terça-feira, setembro 13, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 2

No 1º capítulo de nosso folhetim dramático, conhecemos um pouco a personalidade de Santa, a matriarca da família, uma mulher extremamente religiosa, católica tradicional, que preparava-se para a sua festa de 60 anos na Igreja que conhecia desde criança. Enquanto se encaminha para a missa em sua homenagem, lembra de sua primeira comunhão, das impertinências do irmão, dos cuidados da mãe, da indiferença do pai em alguns momentos, enfim, de sua vida infantil naquele ambiente religioso. Agora, chegando ao momento de entrar na igreja, sentia uma dificuldade, um certo aperto no coração e por isso, fazia-se perguntas inquietantes. Veja a seguir, como hoje é terça-feira e o nosso folhetim é publicado aos sábados e nas terças, o 2º capítulo de nossa eletrizante história. Aqui, aparecerá a família de Santa e suas condutas bem diferentes de suas expectativas. Espero que gostem. Abraços.
CAPÍTULO 2

Quem a conduzia até ali? A sua vaidade? Não, uma mulher temente a Deus, uma dama dos círculos mais nobres da sociedade, uma mulher respeitada por ser o que realmente era. Não podia ceder agora. Não era o momento.

O marido se aproximou, intrigado. Segurou-a novamente pelo braço. Abriu aquele sorriso matreiro, que em algumas vezes a fizera pecar e a convenceu de vez.

— Vamos, vamos sim. Estou nervosa.

— Não é pra menos – antecipou satisfeito.

Os fotógrafos aproveitaram a pausa para mais flashes, quanto mais instantâneos, melhor.

Uma das ajudantes da coleta do ofertório, correu ao seu encontro para informar que logo tocariam a música de entrada, para ela se preparar.

Santa sorriu, obedeceu e deu passos serenos e firmes, ao lado do marido, na direção da porta da igreja.

As luzes se acenderam. Eram focos brilhantes de todos os lados, obedecendo a rigorosa decoração.

Santa pensou que fosse chorar, mas se conteve nas fisionomia dos seus, que se apresentavam nos bancos, um a um, aos quais ultrapassava, no andar cadenciado.

Estavam quase todos juntos, com exceção do filho mais novo, um pouco afastado; um artista multimídia, que observava todo o cenário, talvez engendrando uma futura apresentação de seu trabalho. Era magro, cabelo liso, caído na testa, de um dourado falso, que ocultava vez que outra o olho direito. Vestia-se casual e não parecia muito preocupado com detalhes de pompa.

No banco mais a frente, estava a filha de olhos vermelhos, uma lágrima insistente correndo pela bochecha e embargando a voz, quando se dirigia ao irmão mais velho, que parecia não entender nada do que dizia.

Era alta, elegante, vestida de preto, com uma rosa também preta no decote. Poucos brilhos, poucas joias, mas o suficiente para bordar uma figura deslumbrante.

O marido, em seu lado esquerdo, observava a cena silencioso, cumprindo talvez um compromisso inevitável. Estava vestido de acordo com a ocasião e suava aos borbotões. O cabelo puxado para trás, mostrando entradas proeminentes, um olhar obtuso à deriva e a boca de lábios finos, que ora resmungava o desconforto que sentia. A mulher, pouco o notava.

Santa logo percebeu que os amigos se aglomeravam um pouco atrás dos parentes.

As mulheres bem vestidas em generosos decotes, os homens formatados em ternos comportados. Um que outro se salientava pelo penteado mais ousado ou mesmo por cochichos e sorrisos fora de hora.

Santa por um momento, teve a impressão de ver a mãe, logo seguida pela babá, esgueirando-se pelos bancos e pedindo silêncio com aquele sorriso doce de publicidade. Via-a se enfileirando no corredor, ultrapassando as crianças que se perfilavam e lhes falava com agradável sonoridade. Um sorriso aqui, um muxoxo ali e ela liderava a situação, sempre seguida pela babá, que apalermada no burburinho, às vezes se perdia dela.

Mas foi só por um momento, em seguida se concentrou no altar.

Avistava de longe, o bispo se adiantar, e tinha a impressão que seus olhos estavam vermelhos.

Quem sabe ele também sonhara com aquele momento? Quem sabe ele imaginara a sua igreja cheia de pessoas ilustres, acomodando-se entre os bancos devidamente ornamentados, entre velas que se acendiam à trajetória de Santa e flores que pareciam se abrir, à sua passagem.

Talvez tudo fosse um sonho. Também para ele.

Mas, por certo, ele poderia ver no primeiro banco, um pouco, à esquerda, o prefeito e a mulher, assim, enlaçados, esbanjando afetuosidade e ótimo relacionamento, também um que outro vereador, tanto da situação quanto da oposição e até alguns candidatos, que não dispensavam a oportunidade de aparecerem.

Como não exultar com a igreja tão cheia de celebridades, de notáveis que abrilhantavam o evento!

Agora, ela e o marido estavam cada vez mais próximos da chegada.

Piscou para o filho artista, que estava à esquerda dos demais e ele a olhou intrigado, quem sabe se perguntando que papel fazia a sua mãe, naquele momento. Não sorriu, mas acenou lentamente, levantando uma mão absorta, no ar, que se abandonava em seguida, no colo, embora a mãe já disparasse o olhar para outra direção.

Ela agora dedicava-se ao trio: os dois irmãos e o genro. O filho, sisudo, mas que por ora abria-se num sorriso para a mãe. Ajeitava, sôfrego, a gravata, acondicionando-a de modo a ficar reta, o que parecia fora de seu alcance. Também estava ansioso.

A filha se apoiava no marido, os olhos marejados, quase se transformavam em soluço. Sorriu para a mãe, para não assustá-la. Também porque deveria conter-se: era uma promotora estadual, uma mulher afeita à singularidade da discrição, do cuidado, da sutileza. Devia evitar a emoção.

O genro limitou-se a acenar, prudente.

A música parou e Santa, ao lado do marido, se posicionou no primeiro banco, no local especialmente dedicado a eles, que ficava bem ao centro e próximo ao altar.

Respirou fundo e ouviu as primeiras palavras do bispo, as quais se referiam a ela, antes de iniciar a missa.

No sermão, mais uma vez o seu nome foi lembrado, desta vez, para discorrer toda a sua trajetória de mãe, esposa fiel e digna representante da sociedade, além de benfeitora e participante entusiasmada da comunidade.

De repente, o bispo desceu do púlpito e se aproximou do casal.

Todos os olhares imediatamente se voltaram para os dois. Ele solicitou que o coroinha lhe trouxesse uma pequena caixa.

Pegou-a com cuidado, enquanto o menino se afastava rapidamente para o seu lugar.

Santa aguardava a surpresa, com verdadeira expectativa.

O bispo então, abriu a caixa e retirou uma pequena joia, uma espécie de bússola estilizada, constituída de prata, ouro branco e alguns brilhantes incrustados. A pergunta que emendou à Santa tinha a finalidade maior que a plateia participasse, tal o esforço verbal que produziu, sem utilizar o microfone.

– Então, nossa benemérita amiga, sabe o que é esta pequena joia?

Santa engoliu em seco. Os olhos brilharam profundos, em lágrimas que se espalharam rápidas pela face. Utilizou um lenço que o marido com presteza lhe entregou, e tal como ela, sua expressão era de extrema perplexidade.

Antes mesmo que Santa respondesse, o marido resmungou, apalermado: – Minha avó se revirou no túmulo.

Santa o olhou espantada. O bispo fingiu não ouvir e repetiu a pergunta.

Ela então, respondeu, indecisa.

– Na verdade, não sei bem.

O bispo prosseguiu, entusiasmado: – Mas a comunidade se lembra muito bem, minha amiga. Esta joia foi o simbolo de sua apresentação à igreja.

Ela gostaria de perguntar – como assim ? – se não lembrava do que se tratava. Entretanto, se conteve, quieta.

Evitou qualquer gesto, a não ser o de enxugar as lágrimas.

Tinha consigo que tal objeto devia fazer parte de sua infância, que suscitava lembranças da mãe, da sua família, mas não conseguia identificar a razão de estar nas mãos do bispo.

Também havia aquela observação infeliz do marido. O que ele queria dizer com aquilo?

— Pois bem, sua mãe doou esta pequena relíquia para a igreja. Isso aconteceu no seu batizado, mas quis a Providência, que um padre de nossa comunidade, um velho e diligente capuchinho, guardasse-a com cuidado e ela permaneceu conosco até os dias de hoje. Ele se foi, a joia ficou e a história transcorreu. Este pequeno relicário, tenha a certeza, é o símbolo da sua fé. Por isso, tivemos a feliz e providencial ideia de devolvê-la à senhora, Dona Santa. Acho que esta bússola que indicou o seu caminho para a igreja, que transformou a sua trajetória numa vida santificada, esta bússola, hoje lhe pertence.

– Mas eu não posso aceitá-la.

– Aceite-a sim, porque é sua e de hoje em diante, norteará o restante de sua vida. É um objeto abençoado que só lhe transmitirá paz. Além disso, a senhora é a única pessoa indicada para ter uma bússola em sua vida. Quem sabe, não norteará mais pessoas para que se engajem no caminho do bem? Contamos com a senhora, Dona Santa.

– Santa teve a impressão que a voz do bispo se tornava um pouco rouca e uma emoção mais forte o atingia.

Então, fitou o marido, solicitando a sua intervenção.

Ele estremeceu levemente as pernas, denunciando a total incapacidade de decisão. Fitou-a, meio intrigado e abriu bem os olhos sob as sobrancelhas cerradas. Por um momento, parecia envolvido em terríveis pesadelos, mas subitamente, como se tomado por uma entidade salvadora, abriu-se num sorriso condescendente. https://pixabay.com/pt/users/josuemei72-141099/

Ela aceitou a joia.

Foi assim que Santa participou do momento mais doce de sua existência.

Mas a incongruência de seus pensamentos não demoraram a deixá-la ansiosa.

Uma joia tão importante para a igreja e que possuía um significado para a sua vida, deveria representar uma grande responsabilidade.

Suas mãos, por um momento, começaram a suar e seu coração tomou-se de pequenos saltos, agitando o sangue que corria nas veias.

Que mensagem seria aquela para a sua vida? Que caminhos deveria tomar de agora em diante? E o que o marido pretendia com aquele devaneio? Um mistério que somente o futuro resolveria.

Fonte da ilustração: Josué Miguel Escudero. in site: https://pixabay.com/pt/users/josuemei72-141099/

segunda-feira, setembro 12, 2016

Sonhos que jazem acordados

Fonte da ilustração: waldryano do site www.pixabay.com

Olhar-se no espelho, meio dormindo, assim pela manhã e deparar-se com uma face nova, que não a sua, não é tão surpreendente assim.

Acontece, às vezes, com qualquer mortal. Principalmente, se ele está completamente desiludido de seus sonhos.

Aconteceu com Gustavo, certa vez.

Olhou-se no espelho, demorado. Piscou um olho, a resposta simultânea assegurava que era ele. Mas tinha consigo, que alguma coisa estranha tinha acontecido naquela noite.

Afinal, o mundo desandara a seus pés.

Escrevera mil histórias, publicou algumas, contos, crônicas, artigos em revistas, até um romance, considerado o primogênito bem amado. Esperou afoito que acontecesse, que desabrochasse para as audiências, que o lessem sofregamente.

Nada aconteceu. Nem um comentário, nem uma notícia boa, nem uma página de jornal.

Tudo burocrático, organizado por ele e 10% pela editora.
Como pensava que teria este vigor todo para tocar em frente, conquistar as plateias, dar entrevistas, divulgar o seu produto.

