domingo, junho 19, 2016

A VISITA

Chegar a casa, percorrendo as ruas estreitas, de paralelepípedos irregulares, batida incerta no peito, olhos febris. Difícil saber o significado da visita, entender a expectativa da hora, o aperto de mão.

Minha mão na do meu pai, caminhando orgulhoso, torcendo os pés nas pedras incólumes. Tropeçando, olhos pairando nos céus, gestos hesitantes, braços indagando inquietos. Segui-o em tudo, até na incerteza.

Tinha de fazê-lo para chegar lá. Saber como o tal tio nos receberia e ter ao mesmo tempo a convicção do acolhimento sereno.

Muito se falava nele. Meu pai tinha orgulho da sabedoria, da linguagem precisa, do seu amor pelas letras e filosofia.

Eu divagava, mão apertada, coração aos saltos.

Via as sombras das pernas longas de meu pai no sol da calçada. Os pés grandes, apressados. Se soubesse o quão distante seria o caminho, talvez não me levasse.

Mas valia à pena o sacrifício para transmitir conceitos saudáveis que talvez eu apreendesse.

Agora sei que ele estava certo, porque muito daquela experiência alicercei na minha construção pessoal.

Só não entendia uma coisa: Por que consideravam o tal tio, um homem triste e solitário? Por que estados da alma banais o atingiam de maneira tão intensa, se era tão profundo o seu conhecimento humano?

Falavam da mulher que o abandonara há algum tempo. Era o que se manifestava para o senso comum. Não para mim. Na verdade, não que eu tivesse a perspicácia necessária para inferir tais coisas, mas pelo simples motivo de não me interessar pelo mundo peculiar dos adultos.

Talvez quando o conhecesse, até me decepcionasse e ele nem correspondesse aquilo tudo que se imaginava ou que meu pai queria transmitir.

Meu pai sim era um desbravador, gostava de despertar em mim sentimentos de justiça, de dever, de honra.

Se não tivesse aquele jeito desajeitado de me guiar, eu até justificaria todos os seus propósitos.

Não naquele dia, naquele momento. Minhas mãos suavam, o braço esticado doía. Acompanhá-lo não era fácil.

Quando dobrava a esquina, fugia um pouco do sol, escondia-se do calor e furava o céu devagarinho com o indicador, mostrando a chuva vindoura.

Se chovesse, talvez ele parasse e aliviasse a carga. Ou talvez desandasse a correr. Era imprevisível. Obstinado em suas idéias. Concluía o que dizia sempre com o olhar, desenhando na retina o desfecho da trama.

Eu sempre o entendia. Mesmo que inventasse histórias, eu sabia, que no fundo havia um quê de verdade, um objetivo que sinalizava um bem maior.

Quando chegássemos, logo que passassem por nós as casas antigas, solares abandonados de famílias falidas e fábricas empoeiradas, talvez os assuntos ficassem mais claros. De uma forma letrada, apoiada pelos livros, dicionários, enciclopédias, manuais, teses, jornais e revistas.

Tudo que se imaginasse. Tudo que fosse sonho, adentrado por nós, daqui a pouco, quem sabe tomando um suco de limão, antes da conversa, para refrescar, logo após o aperto de mão.

Se fosse por meu pai, já estaríamos lá, pelo menos, pelo seu desejo, não pela sua competência. Rua mal informada, bairro inexistente, referências estranhas.

Ele sempre se enganava em um detalhe qualquer, o boteco que existira um dia, a placa de néon do cinema da esquina e que apagada, não se tinha a certeza de que era a mesma. Faziam parte da epopéia dele estes constrangimentos, estes empecilhos.

De certa forma, isto produzia um certo colorido de fuga da rotina.

Por certo ouviria bem atento as histórias do tio, seus conhecimentos do mundo e a apreensão do mundo. Talvez semelhante ao dele, porém concebido daquela maneira prazerosa, precisa e convincente.

Chegaríamos lá, eu quase sem os dedos das mãos, ele, sem os cabelos, de tanto que os alisava para trás, ajeitando o que o vento estragava.

Um vento de corrupio nas folhas secas, que avançava rápido nas folhas que subiam em círculos, mas que logo arrefecia, deixando-as atracadas nos muros e nas paredes das casas. E nós entre as folhas caídas, cansados da viagem.

Pedi para sentar no banco mais próximo, no portal de uma casa, na beira da calçada, no muro da igreja.

Ele me olhou, sorriu e largou a minha mão. Abaixou-se, passou a mãos pesada pelos meus cabelos, quase desnucando o que restava de equilíbrio, ajeitando a gola da camisa e puxando o casaco.

Levantou-se em seguida. Segurou-me a mão e afirmou eufórico: —Chegamos!

Olhei para o alto e vi a casa cor de cimento, paredes irregulares, frisos que desciam, num estilo excêntrico.

A porta destoava um pouco do conjunto: tão forte e majestosa quanto a dos castelos. Aldrava pesada, que eu avistava por baixo.

O vento de outono retomava a ação.
Na porta, mão firme, batida constante e contínua.

Um homem magro e baixo, cabelos brancos, olhos claros. Sorriso tímido, jeito absorto, de quem não conhece a visita.

Foi só por um momento.

Depois, temas passados a limpo: a política, a família, a vida. Todos os pontos auscultados no coração aflito.

Olhares em volta, encontrando-se, às vezes.

Perguntas sobre idade, estudo, leituras. Atenção redobrada.

Livros empilhados, estantes abarrotadas, máquina de escrever, caneta tinteiro. Uma mão pequena, estendida, resvalando descuidada no tampo da mesa, dedos tamborilando, sugando o que podia de letras, frases, pequenos textos.

Batida tímida nas teclas.

Olhar enviesado, temeroso.

Um sorriso. Um suco de limão. Mesuras, satisfação sincera de reencontro. Conversa à solta.

O sol ampliava a atmosfera. Abria-se uma nesga de luz, invadindo a sala, entre as persianas, iluminando quadros, rios, cachoeiras, janelas abertas, roupas no varal.

Sentava-se a nossa frente. Poltrona macia, afundado, pequeno, as pernas juntas, os sentidos despertos. Ouvidos alertas. Boca quieta. Eu só ouvia.

Meu pai falava de vez em quando, dava palpites, iniciava assuntos.

Pouco lembravam o passado, só de passagem, um evento aqui, outro acolá, parceiros de brincadeiras, mesma idade.

Tanto tempo separados. Voltar ali, sabendo-se sozinho. Solitário e triste e nada comentar.

Era digno não falar. Apenas recobrar as horas passadas, lembrar o tempo sem solidão. Feliz.

O refresco acabara, olhei para o copo e mordi devagarinho a borda fininha de cristal. Frágil. Como ele, o tio, mas grandioso.

Só compreendera muito tempo depois.

E na hora, não entendera a despedida triste, aperto de mão demorado, pedido que se cuidasse, tomasse por cabresto o corpo, a mente, o coração, a vida.

Ficasse forte, cuidasse de si.

Meu pai falava tudo de súbito, temendo ofendê-lo. Não ousava falar na perda.

Caminhar mais lento, calçada à fora, atravessando ruas, paralelepípedos irregulares, eu ao seu lado, seguro, seguindo a nossa história.

Silêncio.

Sabia que nossa relação seria mais forte.

Eu tinha me tornado um pouco adulto, mesmo não me interessando muito pelos acontecimentos tristes. Sabia, entretanto, que compartilhávamos um segredo: a coragem do enfrentamento da vida e o resgate da amizade.

Partilhar da verdade. Voltar pelas ruas, sentindo o vento já frio nas pernas era realizar um novo caminho, com muito mais certeza de tudo ou pelo menos, a certeza de que não se sabe quase nada. Só uma alegria a mais, no coração.

Fonte da ilustração: Matthews, Rebecca. StillWorksImagery. https://pixabay.com/pt/recepção-livro-educação-escola-1375312/

quinta-feira, junho 16, 2016

A ARANHA

A crônica "A aranha" está na antologia "Outras águas" e foi vencedora na categoria, juntamente com a crônica "A palestra" publicada neste blog.


Fonte da ilustração: Westermann, Johannes do site https://pixabay.com/pt/users/Westi2605-2708584/

Quando acordei, pensei que o mundo houvesse acabado, tão grande a agonia que sentia. Coração aos saltos, lábios trêmulos, língua paralisada. Estaria eu no fim? De repente, um assobio que se finava ao longe indicava drasticamente que estava vivo. Não tão desperto, como imaginava.

Sentei-me devagar, com dificuldade, procurando os óculos sobre o baú, entre frascos de comprimidos, colírios e livros. Passei a mão, ainda perturbado, empurrando tudo que se opunha ao meu gesto. Até que o estalido no chão obrigou-me a dobrar a coluna para encontrar o objeto de minha dependência.

Deitei-me de bruços na cama, enfiei um pé entre os cobertores ainda quentes e espiei pelo lado oposto onde estava deitado.

Mergulhei a mão, enveredei por cantos obscuros do parquê e embaracei os dedos em teias de aranhas.

Tirei a mão irritado, sem ter atingido o objetivo, mas neste gesto, bati em alguma coisa metálica.

Eram eles que se instalaram a poucos centímetros de meu caminho de busca.

Organizei novamente a expedição e os puxei resoluto.

Quando os engatei no nariz, olhei o mundo num relance, tendo agora certeza absoluta de que ainda estava vivo.

Um pesadelo resgatava um mundo oculto, funesto, cheio de pequenas obsessões não ditas, doses de concupiscência não manifestada, traços de egoísmo não declarados e desejos jamais confessados.

Por isso, esta aflição, este jeito de enfrentar a realidade e a fantasia, colocando-as em mundos opostos, como fazemos no dia a dia, mas que por um pequeno espaço de tempo, ao acordarmos, pendemos mais para o lado do sonho, que talvez seja muito mais real do que imaginamos.

