensou em tomar um café. Aproximou-se de uma banca e como todos os que estavam por ali, pediu praticamente a mesma coisa: um café e um pastel bem refogado, com muita carne e queijo. Uma mulher gorda, de legging que revelava até as curvas da virilha se aproximou com o café e sorriu mostrando uma falha de dente inominável. Pediu açúcar. Adoçante era para os fracos. Mexeu com um colherinha de cabo torto e percebeu alguma coisa estranha no fundo da xícara. Uma mosca enorme jazia ali, morta, escrachada, esperando ser engolida. Por ele? Ele não era sapo pra comer mosca! Chamou a moça que coçou sem discrição a coxa, espichando um pouco a lycra da calça que devia incomodar. Não se preocupe, ela disse, eu trago outra pro senhor. Rogério já não queria outra. A visão da mosca gorda no fundo da xícara ainda lhe produzia uma náusea que não conseguia evitar. Pediu um refrigerante. Comeu o pastel. Deu mais uns sorrisos, levou uns tapinhas nas costas, deu outros e retirou-se do mercado.

Na rua, a chuva amainara e apenas uns pingos cá, outros lá anunciavam alguma água nas calçadas. Olhou para a laguna. Agora mais clara, sem neblina. Seguiu em frente, atravessou a hidroviária e passou para o outro lado da rua, pela Riachuelo. Caminhou agora sem muito entusiasmo, pelo menos, a euforia que possuia no início, quando atravessou o paço da prefeitura.

Sentiu-se um pouco cansado. Encostou-se na grade do porto e espiou para dentro, observando que alguns homens desenredavam uma enorme corda. Para que seria, pensou. Um pouco mais longe, vinha outra lancha. Ficou parado, observando-a e teve a impressão de que havia uma coisa estranha perto da popa. Não eram caixas de mantimentos, nem amontoados de mercadorias. Se tivesse um binóculo, saberia com certeza o que vinha naquela lancha. Um dos homens que mexiam com as cordas o encarou por um momento, talvez se perguntando o que ele fazia ali, parado.

Rogério decidiu voltar para a hidroviária. Tinha que saber o que traziam na lancha. Era uma caixa estranha, o que lhe produzia uma espécie de dor, uma nostalgia de alguma coisa inerte, que lhe incomodava, que lhe tirava o prazer de ser um candidato. Era como se lhe tirassem todo o poder e ele não pudesse mais ser o prefeito da cidade. Era como se o cassassem como vereador e lhe tirassem os direitos de elegibilidade. Como se houvesse morrido.

Deu alguns passos rápidos em direção ao cais onde a lancha pararia e ficou esperando, o coração soturno, agitado e impune.

As pessoas pareciam rezar ao redor da caixa, outras sorriam ou davam gargalhadas exageradas, gritando frases de efeito. A lancha dava umas guinadas como se escondesse o produto, vez que outra, parecendo voltar, como se retrocedesse e ele jamais pudesse adivinhar o que estava acontecendo. Sentiu um cheiro terrível de urina que vinha do banheiro da hidroviária. Parece que todos os odores ruins se revelavam cada vez mais fortes, instilando-se nos cantos, nas esquinas, nas águas que batiam nos degraus do cais.

Os meninos que estavam próximos se afastavam. As mulheres que passavam agora corriam e alguns policiais se apresentaram para mostrar a força da autoridade. Finalmente a lancha apareceu, porque aquela neblina que para Rogério parecia bonita, agora voltava escura, toldando todo o céu e escondendo a lancha, fazendo-a ligar os faróis. Mas ela surgia agora, de vez. Um pequeno povo que estava no mercado se apresentou e ficou observando a cena. Aquele mesmo que o abraçou, deu-lhe tapinhas nas costas e sorriu várias vezes. Até a mulher de legging se antecipou ao grupo e esperou ansiosa que a lancha chegasse. Duas que pareciam evangélicas, pelo penteado e a saia de jeans, com botinhas e meias, deram-se os braços e começaram a rir, satisfeitas.

A lancha largou as suas âncoras no cais. O povo se posicionou, quase em procissão, lá dentro, atrás do produto. Um padre se emocionou e abençou o povo que se aglomerava lá fora. Um deles, que parecia um juiz também mostrava-se sensibilizado, mas com uma certa alegria no olhar. Algumas senhoras rezavam agradecidas e vários homens tiravam o chapéu, o boné ou o que tinham na cabeça, se o tinham e faziam gestos de gratidão, alegria e ufanismo. Alguns até cantaram o hino nacional com muito patriotismo.