Apenas um filho, acalentado em sonhos durante as viagens que fizera em torno da imaginação claustrófoba.

Nada acontecera. Fizera umas sessões de autógrafos, umas reuniões com os amigos. Vendera alguns livros, mas só isso.

Não foi adiante.

Teve que tomar uma decisão difícil. Botar a boca no trombone, gritar aos quatro ventos, mostrar o que tinha produzido e revelar ao mundo a enganação que sofrera, ingenuamente.

Pensara que seria ajudado pela editora, que teria sua obra fixada no mural dos autores, que veria resenhas nos jornais, em páginas da Internet. Ilusão.

Calar-se. Era a outra atitude.

Aquietar o espírito e conceber a si mesmo que a estrada bifurcava logo ali adiante e que não havia caminhos paralelos.

Foi o que fez ou o que se permitiu fazer.

Deprimiu-se. Foi desta vez, que se olhou no espelho e viu apenas um espectro de si mesmo, um reflexo apagado da própria figura.

Era apenas mais um, na busca de um troféu que não era o seu, de um prêmio que não lhe entregaram, de um reconhecimento que não tivera.

Gustavo ficou assim, se olhando por mais um minuto. Mas foi só.

Afinal, o tempo passava depressa.

Aquele hálito pegajoso no espelho, já não era mais seu. Era do espelho, que bafejava satisfeito na sua cara.

Abandonou-o de vez e disse para si mesmo que recomeçaria mesmo assim.

Não com aquela manifestação de espírito exacerbada, mas com a vontade de expressar-se sob qualquer circunstância, em qualquer suporte, em que pese as dificuldades para fazê-lo.

Quem sabe, num feedback de comentários, sinta novamente o sabor da luta.

sábado, setembro 10, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 1

Santa, a matriarca de uma família rica e respeitada, muito religiosa e benfeitora da comunidade prepara-se para uma ocasião especial, que é o seu aniversário de sessenta anos celebrado por uma missa. Aos poucos a fotografia de sua vida revela que a harmonia da família é apenas um flash da câmera e aos poucos, todos vão mostrando o seu discurso, em cujo tema a hipocrisia humana é flagrada.

Assim começa o nosso folhetim dramático.

A seguir o 1º capítulo (as publicações dos capítulos são feitas aos sábados e terças-feiras)

Fonte da ilustração: MichaelGaida. Do site www.pixbay.com

Nem sempre se tem a convicção de que a vida revela uma atmosfera de conforto ao espírito, mas para Santa, tudo parecia suave e doce, a ponto de transportá-la aos melhores momentos de sua infância.

Enquanto se dirigia para a igreja, lembrava da mãe, sempre zelosa com o vestuário e de seu cuidado obsessivo com o comportamento. Nada lhe escapava: um gesto sorrateiro, um olhar gracioso para o irmão, uma implicância com o véu. A vida andava numa trajetória densa e comportada. De acordo com seus princípios.

Era uma primavera, como a de hoje. Havia aquele friozinho insistente, produzido pelo vento que enrolava papéis na esquina. Talvez o único rodamoinho que se permitisse.

A mãe descera do carro, segurando o vestido, acomodando-o como podia, para manter-se em pé, sem que o mesmo lhe subisse à cabeça. Nesta tarefa quase inglória, conduzia as duas crianças. Não confiava na babá.

Um pouco mais atrás, taciturno, com as mãos coladas aos bolsos, surgia o pai, devagar, com uma aparência não tão comportada e mais acostumada a lugares profanos. A missa não parecia ser o melhor programa, mas ele a acompanhava.

Santa percebia o quanto o pai se aborrecia com aqueles rituais. A mãe, ao contrário, sentia-se renovada e feliz. Era mais do que um dever de cristã: uma alegria genuína.

Ao entrar na igreja, ela separara os irmãos, com a ajuda da babá. Um iria para a esquerda, ao lado dos meninos, e Santa seguia a sua turma que a aguardava próxima ao altar. Era a primeira comunhão, uma solenidade tão esperada.

O irmão se colocara na posição entre dois colegas menores, ajudado pela professora de catecismo. Antes mesmo de qualquer observação da professora, o menino voltou-se para trás, à procura da mãe e gritou com a voz aguda, atingindo o ápice, no leve burburinho: — Mamãe, a minha vela tá torta!

Houve uma risada geral das crianças próximas. A professora o advertiu que ficasse quieto, esclarecendo que aquela envergadura era produzida devido ao calor da mão, mas ele insistiu na reclamação.

Santa olhou para o irmão e escondeu o riso, com a mão em concha. A mãe, apesar da impossibilidade de conseguir outra vela, aproximou-se do menino, reprendendo-o, fazendo-o calar-se com dificuldade.

Quando os ânimos se acalmaram, ela se afastou rapidamente, já que a cerimônia não demoraria a iniciar.

Mãe, pai e babá sentaram-se um pouco atrás, confiantes em que poderiam orientá-los, tanto a um, quanto ao outro, apesar da distância física entre os irmãos e a própria distância entre os bancos.

Santa esvoaçava o véu e o vestido, assumindo uma postura digna, quase santificada, segurando o rosário entre as mãos enluvadas. Santa, que naquela época, era chamada de Santinha pelos pais, olhou de vesgueio, com cuidado, volteando levemente o pescoço. Pôde ver a mãe toda animada, mas o que mais a impressionou foi certificar-se de que havia uma lágrima salgando a face inexpressiva do pai. Uma emoção talvez atingisse aquele coração dissimulado, revelando a alma que evitava mostrar-se.

Santa ou Santinha virou a cabeça feliz. Fitou a cruz e agradeceu emocionada o singular encontro espiritual do pai. Nem se deu conta de que o irmão era chamado à atenção pelo diálogo inesperado com um colega, talvez até contando piadas.

Agora, após tanto tempo, estava ela naquele carro, sentindo a sensação primitiva da primeira comunhão, dos primeiros gestos de afeição à religião, pela sensação quase explícita de se encontrar com Jesus. Estava ela, se encaminhando à rica catedral, não como a criança que explorava um mundo novo, mas a mulher de 60 anos, Dona Santa, que havia enfrentado tantos percalços na vida, mas que se abastecia plenamente dos frutos religiosos, para se manter uma mulher digna.

Além de tudo, era uma benfeitora, participante da Igreja como ministra da comunhão, querida na comunidade e que agora se preparava para enfrentar um dos dias mais felizes de sua vida: a festa de seu aniversário.

Desceu do carro ao lado do marido. Ela estava exuberante, no vestido esvoaçante, que lembrava um pouco aquele da primeira comunhão, descontando as proporções exageradas de massa corporal que adquirira. Mas era assim: um vestido leve, que lhe descia até a canela, num tom verde- água, pernas emolduradas por um sapato de salto preto, que acompanhava a bolsa da mesma cor. As pernas também já não eram as mesmas, os sapatos mal cabiam nos pés, tão inchadas se encontravam. O passo, entretanto era firme tal como o daquela época.

O olhar, embora guarnecido por pequenas bolsas, atenuadas pela maquiagem, ainda apresentava o mesmo brilho e a mesma curiosidade que a abastecia nos momentos de plena euforia.

Quem a observasse ao sair do carro, e havia uma centena de curiosos próximos à catedral, perceberia um penteado simples, no cabelo doirado, preso num coque suave, com contornos quase infantis, que lhe caíam nos olhos pequenas mechas douradas, como uma franja mal comportada. Seus olhos azuis acinzentados davam uma cumplicidade de magia e festa, produzindo uma delicadeza cúmplice com o acontecimento. Era uma mulher jovial e ainda muito bonita.

O marido, ao contrário, apesar da estatura esguia, sua constituição física era um tanto desarmoniosa: os braços imensos para o corpo franzino, as pernas finas, cujas calças balançam ao mínimo movimento, um nariz alongado e olhos sumidos, quase fechados sob sobrancelhas extremamente cerradas. Tinha, porém uma coisa que o salvava: o sorriso largo e amigável. Não se podia dizer o mesmo da voz, que via de regra, balançava os tons mais diminutos, tornando-os estridentes e intoleráveis. Falava aos gritos, e costumava ser prolixo. Entretanto, era um bom homem, não tão chegado às coisas do céu, mas criara uma família com seu temperamento comportado de industrial pequeno, mas bem sucedido.

Os dois se aproximaram da igreja. Por um momento, Santa soltou o seu braço, parou e recuou alguns passos, como se não se atrevesse a entrar naquela igreja da qual participara inúmeras vezes. E o fizera nas situações mais diversas, desde as dedicadas às ajudas comunitárias até em planejamentos onde passava noites a fio, para resolver determinadas pendengas na comunidade. Outras vezes, ficara apenas rezando para que os seus projetos se coadunassem com os do Senhor e a coisa andasse, talvez não como desejasse, mas de acordo com a vontade do Altíssimo.

Entretanto, não estava pronta ainda. Suas pernas tremiam e suas mãos se apegavam ao peito, como se protegessem de alguma coisa desconhecida e inexorável, que fosse arremessá-la para longe e tirá-la do caminho proposto.

sexta-feira, setembro 09, 2016

As divagações e sonhos de Marina

Seus pés pequenos mergulhavam, solitários, na água morna. O sol ardia, escaldante, nas têmporas. Mas aquele minuto de sol significava mais do que tudo que precisava fazer. Quase deslizava na água. A ponta dos dedos observavam mariscos, a areia da praia que afundava na pressão do calcanhar, as pequenas conchas que teciam a rede de espumas que se espalhava. Era lindo e ela sabia disso. Suas pernas finas e ágeis davam, de vez enquanto, pulos, como uma rã em busca de insetos. E assim, passavam a correr, mal pisando a água clara e morna, limpando a planta dos pés, deixando-as mais brancas ainda. Os pés e as pernas eram escuras, como o resto do corpo, mas as plantas eram claras, tão claras que tinha a impressão que as tinham pintado. Agora estavam quase murchas. O sol a pino produzia gotas de suor na testa ampla. Os olhos grandes, argutos, analisavam apenas o que lhe convinha: o conviver com o que a natureza oferecia. E não era pouco. Ali ficou, nos saltos e em cada um, vislumbrava um pensamento rápido de quem sonha. O vestido já molhado não obedecia aos gestos e se ajustava às pernas. Não havia vento, nem frio. Só aquela brisa suave e a sensação boa de estar sozinha. Há tanto tempo permanecia assim no vazio de sua vida, sem ninguém, que estava até acostumada. O vazio, que experimentava agora, era diferente. Era gostoso. Um vazio de pessoas, embora um momento pleno de si mesma.

Ouviu um assobio bem longe de seus ouvidos, mas o suficiente para parar de supetão. De repente, seus pés se acomodaram na areia, afundaram na água morna e se enterravam devagar, pelas canelas finas, quase na altura do joelho, já alcançando o vestido. Vestido que pairava quieto, sobre a água. Uma pequena deusa, que se vestia de santa e olhava ao longe, com cara de menina bondosa. Na verdade, não era tão menina assim. Já tinha os seus 14 anos e apesar de mirrada, parecendo um pouco mais do que 11, já se considerava uma mocinha.

O assobio insistiu, estava mais próximo. Dava arrepio voltar à realidade, assim, de repente. Que bom se pudesse ficar saltitando pela água do mar, chutando as espumas, fazendo rodopios com o corpo. Mas de sonho, já vivera até demais. Melhor aquietar-se no mundo que a esperava. Um mundo desconhecido, do qual não dava conta.