E ao nos darmos conta, caímos no mundo que pensamos como único, verdadeiro e concreto.

Em vista disso, essa dor nas costas, este resfolegar de mãos suadas, torcendo uma na outra, como querendo limpar a sujeira do subconsciente.

Agora, tento levantar-me, olhando de frente, ou de soslaio, se for sincero, o meu mundo insípido, neste quarto sujo de teias de aranha.

E vejo-as passear pelo piso, fazendo tiro-ao-alvo de suas redes, prendendo-as aos pés da cama, esperando insetos incautos que se atrevam a bisbilhotar suas vidas ou mesmo integrar o mesmo espaço que tomam como direito. O meu espaço.

Se pudesse, as eliminaria de minha vida, tal como as teias de aranha que ficam em minha mente nebulosa, assustada pelos direitos que me dou a ser tão lascivo, enquanto durmo, tão ousado em meus devaneios, tão despojado de qualquer sentimento de culpa.

Por que agora me sinto tão culpado, examinando seus passos, seus caminhos subterrâneos, suas gosmas viscosas que grudam a qualquer estrutura, menos a suas patas.

Sinto-me assim, grudado ao meu mundo real, tão longe daquele idealizado, no qual o destino me atinge com suas tramas, como aranhas gigantes, largando sobre mim as teias que me deixam alienado, preso ao chão rasteiro de minhas dúvidas e temores, enquanto suas patas saltam livres e prosseguem a sua jornada.

Se pudesse ao menos, me desgrudar de suas teias, e tramas tão fechadas que me prendem como mosca tonta na busca frenética do alimento.

Se pudesse alçar vôos mais altos, sem preocupar-me com a queda ou a apreensão dos cuidados, sem a censura dos descaminhos.

Ah, se pudesse provar deste alimento que a aranha me induz para caçar-me, me deixa livre para decidir, sem que possa saborear a fruta que escolhi e se o faço, me lança à rede implacável, me prende na gosma e me tolhe, de joelhos a bendizer a morte que vaticina.

Tenho medo da aranha, mas muito mais de minhas escolhas.

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 6º CAPÍTULO

Capítulo 6


Seu Domingues caminhava devagar, passos miúdos, quase estudados. Olhar absorto, absorvido no nada, quase infinito. Quase falando, quase sorrindo, quase vivendo. Sobreviver? Era esta a ideia? Pois estava ali para ultrapassar os parcos limites de sua existência. Ouvia vozes, sorrisos de crianças, farfalhar de folhas. Outono? Talvez. Ou qualquer estação que trouxesse um pouco de vida, aliada ao sol forte que lhe ardia a testa. Meio dia. Sol a pino. Quem sabe verão? Não. Impossível. Aquele friozinho que já lhe arrepiava os pelos dos braços. Outono chegava. Prenúncio de inverno. Forte, de geada. Crepusculando o mundo soturno do frio. Decadência. Sentou no banco da praça como fazia há quinze anos. Veria por acaso as mesmas pessoas, os mesmos velhos solitários como ele, ali, a jogar dama, espiar as pernas das moças inatingíveis, bisbilhotar a vida alheia. Vida intensa que segue. Pipocar um sorriso aqui, uma lágrima ali, uma vontade de nada, de não saber o quê.

Hoje não havia ninguém conhecido. Nem mesmo para dar a notícia fatal de algum amigo que já partira, como muitos. Agora estava realmente só.

Ele ficou assim, não sabe quanto tempo. Uma hora, duas, três. Uma eternidade. Até que o inusitado aconteceu.

Uma bicicleta do outro lado da rua. Uma moça bonita, da loja de conveniências. Marília.

Ela aproximou-se, naquele jeito fagueiro, atitude de quem tem a vida pela frente. Chegou célere. Sentou-se num pulo, ao seu lado. Sorriu. Uma lufada de vida, de ar, de dignidade. Encheu os pulmões, o coração. Sorriu também.

— O senhor não acha melhor voltar para a loja?

— Por que Marília? Está tão bom aqui. Veja este sol. Pelo menos um alento, para um velho como eu.

— Lá o senhor pode ler o seu jornal, tomar o seu café bem quente. Aqui está muito frio.

— Você acha Marília? Aqui, pelo menos, eu posso ficar um pouco sozinho.

— Então quer dizer que não gosta de nossa companhia?

— Não, Marília, é que chega um momento de nossa vida, que às vezes preferimos ficar sozinhos. Nada acontece, entende?

—Pois vou lhe contar uma novidade.

Ele a olhou intrigado, como se nada significasse alguma novidade para ele. Entretanto, ouviu-a com paciência.

— O senhor sabia que chegou um detetive na cidade?

— Um detetive? O que vai descobrir neste fim de mundo?

— Talvez alguém o tenha contratado. Ocorreram uns crimes por aqui, não foi?

— Eu não acredito nisso, Marília. E depois, tudo já foi solucionado e o que não foi, não descobrirão nunca.

— Por que o senhor pensa isso?

Calou-se por um momento. Refletiu e acrescentou meio displicente com o assunto.

— Não sei, deve ser porque já vivi demais e sei que nada acontece por acaso.

— Não entendi nada, Seu Domingues. Mas não importa, vou indo, porque tenho que pegar o meu filho na escolinha pra voltar à tarde pra loja. Um bom dia pra o senhor!

— Bom dia Marília.

Ele continuou sentado, com os olhos mais fixos do nunca no mais obscuro de sua mente. Parecia que as coisas ficavam de certo modo atordoadas e o incomodavam.

Quem seria aquele detetive? Quem o teria chamado? Por que Marília sempre lhe trazia uma novidade que não lhe dizia respeito. Deixou-se ficar por um tempo e sentiu um olhar pesado em suas costas. Voltou-se e percebeu que Rosa continuava parada na porta do hotel. Pensou, não tem o que fazer mesmo, um hotel vagabundo, uma cidade que não acontece nada e uma gente desocupada!

quarta-feira, junho 15, 2016

Breve análise das crônicas “A aranha”e “A palestra”do livro “Outras águas”

Estas duas crônicas foram vencedoras em 1º e 2º lugar do XXIII Concurso Internacional Literário das Edições Ag.

A crônica “A aranha” revela o homem moderno, num mundo em que tudo é permitido, no qual todas as escolhas são possíveis e, ao mesmo tempo, fica dividido, tornando-se desta forma, confuso em seus relacionamentos, na sua vida cotidiana e profissional.

Apesar de todas as possibilidades que o mundo oferece, o homem se vê preso a padrões que remetem ao senso comum, induzindo a todos experenciarem o modo de vida da mesma forma, agindo segundo regras pré-estabelecidas, sejam morais ou éticas.

Entretanto, talvez pela complexidade humana, o homem despe-se deste ser correto e adequado à sociedade.

Tal como Jung declarava, o homem usa a persona para mostrar-se ao mundo, mas deixa a sombra oculta nas mais distintas ocasiões, sem que se revele a sua verdade.

Usa subterfúgios e máscaras no seu dia a dia, porque o que aparenta na família, no trabalho ou nos seus relacionamentos pessoais é o que considera adequado à sociedade.

Por isso, a dificuldade do homem em mostrar a sua verdade mais íntima.

Há portanto, o temor de fazer as opções, por mais simples que sejam, pois desafiam a maioria ou questionam o pensamento geral, padronizado e aceito.

Como a mosca, ele fica preso à aranha, o grande emaranhado de normas, leis, preconceitos e mentiras que regem as condições de relacionamentos e experiências modernas. Daí o seu sofrimento e confusão.

Agora fugindo um pouco da análise da crônica, mas utilizando o viés proporcionado pelo tema, observamos que o ser humano precisa desapegar-se de determinados sentimentos que o deixam agastado e triste.

Por exemplo, a necessidade extrema de competir, em qualquer área, em qualquer seguimento, para que na vitória sinta-se empoderado, a partir de um novo avanço em suas percepções.

Consideramos, inclusive, que em determinado limite, esta competição é saudável, entretanto o fato de viver comparando-se com os demais acarreta sentimentos de frustação ou auto-estima que infla o ego e descarta sentimentos de viver em comunidade.

Um outro fator desencadeado por esta competição, que atualmente atinge o homem, é o descomprometimento com a sua realidade, com a comunidade em que vive e o seu mundo particular.

O homem vivencia os acontecimentos que atingem a Antuérpia e não olha para vizinho ao lado.

Por outro lado, o julgamento de qualquer situação tornou-se supérflua a ponto de embutir-se uma dose de punição antes do crime justificado, usando-se para isso a intolerância e a arrogância, esquecendo-se de observer os dois lados da situação.

Provavelmente isto ocorra, porque não enxergamos nossas próprias falhas e é muito mais fácil apontar no outro o que ocultamos em nós mesmos.

Cristo já provocava seus seguidores com a questão que bem denota o falamos: E por que vês tu a aresta no olho de teu irmão, e não vês a trave no teu olho?

Quando o homem souber se desapegar destes sentimentos e fazer uma autocrítica de todos as situações onde põe o seu jugo, certamente encontrará mais tempo para regozijar-se com a natureza, com a vida, com tudo que o cerca.

Enfim, terá a plenitude de entender-se a si próprio, percebendo que é persona, mas também sombra e que são aspectos que não existem separados.

Somente aceitando a personalidade como um todo, o homem terá a saúde psíquica plena e saberá utilizar com inteligência os aspectos que privilegiem determinado enfrentamento de um problema.

A segunda crônica “A palestra” talvez seja uma complementação bem humorada da primeira, A aranha.