Rogério, candidato a prefeito da cidade, por fim compreendeu o que vinha na lancha e que chamava tanto a atenção. Era um caixão preto, com uma enorme coroa. Na frente, uma faixa com o nome democracia.

sábado, setembro 03, 2016

Sabrina

Sabrina desligou a tv analógica e ouviu ainda um ruído, que demorava a sumir. Talvez a tv estivesse úmida, pensou. Sempre que acontece uma chuva forte, tudo fica meio atrapalhado. Houve dias em que até o liquidificador parou de funcionar. Quando compraria uma tv digital? Era coisa que não podia pensar, neste momento.

Os meninos na escola, indo a pé, caminhando mais de 5 km e ela preocupada com a televisão. Mas deixa pra lá, melhor procurar os tais panos de prato, que passou o dia atabalhoada e os perdeu. Sabe que os guardou, tem certeza, mas onde estarão?

Precisava sair antes que os meninos voltassem para vendê-los no armazém de Seu Oliveira. Lá costumava deixá-los até que alguém os comprasse. Às vezes, ninguém adquiria nada, mas na feira sempre dava certo. Na feira era venda segura. Ou na igreja, mas na igreja não gostava de vender não. O padre pedia silêncio, porque o mulherio fazia um burburinho na porta da igreja até começar a missa. Ele andou proibindo que ela vendesse, até que se arrependeu e liberou novamente.

Mas e os meninos que não chegam? E os guardanapos que não aparecem? Guardanapos, panos de prato, toalhas, tudo bem bordado em pontos de cruz. Eram bonitos, com estampas que tirava das revistas ou ela mesma desenhava. Tinha esse atributo desde criança. Não podia desperdiçar. Procurou os óculos de perto pela mesa da cozinha, pois achava que os tinha deixado lá, quando vira a hora no celular. Estava assim absorvida, procurando-os, quando a porta se abriu de sopetão. Olhou assustada para a porta da cozinha.

Um homem entrou, olhos ensanguentados, boca entreaberta, uma barba mal feita e uns riscos no rosto, que mais pareciam cicatrizes. Não teve coragem de falar, mas ele se dirigiu a ela com muita aflição, quase desespero.

— Não se mexe moça, nao vou fazer nada com você, mas me deixe entrar e fique quieta. Vou me esconder no quarto. Quando a polícia chegar, você nao me viu. Se não te mato, ta ouvindo?

Sabrina ficou paralisada. Não sabia o que fazer. Concordava com um aceno de cabeça. Quando o homem passou por ela, sentiu uma náusea pelo odor que despertava, um misto de sujeira misturada com sangue. Percebeu que a mão sangrava, bem a mão que segurava a arma. Ainda a encostou no seu pescoço e repetiu: — Tá ouvindo?

Ficaria no seu quarto o dia todo? E se os meninos voltassem? E se o marido aparecesse de uma hora pra outra? Sabrina começou a chorar. Puxou a toalha da mesa e limpou os olhos e assoou com energia o nariz. Não sabia se arrastava pé. Ele podia voltar a qualquer momento.

Nisso, ouviu o barulho de um carro. Deu um passo e espiou pela janela. Um giroflex ligado e homens da polícia desciam correndo do camburão em direção a sua casa. Entraram de arma em punho. Gritaram que não se mexesse.

Ela queria falar, dizer que o homem estava lá dentro. Queria fugir, pedir socorro, ajuda, mas o que fez foi pegar a faca de pão que estava sobre a mesa, empunhou-a na direção do quarto para avisar em silêncio de que o bandido estava no quarto. Mas um tiro a silenciou. O sangue jorrou da boca, o corpo tonteou e Sabrina caiu sobre a mesa enfiando a cabeça na toalha de crochê.

A polícia então examinou o ambiente, verificou que a mulher estava morta e um deles fez sinal para que fossem embora. Não havia nada a fazer ali. Correram para o carro e saíram em disparada na investigação. Atravessaram cercas de arame farpado. Tudo observado pelo homem que voltava do quarto.

sexta-feira, agosto 26, 2016

As olimpíadas e as opiniões contraditórias

Há sete anos, "Chegou a nossa hora”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Copenhague, na Dinamarca, ao defender diante do Comitê Olímpico Internacional (COI) a candidatura do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016.