Às vezes, se imaginava branca, de olhos claros. Aliás, quando pensava em si, não tinha uma identidade negra. Quando se olhava no espelho, não era ela, que via. Era uma outra menina, com um olhar diferente, muito mais sério, com uns lábios apertados que não descreviam o que sentia.

E esse assobio que penetrava nos seus ouvidos. Alguém se aproximava, alguém muito familiar que causava esse desassossego. Quando Omar se aproximou, ela já era outra. Seu olhar maduro, os gestos robotizados, lábios apertados.

Omar perguntou, ríspido, se ela não voltaria ao trabalho. “As doceiras lhe esperam. Ou pensa que os doces se vendem, sozinhos, de mão em mão?”

Marina baixou a cabeça, ou melhor enviesou os olhos o mais que pode. Não lhe interessava argumentar sobre a água, nem se desculpar, muito menos encarar aquele homem que não lhe transmitia nenhuma segurança. Afastou-se na sua frente, na direção das cozinhas do velho restaurante. Em pouco tempo, voltaria para a praia, agora não mais deserta, nem agradável aos pés e olhos. Apenas a areia escaldante, o grito rouco da propaganda, o abrir e fechar de cestas, divulgando a mercadoria. E assim, as horas passaram e quando se deu conta, estava em casa, entre centenas de crianças que se embrulhavam como presentes nos cobertores ralos. Ela agora sentia um pouco de frio, mas a memória da água morna e das espumas ainda estavam presentes. Foi com isso que sonhou, pois dormiu num sono só. Só acordou com o chamado do sino habitual para a higiene e o café da manhã. Havia poucas meninas com as quais se relacionava. Uma que outra lhe passava mais confiança. Com estas costumava falar de Omar.

Apesar da raiva que sentia dele, por tratá-la com um certo desprezo, ele lhe despertava alguma coisa lá dentro. Talvez fosse esse o motivo de tanta raiva. Afinal, Omar não era um homem feio: forte, cara dura, braços e pernas musculosas. Tinha um olhar obtuso que não levava a lugar nenhum, a não ser um gestual peculiar de empáfia. Mas não o achava feio. Se não fosse tão mal...pensou.

― Qual é a dele – perguntou uma das meninas – anda sempre atrás de você.

― O negócio dele é vender doces. Estou lá para isso. Tenho que me arranjar.

― Você é quem sabe. Por mim, eu dava um chega pra lá neste cara. Ele marca de cima, parece seu namorado

Marina enrubesceu. Seu coração batucou no peito, agora de raiva da colega. Ela não tinha namorado e quanto a Omar, estava descartado, afinal ele era muito mais velho do que ela, apenas o sócio do restaurante perto da praia, e jamais pensaria nela como namorada. Além disso, diziam que ele andava metido com gente da cidade, isto é, tinha uma mulher que morava no centro. O interesse dele era exclusivamente ganhar dinheiro. Mas vai explicar isso para a colega. Melhor levantar-se rápida do café e arrumar as suas coisas.

As noites passavam sem graça para Marina. Por vezes, pensava numa família que não teve. Afinal quem seria o pai? Talvez alguém muito parecido com Omar, um homem frio, cheio de salamaleques, metido a dono de tudo. A mãe? Desaparecera no mundo, certamente quando ela nascera, pois fora morar naquela Casa de Meninas. E jamais fora escolhida para ser filha de alguém. Ninguém queria uma menina negra, mirrada, de nariz sujo e olhos grandes como ela. Agora, porém, era outra pessoa. Uma pessoa diferente. Talvez não tanto quanto gostaria, mas uma pessoa que pensa consigo, sem se interessar mais com a opinião de ninguém. Afinal, nunca se importaram com ela. A não ser uma ou outra pessoa que a ajudou na Casa ou mesmo no restaurante, do qual vendia os doces na praia. As noites se alongavam, intermináveis. Tinha vontade de sair da Casa de Meninas, por rumo na sua vida. Mas nem tudo acontecia como se imaginava, ou quase nada. Acha que viverá a vida vendendo doces. Até morrer.

Um dia recebeu um livro de um instrutor. Leu algumas paginas, enjoou. Mas vez que outra, abria aquelas folhas amassadas e lia um ou dois parágrafos. Apesar da dificuldade na leitura, sempre gostava do que lia. Talvez algum dia, lesse o livro todo. O instrutor foi embora e deixou como herança o livro. Bem diferente de Omar. Ao contrário deste, o instrutor era um homem educado, generoso, tranquilo. Sabia conversar com facilidade, sabia dar conselhos. Mas dava-os de modo que o receptor nem se desse conta da mensagem. Ou se desse conta apenas do conteúdo, sem saber que estava sendo doutrinado. Era isso que as meninas diziam. “O instrutor de educação física sabia doutrinar a gente, parece um padre”. Mas ele foi embora de uma maneira triste, decepcionante. Até hoje, Marina não acreditava na versão que deram. Não pode ser, ele era um homem tão íntegro, tão verdadeiro. Ele não faria o que disseram. Mas todos juravam que era verdade. Que aquilo aconteceu mesmo.

Marina se lembrava como se fosse hoje. A professora irrompeu na sala, aos soluços. Tratava-se de dona Sarita, uma mulher já passada nos quarenta, que se julgou ofendida pelo assédio do instrutor. Ela fora chamada à atenção pela diretora da Casa e certamente seria demitida, se houvesse participado dos galanteios do instrutor, isto é, se os tivesse aceitado, assim se comentava na época. Foi uma situação desesperadora, porque ela teimava que era inocente, que não tinha aceito aquelas obscenidades em plena sala de aula. Era o que diziam. Ela ficou e ele acabou indo embora.

Marina nunca gostara de dona Sarita. Preferia que o instrutor ficasse. Mas isso, ela não podia decidir.

Fonte da ilustração.: www.pixbay.com

segunda-feira, setembro 05, 2016

Os pecados de Xavier

Se ocorresse nos dias atuais, do politicamente correto e do convervadorismo tacanho, por certo Xavier seria taxado de, no mínimo, irresponsável. Lá pelos anos 80, não havia tanta integração entre as pessoas, afinal, não havia internet, muito menos redes sociais. Quem se conhecia, o máximo que gravitava entre os bate-papos era o que se contava à amiúde. As fofocas do alto escalão se deixava às revistas especializadas.

Xavier era um cara divertido, no alto de seus quarenta e poucos, com mulher e filho, tinha alguns interesses que desapontavam os amigos mais chegados, mas produzia certa curiosidade em se descobrir os meandros em que os interesses se realizavam. Ele não costumava falar, mas quando encontrava um amigo, exagerava nos detalhes, nos momentos mais impetuosos, aguçando a lascividade intrínsica do ser humano.

Ninguém sabia ao certo o que fazia, como eram as suas noites de diversão, principalmente nos fins de semana. Ele, via de regra, voltava ao trabalho numa penúria de boêmio, revelando a segunda-feira o registro da ressaca espiritual e física.

Mas Xavier sabia o que fazia. Quando comentava algum detalhe, preenchia-o com tantas expectativas, que tornava o interlocutor um passivo ouvinte, quase no desespero de descobrir o que pouco era exposto.

Certa vez, Xavier resolveu abrir o bico. Só, que expert na área de levar vantagem, impunha uma condição, ao que os colegas se olhavam intrigados e até, insatisfeitos em ceder em alguma coisa. Não era uma coisa qualquer, era algo digno de transformação de todo o grupo de trabalho, a ponto de mudarem as lideranças ao descobrirem pecados inadmissíveis àquele bando.

Xavier tinha os seus caprichos e só contaria se fizessem como dissera. E o que queria ele?

O que de tão cabuloso fazia em suas noitadas festivas? E quais eram os pecados dos colegas?

Era exatamente isso que ele desejava: cada detalhe que contasse de sua vida desregrada seria recheado de minúcias da vida certinha ou não tanto, dos colegas.

Foi num happy hour que ele deu o veredicto. Ninguém acreditava no que dizia. Estavam juntos Márcio, o economista, Juarez, o relacões públicas, Manoel e Frederico, que chamavam de Fred, os funcionários do atendimento ao público e Rodrigo, o estagiário que era pau pra toda obra.

Entre um chop e outro, Xavier decidiu colocar as regras na mesa. Claro que todos arrepiaram. Olharam-se de vesgueio, intrigados. Mas que fazer? Por que não contar? E o que contar de suas vidas medíocres, tão iguais, tão insossas, tão diferentes da exuberante de Xavier?

Afinal, a bebida já os fazia abrir as golas das camisas e desabotoar os sentimentos. Estavam se livrando das amarras, aos poucos, não tanto quanto Xavier, porém quem sabe não seria este o momento?

E nesse meio de conversas e risadas cada vez mais frouxas, Xavier fez um comentário de um colega. Todos fizeram silêncio. Até que ele repetiu. Era sobre Juarez, o relações públicas da empresa. Ele saiu da pasmaceira e perguntou: — O que foi que você disse?

— Nada demais Juarez, mas muito engraçado. Eu vi que você leva um copo plástico pro mictório.

Os demais começaram a rir. Juarez interpelou, já irritado: — Não sei do que você ta falando.

— Mas você leva o copo, não vai dizer que não?

— Pra que, Juarez? Pra … – e Manoel faz um gesto obsceno, indicando masturbação – é pra isso mesmo?

— Cala a boca Manoel, deixa de ser ridículo - gritou o exarcebado Juarez.

— Desculpa aí, amigão, mas eu sei pra que você leva o copo — e Xavier prossegue, caindo na risada — tem uma utilidade aí. Você enche o copo dágua, derrama devagarinho no vaso e mija à vontade.

— E o que tem isso? Aprendi com um cara estrangeiro, dizia que ajudava - olha aqui, não devo explicações a vocês. Vãos se fuder!

Fred então saiu na defesa de Juarez.

Fred era um cara baixinho, de cabelo crespo, muito preto e barba cerrada. Olhou para os lados, encarou Xavier e disparou: — Sei que você tá tentando fugir da coisa. Não me engana Xavier, chamando a atenção pro problema do Juarez, você – foi interrompido com a reclamação de Juarez – não é problema! – e continuou – que seja, não é problema, o fato é que o Xavier se aproveitou disso pra não contar a sua vida de sacanagem.

— Ué, eu disse que cada um tinha que contar uma falha, um pecadinho. Tá todo mundo com auréola de santo aí. E você Fred, que tá reclamando, vai, conta o seu.

— A minha vida é calma como o rio que passa sob a ponte. Vocês sabem que sou casado há pouco e tudo que acontece é dentro das quatro paredes.

Xavier, parecendo saber de alguma coisa, pergunta, irônico: — Mas me diga, parece que vocês andaram meio assustados numa noite dessas. Não foi esta pasmaceira que você tá falando.

O outro sem graça, reclama: – Bobagem, nem sei do que ta falando.

— Da vizinha do quarto andar.

Juarez, agora mais relaxado, cai na risada – Então aí tem coisa. O que tem a vizinha do 4º andar?

— Vocês estão malucos? Não tem nada a ver.

— Claro que não – prossegue Xavier – mas ela andou espalhando umas coisas por aí. Não sei como soube, acho que pela sua mulher mesmo.

— Foi um sonho.

—Então explica. Fala pra nós, cara.

— Eo que esta vizinha enxerida falou?

— Ela acha que nao passou de uma brincadeira.

— Pois se você sabe, conta você Xavier. Você não é o alcoviteiro da vida de todo mundo?

— Aí não tem graça -concluiu Xavier. Manoel então insistiu: — O que aconteceu afinal, Fred?

—Ah, caras, uma história maluca. Mas neste caso, os pecados são da Mara, a minha mulher.