Ela descreve este homem dos dias atuais, ansioso e confuso, que tenta vencer o tempo divergindo das prioridades e perdendo-se nos espaços vazios dos horários.

As dificuldades se estabelcem em virtude do trânsito, da correria das compras, do conciliar compromissos, inseridas num complexo de informações oriundas de qualquer suporte com ou sem necessidades.

A partir desta convergência de fatos contraditórios , o homem se insere nesta atmosfera de caos através de suas dificuldades pessoais, profissionais ou familiares.

Enfim, o homem que também precisa fazer suas escolhas e às vezes, se equivoca, perdido nesta seara de informações descontroladas e tempo exíguo.

Isso ocorreu na na palestra em que o orador não passava de um político prolixo e o ouvinte estava no lugar errado, com outros interesses que não aquele tema.

terça-feira, junho 14, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 5º CAPÍTULO

Capítulo 5


Rosa investigava distraída o celular, quando Ricardo deu uma pequena batidinha no balcão. Ela assustou-se e pediu desculpas pela displicência.

— Não se preocupe dona Rosa. É que estou com um pouco de pressa, esqueci uns documentos no quarto e preciso sair rapidamente.

— Ah, sim. Já lhe dou a chave. Doutor, gostaria de participar do nosso coral da igreja? Olhe, não precisa ser cantor, basta ter boa vontade.

— Dona Rosa, além de eu não ter o mínimo de talento, tenho muito pouco tempo. A senhora sabe, o hospital…

— É verdade, é que a gente sempre está precisando de novas vozes para o coral. Mas quando puder, apareça lá, veja os nossos ensaios. E assim que houver uma apresentação para o público, pode ter certeza que o convidarei. Sou também a maestrina, sabe?

— Ah, sim, muito obrigado.

Quando está se afastando, Rosa ainda pergunta:

— Doutor, é rapidinho. Tem alguma notícia de Raul?

— Raul Soares? A senhora o conhece?

— Sim, este mesmo. Ele é meu colega no coral, disse que iria se apresentar na reunião, mas soube que esteve doente. Ele é meio maluco, mas nunca soube que tinha diabete.

— Está bem, deve dar alta hoje mesmo.

Ricardo subiu ao quarto pensando nas palavras de Rosa. Todos pareciam se conhecer nesta cidade, inclusive a mulher da portaria do hotel era também colega de Raul no coral. No quarto pegou as suas coisas, olhou se estava tudo em ordem e desceu com a intenção de afastar-se logo dali. Entretanto, Rosa ainda tinha outras perguntas.

— Não gostaria de incomodá-lo, mas sabe, um dia desses, Raul esteve na minha casa e bem, andou fumando maconha, sem eu saber. Resumindo, drogou o meu cachorro. Queria saber se é possível isso ou aconteceu alguma outra coisa com o meu animalzinho.

— Ele ficou bem?

— Sim, no outro dia estava normal, alegre como sempre.

— Então pode ser – Dizendo isso, despediu-se e afastou-se, concluindo a conversa. Rosa ficou olhando-o, pensativa. Deixou o celular numa prateleira sob o tampo do balcão e dirigiu-se até a porta envidraçada, observando a rua. Não havia nada interessante, pensou. No entanto, um homem que se aproximava do hotel, chamou a sua atenção. Percebeu tratar-se de um provável hóspede, por isso, voltou ao balcão, sentou-se e esperou que ele abrisse a porta.

Apresentou um amplo sorriso, quando o homem alto e de terno escuro entrou. Esperou que ele se apresentasse e perguntou quantos dias ficaria hospedado.

— Pretendo ficar alguns dias, ainda não sei ao certo. Talvez uns dez dias, mais ou menos.

Ela o olhou intrigada, mas não comentou nada. Afinal, quem se dignaria a ficar dez dias naquela cidade no fim do mundo? O homem esclareceu:

— Vai depender de uns negócios que pretendo fazer. Mas eu lhe direi mais tarde com precisão.

— Qual é o seu nome, por favor?

— Júlio Ramirez. Sou advogado, mas atuo como detetive. Rosa observou pelo documento, que o homem era da Capital. Preencheu rapidamente os dados no computador, imprimiu uma ficha e pediu que assinasse.

— Vou chamar o rapaz para ajudá-lo a carregar a sua mala.

— Não se preocupe. É só uma mala pequena e uma mochila.

Rosa surpreendeu-se, como ele pretendia ficar tanto tempo, trazendo aquela mala minúscula, mas isso não lhe dizia respeito. Entregou a chave com o número 703. Por fim, informou era bem antigo, com uma grade que devia fechar para que funcionasse. Júlio sorriu e acrescentou, satisfeito:

— Estive há pouco numa cidade que tudo era meio ultrapassado. Não se preocupe. Eu também nunca pensei que voltaria à antiga profissão e estou de volta.

— O senhor é advogado?

— Aposentado. E detetive também aposentado. – Concluiu com um sorriso. – Mas agora, parece que voltei à ativa.

Rosa gostaria de perguntar em qual das duas profissões, mas preferiu calar-se. Não era de bom tom intrometer-se na vida dos hóspedes.

Já na porta do elevador, o homem se voltou para a portaria e perguntou:

— Por favor, a senhora, como é seu nome mesmo?

— Rosa.

— Muito bem, Dona Rosa, eu ia perguntar... – Ela o interrompeu, rápida. – Rosa, por favor, me chame de Rosa apenas. Este dona me deixa muito velha – acrescentou, sorrindo.

— Pois não, Rosa… Você por acaso conhece uma senhora chamada Sara Soares?

— Sara Soares?

Rosa tentou lembrar-se de alguém com este nome. Apesar de ser bem conhecida na cidade, ela mesma não costumava recordar o nome das pessoas. Talvez até a conhecesse.

— Não importa. Terei muito tempo para encontrá-la. Rosa então lembrou que Raul possuía este sobrenome. Talvez se tratasse de algum parente, por isso, alertou:

— Espere, eu conheço um rapaz do nosso coral que se chama Raul Soares. Pode ser que seja algum parente. Júlio interessou-se fechando a porta do elevador e dirigindo-se até o balcão onde Rosa estava.

— Ele é casado? Tem filhos?

— Não, imagina. Aquele maluco é um solitário. Teve uma namorada, uma tal de Susi, mas o deixou faz tempo. Certamente não aguentou aquele traste.

— A senhora está bem irritada com ele, não?

— Ah, acho que estou incomodando-o. Não quero atrapalhá-lo, o senhor está chegando e nem o deixei subir até o quarto.

—Rosa, não se preocupe com isso. Eu sou um homem que adora conversar. Depois que me aposentei e fiquei viúvo, sabe, as coisas mudaram muito. Fiquei talvez tão solitário quanto esse seu amigo aí. Por que a senhora acha que a moça não o suportava mais?

— Dona, senhora. O senhor continua com formalidades.

— Sou um homem às antigas, mas já vou me corrigir. Por que você chamou o rapaz de traste?

— Na verdade, eu até gostava muito dele, mas de uns tempos pra cá, ficou fazendo coisas estranhas, sabe? Um dia desses, entrou na minha casa e estava com a minha chave, até hoje não sei como conseguiu. O que sei é que troquei todas as fechaduras, por precaução, claro.

— E por que ele fez isso?

— Queria falar comigo, estava muito nervoso. Mas deixa pra lá, não quero incomodá-lo, como já disse, sobre as histórias de Raul. Mas o que acha sobre o sobrenome? Ele mora com a mãe. Se quiser, posso me informar qual o nome dela. Se for Sara, fechou.

— Muito obrigado, Rosa. Não sei como agradecer-lhe.

— Então, por favor suba e veja se gosta do quarto. Ele dá para a rua da frente do hotel, é bom que você tem a vista da cidade.

— Sim, tenho certeza de que vou gostar.

Afastou-se e desapareceu no elevador. Rosa se perguntava se não teria falado demais. Afinal, nem conhecia o hóspede a ponto de fazer-lhe confidências. Entretanto, procurou o nome de Raul no celular e verificou se havia um número de telefone fixo. Em seguida, decidiu fazer uma ligação. Por fim, certificou-se de que seu palpite estava certo.

Rosa dedicou-se a pesquisar músicas no google, com a expectativa de mais tarde contar a a novidade a Júlio. Era um homem apessoado, pensou. Devia ter seus cinquenta e poucos anos ou mesmo sessenta e parecia bem disposto com a vida. Que estaria ele fazendo ali, naquela cidade pequena, sem nenhuma projeção no Estado, a não ser alguns crimes que ultimamente haviam ocorrido.

Dissera que era um detetive, mas quem o teria chamado. Seria a mãe de Raul? Era bem estranho, pensou.

Deixou as pesquisas de lado e decidiu espiar um pouco a rua. Foi até a porta e reparou que Seu Domingues, um velho conhecido, sentava no banco da praça, como sempre. Como aquele velho podia suportar o frio que fazia, sempre no mesmo lugar, olhando para o nada, mesmo num dia ensolarado como o de hoje?

sexta-feira, junho 10, 2016

quinta-feira, junho 09, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 4º CAPÍTULO

Capítulo 4


<p> Capítulo 4

Quando chegou ao quarto onde o amigo estava, Ricardo encontrou-o sonolento. Aproximou-se da cama e Raul abriu os olhos, sorrindo.

—Não reconheci você com este jaleco, cara. Que bom que veio, meu médico preferido.

—Não se agite, Raul. Sei que seu açúcar teve uma queda considerável.

— É verdade, eu tive tonturas, tive náusea e até agora estou suando frio, apesar do sono.

—Isso é assim mesmo, daqui a pouco passa. Mas já é hora de dormir. Afinal, é bem tarde. Assim, você descansa.

— Sabe, Ricardo, eu tenho medo que eles me matem. Que descubram que estou aqui… Você sabe.