Muitas pessoas refutaram o discurso como absurdo e que o País não teria condições de arcar com um evento esportivo deste porte.

Talvez tivessem razão.

Durante sete anos, Dilma Rousseff

proporcionou condições para que o evento olímpico acontecesse no Brasil.

Muitos execraram a conduta da Presidente, achando que não era hora do País utilizar os seus recursos financeiros e humanos para este empreedimento.

Talvez tivessem razão.

Em 2016, as olimpíadas ocorreram no período transitório do temerário. Muitos ufânicos e patrióticos acreditaram que a Olimpíada foi um sucesso. Estes mesmos que foram contrários antes.

Talvez tenham razão (?)

Fonte da ilustração: http://misturaurbana.com/2011/07/rage_arte-e-ironia-pelas-ruas-de-sp/

quinta-feira, agosto 25, 2016

As diferenças e os preconceitos

Outro dia escrevi em meu blog sobre alteridade, que trata da condição do outro, as suas diferenças em relação as minhas e como as enxergo ou me vejo a apartir dos olhos alheios. Isto significa que há diferenças e que devemos respeitá-las em nossa convivência diária.

Pensando nisso, me veio à mente percepções de pessoas que julgava diferentes e por serem assim, não as compreendia e nem as aceitava e se o fizesse, apenas as tratava com educação formal. Agora, entendo o quanto isso era preconceituoso e prejudicial para a convivência e o quanto eu era vulnerável em meus sentimentos.

Isso acontece com a maioria das pessoas e nem percebem, como eu que seguia o senso comum. Por exemplo, quando lidava com uma pessoa que em suas atividades, necessitava de um tempo específico maior, mais programático, mais dogmático, diferente do meu; eu na minha ansiedade, já me afastava. Era mais agradável compartilhar as experiências com quem fosse parecido, embora, sabemos que jamais alguém é igual ao outro.

Imagina, no que se refere a preconceitos mais radicais, como o étnico, de orientação sexual, político e ideológico, xenofóbico, religioso ou mesmo ateu. Felizmente, não passei por estes processos mais conservadores, embora no que concerne à política, muitas vezes pus em julgamento toda uma conduta em função do pensar distinto.

Hoje em dia, vemos o quanto estes sentimentos influem nos relacionamentos e o quanto as pessoas desejam que todos partilhem os mesmos caminhos, de preferência, os que escolheu para a sua trajetória.

Mais aberto para a vida, hoje enfrento sem dificuldade as diferenças, pois elas não me causam mal, ao contrário, me enriquecem. Pena que o mundo parece andar em círculos e o que pensávamos como vanguarda no passado, está sendo ultrapassado por um conservadorismo constrangedor. Parece que a humanidade regride e a alteridade é rejeitada no âmago das condutas individuais.

sexta-feira, agosto 19, 2016

GEOCRUSOE: "O Retrato" de Nicolai Gogol

GEOCRUSOE: "O Retrato" de Nicolai Gogol

Achei muito enriquecedor o texto de Carlos Faria, a quem passei a seguir no twitter, sobre "O retrato"de Nicolai Gogol, por isso fiz uma hiperligação com o seu blog. Espero ter colaborado com a divulgação.

Minha mãe

Minha mãe. Aqui na foto estás serena, uma aparência de quem espera. Talvez tenhas esperado muito por mim, quando voltava tarde da Universidade ou do trabalho, ou mesmo das festas. Recriminava a tua atitude, mas agora sei, mãe o que sentias e porque o fazias dessa forma, porque de algum modo, também espero. Talvez com outro método, mas com os mesmos receios e as mesmas dúvidas.

Hoje seria o teu aniversário, dia 19 de agosto, por isso te lembro hoje, aqui, publicamente, embora pense em ti sempre. Este pensamento me leva a situações e condutas distantes, como o frisar da calça com perfeição para ir à escola (quando não se usava abrigo de malha, a não ser para o que chamávamos de educação física), o exigir o cuidado com a pasta de alcinha e duas dobradiças que deveriam ser fechadas com esmero (não se usava mochila), a merenda enrolada num pano de prato e envolta em papel de pão (raramente se comprava no bar) e o dinheiro para uma eventual necessidade. E quando voltava, sempre atenta com minhas redações, meus cadernos e principalmente com as notas. Exigias o que por obrigação eu deveria obter: o máximo. Não ecomizavas nos números, muito menos na disciplina.