— O que foi que ela fez?

— Sei lá, era umas três horas da madrugada, ela ouviu ruídos fora do quarto. Levantou-se da cama sobressaltada e apavorada se encostou no meu ouvido, falando baixinho que o marido estava ali. Imagine, eu, claro que estava ali. Não entendi nada!

— Mas e daí? – fomenta ainda mais Xavier.

— Sem muito entender, me levantei enlouquecido, pulei pela janela só de cueca. Na queda, arrebentei o pequeno muro que separa o jardim da frente, do corredor e bati com a bunda nas pedras. Eu tava num transe, acho, tamanha era a minha ira. Mas, como se me acordasse de repente, pulei a janela de volta, ensandecido. Gritei irritado para Mara: – Sua louca, maluca, sua pirada. Olha como to, todo machucado, porra. Teu marido sou eu!

Fez uma pausa e prosseguiu com suspense: — Sabe o que ela me respondeu? Sabe o que ela teve a cara dura de responder?

Rodrigo, o estagiario concluiu: — Depois de mandar você procurar o marido que era você mesmo, nem sei o que pensar. O que ela respondeu?

— “Ah é pulou a janela porquê? Tá de consciência pesada?” Vê se não é maluca, mesmo?

Todos cairam na risada, uns diziam que era um sonho, ou um pesadelo. Mas ficava a dúvida, em que marido ela estava pensando, ou melhor sonhando? Será que ela achava que estava com o amante e que o marido havia chegado, ou seja, o próprio Fred?

Xavier por fim, vaticinou: — Vai ser duro de eu contar a minha história, porque meu amigo, aqui o pecador não foi você. – e olhando ao redor, perguntou exaltado – quem se habilita?

Ninguém abriu a boca. Olhavam para Fred com a pulga atrás da orelha.

domingo, setembro 04, 2016

O que vem na lancha?

Rogério atravessou o paço municipal com efetiva energia. Estava satisfeito consigo. Daqui a pouco, aquela casa seria sua. O mundo lhe renderia homenagens, as pessoas em geral falariam nele, a maioria pelos seus benefícios que faria à cidade. Uns invejosos falariam mal, mas que falassem. Não lhe interessava. Importava agora o pleito que estava por vir e ele como candidato, certamente seria o vencedor. Ninguém o tirava do páreo, de jeito nenhum.

Em seguida, estava no cais e parou por um momento, observando a lagoa. Na verdade, a laguna, um homem com a autoridade que teria, devia usar o termo correto. A laguna o encantava, às vezes, principalmente nestes dias de pouco sol, com alguma neblina, mas com um calor envolvente, prenúncio de alguma chuva. Podiam pensar que era loucura este pensamento, mas este rebuliço da natureza o envolvia completamente. Era como nas urnas e os efeitos nem sempre passivos, às vezes desvastadores.

Uma lancha se aproximava e ele decidiu sentar num dos bancos no espaço florido próximo ao cais. Ficou observando-a, vendo os passageiros ansiosos em descer, olhando para o nada, entretidos em suas vidas medíocres, habituados a repetir aquela mesma rotina enfadonha, enquanto ele ia ali para aliviar a alma. Ele podia fazer isso, diferente de todos os mortais.

Alguns pingos de chuva começaram a cair e já não era apenas a neblina, eram pingos que aumentavam em quantidade de gotas e velocidade. Uma chuva que não deixava respirar. Achou por bem afastar-se rapidamente em direção ao mercado.

Um pouco molhado, o paletó respingado e algumas gotas na camisa branca revelando os pelos do peito escondidos, sentiu-se um pouco como todos aqueles que faziam parte da comunidade do mercado público. Homens mal vestidos, cabelos desenvoltos, camisas regatas e moletons num dia de chuva e calor. Esqueceu-os, embora sempre aos sorrisos para um e para outro. Andou pelas bancas, observou as frutas, os queijos, os peixes, muitos peixes com centenas de aromas variados. Pensou em tomar um café. Aproximou-se de uma banca e como todos os que estavam por ali, pediu praticamente a mesma coisa: um café e um pastel bem refogado, com muita carne e queijo. Uma mulher gorda, de legging que revelava até as curvas da virilha se aproximou com o café e sorriu mostrando uma falha de dente inominável. Pediu açúcar. Adoçante era para os fracos. Mexeu com um colherinha de cabo torto e percebeu alguma coisa estranha no fundo da xícara. Uma mosca enorme jazia ali, morta, escrachada, esperando ser engolida. Por ele? Ele não era sapo pra comer mosca! Chamou a moça que coçou sem discrição a coxa, espichando um pouco a lycra da calça que devia incomodar. Não se preocupe, ela disse, eu trago outra pro senhor. Rogério já não queria outra. A visão da mosca gorda no fundo da xícara ainda lhe produzia uma náusea que não conseguia evitar. Pediu um refrigerante. Comeu o pastel. Deu mais uns sorrisos, levou uns tapinhas nas costas, deu outros e retirou-se do mercado.

Na rua, a chuva amainara e apenas uns pingos cá, outros lá anunciavam alguma água nas calçadas. Olhou para a laguna. Agora mais clara, sem neblina. Seguiu em frente, atravessou a hidroviária e passou para o outro lado da rua, pela Riachuelo. Caminhou agora sem muito entusiasmo, pelo menos, a euforia que possuia no início, quando atravessou o paço da prefeitura.

Sentiu-se um pouco cansado. Encostou-se na grade do porto e espiou para dentro, observando que alguns homens desenredavam uma enorme corda. Para que seria, pensou. Um pouco mais longe, vinha outra lancha. Ficou parado, observando-a e teve a impressão de que havia uma coisa estranha perto da popa. Não eram caixas de mantimentos, nem amontoados de mercadorias. Se tivesse um binóculo, saberia com certeza o que vinha naquela lancha. Um dos homens que mexiam com as cordas o encarou por um momento, talvez se perguntando o que ele fazia ali, parado.

Rogério decidiu voltar para a hidroviária. Tinha que saber o que traziam na lancha. Era uma caixa estranha, o que lhe produzia uma espécie de dor, uma nostalgia de alguma coisa inerte, que lhe incomodava, que lhe tirava o prazer de ser um candidato. Era como se lhe tirassem todo o poder e ele não pudesse mais ser o prefeito da cidade. Era como se o cassassem como vereador e lhe tirassem os direitos de elegibilidade. Como se houvesse morrido.

Deu alguns passos rápidos em direção ao cais onde a lancha pararia e ficou esperando, o coração soturno, agitado e impune.

As pessoas pareciam rezar ao redor da caixa, outras sorriam ou davam gargalhadas exageradas, gritando frases de efeito. A lancha dava umas guinadas como se escondesse o produto, vez que outra, parecendo voltar, como se retrocedesse e ele jamais pudesse adivinhar o que estava acontecendo. Sentiu um cheiro terrível de urina que vinha do banheiro da hidroviária. Parece que todos os odores ruins se revelavam cada vez mais fortes, instilando-se nos cantos, nas esquinas, nas águas que batiam nos degraus do cais.

Os meninos que estavam próximos se afastavam. As mulheres que passavam agora corriam e alguns policiais se apresentaram para mostrar a força da autoridade. Finalmente a lancha apareceu, porque aquela neblina que para Rogério parecia bonita, agora voltava escura, toldando todo o céu e escondendo a lancha, fazendo-a ligar os faróis. Mas ela surgia agora, de vez. Um pequeno povo que estava no mercado se apresentou e ficou observando a cena. Aquele mesmo que o abraçou, deu-lhe tapinhas nas costas e sorriu várias vezes. Até a mulher de legging se antecipou ao grupo e esperou ansiosa que a lancha chegasse. Duas que pareciam evangélicas, pelo penteado e a saia de jeans, com botinhas e meias, deram-se os braços e começaram a rir, satisfeitas.

A lancha largou as suas âncoras no cais. O povo se posicionou, quase em procissão, lá dentro, atrás do produto. Um padre se emocionou e abençou o povo que se aglomerava lá fora. Um deles, que parecia um juiz também mostrava-se sensibilizado, mas com uma certa alegria no olhar. Algumas senhoras rezavam agradecidas e vários homens tiravam o chapéu, o boné ou o que tinham na cabeça, se o tinham e faziam gestos de gratidão, alegria e ufanismo. Alguns até cantaram o hino nacional com muito patriotismo.

Rogério, candidato a prefeito da cidade, por fim compreendeu o que vinha na lancha e que chamava tanto a atenção. Era um caixão preto, com uma enorme coroa. Na frente, uma faixa com o nome democracia.

sábado, setembro 03, 2016

Sabrina

Sabrina desligou a tv analógica e ouviu ainda um ruído, que demorava a sumir. Talvez a tv estivesse úmida, pensou. Sempre que acontece uma chuva forte, tudo fica meio atrapalhado. Houve dias em que até o liquidificador parou de funcionar. Quando compraria uma tv digital? Era coisa que não podia pensar, neste momento.

Os meninos na escola, indo a pé, caminhando mais de 5 km e ela preocupada com a televisão. Mas deixa pra lá, melhor procurar os tais panos de prato, que passou o dia atabalhoada e os perdeu. Sabe que os guardou, tem certeza, mas onde estarão?

Precisava sair antes que os meninos voltassem para vendê-los no armazém de Seu Oliveira. Lá costumava deixá-los até que alguém os comprasse. Às vezes, ninguém adquiria nada, mas na feira sempre dava certo. Na feira era venda segura. Ou na igreja, mas na igreja não gostava de vender não. O padre pedia silêncio, porque o mulherio fazia um burburinho na porta da igreja até começar a missa. Ele andou proibindo que ela vendesse, até que se arrependeu e liberou novamente.

Mas e os meninos que não chegam? E os guardanapos que não aparecem? Guardanapos, panos de prato, toalhas, tudo bem bordado em pontos de cruz. Eram bonitos, com estampas que tirava das revistas ou ela mesma desenhava. Tinha esse atributo desde criança. Não podia desperdiçar. Procurou os óculos de perto pela mesa da cozinha, pois achava que os tinha deixado lá, quando vira a hora no celular. Estava assim absorvida, procurando-os, quando a porta se abriu de sopetão. Olhou assustada para a porta da cozinha.

Um homem entrou, olhos ensanguentados, boca entreaberta, uma barba mal feita e uns riscos no rosto, que mais pareciam cicatrizes. Não teve coragem de falar, mas ele se dirigiu a ela com muita aflição, quase desespero.

— Não se mexe moça, nao vou fazer nada com você, mas me deixe entrar e fique quieta. Vou me esconder no quarto. Quando a polícia chegar, você nao me viu. Se não te mato, ta ouvindo?

Sabrina ficou paralisada. Não sabia o que fazer. Concordava com um aceno de cabeça. Quando o homem passou por ela, sentiu uma náusea pelo odor que despertava, um misto de sujeira misturada com sangue. Percebeu que a mão sangrava, bem a mão que segurava a arma. Ainda a encostou no seu pescoço e repetiu: — Tá ouvindo?

Ficaria no seu quarto o dia todo? E se os meninos voltassem? E se o marido aparecesse de uma hora pra outra? Sabrina começou a chorar. Puxou a toalha da mesa e limpou os olhos e assoou com energia o nariz. Não sabia se arrastava pé. Ele podia voltar a qualquer momento.

Nisso, ouviu o barulho de um carro. Deu um passo e espiou pela janela. Um giroflex ligado e homens da polícia desciam correndo do camburão em direção a sua casa. Entraram de arma em punho. Gritaram que não se mexesse.