–– Ninguém vai descobrir nada. Não pense nisso.

––Você anda muito ocupado, eu sei. Já estou acostumado com abandono, meu amigo. Eu lhe falei da Susi, lembra? Não da cachorrinha que tenho em casa…

––Sei, da sua namorada. Esqueça isso. Pense em melhorar depressa. Amanhã, você sairá daqui.

––Escute, você pensou na proposta que lhe falei?

–– Pensei, mas conversamos amanhã. Agora, eu só vim ver como você está. Não quero importuná-lo mais. Tente dormir. Raul o observou com certa ironia. Segurou a mão de Ricardo e perguntou com cumplicidade:

— Meu amigo, você andou bebendo. Não pode vir atender os pacientes neste estado, ainda mais usando jaleco, entrando no hospital com o crachá de médico…

–– Cale a boca, não repita essa bobagem aqui.

–– E você acha mesmo que é uma bobagem?

–– Não, não é, claro que não. Mas vim aqui para vê-lo. Que está insinuando?

–– Só estou querendo protegê-lo, meu amigo. Uma morte qualquer de um paciente pode responsabilizá-lo por incompetência, por estar usando bebida alcoólica.

––Eu não estou atendendo ninguém, você sabe disso.

––Mas numa emergência, podem precisar de você.

–– Você está me ameaçando?

––Jamais, meu amigo, jamais. Quero proteger você, como disse, até a morte, se necessário.

–– Então não se preocupe comigo. Sei me virar. Por isso, mesmo, vou embora, você já está muito bem, pronto pra outra.

––Meu amigo, quero lhe agradecer por não ter me abandonado. Sei que você vai fazer o que lhe pedi, vai tentar descobrir a causa da morte daquelas pessoas. Você vai provar que elas morreram por terem usado insulina.

— Eu já lhe disse que estou ingressando no hospital, não posso me envolver com nenhuma necrópsia e depois, isso é atribuição dos peritos da polícia civil.

—Mas você vai achar uma maneira de resolver isso, tenho certeza. E vamos culpar aqueles malditos da petshop.

Ricardo afastou-se encontrando alguns colegas que faziam o plantão da noite. Fez o possível para dirigir-se ao estacionamento o mais rápido que pode.

Quando estava no carro, no silêncio entre os poucos carros que ainda estavam no prédio, ficou inquieto, pensando nas palavras de Raul.

Às vezes, parecia que ele pretendia agredi-lo, agindo de forma irônica, como se pudesse acusa-lo de algum delito. Entretanto, o melhor que tinha a fazer era esquecê-lo e voltar para o hotel imediatamente.

Foi o que fez. Tentou dormir um pouco e ao levantar, parecia que carregava uma carga imensa nas costas. Antes de mais nada, decidiu ir até a casa da mãe de Raul. Precisava saber os detalhes da conversa que pretendia ter com ele, de preferência, longe do filho, como dissera.

Dirigiu-se ao endereço que tinha anotado, observou que era uma casa antiga, com um velho portão de ferro, meio enferrujado, precisando de uma boa pintura.

Tocou a campainha e uma mulher atravessou o pátio, vindo pela calçada que conduzia ao portão. Tinha o cabelo pintado de loiro, curto e uma estranha cicatriz perto do olho. Como médico, foi a primeira coisa que reparou. Não esqueceu também da voz rouca de quem havia fumado por muito tempo.

Ela abriu o portão e pediu que entrasse, apresentando-se, logo em seguida.

––Seu nome é Sara. Raul não havia falado na senhora.

–– Não?

–– Na verdade, comentara alguma coisa sobre a sua casa, herança que provavelmente seria dele…

–– Raul às vezes, é uma criança. Mas vamos entrar, não ficaremos conversando aqui no portão, até porque está meio frio, não acha?

Ricardo concordou e avisou que teria pouco tempo, no máximo uma hora, em virtude do compromisso no hospital.

Entraram na casa. Uma sala enorme, com alguns quadros inexpressivos na parede.

Sara o convidara a sentar-se numa das poltronas e afastou-se, dizendo que traria um café. Ricardo insistiu que já havia tomado café no hotel e que não teria muito tempo. O ideal é que fossem direto ao assunto.

Sara então, sentou-se na poltrona a sua frente. Ficou em silêncio, observando-o, o que o incomodou um pouco. Por isso, engatou o assunto:

–– A senhora disse-me ao telefone que gostaria de falar-me na ausência de seu filho. O que aconteceu?

–– Bem, eu diria que não aconteceu absolutamente nada.

–– Como assim?

–– Deixe-me explicar. Raul tem passado por um período muito difícil, desde que brigou com a namorada. Ele estava muito apaixonado, sabe?

–– Sim, ele me contou.

–– Acho que a separação o perturbou de alguma forma, porque anda inventando coisas, anda fantasiando, entende?

–– A senhor se refere aos crimes?

–– Exatamente. Quero dizer, mais especificamente, ao ataque que ele sofreu.

–– Ele foi atacado perto do petshop, no tal parque perto da loja. Foi isso que ele falou.

–– E você acreditou nesta história?

–– Por tudo que ele descreveu, pelo verdadeiro pânico que parece estar sentindo, não teria motivos para duvidar.

–– Mas não acha que aquela história do homem no carro oferecer carona é pura ficção? E depois, perder um cachorro, ele tentar ajudar e ser atacado! É muita fantasia, pelo amor de Deus!

–– Definitivamente, a senhora não acredita nele!

–– Pobre do meu filho! Ele anda imaginando estas coisas. Ele não tomou nenhuma dose de insulina a mais e se tomou foi a normal, de todos os dias. Ele começou a imaginar estas coisas… Tenho medo de que esteja enlouquecendo…

–– Muito bem, tudo é muito estranho, realmente. A história é até um pouco absurda, mas e quanto aos outros crimes? As vítimas existem, estão em todos os jornais. Há um assassino solto por aí.

––É verdade, existem sim. E nem sabemos se foram mortas pelas mesmas pessoas. Mas quanto a ele… não aconteceu nada. Por que o deixariam vivo, você já se perguntou isso?

–– A explicação dele é convincente. Ele seria o único que é realmente doente, por isso se salvou. Segundo ele, injetaram insulina nos outros e estes não sofriam da doença.

–– E quem pode provar que morreram disso?

–– É o que ele quer que eu ajude a provar, conversando com os peritos, com os inspetores que cuidam dos casos. Se fizerem necrópsia nos corpos das vítimas…

–– Se eu fosse você não me envolveria com isso. Vão chegar a um resultado lastimável…
.

–– Como assim?

–– Quero dizer, absurdo. O que eu quero, na verdade, o motivo que o chamei aqui, além de dizer isso, é que você não o abandone, que o ajude a sair dessa situação, entende? Eu preciso que meu filho volte à realidade. Que ele pare de pensar nestas bobagens, que volte a viver! Faz dois anos que se separou dessa mulher que ele tanto venera, agora chega. Tem que esquecer, tem que arranjar um trabalho decente. E só você pode ajudá-lo.

–– Eu estou tentando, dona Sara.

–– Sei, mas você tem que mudar o modus operandi, entende? Tem que esquecer essa história de crimes e levá-lo a se divertir, a conviver com outras pessoas, quem sabe lembrar do passado, do tempo em que eram crianças, rir um pouco, beber nos bares, saírem. É o que ele precisa. Eu até sugeri que você morasse aqui, por um tempo.

–– Foi a senhora que sugeriu?

–– Sim. Não é uma boa ideia? Até você encontrar um lugar para ficar. Esta cidade é pequena, não comporta bons apartamentos. A minha casa é grande, antiga, mas bem aprazível. Você terá um quarto e uma suíte, só sua. O que acha?

–– Raul lhe falou de minha namorada? Ela pretende vir para cá.

Sara aquietou-se. Levantou-se e perguntou novamente se ele não queria café. Desta vez, também sugeriu um chá. Ricardo recusou, dizendo que estava na hora de ir.

–– Eu compreendo meu filho, vá, desempenhe bem as suas tarefas e seja um bom médico. Você tem tudo para ser um grande profissional, diferente de Raul, infelizmente. Mas vá, daqui a pouco, ele estará em casa novamente. Pode ser, que mude de ideia e esqueça essa história de crimes.
Sara interrompeu-se por um instante e antes que ele saísse, pediu:

—- Espere, antes de sair me prometa uma coisa. Não diga nada a Raul sobre a nossa conversa. Ele tem tanta confiança em você, que se soubesse que esteve aqui, talvez desconfiasse de alguma coisa.

Ricardo concordou e afastou-se rapidamente.

terça-feira, junho 07, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 3º CAPÍTULO

Capítulo 3

No carro, Ricardo ainda pensava nas palavras do amigo, mas por pouco tempo. Em seguida, chegou no hospital, teve a entrevista com o diretor e em pouco tempo já estava em franca atividade. Um hospital pequeno, com muitos problemas estruturais, não se podia dar ao luxo de priorizar algum espaço de tempo para reconhecimento. Ricardo deveria dar mãos à obra e foi o que se sucedeu durante todo o dia e nos que se seguiram. Ainda procurava um apartamento pequeno, mas a cidade não dispunha de muitas acomodações, por isso, permanecia no hotel, até porque o tempo escasso não permitia contatar as imobiliárias.

Aquela noite, estava especialmente cansado. Participara de uma cirurgia difícil e o andar das emergências estava literalmente ocupado. Tomou um banho, deitou e dormiu por um longo tempo. Quando acordou, já era de madrugada. No celular, algumas mensagens da namorada e de outros colegas, aos quais não fazia muito questão de conversar, naquele dia. Leu as mensagens, respondeu algumas. Respondeu alguns e-mails e tentou comunicar-se com a namorada.