Por certo, estes caminhos que me fizesses trilhar com firmeza, me levaram a outra trajetória, bem distante dos teus olhos: a disciplina com que experenciei em minha vida e procurei transmitir a minha filha. Claro, acima de tudo, o amor. Este, mãe, nem precisava falar, né?

quinta-feira, agosto 18, 2016

Estranha obsessão : um filme de muitas perguntas e poucas respostas

Estranha obsessão (2011), (pode haver alguns "spoilers") em francês “Le femme du Vème” ou em inglês “ The woman in the fifth” é uma produção franco-polonesa, dirigida por Pawet Pawlikowski. Ethan Hawke e Kristin Scott Thomas formam o estranho par romântico na trama de mistério.

O protagonista é Tom Richs (Ethan Hawke), um escritor norte-americano que se muda para Paris, para se aproximar de sua filha. Já em Paris, depois de ser roubado, se hospeda em um hotel barato. Numa livraria, é convidado para uma festa, onde conhece uma viúva de um escritor húngaro (Kristin Scott Thomas), tradutora de livros, com a qual mantém um romance. Por outro lado, mantém um romance no hotel, com uma linda polonesa (Joanna Kulig, atriz polonesa). Por fim, é acusado de suspeito por um crime, pois seu vizinho de quarto é assassinado. Para livrar-se da acusação, tem como álibi o encontro com a viúva, em sua casa, porém, a polícia descobre que a mulher havia cometido suicídio em 1991. Mas toda esta trama não passa de cenário para a sua procura desesperada pela filha, quer encontrá-la, levá-la consigo, mas é impedido pela mulher.

É um filme que tem causado polêmicas, não tanto pela crítica especializada, pelo que depreendi com minhas leituras, mas no âmbito dos espectadores. Há comentários na web de todas as categorias, desde as mais abalizadas até as mais canhestras, com dificuldade de entendimento ou falta de um aprofundamento melhor na trama e nos personagens.

Claro que o filme nos deixa alguns hiatos que causam um certo estranhamento, o que nos faz perguntar, o que está acontecendo com o protagonista? Aquela mulher que ele considera amante, a viúva do escritor húngaro existe realmente? E a jovem polonesa do bar que está apaixonada, afinal, de quem se trata? Na realidade, existe a mulher do dono do hotel e bar ou uma criação da mente do escritor obsecado pela filha? Ou seria a própria filha em sua imaginação psicótica, já que ele a trata com tanto carinho que se aproxima de um afeto paternal.

Por outro lado, a jovem polonesa recebe uma carta no final do filme que diz “com amor, papai”. E aquela menina perdida no bosque, que ele faz um link com a história que contava à filha, quando estavam juntos e quando tentava alertá-la de certo modo, que era um homem perigoso e que deveria ficar somente com a sua parte boa? Quem era o escritor na Paris desnudada e fria que procura obsessivamente a filha, fugindo da polícia, acusado pela esposa, que o quer ver longe? Tudo objeções.

Um estranhamento que não nos permite admitir para nós mesmos que o protagonista é mau, que matou a filha, que abusou dela (a mãe no início do filme, não deixando-o entrar no apartamento, dispara com terrível segurança “você não é normal”), que a amante não existe, que tudo não passa de criação de sua mente deturpada e doente, que a festa em que participou com outros artistas e mentores intelectuais não existiu.

Um mundo paralelo em sua imaginação febril?

Ou a realidade triste de um homem acuado por seu próprio passado? Pois esta estranheza é que nos seduz e encanta. Este estranhamento é que o torna um filme além da média, que revela uma criação artística.

Um filme que nos deixa muitas perguntas, mas uma única resposta da qual não podemos fugir: a vulnerabilidade da condição humana.

quinta-feira, agosto 11, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 20º CAPÍTULO (ÚLTIMO)

Capítulo 20 - último

Após a confissão desesperada de Paulo, fez-se um silêncio complacente. Nada se podia argumentar. A realidade dizia por si. Paulo chorava convulsamente. Seus soluços eram ouvidos do outro lado do vidro que separava as duas peças. Júlio observava e por sua experiência, sabia que ele ficaria mais tranquilo em seguida. Foi o que aconteceu. Paulo voltou a falar, compassado, entre lágrimas, porém um tanto aliviado.