Ela queria falar, dizer que o homem estava lá dentro. Queria fugir, pedir socorro, ajuda, mas o que fez foi pegar a faca de pão que estava sobre a mesa, empunhou-a na direção do quarto para avisar em silêncio de que o bandido estava no quarto. Mas um tiro a silenciou. O sangue jorrou da boca, o corpo tonteou e Sabrina caiu sobre a mesa enfiando a cabeça na toalha de crochê.

A polícia então examinou o ambiente, verificou que a mulher estava morta e um deles fez sinal para que fossem embora. Não havia nada a fazer ali. Correram para o carro e saíram em disparada na investigação. Atravessaram cercas de arame farpado. Tudo observado pelo homem que voltava do quarto.

sexta-feira, agosto 26, 2016

As olimpíadas e as opiniões contraditórias

Há sete anos, "Chegou a nossa hora”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Copenhague, na Dinamarca, ao defender diante do Comitê Olímpico Internacional (COI) a candidatura do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016.

Muitas pessoas refutaram o discurso como absurdo e que o País não teria condições de arcar com um evento esportivo deste porte.

Talvez tivessem razão.

Durante sete anos, Dilma Rousseff

proporcionou condições para que o evento olímpico acontecesse no Brasil.

Muitos execraram a conduta da Presidente, achando que não era hora do País utilizar os seus recursos financeiros e humanos para este empreedimento.

Talvez tivessem razão.

Em 2016, as olimpíadas ocorreram no período transitório do temerário. Muitos ufânicos e patrióticos acreditaram que a Olimpíada foi um sucesso. Estes mesmos que foram contrários antes.

Talvez tenham razão (?)

Fonte da ilustração: http://misturaurbana.com/2011/07/rage_arte-e-ironia-pelas-ruas-de-sp/

quinta-feira, agosto 25, 2016

As diferenças e os preconceitos

Outro dia escrevi em meu blog sobre alteridade, que trata da condição do outro, as suas diferenças em relação as minhas e como as enxergo ou me vejo a apartir dos olhos alheios. Isto significa que há diferenças e que devemos respeitá-las em nossa convivência diária.

Pensando nisso, me veio à mente percepções de pessoas que julgava diferentes e por serem assim, não as compreendia e nem as aceitava e se o fizesse, apenas as tratava com educação formal. Agora, entendo o quanto isso era preconceituoso e prejudicial para a convivência e o quanto eu era vulnerável em meus sentimentos.

Isso acontece com a maioria das pessoas e nem percebem, como eu que seguia o senso comum. Por exemplo, quando lidava com uma pessoa que em suas atividades, necessitava de um tempo específico maior, mais programático, mais dogmático, diferente do meu; eu na minha ansiedade, já me afastava. Era mais agradável compartilhar as experiências com quem fosse parecido, embora, sabemos que jamais alguém é igual ao outro.

Imagina, no que se refere a preconceitos mais radicais, como o étnico, de orientação sexual, político e ideológico, xenofóbico, religioso ou mesmo ateu. Felizmente, não passei por estes processos mais conservadores, embora no que concerne à política, muitas vezes pus em julgamento toda uma conduta em função do pensar distinto.

Hoje em dia, vemos o quanto estes sentimentos influem nos relacionamentos e o quanto as pessoas desejam que todos partilhem os mesmos caminhos, de preferência, os que escolheu para a sua trajetória.

Mais aberto para a vida, hoje enfrento sem dificuldade as diferenças, pois elas não me causam mal, ao contrário, me enriquecem. Pena que o mundo parece andar em círculos e o que pensávamos como vanguarda no passado, está sendo ultrapassado por um conservadorismo constrangedor. Parece que a humanidade regride e a alteridade é rejeitada no âmago das condutas individuais.

sexta-feira, agosto 19, 2016

GEOCRUSOE: "O Retrato" de Nicolai Gogol

GEOCRUSOE: "O Retrato" de Nicolai Gogol

Achei muito enriquecedor o texto de Carlos Faria, a quem passei a seguir no twitter, sobre "O retrato"de Nicolai Gogol, por isso fiz uma hiperligação com o seu blog. Espero ter colaborado com a divulgação.

Minha mãe

Minha mãe. Aqui na foto estás serena, uma aparência de quem espera. Talvez tenhas esperado muito por mim, quando voltava tarde da Universidade ou do trabalho, ou mesmo das festas. Recriminava a tua atitude, mas agora sei, mãe o que sentias e porque o fazias dessa forma, porque de algum modo, também espero. Talvez com outro método, mas com os mesmos receios e as mesmas dúvidas.

Hoje seria o teu aniversário, dia 19 de agosto, por isso te lembro hoje, aqui, publicamente, embora pense em ti sempre. Este pensamento me leva a situações e condutas distantes, como o frisar da calça com perfeição para ir à escola (quando não se usava abrigo de malha, a não ser para o que chamávamos de educação física), o exigir o cuidado com a pasta de alcinha e duas dobradiças que deveriam ser fechadas com esmero (não se usava mochila), a merenda enrolada num pano de prato e envolta em papel de pão (raramente se comprava no bar) e o dinheiro para uma eventual necessidade. E quando voltava, sempre atenta com minhas redações, meus cadernos e principalmente com as notas. Exigias o que por obrigação eu deveria obter: o máximo. Não ecomizavas nos números, muito menos na disciplina.

Por certo, estes caminhos que me fizesses trilhar com firmeza, me levaram a outra trajetória, bem distante dos teus olhos: a disciplina com que experenciei em minha vida e procurei transmitir a minha filha. Claro, acima de tudo, o amor. Este, mãe, nem precisava falar, né?

quinta-feira, agosto 18, 2016

Estranha obsessão : um filme de muitas perguntas e poucas respostas

Estranha obsessão (2011), (pode haver alguns "spoilers") em francês “Le femme du Vème” ou em inglês “ The woman in the fifth” é uma produção franco-polonesa, dirigida por Pawet Pawlikowski. Ethan Hawke e Kristin Scott Thomas formam o estranho par romântico na trama de mistério.

O protagonista é Tom Richs (Ethan Hawke), um escritor norte-americano que se muda para Paris, para se aproximar de sua filha. Já em Paris, depois de ser roubado, se hospeda em um hotel barato. Numa livraria, é convidado para uma festa, onde conhece uma viúva de um escritor húngaro (Kristin Scott Thomas), tradutora de livros, com a qual mantém um romance. Por outro lado, mantém um romance no hotel, com uma linda polonesa (Joanna Kulig, atriz polonesa). Por fim, é acusado de suspeito por um crime, pois seu vizinho de quarto é assassinado. Para livrar-se da acusação, tem como álibi o encontro com a viúva, em sua casa, porém, a polícia descobre que a mulher havia cometido suicídio em 1991. Mas toda esta trama não passa de cenário para a sua procura desesperada pela filha, quer encontrá-la, levá-la consigo, mas é impedido pela mulher.

É um filme que tem causado polêmicas, não tanto pela crítica especializada, pelo que depreendi com minhas leituras, mas no âmbito dos espectadores. Há comentários na web de todas as categorias, desde as mais abalizadas até as mais canhestras, com dificuldade de entendimento ou falta de um aprofundamento melhor na trama e nos personagens.

Claro que o filme nos deixa alguns hiatos que causam um certo estranhamento, o que nos faz perguntar, o que está acontecendo com o protagonista? Aquela mulher que ele considera amante, a viúva do escritor húngaro existe realmente? E a jovem polonesa do bar que está apaixonada, afinal, de quem se trata? Na realidade, existe a mulher do dono do hotel e bar ou uma criação da mente do escritor obsecado pela filha? Ou seria a própria filha em sua imaginação psicótica, já que ele a trata com tanto carinho que se aproxima de um afeto paternal.

Por outro lado, a jovem polonesa recebe uma carta no final do filme que diz “com amor, papai”. E aquela menina perdida no bosque, que ele faz um link com a história que contava à filha, quando estavam juntos e quando tentava alertá-la de certo modo, que era um homem perigoso e que deveria ficar somente com a sua parte boa? Quem era o escritor na Paris desnudada e fria que procura obsessivamente a filha, fugindo da polícia, acusado pela esposa, que o quer ver longe? Tudo objeções.

Um estranhamento que não nos permite admitir para nós mesmos que o protagonista é mau, que matou a filha, que abusou dela (a mãe no início do filme, não deixando-o entrar no apartamento, dispara com terrível segurança “você não é normal”), que a amante não existe, que tudo não passa de criação de sua mente deturpada e doente, que a festa em que participou com outros artistas e mentores intelectuais não existiu.

Um mundo paralelo em sua imaginação febril?

Ou a realidade triste de um homem acuado por seu próprio passado? Pois esta estranheza é que nos seduz e encanta. Este estranhamento é que o torna um filme além da média, que revela uma criação artística.

Um filme que nos deixa muitas perguntas, mas uma única resposta da qual não podemos fugir: a vulnerabilidade da condição humana.

quinta-feira, agosto 11, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 20º CAPÍTULO (ÚLTIMO)

Capítulo 20 - último

Após a confissão desesperada de Paulo, fez-se um silêncio complacente. Nada se podia argumentar. A realidade dizia por si. Paulo chorava convulsamente. Seus soluços eram ouvidos do outro lado do vidro que separava as duas peças. Júlio observava e por sua experiência, sabia que ele ficaria mais tranquilo em seguida. Foi o que aconteceu. Paulo voltou a falar, compassado, entre lágrimas, porém um tanto aliviado.

– Rosa não admitia que ela gostasse de mim, que se atirasse daquele jeito sobre mim. Achava que ela era uma puta. E Rosa é muito religiosa, muito moralista. – interrompe-se um instante, como se temesse confessar mais alguma coisa que incriminasse Rosa, porém prossegue. Sabe que agora, precisa ir até o fim. – Pra falar a verdade, detetive, ela não é só a mãe que eu arranjei, entende? Ela é a mulher que me satisfaz na cama e eu faço o possível pra corresponder. Mas eu só vivo pensando em Taís, em mulheres como ela, foi por isso que fui lá e não me contive.

Júlio o ouve quieto. Paulo insiste em defender Rosa, mostrando-se culpado em acusá-la, mas por outro lado, sabe que deve contar tudo, até para atenuar a responsabilidade de Rosa no ato.

— Devo isso a ela, detetive, tudo. Rosa foi a primeira pessoa que me ajudou, a primeira e única. Todos me viraram a cara, mas ela ficou do meu lado, sempre.

Júlio então intervém: — Está bem, Paulo. Eu entendo a sua situação. Mas continue, como aconteceu o crime. Por que você acusou Rosa de ter matado Taís?

Paulo suspira fundo. Olha absorto para a vidraça e depois volta-se para Júlio, agora encarando-o com firmeza.