Louise, por certo estaria dormindo àquela hora, mas devia, pelo menos, deixar alguma mensagem, esclarecer que estava exausto e que dormira, sem se dar conta da hora. Fora o que fizera. Depois, levantou-se, tomou água, olhou pela janela. Dobrou um pouco o corpo e espiou para a esquina, onde podia ver o parque que Raul lhe falara. Por um momento, veio-lhe a história à tona, a mensagem do jornal, a angústia do amigo. Esquecera-o completamente.

O que havia acontecido com ele, afinal? Nunca mais o procurara.

Uma aragem fria invadia a janela, empurrando a cortina para os lados.

Ricardo afastou-se e sentou-se na cama, fechando a janela. Pensou em ligar para Raul, mas seria melhor deixar as coisas como estavam. Provavelmente, se falasse com ele, não o deixaria em paz, embora a esta hora, talvez estivesse dormindo.

A notícia do jornal, entretanto não lhe saía da mente. Era uma coisa tão absurda, mas ao mesmo tempo tão plausível, por tudo que lhe contara. “As pessoas que possuem animais de estimação estão assustadas, porque junto ao corpo das vítimas, é deixado uma folha de papel com uma assinatura em forma de “S” ao lado do nome do animal de estimação.”

Ricardo lembrava da cara assustada de Raul, um pânico estampado no olhar, quando afirmou que haviam deixado uma folha no seu bolso, com as mesmas características.

“ ––No meu bolso, havia a mesma assinatura e o nome da Susi. Mas eu me salvei, aí esta a diferença!

––Mas o que a polícia diz disso?

––Ela não admite, acham tudo uma besteira imensa. Não acreditam no que a população fala, no que a população sente.

––Mas então?

––Então, eu quero solucionar este caso. Não sou detetive, mas não quero morrer, entende? Você, que não é daqui e nem é conhecido, pode me ajudar. Você tem que pedir uma necropsia das vítimas.

––De forma alguma, apenas um inspetor ou advogado das famílias das vítimas é que pode solicitar isso.

––Por favor, eu só tenho você, eu só confio em você. Tem que me ajudar. Não pode deixar que me matem, principalmente agora, que eles acham que eu sei de tudo. Eu falei para um policial, ele riu na minha cara e andou espalhando por ai, tenho certeza. Outro dia, um cara da pet esteve na minha casa, fazendo perguntas. Você tem que me ajudar, Ricardo, pelo amor de Deus.

–Está bem, deixe eu acertar a minha vida. Vou fazer umas pesquisas e quem sabe eu descubro o que você quer saber. Além disso, preciso achar um lugar para ficar, tenho que sair daquele hotel.

––Você pode ficar na minha casa, até que consiga encontrar um apartamento. Pode ficar na minha casa o tempo que quiser.

–Eu lhe agradeço, Raul, mas pretendo trazer minha namorada.

––Só até você encontrar o apartamento ideal pra você. Por favor, aceite. É uma boa casa, herança de minha mãe. Eu quero ajudá-lo também.

––Vou pensar, mas agora, preciso ir.

––Esta bem. Ficarei esperando a sua mensagem. Sei que não vai esquecer o meu problema. Não vai me deixar nas mãos deste assassino”

Ricardo abriu uma cerveja, agora um pouco ansioso por ter lembrado detalhes da história de Raul. Afinal, não tinha movido uma palha para ajudá-lo. Sentia-se culpado por ter esquecido completamente o amigo, nestes três dias em que esteve tão envolvido no hospital. E se tivesse acontecido alguma coisa com ele? E se tudo fosse verdade? Se alguém da pet shop estivesse envolvido com os crimes ocorridos? Por um momento, sentiu-se um canalha. Como abandonar uma pessoa que lhe pediu ajuda, quase em desespero, à própria sorte? E se ligasse para ele? Quem sabe, poderia ainda fazer alguma coisa. Daria uma desculpa, diria que tem investigado, pensado muito no seu caso. Foi o que fez. Procurou no celular o número e ligou. Esperou um pouco, apenas uma mensagem. Tentou mais duas vezes e nada. Ele não estava com o telefone ligado ou talvez estivesse dormindo. Sim, provavelmente estava dormindo, afinal, já passavam das duas horas da manhã. Mas, se estivesse morto? Se a desconfiança que tinha se confirmasse? Se eles o tivessem matado e desta vez, não apenas com a insulina, mas uma droga mais forte e letal? Seu coração disparava, assustado. Não podia dar crédito a estas loucuras. Isso só acontecia, porque perdera o sono, porque havia dormido antes da hora, porque andava muito cansado. Não devia mais pensar nisso e sim, tomar outra cerveja e tentar dormir. Neste momento, o telefone tocou. Mas não era Raul. Uma voz de mulher perguntava por que ele havia ligado para aquele número.

–– Desculpe, deve ter sido engano. É que estava tentando falar com um amigo.

–– E com quem você queria falar? –– Interrogava a voz rouca do outro lado.

–– Você não deve conhecer. Foi um equívoco, sim. Devo ter digitado o número errado.

–– Por acaso, não queria falar com Raul?

–– Raul? –– Por um instante, pensou em dizer tratar-se de outra pessoa, e se fossem os assassinos, se tivessem matado Raul e agora, quisessem saber que ligações ele tinha com o morto? –– Raul, você disse?

–– Sim, a pessoa para quem você acabou de ligar.

–– Não, quero dizer… mas quem está falando?

–– É uma pena, ele precisa tanto de ajuda.

–– Conhece Raul?

––Então era ele mesmo. Não me enganei.

–– Não, não se enganou. Onde ele está? Por que não me atendeu?

–– Porque ele não está nada bem. Mas se você quiser, poderá vir visitá-lo.

––A esta hora da noite?

–– E por que não? Não é onde você passa a maior parte do seu dia?

–– Como assim? Não estou entendendo.

–– Raul está no hospital, por isso não pode atendê-lo.

Ricardo calou-se por um momento, se perguntando como a pessoa sabia que se tratava dele.

–– Mas o que aconteceu com ele? Quem é que está falando?

––Ele teve mais um desses acessos de hiperglicemia. Sabe como é, ele não se cuida. Há dias que eu noto que ele vem se alimentando menos. Acho que vai se recuperar logo. É o que espero.

––Ele está consciente?

–– Agora sim, mas anda nervoso, muito assustado. Acho que isso provocou o desencadeamento da doença. Meu filho precisa muito de ajuda. Você prometeu ajudá-lo e o que fez? Abandonou-o à própria sorte.

“Meu filho”, Ricardo repete mentalmente. Raul morava em sua cidade natal, como residia agora em Sul Braga, possuindo segundo ele uma casa herdada pela mãe. Uma situação estranha, pois nunca o havia encontrado, quando fizera a residência médica nesta cidade.

A mulher silenciou, como se não tivesse mais nada a dizer. Ricardo explicou:

– Minha senhora, eu não o deixei à própria sorte. Na verdade, não sei exatamente o que está acontecendo.

– Acho que ninguém sabe, com certeza. — Ela comentava melancólica. Parecia mais tranquila, até arrependida de ter repreendido o amigo do filho. Por fim, convidou-o a ir na sua casa.

– Mas Raul não está no hospital?

– Exatamente. Por isso quero conversar com você, de preferência longe de meu filho.

– Mas hoje é muito tarde.

–Eu sei, mas gostaria que você viesse amanhã, de manhã sem falta. Talvez em nossa conversa esteja ajuda de que meu filho precisa.

Ricardo desligou o telefone. De repente, sentia uma angústia oriunda de fatos passados, cujos problemas não pode resolver. O que sentia não se relacionava ao caso de Raul, sabia, mas alguma coisa trouxe de volta um registro antigo que não conseguia distinguir do que se tratava. No entanto, alguma coisa o deprimia, uma sensação ruim, de confusão, de sentir-se perdido. Não sabia se fora a conversa com a mulher ao telefone, se o fato de dormir poucas horas e acordar assim, de madrugada, sobressaltado ou se fora apenas o cansaço do dia.

Um médico como ele, não podia se deixar levar por pensamentos subterrâneos, como se houvesse uma teoria da conspiração contra si e organizada pela própria mente. Às vezes, tinha convicção de que o mundo conspirava de forma ingrata contra ele. Ele que tinha tudo por que lutara, a sua profissão, a mulher que amava, uma vida cheia de planos e saúde ímpar, às vezes, sentia essa melancolia, como se qualquer coisa ruim desencadeasse o sofrimento contido.

Olhou pela janela novamente. Serviu-se de outra cerveja e ficou observando lá fora. A cidade estava morta. Tinha vontade de ficar ali, indefinidamente e não fazer mais nada. Nada que sugerisse qualquer mudança, até mesmo de posição física junto à janela.

De repente, como que tomado por um sentimento de culpa, decidiu ir ao hospital.

quinta-feira, junho 02, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 2º CAPÍTULO

No capítulo anterior, a professora e maestrina Rosa estava muito preocupada com o seus colegas do coral, porque pareciam muito agitados e até alguns, descontentes com as pessoas que vieram trabalhar na hidrelétrica da cidade. Decidira marcar uma reunião com eles. Quando voltava da escola estava pensando nisso, e sentiu-se um pouco apreensiva no caminho, que embora rotineiro, naquela noite, parecia mais longo e assustador. Sentia que havia alguém à espreita, que poderia atacá-la a qualquer momento. Ao chegar em casa, teve o pressentimento de que seu cão labrador estava morto. Continua agora no 2º capítulo de nossa história policial “ UM CRIME NA CIDADE QUE SABIA DEMAIS"
Capítulo 2

Ricardo Silveira levantou assustado, ouvindo o toque do celular. Puxou rápido, do criado-mudo o aparelho e dispensou o alarme, tentando espreguiçar-se um pouco ainda no calor da cama. Percebeu um número desconhecido. Deixou pra lá. Estava frio lá fora, apesar da primavera que já se adiantava. Encolheu-se na posição fetal, como uma criança. Mas não havia o que fazer, se não enfrentar o que vinha lá fora. Um frio do caralho, pensou. Correu para o chuveiro, despindo-se pelo caminho e ensaboou-se rapidamente.