– Rosa não admitia que ela gostasse de mim, que se atirasse daquele jeito sobre mim. Achava que ela era uma puta. E Rosa é muito religiosa, muito moralista. – interrompe-se um instante, como se temesse confessar mais alguma coisa que incriminasse Rosa, porém prossegue. Sabe que agora, precisa ir até o fim. – Pra falar a verdade, detetive, ela não é só a mãe que eu arranjei, entende? Ela é a mulher que me satisfaz na cama e eu faço o possível pra corresponder. Mas eu só vivo pensando em Taís, em mulheres como ela, foi por isso que fui lá e não me contive.

Júlio o ouve quieto. Paulo insiste em defender Rosa, mostrando-se culpado em acusá-la, mas por outro lado, sabe que deve contar tudo, até para atenuar a responsabilidade de Rosa no ato.

— Devo isso a ela, detetive, tudo. Rosa foi a primeira pessoa que me ajudou, a primeira e única. Todos me viraram a cara, mas ela ficou do meu lado, sempre.

Júlio então intervém: — Está bem, Paulo. Eu entendo a sua situação. Mas continue, como aconteceu o crime. Por que você acusou Rosa de ter matado Taís?

Paulo suspira fundo. Olha absorto para a vidraça e depois volta-se para Júlio, agora encarando-o com firmeza.

— Naquele dia, ela me seguiu, eu estava no carro do médico sim, havia tirado da oficina e resolvera dar uma volta, quando vi Taís atravessando a ponte. Logo atrás o grupo fazia aquela festa pervertida, chamando-a de tudo, palavras de baixo calão, mas Taís se divertia com isso. Tanto, que se juntava a eles e dividia com eles as drogas e as bebidas. Começou após muitos pedidos, fazer uma espécie de strip-tease. Foi aí, que me escondi dentro do carro, que estava um pouco atrás do arvoredo, do outro lado da margem. Eu tinha uma visão privilegiada, porque um emaranhado de galhos me protegia. Aquilo me deu muito tesão, e não resisti. foi neste momento que me masturbei. – levanta a voz, ansioso – Eu fiquei louco, detetive, completamente louco e a minha vontade era chegar até Tais, abraçá-la, tirá-la dali, daquele bando. Mas eles continuaram com a festa e ela foi se afastando em direção ao outro lado da cidade, ao contrário do centro, entende? Ela atravessou toda a ponte e o grupo ficou por ali, se divertindo, mexendo com ela, jogando umas roupas que ela havia deixado, pois estava indo só de calcinha e sutiã, dizendo que pretendia se jogar no rio. Mentira dela, era só farsa. Queria se divertir. Daqui a pouco pegaria as roupas e voltaria para casa. Foi neste momento, que vi Rosa se esgueirando pelo mato, às ocultas, sempre pela margem, seguindo-a. Eu estava do outro lado, mas desci rapidamente do carro, atravessei para a outra margem e a segui também. Foi difícil, estava cada vez mais escuro, com muita neblina e os galhos das árvores eram densos e atrapalhavam o caminho. Mas eu vi, no momento crucial, quando Tais estava encostada no parapeito no fim da ponte, fumando um baseado.Rosa chegou e lhe deu um tapa na cara com muita violência. Chamou-a por todos os palavrões que conhecia e sacudiu-a com força, arranhado-lhe os braços e para minha surpresa, sem mais nem menos, a empurrou na direção do rio, mas Taís não caiu, conseguiu segurar-se, apoiando-se na ponte. Então cheguei desesperado e tirei Rosa dali.Eu não podia abandoná-la naquele desespero. Supliquei que deixasse Taís em paz, que a esquecesse de uma vez por todas e fôssemos embora. Rosa parecia voltar a si, sair de um surto terrível e me obedeceu. Corremos em direção ao carro e ela entrou e se deitou no banco para que ninguém a visse. Então eu dei a partida e fomos embora. Ela então sugeriu que eu fosse para a Capital por uns dois dias.

— Mas o que aconteceu com a moça? Ela caiu, afinal?

— Eu acho que sim, não tinha muitas chances para ela. Rosa a matou, não há dúvida. No outro dia, tinha muito comentário que a moça estava toda arranhada e fora levada pela correnteza, rio abaixo.

— Então, você acha que ela não resistiu, talvez pelo estado fragilizado em que estava em virtude das drogas e tenha caído no rio.

— Sim, penso que sim.

– E agora está aliviado? Você não matou a moça, é inocente, apesar que pode ser considerado cúmplice, já que não fez nada para ajudá-la e ainda assistiu a cena.