— Naquele dia, ela me seguiu, eu estava no carro do médico sim, havia tirado da oficina e resolvera dar uma volta, quando vi Taís atravessando a ponte. Logo atrás o grupo fazia aquela festa pervertida, chamando-a de tudo, palavras de baixo calão, mas Taís se divertia com isso. Tanto, que se juntava a eles e dividia com eles as drogas e as bebidas. Começou após muitos pedidos, fazer uma espécie de strip-tease. Foi aí, que me escondi dentro do carro, que estava um pouco atrás do arvoredo, do outro lado da margem. Eu tinha uma visão privilegiada, porque um emaranhado de galhos me protegia. Aquilo me deu muito tesão, e não resisti. foi neste momento que me masturbei. – levanta a voz, ansioso – Eu fiquei louco, detetive, completamente louco e a minha vontade era chegar até Tais, abraçá-la, tirá-la dali, daquele bando. Mas eles continuaram com a festa e ela foi se afastando em direção ao outro lado da cidade, ao contrário do centro, entende? Ela atravessou toda a ponte e o grupo ficou por ali, se divertindo, mexendo com ela, jogando umas roupas que ela havia deixado, pois estava indo só de calcinha e sutiã, dizendo que pretendia se jogar no rio. Mentira dela, era só farsa. Queria se divertir. Daqui a pouco pegaria as roupas e voltaria para casa. Foi neste momento, que vi Rosa se esgueirando pelo mato, às ocultas, sempre pela margem, seguindo-a. Eu estava do outro lado, mas desci rapidamente do carro, atravessei para a outra margem e a segui também. Foi difícil, estava cada vez mais escuro, com muita neblina e os galhos das árvores eram densos e atrapalhavam o caminho. Mas eu vi, no momento crucial, quando Tais estava encostada no parapeito no fim da ponte, fumando um baseado.Rosa chegou e lhe deu um tapa na cara com muita violência. Chamou-a por todos os palavrões que conhecia e sacudiu-a com força, arranhado-lhe os braços e para minha surpresa, sem mais nem menos, a empurrou na direção do rio, mas Taís não caiu, conseguiu segurar-se, apoiando-se na ponte. Então cheguei desesperado e tirei Rosa dali.Eu não podia abandoná-la naquele desespero. Supliquei que deixasse Taís em paz, que a esquecesse de uma vez por todas e fôssemos embora. Rosa parecia voltar a si, sair de um surto terrível e me obedeceu. Corremos em direção ao carro e ela entrou e se deitou no banco para que ninguém a visse. Então eu dei a partida e fomos embora. Ela então sugeriu que eu fosse para a Capital por uns dois dias.

— Mas o que aconteceu com a moça? Ela caiu, afinal?

— Eu acho que sim, não tinha muitas chances para ela. Rosa a matou, não há dúvida. No outro dia, tinha muito comentário que a moça estava toda arranhada e fora levada pela correnteza, rio abaixo.

— Então, você acha que ela não resistiu, talvez pelo estado fragilizado em que estava em virtude das drogas e tenha caído no rio.

— Sim, penso que sim.

– E agora está aliviado? Você não matou a moça, é inocente, apesar que pode ser considerado cúmplice, já que não fez nada para ajudá-la e ainda assistiu a cena.

– Rosa fez tudo por mim, pra me proteger, como sempre. Eu não devia ter contado isso.

— Não se preocupe, mais cedo ou mais tarde, isso apareceria. Rosa não ficaria impune. Além disso, há outras coisas que precisamos descobrir. Há outros crimes envolvidos.

Júlio acenou a cabeça, pesaroso. Abriu a porta para o policial e pediu que ele ouvisse a gravação. Quanto à Rosa, esta pagaria por seus crimes, naquela noite mesmo.

Nesta noite, Júlio fazia um retrospecto de todos os acontecimentos e percebia, insatisfeito que apesar do caso estar parcialmente resolvido, havia uma incongruência nos fatos que não se ajustavam de algum modo.

Paulo, o mecânico estava preso por assassinato e acabara confessando que a autora do crime era Rosa, tornando-se seu cúmplice, por ter abandonado Taís à própria sorte e ainda ter encoberto a verdadeira criminosa.

Por outro lado, Rosa cometera o crime porque julgava Taís uma indecente, que não se ajustava aos seus padrões morais e também porque amava o mecânico e a odiava por se intrometer em sua vida. Entretanto, Paulo não presenciara o desfecho. Ele viu Rosa empurrando a moça, mas ela ainda não havia caído no rio, se apoiava e poderia ser salva por alguém logo após ele e Rosa terem se afastado. Ou quem sabe, alguém a empurrou definitivamente. Como assegurar com precisão que Rosa fora a autora do crime?

Estava assim pensativo, quando o delegado Borba ligou para ele, quase intimando-o a segui-lo até a ponte. Estranho, pensara, o delegado não confiava em seus serviços e agora precisava de sua ajuda. A menos que a sua conclusão inocentando Paulo o tenha agradado a ponto de querer a sua presença. Mas o que teria acontecido para chamá-lo àquela hora ? Desceu rapidamente e pegou o carro no estacionamento correndo ao encontro do delegado. No caminho, imaginava que teriam encontrado alguma pista do crime, talvez alguma prova acusando ou inocentando Rosa. Mas como achariam alguma coisa depois de tanto tempo e o que isso mudaria? De todo modo, mesmo que achassem alguma coisa, não valeria como prova. Além disso, o delegado Borba não estaria ocupado àquela hora da noite, investigando se não houvesse acontecido alguma coisa muito grave. Ao chegar , percebeu próximo à ponte um carro da polícia com giroflex ligado e um policial, além do delegado. Olhavam para baixo, deslocando pelas margens do rio. Júlio aproximou-se e viu um foco de luz lá embaixo, na ribanceira, que chamava a atenção dos dois.

— Que aconteceu, delegado?

— Conhece aquela moça?

— Daqui não consigo ver nada, estou vendo que tem um corpo lá embaixo, mas...

— Trata-se de Ana, a menina que diz que ouviu Taís gritar no dia do crime.

— Meu Deus, pobre menina! Mas então?

— Mais um crime, detetive. Atiraram a moça da ponte também. Parece que preferem matar as mulheres por aqui.

— Foi semelhante ao de Taís? Ela foi empurrada também?

— Desta vez, acertaram com um tiro. Mas venha, vamos descer até lá. Quero mostrar-lhe uma coisa.

Júlio desceu com dificuldade, sendo ajudado às vezes pelo delegado Borba. Ao chegar bem perto, percebeu que a menina estava seminua e uma lagoa de sangue surgia por detrás do corpo. O tiro havia sido no peito, atravessando o corpo frágil da moça, provavelmente perfurando os pulmões. Júlio virou o rosto, angustiado. Poucos dias atrás havia conversado com Ana, inclusive tentara conseguir o seu depoimento, pois Rosa investira contra ela, ameaçando-a. Teria sido Rosa a culpada pelo delito?

O policial afirmou tratar-se de uma simulação de um assalto. Não havia celular, nem documentos, nada que identificasse a moça. O delegado Borba concordou e pediu que Júlio observasse minuciosamente a cena. Não havia nada que indicasse outra causa, apesar de haver associações muito fortes entre os dois crimes. Júlio pediu licença e subiu até a estrutura acima, na ponte. O delegado deu um sorriso e acrescentou, dirigindo-se ao policial: — Um frouxo. E depois quer dar uma de investigador.

Júlio deu uma volta pelos arredores. Dirigiu-se ao local na ponte de onde provavelmente Ana havia caído, ao ser alvejada. Em dado momento, encontrou alguma coisa numa ranhura da ponte, que parecia um cartão de memória. Pegou-o e levou-o consigo sem avisar a polícia. Despediu-se do delegado e partiu em seguida, em direção ao hotel. Ao chegar, Júlio inseriu o cartão num pendrive e tentou abri-lo no notebook. Entretanto, o arquivo não abria, havia uma senha que o protegia, a qual por mais que tentasse, nunca era a correta. Digitou Ana, rio, maconha, lual, tudo que pudesse lembrar de alguma forma a conduta da moça, mas nenhuma servia. Então, pensou Anderson, o garçom que o servia pela manhã e que às vezes, fazia o serviço de porteiro do hotel. Parecia um rapaz inteligente, quem sabe ele poderia ajudá-lo. Certamente, ficaria efetivo neste cargo, pensou.

— Boa noite, detetive. Parece que o senhor anda muito ocupado, ultimamente. Está sempre correndo.

— É verdade, Anderson. Inclusive vim aqui para pedir a sua ajuda.

— Pois não, detetive. Mas antes me diga, é verdade que Rosa é a assassina de Taís?

— Quem lhe disse isso, Anderson?

— Ah, parece que um policial comentou por aí, o senhor sabe, as coisas se espalham.

— É, tinha esquecido que todo mundo sabe de tudo, nesta cidade. Mas não gostaria de falar sobre isso, Anderson. Como lhe disse, preciso da sua ajuda.

Algum tempo depois e Júlio tinha a resposta que queria. Anderson sabia decifrar o programa em que o arquivo fora gravado e em alguns minutos, conseguiu abri-lo.

— Não sei o que o senhor quer saber, detetive, mas não vejo nada demais aqui. São contas, pode ver.

— Contas? Você tem razão. Olhe, cifras enormes, valores volumosos, não? Diga-me uma coisa, agora posso abrir no meu notebook? Será que não precisarei de alguma senha?

— Não, agora eu já criei uma senha própria. Coloquei "cidade". É só o senhor digitar a palavra.

Júlio no quarto, pode observar com mais atenção uma série de contas que percebia serem ligadas ao tráfico e alguns nomes, como o de Carlos, do filho do prefeito. Era de se esperar, pensou. Será que este arquivo estava em posse de Ana e por isso a mataram?

Júlio continuou a pesquisa. Quase ao fim do arquivo, um nome chamou-lhe a atenção, o que o deixou muito intrigado. Foi neste momento, que Anderson bateu a sua porta, dizendo que alguém queria falar-lhe. Ainda preocupado, abriu a porta ao amigo Jairo, que revelava-se extremamente nervoso. Antes de perguntar qualquer coisa, mandou uma mensagem para Anderson e guardou o celular em seguida, dirigindo-se a Jairo.

— Aconteceu alguma coisa grave, Jairo? Você vir aqui, a esta hora da noite.

— Eu vim aqui, porque preciso falar com você Júlio. Vim aqui, fazer-lhe um pedido, em nome de nossa amizade. E você só tem uma alternativa: atender-me.

Júlio afastou-se um pouco, em direção à janela e pediu que ele sentasse na poltrona, próxima à cama. Jairo não obedeceu. Olhava-o de um modo estranho, como se estivesse prestes a atacar ou ser atacado por um inimigo. Júlio então, perguntou, tranquilo: — Você quer que eu o atenda em quê? Me parece muito preocupado, Jairo. Volto a lhe perguntar, aconteceu alguma coisa?

Jairo levanta a voz, irritado.

— Não me venha com esta pedagogia de detetive, Júlio, pelo amor de Deus. Você veio aqui pra cidade, andou mexendo em coisa muito perigosa. Eu vim aqui lhe pedir que pare com isso. Pare com essa investigação. Já deu o que tinha que dar, os caras estão presos, o que você quer mais?

— Não estou entendendo Jairo, eu até lhe falei sobre os suspeitos, sobre as várias possibilidades de confrontamento e até de associações nos crimes. Inclusive pegaram o mecânico e agora estamos sabendo que Rosa está por detrás disso. Por que você está tão assustado?

— Eu não estou assustado. Quero que você acabe com isso!

— Por que?

Neste momento, Jairo tira pistola da cintura e a aponta a arma para Júlio que o olha surpreso e desconfiado.

— Se você não fizer o que lhe peço, eu vou matá-lo Júlio. Você não entende que eu não quero fazer isso?

— Você quer me matar por quê?

— Eu já lhe disse, você está mexendo num vespeiro e a coisa só piora.

— Então me fale, me diga o motivo. Você se refere ao crime da ponte?

— Eu me refiro ao meu negócio. Eu lhe falei que estou há três anos tentando fazer um camping, um negócio de lazer na cidade e o Ibama coloca mil impedimentos, por problemas ambientais e quando eles sinalizam para liberar, essa gentinha vem e corrompe o lugar, quem é que vai fazer turismo numa cidade que não respeita ninguém, que faz orgias à noite, no melhor ponto turístico. Você entende o que está acontecendo, Júlio?