Pela vidraça, olhou para a rua que parecia embranquecida de geada. Que merda de inverno que não passa nesta cidade! Em seguida, secou-se e enfiou as roupas que deixara atiradas sobre uma poltrona, ao lado da cama.

Acabou de vestir-se, desceu rapidamente até o restaurante. Tomou o café, com os olhos fixos no celular. Tinha a sensação de que o dia seria pesado. Afinal, um dos compromissos era encontrar o amigo de infância que não via há tanto tempo. Por que o procurara? O que o angustiava tanto a ponto de querer confiar-lhe um segredo? Logo para ele, que era praticamente um desconhecido. Dissera que soubera que viera à cidade, que era medico e que poderia ajudá-lo. Mas que diabo de ajuda queria?

Além desse pedido inusitado, tinha que apresentar-se ao hospital, no primeiro dia de sua chegada, procurar um apartamento para morar, fixar residência, mesmo que por um tempo determinado. Voltava finalmente à velha Sul Braga, cidade que conhecera há um ano atrás. Uma cidade que sopra um vento intermitente, uma aragem fria que parece não ter fim. Mas que fazer, estava de volta. Ali conseguira seu primeiro emprego e estava pronto para começar a vida.

Quando saiu da garagem do hotel, dirigiu-se ao posto de gasolina. Em seguida, percorreu as ruas próximas do posto, que também não ficava muito longe do hotel, nem da igreja, nem da prefeitura, nem da pequena praça que era circundada por vielas estreitas de paralelepípedo.

Ele pretendia dirigir-se ao hospital, que também ficava nas redondezas, mas o cara parecia apavorado. Por que teria de encontrá-lo num lugar tão estranho? Um velho trapiche, que num dia frio e cinzento como hoje, deveria estar praticamente deserto. Olhou ao longe, com a lembrança do pórtico de ferro, que dava as boas vindas ao visitante. Um pórtico cheio de arabescos, enferrujado, com motivos um tanto fora do comum.

Assustou-se ao atravessar um cachorro à frente do carro e freou bruscamente. Respirou aliviado vendo o animal sumir-se na esquina. Não demorou muito, estava no trapiche de madeira. Estacionou e ficou observando, esperando que o amigo estivesse lá, em um lugar qualquer, próximo a um barco estacionado à beira do cais. Não viu ninguém. A cidade parecia vazia. Aliás, durante todo o percurso, quase não viu ninguém, como se hoje fosse feriado. Procurou alguma mensagem no celular. Talvez o amigo houvesse desistido, avisando-o que não seria mais preciso a sua presença. Que filho da puta, pensou. Fazê-lo perder seu tempo precioso.

Estava assim, absorto, procurando as mensagens, quando alguém bateu na vidraça do carro. Era um homem barbudo, meio gordo, com olhos pequenos e um tremelique no lábios. Pensou logo tratar-se de um pedinte ou cuidador de carros. Decidiu não responder e dar o fora dali, imediatamente. Mas o outro insistiu. Então, abriu um pouco o vidro.

O homem sorriu e falou, quase em segredo:

– Sou eu, Ricardo. Raul.

Somente neste momento, percebeu que se tratava do tal amigo de infância, que nem reconhecera. Desceu do carro, fez a tentativa de apertar-lhe a mão, mas o outro o abraçou com força, deixando-o desconcertado. Ficou sem ação, procurando o que dizer. Observou que Raul enchia os olhos d’água.

– Cara, faz tanto tempo, mas você não mudou nada. É o mesmo cara malandrão, com aqueles olhos grandes de peixe morto. Você está igual.

– Acho que o que você vê nos meus olhos é o efeito dos óculos, que sempre aumentam o tamanho. E depois, estou mais velho, né. Estou com 27 anos. E você?

– 30. Eu era mais velho, estava meio atrasado na escola. Ricardo calou-se. Raul o convidou para irem até um banco, próximo à lagoa. Lá ficariam olhando para o horizonte, enquanto conversavam. De repente, abria sol e melhorava o tempo.

– Tomara. Só que não tenho muito tempo, Raul. Se você não estivesse tão desesperado no telefone, talvez eu nem viesse. Tenho milhares de coisas pra fazer, preciso ira ao hospital, ainda procurando um apartamento para alugar, essas coisas.

–Eu sei, meu amigo, eu sei. Mas eu só podia contar com você, nesta cidade.

– Como assim?

Ele fez um silencio breve. Em seguida, explicou:

– Nesta cidade, não se pode confiar em ninguém. Nem na polícia, nem nos vizinhos, nem no padre. Em ninguém.

Fez um gesto indicando o banco. Uma espécie de tábuas acomodadas como banco, um assento tosco, feito provavelmente pelos próprios barqueiros. Ricardo obedeceu. Sentou-se, esperando que Raul iniciasse a conversa.

Ele retirou um pequeno embrulho do bolso e começou a fazer um baseado. Ricardo o observou, surpreso.

– Você se importa?

– Pessoalmente, não. Você acha que isso é adequado, agora?

– Meu amigo, aqui só os peixes nos vigiam. Se é que ainda existem peixes nesta lagoa.

– Mas você disse que não pode confiar em ninguém, e de repente, começa a fumar um baseado? Quem disse que não há uma câmera por aqui, que não estão vigiando a gente?

–E quem pode me prender por fumar um baseado? Não se preocupe com isso. Mas olhe, se isso o incomoda, eu posso deixar. Só uso pra ficar mais relaxado. Ando muito tenso, sabe?

– Tudo bem, vamos em frente. Me diga, o que aconteceu com você? Por que me chamou?

Raul refletiu um pouco. Aprontou o cigarro, acendeu-o e deu uma tragada demorada. Depois, olhou fixamente para o amigo, abraçou-o mais uma vez.

Ricardo, visivelmente incomodado, afastou-se um pouco. Pediu que se apressasse, ele tinha muito o que resolver. Já dissera isso.

– Desculpe, meu amigo. Não quero importuná-lo, prejudicar a sua vida. Mas eu sei, tenho certeza, que você é a única pessoa que pode me ajudar.

– Então me diga, o que aconteceu?

– Você é casado?

– Não, mas o que isso tem a ver?

– Mas tem alguém esperando você em sua cidade?

– Sim, tenho uma namorada. Logo que eu me instalar aqui e estiver tudo organizado, ela virá também. Mas, podemos conversar sobre isso, numa outra hora. Agora, o que interessa é o seu problema.

–Eu sei, eu sei meu amigo. O meu problema. – Dá mais uma tragada e confessa. – Eu já fui casado, por dois anos. Ela foi embora. Nem sei por onde anda.

– Espere, Raul, isso tem a ver com o que quer me contar?

– Diretamente, não. Talvez tenha com a minha solidão, a minha carência. Depois que ela foi embora, eu arranjei uma cachorrinha. Uma vira-latas. Suzi. Dei a ela o mesmo nome de minha amada. Susi. Um lindo nome, não acha?

– Sim.

– Pois veja você, eu e Susi sempre vamos no pet shop que fica na rua principal, aquela perto do hotel em que você está hospedado. Pet shop Dragão. Um nome idiota para uma pet shop, não acha? -–– E dá uma gargalhada. –– Nada a ver. Hilário, isso.

Ricardo estava cada vez mais irritado. Já não se continha em ouvir o amigo que nunca chegava a um denominador comum. Foi ríspido o necessário para informar que iria embora, se ele não contasse de uma vez porque precisava de sua ajuda.

– Desculpe, meu amigo. Você tem razão. Na penúria que anda a minha vida, eu costumo me desligar do problema real e fico falando merda mesmo. Mas tudo o que eu disse, tem a ver com o meu problema, você pode ter certeza do que estou dizendo.

– Então me explique, você faz rodeios e não chega a lugar nenhum.

Mais uma vez, encheu os olhos d’água e parece ter tido um pequeno apagamento. Por um momento, ficou observando a lagoa, sem nada dizer.

Ricardo levantou-se indo na direção do carro.

Raul deu mais uma tragada na bagana, jogando-a em seguida no chão. Levantou-se também e se aproximou do amigo. Pegou o seu braço e disse, quase num suspiro:

– Por favor, não me abandone. Vou morrer. Se você me deixar, eles me matarão.

– Mas do que você esta falando?

–Vamos sentar ali, por favor. Olhe, parei de fumar. Já estou legal. Vou contar tudo para você.

– Está bem. Então comece sem rodeios. Seja objetivo, por favor. E depois, nem sei como poderei ajudá-lo. Não sou da polícia, não sou advogado…

– Não, nem me fale nessa gente. Eu preciso de você, preciso de um amigo e de um médico.

Sem terminar a frase, dirigiu-se ao banco de madeira. Ricardo obedeceu, voltando a sentar ao seu lado.

–Vamos, estou esperando.

–É o seguinte: quando falei na Susi…

–Não vai começar, Raul.

– Eu preciso falar na Susi. Não me refiro a minha namorada, isto é, ex-namorada. É na cachorra mesmo. Quando eu falei nela, eu queria me referir ao pet-shop.

–Sei, o pet shop Dragão.

–Pois é, você o viu quando chegou ao hotel, não?

–Raul, eu cheguei ontem à noite no hotel. E quando fiquei aqui em Sul Braga, passava o tempo todo no hospital fazendo residência. Meu apartamento ficava no outro lado da cidade.