– Rosa fez tudo por mim, pra me proteger, como sempre. Eu não devia ter contado isso.

— Não se preocupe, mais cedo ou mais tarde, isso apareceria. Rosa não ficaria impune. Além disso, há outras coisas que precisamos descobrir. Há outros crimes envolvidos.

Júlio acenou a cabeça, pesaroso. Abriu a porta para o policial e pediu que ele ouvisse a gravação. Quanto à Rosa, esta pagaria por seus crimes, naquela noite mesmo.

Nesta noite, Júlio fazia um retrospecto de todos os acontecimentos e percebia, insatisfeito que apesar do caso estar parcialmente resolvido, havia uma incongruência nos fatos que não se ajustavam de algum modo.

Paulo, o mecânico estava preso por assassinato e acabara confessando que a autora do crime era Rosa, tornando-se seu cúmplice, por ter abandonado Taís à própria sorte e ainda ter encoberto a verdadeira criminosa.

Por outro lado, Rosa cometera o crime porque julgava Taís uma indecente, que não se ajustava aos seus padrões morais e também porque amava o mecânico e a odiava por se intrometer em sua vida. Entretanto, Paulo não presenciara o desfecho. Ele viu Rosa empurrando a moça, mas ela ainda não havia caído no rio, se apoiava e poderia ser salva por alguém logo após ele e Rosa terem se afastado. Ou quem sabe, alguém a empurrou definitivamente. Como assegurar com precisão que Rosa fora a autora do crime?

Estava assim pensativo, quando o delegado Borba ligou para ele, quase intimando-o a segui-lo até a ponte. Estranho, pensara, o delegado não confiava em seus serviços e agora precisava de sua ajuda. A menos que a sua conclusão inocentando Paulo o tenha agradado a ponto de querer a sua presença. Mas o que teria acontecido para chamá-lo àquela hora ? Desceu rapidamente e pegou o carro no estacionamento correndo ao encontro do delegado. No caminho, imaginava que teriam encontrado alguma pista do crime, talvez alguma prova acusando ou inocentando Rosa. Mas como achariam alguma coisa depois de tanto tempo e o que isso mudaria? De todo modo, mesmo que achassem alguma coisa, não valeria como prova. Além disso, o delegado Borba não estaria ocupado àquela hora da noite, investigando se não houvesse acontecido alguma coisa muito grave. Ao chegar , percebeu próximo à ponte um carro da polícia com giroflex ligado e um policial, além do delegado. Olhavam para baixo, deslocando pelas margens do rio. Júlio aproximou-se e viu um foco de luz lá embaixo, na ribanceira, que chamava a atenção dos dois.

— Que aconteceu, delegado?

— Conhece aquela moça?

— Daqui não consigo ver nada, estou vendo que tem um corpo lá embaixo, mas...

— Trata-se de Ana, a menina que diz que ouviu Taís gritar no dia do crime.

— Meu Deus, pobre menina! Mas então?

— Mais um crime, detetive. Atiraram a moça da ponte também. Parece que preferem matar as mulheres por aqui.

— Foi semelhante ao de Taís? Ela foi empurrada também?

— Desta vez, acertaram com um tiro. Mas venha, vamos descer até lá. Quero mostrar-lhe uma coisa.

Júlio desceu com dificuldade, sendo ajudado às vezes pelo delegado Borba. Ao chegar bem perto, percebeu que a menina estava seminua e uma lagoa de sangue surgia por detrás do corpo. O tiro havia sido no peito, atravessando o corpo frágil da moça, provavelmente perfurando os pulmões. Júlio virou o rosto, angustiado. Poucos dias atrás havia conversado com Ana, inclusive tentara conseguir o seu depoimento, pois Rosa investira contra ela, ameaçando-a. Teria sido Rosa a culpada pelo delito?

O policial afirmou tratar-se de uma simulação de um assalto. Não havia celular, nem documentos, nada que identificasse a moça. O delegado Borba concordou e pediu que Júlio observasse minuciosamente a cena. Não havia nada que indicasse outra causa, apesar de haver associações muito fortes entre os dois crimes. Júlio pediu licença e subiu até a estrutura acima, na ponte. O delegado deu um sorriso e acrescentou, dirigindo-se ao policial: — Um frouxo. E depois quer dar uma de investigador.