— Não, não entendo.

— Então, eu vou lhe esclarecer. Você há pouco falou em Rosa. Pois saiba que nós nos unimos para acabar com esta canalhice e limpar a cidade.

— Como assim?

— Nós começamos a perseguir aquela gente, já que a polícia não fazia nada. Então, quando morreu a mulher do seu Domingues, que tinha diabete, e segundo diziam na época, por erro médico, tivemos uma ideia. Injetar insulina nos jovens que vinham para as festas organizadas pelo filho do prefeito. Deu certo, todos pensavam que eram turistas, mas na verdade, era gente que vinha só pra se divertir e fazer sacanagem nas nossas fuças. Isso era uma afronta. Como eles não tinham a doença, acabavam morrendo e ninguém descobria a causa. Tanto, que arquivaram todos os inquéritos.

— Mas como vocês faziam isso?

— Nós os atraíamos, Rosa alugava o seu apartamento e eu montava umas barracas não muito longe do lugar onde faziam as festas. Então nos preparávamos para o golpe. Quando voltavam na penúria, drogados e bêbados, tínhamos a ocasião perfeita que precisávamos para injetarmos a insulina.

— E o Paulo estava envolvido nisso?

— Aquele pateta? Claro que não. Ele não sabia de nada. Dizíamos que estávamos tentando ajudar aquela gente, um bando de drogados.

— Tem um rapaz, um tal de Raul que diz que foi injetado também. Desconfia de um pessoal do pet shop.

— Aquele é um maconheiro da pior espécie. Nem sabe o que diz. Na verdade, foi Rosa, por vingança e ele confundiu tudo. Acabou inventando outras histórias, é tudo delírio da cabeça dele.

— Mas e quanto a Taís? Foi a Rosa mesmo quem a matou?

— Claro, com a minha cobertura. Aquele idiota do Paulo é que estava no lugar errado e se meteu. A coisa ficou mais difícil e eu tive que acabar o serviço.

— E tudo isso pra quê, meu Deus?

— Não fui claro? Para limpar a cidade desta corja, para montar o meu negócio para gente de bem, turistas que viessem pra cá, para curtir a natureza, as belezas da cidade. Não dá pra entender isso, Júlio?

— Não, na minha lógica, não. E quanto à Ana? Vocês a mataram também?

— Aquela idiota estava se metendo, abrindo o bico. Ela roubou um cartão de memória que tinha os dados armazenados de todos os envolvidos no tráfico, gente de bem, inclusive Carlos, o filho do prefeito. Sem trocadilho, Júlio, mas foi queima de arquivo.

— Você fez tudo sozinho, Jairo?

— Tenho dois caras que trabalham comigo. Mas não achamos nada. Aquela vadia sumiu com o arquivo.

— Você fala disto aqui, no meu notebook?

— Como você achou? Por que está com você Júlio?

— Como você vê, Jairo, eu sou um investigador tão bom que você está aqui, me ameaçando. Nunca imaginei, porém que seu nome estaria entre eles. Quando o vi, fiquei muito surpreso. Essas contas são muito volumosas, não acha?

— Então Júlio, você também será queima de arquivo. Sinto muito meu amigo, mas você vai desta para melhor.

— Se eu fosse você, não faria isso, Jairo. Na portaria, há um computador com todos os dados copiados e Anderson está sabendo de tudo. Neste momento, ele já deve ter chamado o delegado Borba.

— Você está mentindo! Eu não sou idiota, Júlio!

Neste momento, a porta se abre e o delegado Borba surge, empunhando uma arma na direção de Jairo. Anderson espia da porta, satisfeito e conclui: — Saquei a mensagem, detetive.

Fonte de ilustração: www.pixbay.com

terça-feira, agosto 09, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 19º CAPÍTULO

Capítulo 19

Rosa depõe na polícia e confessa que tentara matar Ana porque achava que ela sabia que Paulo usara o carro do médico na noite do crime.

Para o delegado Borba, não há mais dúvidas de que o rapaz é o verdadeiro assassino de Taís, já que foi comprovado de que ele estava no local do crime e Rosa praticamente o acusou, na tentativa de defendê-lo.

Parece enfim, que todas as peças se encaixam e que o verdadeiro culpado é mesmo o mecânico. Afinal, ele era namorado de Taís, tinha muitos ciúmes e segundo a própria Rosa, certa vez, ele a tinha ameaçado de morte, após uma briga calorosa. Com o passar do tempo, no entanto, as coisas haviam se acalmado e cada um do seu lado, foi tocando a própria vida.

O problema, segundo Rosa, é que ele a havia encontrado algumas vezes e Taís, leviana que era, estava novamente tendo um caso com o antigo namorado.

Ela era muito ligada ao o grupo de Ana, onde conseguia as drogas que utilizava, embora a menina mais jovem fosse a mais arisca e não se envolvesse tanto com os demais. Não gostava da presença de Taís e seus encontros se davam apenas com os amigos mais chegados, que constituía um grupo de quatro pessoas.

Eram Miguel, o mais velho que devia ter uns 21 anos, Henrique, o ruivo, quase adolescente, Carlos, o filho do prefeito, que segundo os comentários era o que organizava os luais à beira do rio, com muita droga e verdadeiras orgias sexuais, festas estas em que Taís muitas vezes, participava, além de uma garota de programa que vinha de vez em quando da Capital para incrementar as festas. Todos na cidade sabiam, mas como eram de famílias importantes, faziam vistas grossas. Apenas Ana era uma desgarrada no mundo. Vivia praticamente sozinha, morando com um tio bêbado que nem sabia de sua existência.

No dia seguinte, quando Paulo chegou na rodoviária, a polícia já o esperava. Preso, ele só fazia negar o crime e chorar como uma criança.

Enfim, tudo estava resolvido. O crime da jovem Taís solucionado. Agora Júlio finalmente decidiria se permaneceria na cidade por mais algum tempo. Talvez retomasse as terras onde seus pais moravam, nos quais não havia mais nenhuma residência e o mato selvagem já tomava conta de tudo. Quem sabe construiria uma casa e moraria em definitivo na cidade. Escreveria a sua biografia ou não. Quem sabe criaria outras histórias de ficção ou descreveria casos que já passaram por suas mãos. Eram alternativas que poderia utilizar. Estava cheio de planos e isso era bom. Sentia-se feliz em estar de volta à ativa, o que liberava uma certa euforia em sua mente, dando-lhe vontade de fazer coisas novas, de tomar outros rumos.

Porém, as coisas estavam tão claras e se encaixavam tão adequadamente nos rumos do caso, que lhe despertavam algumas dúvidas.

Primeiramente, o pai sofrido, odiando o médico que enganara a sua filha, uma moça humilde de cidade pequena que fora iludida por um jovem esperto da cidade, que lhe oferecera mundos e fundos, apenas com a finalidade de seduzi-la. Isso era tão clichê que parecia coisa de novela de rádio dos anos 60.

Aos poucos, porém, foi se descobrindo que a menina tão recatada e simples, não passava de uma jovem que participava de festinhas regadas a drogas e muito sexo. Pelo menos, foi o que foi parar no depoimento do delegado e até agora ninguém decidiu desmentir, nem mesmo o pai, que se mantém em silêncio.

Em seguida, o contato foi com o médico, o suposto assassino, que havia namorado a moça e que decidira matá-la para não atrapalhar seus negócios com a família da noiva na capital.

Agora já era uma história meio dramalhão de tv, porém com uma história mais plausível, apesar de simplória demais. O povo daquela cidade tinha muita imaginação.

Com o interrogatório, percebeu-se que era um jovem assustado com a situação e que a moça que se dizia assediada, era ao contrário, quem o perseguia. Segundo ele, não lhe faria mal algum, mas a odiava, a ponto de não querer qualquer aproximação com ela. Tudo era possível, a partir dessa constatação.

A seguir, surgiu Ana, a menina que observava tudo, que ouvira o grito e presenciara alguma coisa surgir nas águas correntes do rio. Chamara ajuda dos amigos e descobrira que havia sido uma tragédia. Também vira o carro do médico pelas redondezas e por isso, o acusara e a história fora parar nas ruas até chegar às autoridades competentes. Azar para o médico Ricardo Silveira, que não tinha um álibi para não ser incriminado.

Mais tarde, foi a vez de Rosa, a mulher que tentava proteger o rapaz que mora em seu apartamento alugado, que para os habitantes da cidade, não passa de seu amante.

Um caso estranho de se entender. Tanto o quis proteger, que acabou acusando-o, pensando que Ana soubesse que ele estava com o carro do médico, na noite do crime, ali, pelas proximidades. Sendo assim, quem estava no carro que Ana vira, quem morria de ciúmes pela antiga namorada e que seria capaz de matá-la, era o mecânico.

Tudo então parecia ter chegado a um termo, à medida de que se descobrira quem era o assassino. O tal de Paulo.Na verdade, pouco se conhecia dele e o pouco que falava era para negar que a tivesse matado. Dizia-se inocente, mas todas as provas estavam contra ele, inclusive o depoimento de Rosa.

Júlio, insatisfeito com o desfecho da situação, dirigiu-se ao delegado Borba, tentando um encontro com Paulo, na prisão. A princípio, foi-lhe negado. Não havia motivo para interrogatório. A polícia já estava ciente de tudo e tinha feito a sua investigação completa. Mas, com certa habilidade, Júlio convenceu o delegado a fazer uma única visita, nada oficial, para que pudesse conversar com o homem.

Depois de algumas recusas, ocorreu finalmente a concessão ao pedido.

Paulo era um homem de estatura baixa, atarracada, com braços que aparentavam força e energia. Segundo os comentários, costumava exercer o trabalho exaustivo na oficina com esmero e muita disposição.

Tinha uma fisionomia apagada, um olhar parvo e desligado. A boca ficava entreaberta e suas mãos estavam sempre se contorcendo, como se precisasse aquecê-las ininterruptamente.

Júlio aproximou-se e sentou-se à mesa, a sua frente. Estavam sozinhos na sala, embora houvesse uma janela de vidro para a peça ao lado, de onde era possível observá-los.

O delegado Borba parecia enfadado. Aproveitou a conversa para retirar-se e fumar um cigarro à beira da calçada, observando os transeuntes.

Nenhum dos dois policiais que restavam interessou-se pela conversa e, ocupados em seus objetivos pessoais, nem passavam por ali. Para eles, o caso estava resolvido. Era só frescura de detetive particular, com mania de protagonista de filme policial. Nem se preocupavam com os demais casos de assassinatos por aplicação em dose errada de insulina, pois estavam arquivados e não havia mais nada a fazer.

Júlio tomou um copo de água e serviu outro para Paulo. Este aceitou e abaixou imediatamente a cabeça, pensativo. Vez que outra, levantava a cabeça e olhava enviesado para a vidraça, como se perguntasse a si mesmo o que estava fazendo ali. Júlio então, começou a interrogá-lo.

– Paulo, sei que a sua situação não é das melhores, mas há coisas que ainda não foram bem elucidadas. Me refiro a coisas que não ficaram bem claras, entende?

– Não, não entendo nada. Só sei que estão me acusando por um crime que não cometi. Eu sou inocente, delegado, não tenho nada a ver com isso.

– Olhe, me chame de detetive. Eu não sou delegado e nem trabalho aqui nesta delegacia.

— Mas então, por que está me interrogando? Eu não quero ficar aqui, quero que chame os policiais, quero ir pra minha cela.