–Está bem, quer dizer que não conhece a loja?

–Não, não conheço.

–Bem, ela fica atrás da praça, logo que passa o hotel. E do outro lado, nos fundos da loja, tem um parque, mas não é um parque bem cuidado, organizado pela prefeitura. É um amontoado de árvores e trilhas feitas pelo pessoal que passa por ali, é praticamente um mato. É um mato, na verdade.

–Sim, e daí?

Raul silencia por um momento, como se refletisse o que tinha a dizer. Em seguida, responde, com afoita rapidez.

–Daí que a polícia anda atrás de um assassino em série, um serial killer como dizem na TV. Ele ataca neste parque, tá sabendo? Já fez cinco vítimas!

– É verdade?

– Sim. Estas pessoas tem alguns traços em comum. São geralmente homens, apenas uma era mulher. Em geral são gordos, frágeis, e não são, como direi a você, muito objetivas nos seus planos. E todas têm, ou tinham um animal de estimação. Dizem os policiais que para o assassino, o fato de ter um cãozinho ou um gato, o cara é um fraco, o animal não passa de uma muleta. E ele, o assassino não suporta isso. Na verdade, nem sei se foram os policiais que disseram isso ou se foi a psicóloga que falou na TV. Eu ando meio esquecido, sabe?

– É normal.

– Por que?

– Deixe pra lá. Mas o fato destas pessoas possuírem um animal de estimação, não significa nada. Hoje em dia, a maioria das pessoas tem algum animal em casa.

– Eles não conseguem pegar o bandido. Mas eu tenho uma suspeita, só que não posso falar pra ninguém. Ricardo procura alguma coisa no bolso da camisa. Retira uma pequena caderneta e uma caneta como se fosse anotar alguma coisa. O amigo o olha surpreso, mas o que obtém é uma pergunta quase displicente.

–Você acha que tem a ver com o petshop?
Raul alegra-se com a pergunta. Exclama entusiasmado:

–Você é muito inteligente, Ricardo.

– Mas você tem medo de quê? Quer dizer que tentaram matá-lo também? –– Pergunta enquanto anota a placa do carro de Raul. Este nem se apercebe, começa a falar meio ofegante, mas firme.

–– Certa vez, eu fui buscar ração para Susi. Eu já sabia dos crimes, andava até meio apavorado, mas a gente sempre acha que nunca vai acontecer com a gente, né? Pois eu sai, naquele dia, lembro bem, era uma sexta-feira, estava até uma temperatura agradável, eu atravessei a rua, quando voltava do pet shop e fiquei na esquina, esperando o ônibus. Ali, tem um ônibus que passa bem perto de minha casa, sabe? Eu estava com pressa, a Susi passou o dia inteiro sem ração, mas como o ônibus não aparecia nunca, resolvi ir até a praça para pegar um táxi. Nisso, parou um carro, bem perto do parque, esse matagal, de que lhe falo, que fica do outro lado da rua. Pensei que era alguém conhecido, mas o cara era um estranho. Pensei que queria falar comigo, pois quase me atropelou. Nisso, ele soltou um cachorro que correu em direção ao mato. Gritou, desesperado que o animal ia se perder. Pediu a minha ajuda. Como gosto muito de bichinhos, você sabe, eu corri pra ajudar o cara. Quando estava lá dentro, tudo meio escuro, ele se aproximou e num descuido, me tapou a boca com um pano embebido em clorofórmio, acho. Me segurou com tanta força, que cai, fiquei ali, estendido, desmaiado, no meio daquelas árvores. Acho que o cara é praticante dessas lutas marciais, porque quando me dei conta, já estava no chão. Quando acordei, ele havia sumido, claro, estava tudo muito escuro e eu completamente zonzo. Fui parar no hospital, porque tenho açúcar alto, sabe, tenho diabete, mas, graças a Deus, estava tudo normal comigo. A glicose estava até mais baixa do que de costume. O médico do hospital insistiu que eu tinha tomado insulina, mas eu não tinha tomado aquele dia. Ricardo esforçou-se em ouvir a história, que parecia muito fantasiosa. Seu amigo não lhe parecia um homem muito confiável, afinal, tinha um aspecto desleixado, além disso, acabara de fumar maconha, o que aumentaria a sua imaginação. De todo modo, havia alguma coisa que o perturbava muito, talvez um estado depressivo, devido à solidão que lhe falara. Não custava ficar mais um pouco para ouvi-lo e tentar ajudá-lo. O ideal seria dissuadi-lo da deia de havia um serial killer na cidade, que os crimes talvez não tivessem nenhuma ligação, e que deveria deixar a investigação com a polícia. Seria o mais sensato.

– Pelo que você disse, o cara não quis matar você.

–Ele não conseguiu, é diferente. Mas tenho certeza de que me deu insulina. Ele injetou em mim, não sei como, nem onde. Mas o meu açúcar não subiu e ele não me matou. Aí é que está o mistério, entende? Aí é que você entra nesta história. Eu quero que me explique, por que eu não morri.

– Como eu vou saber? Não sou detetive.

– Espere, você é médico, pode me ajudar.

–De que você desconfia? Você viu o cara. Sabe quem é? É alguém da pet shop?

–Não me lembro dele. Na verdade, acho que usava máscara, dessas que deixa a pessoa sem uma fisionomia indefinida.

–– Sabe de uma coisa, Raul? Pra falar a verdade, acho esta história muito fantástica. Por que um cara ia tentar matá-lo, usando uma máscara, em plena luz do dia. Além disso, você falou com ele antes, no carro, tinha de reconhecê-lo.

–– Este homem já usava a tal máscara no carro, tenho certeza. Me lembro bem a cara parecia de um boneco.

Ricardo suspirou, ansioso. Uma pequena viagem de avião após um congresso cansativo de sete dias. Uma noite para ficar na capital e fazer a mala, despedir-se da família, da namorada e levar algumas horas noturnas para chegar em Sul Braga, acordar com a ideia fixa de encontrar o velho amigo de infância que quase não conhecia. Afinal, como Raul fora parar naquela cidade e como não o encontrara quando fizera residência nos dois anos que morara ali? Olhou-o de soslaio, tentando achar uma maneira de afastar-se dali o mais depressa possível. Parecia uma tarefa difícil. Decidiu perguntar mais uma vez:

–– Afinal, por que você imagina que posso ajudá-lo?

––Eu já lhe disse, porque você é médico.

–– Sim, isso você já me disse. Mas como?

Raul levantou-se do banco, dá alguns passos até a lagoa, observando ao longe, como se antevisse alguma coisa estranha, que o perturbava profundamente.

Voltou-se com uma nuvem nos olhos. Um vazio que de certo modo, o transformava num homem diferente, um homem mais do que assustado. Sem esperanças.

–Eu acho que ele injetou insulina nas vítimas. Que ele mata com insulina.

–Mas insulina só pode matar quem não tem a doença.

Voltou-se rápido para Ricardo, transparente. Toda fisionomia expressava o que pensava:

–– Exatamente, você matou a charada. Eu não morri porque tenho a doença.

Ricardo calou-se, pensativo. De certo modo, Raul tinha razão. Se havia realmente um criminoso com a intenção de matar com insulina, ele não morrera porque tinha a doença. Mas que ligação havia com a pet shop? Por que relacionara as duas coisas, só pela proximidade do parque?

–– Eu sinto que você tem muitas dúvidas, Ricardo, e é compreensível. Eu sou um cara sozinho, negligente com a minha vida e de repente, conto esta história absurda, não é mesmo?

–– Raul, na verdade, não sei nada de você. Lembra-se que nos conhecemos quando ainda éramos crianças?

–– É verdade. Foi uma dádiva dos céus você ter vindo pra cá. Mas o que eu lhe contei, da pra ter uma ideia de como sou, não?

–– Você sabe que não da nem pra descrever uma pessoa com algumas informações, quanto mais poder caracterizá-la como um tipo a ou b.

––Não foi um bom primeiro encontro, né? O ideal seria que estivéssemos num bar, bebendo, dando risada das nossas misérias e contando um ao outro os nossos sonhos.

–– Na verdade, Raul, pra ser sincero, o ideal seria eu estar me apresentando agora, no hospital. E é o que devo fazer agora, depois a gente se encontra…

Foi interrompido bruscamente por Raul, quase em desespero.

–– Não, meu amigo, por favor, não vá, eu lhe peço. Ouça o que tenho a lhe dizer. Eu sei o que acontece na pet shop e preciso contar-lhe. Assim, você entenderá porque estou tão assustado.

Os dois permaneceram em frente à lagoa. Um barco de pesca passou a alguns metros de distância, com pescadores olhando para a margem, curiosos com as ruas da cidade, mais adiante do cais, além do trapiche. Raul voltava a sentar, desta vez no trapiche, com os pés soltos, próximos à água. Ricardo, sem alternativa, aproximou-se e ficou por ali, em pé.

–Porque eu vejo sempre eles injetando insulina nos animais. Alguns são sacrificados. Automaticamente, juntei as coisas, entende?

Ricardo acocorou-se ao lado do outro e perguntou:

– Então você acha que o dono da loja de animais é o serial killer e que, como você o conhece, pode vir a matá-lo. É isso?

–Não, eu não sei quem é. O dono é um cara simpático, muito gentil, uma pessoa maravilhosa. Mas tem alguns funcionários lá, sei lá, pode ser qualquer um. A maioria trabalha nisso. Eles fazem de tudo lá, tosa, vendem de tudo, e tem veterinário.

––Somente um veterinário poderia fazer este procedimento. Isso é eutanásia de animais.

–– Algum deles deve ser, não sei.

–– E como eu posso ajudá-lo?