Júlio deu uma volta pelos arredores. Dirigiu-se ao local na ponte de onde provavelmente Ana havia caído, ao ser alvejada. Em dado momento, encontrou alguma coisa numa ranhura da ponte, que parecia um cartão de memória. Pegou-o e levou-o consigo sem avisar a polícia. Despediu-se do delegado e partiu em seguida, em direção ao hotel. Ao chegar, Júlio inseriu o cartão num pendrive e tentou abri-lo no notebook. Entretanto, o arquivo não abria, havia uma senha que o protegia, a qual por mais que tentasse, nunca era a correta. Digitou Ana, rio, maconha, lual, tudo que pudesse lembrar de alguma forma a conduta da moça, mas nenhuma servia. Então, pensou Anderson, o garçom que o servia pela manhã e que às vezes, fazia o serviço de porteiro do hotel. Parecia um rapaz inteligente, quem sabe ele poderia ajudá-lo. Certamente, ficaria efetivo neste cargo, pensou.

— Boa noite, detetive. Parece que o senhor anda muito ocupado, ultimamente. Está sempre correndo.

— É verdade, Anderson. Inclusive vim aqui para pedir a sua ajuda.

— Pois não, detetive. Mas antes me diga, é verdade que Rosa é a assassina de Taís?

— Quem lhe disse isso, Anderson?

— Ah, parece que um policial comentou por aí, o senhor sabe, as coisas se espalham.

— É, tinha esquecido que todo mundo sabe de tudo, nesta cidade. Mas não gostaria de falar sobre isso, Anderson. Como lhe disse, preciso da sua ajuda.

Algum tempo depois e Júlio tinha a resposta que queria. Anderson sabia decifrar o programa em que o arquivo fora gravado e em alguns minutos, conseguiu abri-lo.

— Não sei o que o senhor quer saber, detetive, mas não vejo nada demais aqui. São contas, pode ver.

— Contas? Você tem razão. Olhe, cifras enormes, valores volumosos, não? Diga-me uma coisa, agora posso abrir no meu notebook? Será que não precisarei de alguma senha?

— Não, agora eu já criei uma senha própria. Coloquei "cidade". É só o senhor digitar a palavra.

Júlio no quarto, pode observar com mais atenção uma série de contas que percebia serem ligadas ao tráfico e alguns nomes, como o de Carlos, do filho do prefeito. Era de se esperar, pensou. Será que este arquivo estava em posse de Ana e por isso a mataram?

Júlio continuou a pesquisa. Quase ao fim do arquivo, um nome chamou-lhe a atenção, o que o deixou muito intrigado. Foi neste momento, que Anderson bateu a sua porta, dizendo que alguém queria falar-lhe. Ainda preocupado, abriu a porta ao amigo Jairo, que revelava-se extremamente nervoso. Antes de perguntar qualquer coisa, mandou uma mensagem para Anderson e guardou o celular em seguida, dirigindo-se a Jairo.

— Aconteceu alguma coisa grave, Jairo? Você vir aqui, a esta hora da noite.

— Eu vim aqui, porque preciso falar com você Júlio. Vim aqui, fazer-lhe um pedido, em nome de nossa amizade. E você só tem uma alternativa: atender-me.

Júlio afastou-se um pouco, em direção à janela e pediu que ele sentasse na poltrona, próxima à cama. Jairo não obedeceu. Olhava-o de um modo estranho, como se estivesse prestes a atacar ou ser atacado por um inimigo. Júlio então, perguntou, tranquilo: — Você quer que eu o atenda em quê? Me parece muito preocupado, Jairo. Volto a lhe perguntar, aconteceu alguma coisa?

Jairo levanta a voz, irritado.

— Não me venha com esta pedagogia de detetive, Júlio, pelo amor de Deus. Você veio aqui pra cidade, andou mexendo em coisa muito perigosa. Eu vim aqui lhe pedir que pare com isso. Pare com essa investigação. Já deu o que tinha que dar, os caras estão presos, o que você quer mais?

— Não estou entendendo Jairo, eu até lhe falei sobre os suspeitos, sobre as várias possibilidades de confrontamento e até de associações nos crimes. Inclusive pegaram o mecânico e agora estamos sabendo que Rosa está por detrás disso. Por que você está tão assustado?

— Eu não estou assustado. Quero que você acabe com isso!

— Por que?

Neste momento, Jairo tira pistola da cintura e a aponta a arma para Júlio que o olha surpreso e desconfiado.

— Se você não fizer o que lhe peço, eu vou matá-lo Júlio. Você não entende que eu não quero fazer isso?