— Espere, Paulo, se acalme. Eu sou um detetive particular contratado por Lucas, o pai de Taís e não estou aqui para julgar ninguém. Só quero a verdade. Eu não o acusei de nada, por enquanto.Talvez até com este interrogatório, eu o ajude. Você não acha que foi tudo muito rápido? A solução para o problema foi a sua acusação. Não estou dizendo que você é inocente, mas precisamos averiguar mais. Fazer mais investigações.

— Eu já lhe disse que sou inocente!

— Então, que tal conversarmos sobre isso. Você tem que ser absolutamente sincero comigo. Tem que me dizer a verdade, se quiser que eu o ajude.

— Mas o senhor não é meu advogado, eu nem tenho advogado. O senhor é contratado pelo farmacêutico, só quer me ferrar!

— Não é nada disso, Paulo. Eu quero a verdade. Mas não posso obrigá-lo. Se você não quiser se abrir comigo, não posso fazer nada. Você é quem decide, mas tenha certeza de uma coisa, não há muita chance para você. As coisas se ajustaram perfeitamente com a sua prisão.

Paulo o fita intrigado. Fica em silêncio alguns segundos, depois volta a abaixar a cabeça e resmunga: — O que o senhor quer de mim?

— Ótimo, Paulo. Fazer umas perguntas muito claras. Vamos começar do início. Me diga com sinceridade, qual é a sua relação com Rosa?

— Meu Deus, o que isso tem a ver com o que aconteceu?

— Aparentemente, nada. No fundo, tem muito a ver. Nós podemos fazer o perfil de uma pessoa através da estrutura de sua personalidade e descobrir, inclusive se ela é capaz de cometer um crime ou não. Um relacionamento afetivo, o envolvimento familiar atribuem traços à personalidade de uma pessoa. Você me entende?

Ele não responde, mas concorda com um aceno de cabeça.

– Pois então, para isso, é preciso que se conheça bem a pessoa. E olhe, eu não sou psicólogo, nada disso. Mas anos de experiência e alguns estudos periféricos me possibilitaram a conhecer bem o ser humano - faz uma pausa para que ele absorva tudo o que dissera, enquanto o observa detidamente. Paulo não levanta os olhos. Para de contorcer as mãos e deixa-as sobre a mesa, fixando-as, como se pudesse rever nelas o seu trabalho, a sua atividade, agora truncada. As unhas enegrecidas revelam a atividade descuidada.

Júlio continua - por isso, eu volto a perguntar: você tinha uma relação mais intima com Rosa?

Paulo suspira e ainda sem levantar os olhos, exclama de uma maneira quase infantil: — Rosa é a minha mãezinha! Ela me ajuda, me protege, me alimenta, me dá casa pra eu morar.

– Como assim? Você trabalha, paga aluguel pra ela, não é isso?

– Sim, mas é outra coisa. Eu procurei a minha vida inteira por minha mãe, sempre me disseram que ela era daqui, desta cidade, mas nunca a encontrei. Rosa então me apoiou, me ajudou a sobreviver.

– Só isso?

– E você acha pouco? Ela foi a única pessoa que me olhou como gente, que não se afastou quando eu procurei – e prossegue, emocionado – a única pessoa que ouviu e me entendeu.

— Fora isso, profissionalmente falando, ela aluga um quarto para você.

– Sim.

– E qual é o apoio que ela lhe dá? – tenta colocá-lo em conflito.

– Eu já disse, ela cuida das minhas coisas, ela me protege, me deu abrigo quando precisei, é isso! Não basta pra você? Não basta pra todo mundo? Ninguém entende, não é? Ninguém entende quando alguém faz um bem pra gente! - fica agitado, agora mexendo as mãos, passando-as pelo cabelo e cobrindo o rosto, quase em desespero.

Júlio dá uma leve batidinha em seu braço e pede que se acalme. Sorri amistoso e percebe que pela primeira vez, Paulo o encara. Por fim, respira com sofreguidão, mas aos poucos volta ao normal. Júlio aguarda um pouco que se restabeleça para voltar à carga.

– Eu entendo mais do que você imagina, Paulo. Sei o quanto esta mulher o ajudou e o quanto você a preza. Não fique molestado pelo que eu disse, apenas ouça e tente também entender as minhas perguntas. Como lhe disse, é preciso analisar o perfil das pessoas. É preciso entender as suas atitudes com profundidade, caso contrário não chegamos a lugar nenhum.

Um pouco mais calmo, Paulo pousa as mãos sobre as pernas, que se agitam intermitentes. Júlio prossegue o interrogatório, como se fizesse uma análise terapêutica.

– Então me diga, de acordo com o que você me descreveu sobre o seu reconhecimento do valor de Rosa, sobre o carinho que tem por ela, você seria capaz de fazer qualquer coisa para defendê-la, para ajudá-la. Afinal, ela é a sua protetora, a sua amiga, a sua – faz uma pausa providencial – como voce diz, a sua mãezinha.

–Sim, eu faria tudo por ela e ela por mim. Ela tentou me defender. Ela sabe que eu não matei ninguém.Ela só disse aquilo porque ficou puta da cara com a menina, que andou espalhando que eu estava com o carro do doutor, Claro que ia sobrar pra mim, não ia? A corda rebenta sempre na parte mais fraca, não é assim que acontece, detetive?

— Nem sempre, Paulo. Ao menos que a verdade não apareça. É preciso que haja justiça. Mas me explique, se Rosa o ajuda tanto, por que você está aqui? – a cartada que esperava.

Paulo entretanto possui outra lógica e responde rápido, embora um pouco confuso: — Porque ninguém acredita em mim, precisam de um culpado.

Júlio decide ser mais incisivo e argumenta: — Nem Rosa acreditou em você. Ela desconfiou tanto, que como você usou o carro do médico, ela pensou que você teria matado a moça para por a culpa no rapaz.
— Isso é o que tentaram atribuir a ela. eu já expliquei, que ela ficou furiosa com a Ana. Ela só pensou em me ajudar, em me defender - e fica se repetindo várias vezes. Júlio o interrompe, enérgico.

— Esta bem, não fique nervoso. Como você disse, você seria capaz de fazer tudo por ela.

— Eu já disse. tudo!Tudo! Quer me enlouquecer?

— Até matar?

— Eu não matei ninguém, foi uma cilada que vocês armaram.

—Mas você mataria por Rosa, pela mulher que você ama!

— Mataria!

— Então você confessa que a ama, Paulo.

— Você esta me confundindo, eu não quero mais esta conversa!

Tenta levantar-se, mas Júlio o impede, segurando-o firmemente pelo braço. Pede que sente, insiste em dizer-lhe que quer ajudá-lo, que precisa enfrentar a situação. Afinal, se é inocente, não perde nada em responder as suas perguntas, ao contrário, poderá haver uma saída, até uma possibilidade de atenuação da pena. Aos poucos, Paulo parece entender a proposta e volta a sentar-se. Júlio prossegue.

— Está bem, não vamos mais falar em Rosa. Fique tranquilo. Se é um assunto que o deixa chateado, não quero aumentar ainda mais o seu sofrimento. Mas preciso saber algumas coisas em relação à Taís, afinal ela foi sua namorada. Quero que você me fale do grupo que ela participava, com o qual fazia as festinhas na ponte. Você conhece esse pessoal?

Ele responde imediatamente, como se o tema sugerisse pessoas que ele detestava e por isso, tinha prazer em denunciá-los.

— Sim, são gente muito baixa, todos drogados, metidos com traficantes, vagabundos. A Rosa tinha horror daquela gente.

— O que sabe deles?

— Todos são uns marginais, uns pederastas, só se salva o ruivo…

— Ruivo?

— É, o Henrique, ele está sempre com medo de tudo, ele só vai porque não consegue sair do círculo vicioso, como traficou drogas, tem medo, eles podem acabar com ele. O cara é um adolescente, tá na pior.

— E acha que neste caso, eles podem ter culpa no cartório?

— Não sei, só sei que naquele dia, eles estavam numa festa muito grande, uma verdadeira orgia, ninguém era de ninguém, rolava droga, cocaína, crack, tudo que você possa imaginar, além de muito sexo!

—Como sabe? Por acaso, você os estava espiando do carro do médico? Agora todos já sabem, por que você não me conta?

Contar o quê, detetive? Em que enrascada o senhor quer me meter?

— Pelo contrário, quero que você saia da enrascada em que se meteu. Quero que me diga, que você assistiu a festa que tanto reprova, que você viu Tais participar, que eles a obrigaram a alguma coisa, não foi isso? Por que você não conta?

— Eu não sei, não sei de nada.

— Mas você pode se livrar da prisão se a gente imputar alguma suspeita a eles, se você contar o que eles fizeram. Eles mataram Taís, eles a obrigaram a ingerir drogas pesadas, a beber muito, a fazer sexo, você viu tudo, você talvez tenha até se masturbado…

— Pare com isso! Pelo amor de Deus, pare com isso! - neste momento, Paulo parecia no auge do desespero. Entretanto, não conseguia livrar-se das imagens que Júlio realçava, como se acontecessem ali, naquele momento, na frente de sua retina. Suas mãos tremem, seu corpo todo treme, sua voz falha.

— Então é verdade, você se masturbou dentro do carro.

— Eu já tinha saído. Eu não faria uma coisa dessas, não sou um depravado. Vivo com minha mãezinha, a mulher que me ajuda, que me consola, que me leva a igreja, uma mulher que professa a fé, que não suporta o pecado!

— Mas você se masturbou, Paulo. Encontramos esperma no carro do médico e fizemos o exame de DNA e consta como seu! Você não pode negar, Paulo. Isso depôs contra você. Não sei se você sabia, mas isso comprovou que você estava lá, não foi só a palavra de Rosa, foi a prova cabal de sua presença! Depois disso, foi um passo para a acusação, ainda mais com o depoimento de Rosa. Para a polícia, você se masturbou vendo a moça e como ela o repeliu, você a matou. Mas nós sabemos que você só presenciou a cena, não é mesmo?

— Por favor, eu não sou um louco, eu não queria assistir aquela atrocidade.

— Então eles mataram Tais? Eles a empurraram? Quem foi? MIguel, Henrique, Carlos, o filho do prefeito, a garota de programa que vinha ilustrar o lual ou a própria Ana? Quem a matou? Ou foram todos juntos?

— Não, não, não foram eles! Não foi ninguém! Não foi nenhum deles. Estavam drogados demais para fazerem qualquer coisa, não se sustentavam nem nas pernas. Não foram eles, eu juro!

— Então a acusação recai sobre você. Você é o assassino! Você matou uma moça indefesa, que foi sua namorada, uma moça frágil que foi empurrada covardemente para o fundo do rio. Que mal ela fez a você, afinal? Deixou-o por outro? Que importava isso? Há centenas de moças que gostariam de namorar você, de se apaixonarem por você. Por que você fez este ato covarde, Paulo?

— Ela era leviana, fraca, andava com todo mundo, ela me jogou na lama.

— Por isso a matou!Você matou uma pessoa inocente, uma jovem cheia de vida, que deixou um pai em sofrimento absoluto. Que deixou uma cidade toda odiando você! Você é um assassino, Paulo!

— Não fui eu! Não fui eu! Foi Rosa! Rosa!

sexta-feira, agosto 05, 2016

OS DEZ TEXTOS MAIS LIDOS NO MÊS DE JULHO/2016

1º - O cofre e as moedas

2º - A identidade subjetiva, a alteridade e as diferenças

3º - Um crime na cidade que sabia demais

4º - Morte lenta

5º - Moedas nas frestas

6º - Momentos e encontros

7º - Iolanda

8º- Por que temer a travessia?

9º - Metáforas cruéis: desqualificação das mulheres e negros

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