— Você quer me matar por quê?

— Eu já lhe disse, você está mexendo num vespeiro e a coisa só piora.

— Então me fale, me diga o motivo. Você se refere ao crime da ponte?

— Eu me refiro ao meu negócio. Eu lhe falei que estou há três anos tentando fazer um camping, um negócio de lazer na cidade e o Ibama coloca mil impedimentos, por problemas ambientais e quando eles sinalizam para liberar, essa gentinha vem e corrompe o lugar, quem é que vai fazer turismo numa cidade que não respeita ninguém, que faz orgias à noite, no melhor ponto turístico. Você entende o que está acontecendo, Júlio?

— Não, não entendo.

— Então, eu vou lhe esclarecer. Você há pouco falou em Rosa. Pois saiba que nós nos unimos para acabar com esta canalhice e limpar a cidade.

— Como assim?

— Nós começamos a perseguir aquela gente, já que a polícia não fazia nada. Então, quando morreu a mulher do seu Domingues, que tinha diabete, e segundo diziam na época, por erro médico, tivemos uma ideia. Injetar insulina nos jovens que vinham para as festas organizadas pelo filho do prefeito. Deu certo, todos pensavam que eram turistas, mas na verdade, era gente que vinha só pra se divertir e fazer sacanagem nas nossas fuças. Isso era uma afronta. Como eles não tinham a doença, acabavam morrendo e ninguém descobria a causa. Tanto, que arquivaram todos os inquéritos.

— Mas como vocês faziam isso?

— Nós os atraíamos, Rosa alugava o seu apartamento e eu montava umas barracas não muito longe do lugar onde faziam as festas. Então nos preparávamos para o golpe. Quando voltavam na penúria, drogados e bêbados, tínhamos a ocasião perfeita que precisávamos para injetarmos a insulina.

— E o Paulo estava envolvido nisso?

— Aquele pateta? Claro que não. Ele não sabia de nada. Dizíamos que estávamos tentando ajudar aquela gente, um bando de drogados.

— Tem um rapaz, um tal de Raul que diz que foi injetado também. Desconfia de um pessoal do pet shop.

— Aquele é um maconheiro da pior espécie. Nem sabe o que diz. Na verdade, foi Rosa, por vingança e ele confundiu tudo. Acabou inventando outras histórias, é tudo delírio da cabeça dele.

— Mas e quanto a Taís? Foi a Rosa mesmo quem a matou?

— Claro, com a minha cobertura. Aquele idiota do Paulo é que estava no lugar errado e se meteu. A coisa ficou mais difícil e eu tive que acabar o serviço.

— E tudo isso pra quê, meu Deus?

— Não fui claro? Para limpar a cidade desta corja, para montar o meu negócio para gente de bem, turistas que viessem pra cá, para curtir a natureza, as belezas da cidade. Não dá pra entender isso, Júlio?

— Não, na minha lógica, não. E quanto à Ana? Vocês a mataram também?

— Aquela idiota estava se metendo, abrindo o bico. Ela roubou um cartão de memória que tinha os dados armazenados de todos os envolvidos no tráfico, gente de bem, inclusive Carlos, o filho do prefeito. Sem trocadilho, Júlio, mas foi queima de arquivo.

— Você fez tudo sozinho, Jairo?

— Tenho dois caras que trabalham comigo. Mas não achamos nada. Aquela vadia sumiu com o arquivo.

— Você fala disto aqui, no meu notebook?

— Como você achou? Por que está com você Júlio?

— Como você vê, Jairo, eu sou um investigador tão bom que você está aqui, me ameaçando. Nunca imaginei, porém que seu nome estaria entre eles. Quando o vi, fiquei muito surpreso. Essas contas são muito volumosas, não acha?

— Então Júlio, você também será queima de arquivo. Sinto muito meu amigo, mas você vai desta para melhor.

— Se eu fosse você, não faria isso, Jairo. Na portaria, há um computador com todos os dados copiados e Anderson está sabendo de tudo. Neste momento, ele já deve ter chamado o delegado Borba.

— Você está mentindo! Eu não sou idiota, Júlio!

Neste momento, a porta se abre e o delegado Borba surge, empunhando uma arma na direção de Jairo. Anderson espia da porta, satisfeito e conclui: — Saquei a mensagem, detetive.

Fonte de ilustração: www.pixbay.com

Postagem em destaque

A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

PULICAÇÕES MAIS VISITADAS