––Você pode esclarecer isso. Você pode afirmar que a insulina mata. A polícia tem que fazer a perícia nos corpos das vítimas, investigar, verificar se não foi injetada insulina neles.

––E quem acreditaria nisso? Com que argumento, como pode afirmar que foi injetada insulina? E além do mais, por alguém da loja? Por que motivo?

–– Pelo que eu ouvi na pet.

––Por favor, esqueça isso. É loucura. Quem pode afirmar que estas pessoas tem alguma coisa a ver com isso?

Raul retirou uma folha de jornal da mochila. Desdobrou-a com cuidado e a entregou a Ricardo. Havia uma notícia circulada com caneta vermelha. Ricardo leu com atenção e ficou em silêncio.

Raul então perguntou, decidido:

–– O que você me diz disso?

segunda-feira, maio 30, 2016

A CIDADE QUE SABIA DEMAIS - 1º CAPÍTULO

Talvez não fosse o momento adequado para Rosa participar da reunião pela formação do novo coral da igreja. Estava decepcionada com o andamento das coisas. Nem mesmo Pe. João parecia muito entusiasmado com a ideia. Estavam tão acostumados com os velhos munícipes que a chegada do pessoal da nova hidrelétrica parecia um tanto incomum. Eram pessoas diferentes, tinham hábitos estranhos que não condiziam com os aceitos pela comunidade. Na verdade, a maestrina Rosa sabia que se tratava de puro preconceito.

Aquela cidade pequena e conservadora não aceitava nada que destoasse de seus princípios. Uma coisa, porém a deixava feliz: a presença de Raul, um membro não participante dos cultos religiosos, mas que se tornava a cada dia mais integrado ao grupo. Era simpático, sempre pronto a apreender os acordes novos, as diferentes nuances das músicas e aceitar presumíveis críticas. Era, além de tudo, muito entusiasmado com a nova tarefa que abraçara.

Rosa tinha certa atração por ele. Não propriamente uma atração física, mas um afeto que a despertava de algum modo mais vibrante do que com os demais. Nem sabia muito bem o motivo, talvez pela maneira carente com que se comportava, sentindo-se sempre sozinho desde que a mulher o abandonara há dois anos. Provavelmente suas manifestações fossem muito sinceras, o que chamava a atenção de Rosa e de alguns outros representantes do coral.

Havia outros três novos integrantes, de outras paragens, que não eram muito bem aceitos. Rosa pensava o quanto os seus colegas de coral eram cabeça dura. Afinal, preocupavam-se com a falta de novos participantes no grupo e agora que surgiram interessados, alguns faziam cara feia. De todo modo, tomaria uma atitude. Marcaria uma reunião para esta noite e exigiria a presença de todos.

Deixou o hotel onde trabalhava por longos 15 anos, comprou ração para o seu velho labrador que a acompanhava há tanto tempo, passou pela biblioteca pública para tirar cópias de uns jornais históricos da cidade, pois fazia uma pesquisa da música através do tempo, na sua cidade natal e voltava para casa.

Já passavam das sete da noite, estava esfriando e a escuridão tomava conta da rua. As árvores formavam figuras estranhas enfeitando as calçadas. De repente, aquele caminho que costumava fazer durante tantos anos, parecia mais longo e assustador. Sentia um certo temor como se alguém estivesse à espreita, esperando-a para atacá-la. Sabia que era só uma impressão absurda, mas mesmo com esta certeza, sentia-se insegura. Por sorte, não estava tão longe de casa e quando se deu conta, já podia atravessar a rua e entrar rapidamente no velho portão de ferro.

Percorreu a calçada estreita de lajotas irregulares, abriu a porta e olhou em torno. Nada havia de estranho, a não ser a mesma decoração despojada de quadros de pintores locais e a sala com móveis tão gastos que pareciam do século passado. Uma cortina pesada pendia do teto com um pé direito exagerado, denotando a arquitetura antiga da casa. A janela de postigos de madeira, pintados de verde e as vidraças coloridas compunham o ambiente um pouco descompassado. No canto da sala, uma mesa de mosaico. Nada mais a não ser um piano antigo e uma estante com livros, estranhamente fora do lugar. Não parecia uma sala de visitas, talvez uma biblioteca ou um gabinete de música ou de estudos.

Talvez fosse tudo isso. Ligou o interruptor, deu alguns passos atravessando outra pequena sala, com uma TV e algumas poltronas, quase vazia, a não ser um porta-revistas e um velho abajur perto da poltrona. Na poltrona, um notebook preso a uma tomada na parede recarregando a bateria. Numa mesinha de aproximação, os óculos esquecidos, talvez à espera de alguma leitura ou da próxima pesquisa no controle remoto. Olhou em torno, como se quisesse se certificar que tudo estava em ordem. Rosa era meticulosa, burocrática. Deixou uma pasta com partituras sobre a mesinha. Afastou-se de vez em direção à cozinha. Espiou pela janela que dava na pequena área e teve um sobressalto, com a sensação de que seu cão estivesse morto. Abriu a porta e correu ao seu encontro. O animal respirava, mas estava num sono profundo, como se houvesse tomado um sedativo potente. Chamou-o várias vezes, levantou com esforço a cabeça pesada do animal, mas este abria os olhos enviesados e voltava a dormir.

Rosa estremeceu. Seu cão de guarda, seu amigo de todas as horas estaria morrendo? Havia sido envenenado, talvez.

Então, correu até o armário da lavanderia, retirou uma lanterna, para examiná-lo melhor. Trouxe consigo também o celular, chamaria o veterinário imediatamente, descreveria o que estava acontecendo com o cachorro.

Na verdade, o que diria? Que ele estava dormindo? Não havia sinais de que estava doente.

Mas estava muito estranha esta dormideira toda. Um animal tão ágil, principalmente na sua presença e agora, ele nem se animava a mexer a cabeça em sua direção. O máximo que fazia era olhá-la de esgueiro e cerrar imediatamente os olhos, como se não conseguisse mantê-los abertos. Estava ali, caído, estático. Quando tentou ligar, um suor frio invadiu sua testa e um mal-estar geral a fez cambalear, quase desequilibrando-se do modo de como estava agachada junto ao animal. De repente suas costas pesavam toneladas e não conseguia se mover, paralisada. Temia voltar-se na direção da voz que soava ao seu lado, mas sabia que a reconhecia.

O vulto se esgueirava no outro lado da área, próximo à janela que dava para o quarto.

––Rosa, por favor...

Com muito esforço, virou-se, empunhando com a mão trêmula a lanterna na direção da pessoa que estava em sua casa. Num suspiro de alívio e pânico ao mesmo tempo, numa confusão de sentimentos, exclamou, apavorada:

–– Raul, o que está fazendo aqui? Como entrou na minha casa?

Raul esfregou os olhos, sentido o peso da luz. Pediu desculpas, afastou-se um pouco apoiando-se na parede oposta. Depois, aproximou-se e agachou-se ao seu lado, acariciando o cão.

–– Me diga, como se chama?

–– Nada original, D’tartagham, um dos três mosqueteiros.

Raul sorriu e continuou afagando o animal. Por fim, comentou:

–– Ele era apenas um aspirante. Não chegou a mosqueteiro, mas cresceu tanto na trama que Alexandre Dumas o promoveu aos poucos, ao almejado posto de mosqueteiro.

––Você conhece tudo dos três mosqueteiros?

––Não, imagina, quem sou eu pra ter tanto conhecimento. Só que gosto de investigar algumas coisas que me agradam. Sabia que a missão de D’artagham era apenas introduzir os demais na história? Ele não passava de um personagem secundário. Mas depois, teve muito realce.

Rosa levantou-se ficando ao lado do animal, como se o quisesse protegê-lo. Apesar da conversa um tanto absurda, manteve-se razoavelmente calma, controlando o nervosismo em que se encontrava. Queria explicações. Queria saber como o colega entrou na sua casa. Ele a observava, ainda sorrindo, levantando a cabeça com certo esforço. Em seguida, completa:

–– Ah, desculpe, minha amiga. Você nem vai acreditar. Acho que eu dei uma pirada legal.

––Por favor, Raul, seja mais explícito. Eu não estou entendendo nada. Além disso, estou muito preocupada com o meu cachorro. Olha o estado em que ele se encontra.

–– Não se preocupe, não é nada.

––Como não é nada? D`artagham quase não se mexe. Ele está estático, atordoado, parece fora do mundo.

–– É verdade.

— Mas então?

––Vamos começar do início.

Rosa cruza os braços, num gesto forçado, como pronta para repreendê-lo.

––Estou esperando.

Ele parece encabulado, olhando-a meio por baixo dos olhos.

Rosa desconfia, no entanto, que tudo não passa de encenação.

Raul prossegue:

––Bem, Rosa, sei que agi mal e espero sinceramente, que você me desculpe. Afinal de contas, invadi a sua casa. Mas é que eu estava num mato sem cachorro, desculpe o trocadilho. Eu estava esperando você, estou muito chateado com algumas coisas que estão acontecendo no nosso grupo, ouvi algumas coisas que não gostei, me senti ofendido, enfim. Bom, como disse, queria muito falar com você.

–– Está bem, por isso entrou aqui, não sei como. Mas depois me explica. Quero dar um jeito no D`artagham, preciso chamar o veterinário.

––Eu acho que não é preciso.

–– Por que você diz isso?

–– É o que eu ia explicar a você. Bom, resumindo o papo, eu estava aqui fumando um baseado. Acho que ele … bom ele fumou junto, só isso. E até acabou mastigando alguma bagana, sabe, deixei cair e ele...

–– O que você está dizendo? Entrou na minha casa para fumar maconha? E ainda diz que drogou o meu cachorro?

–– Não é bem assim, fique calma. Eu acho que ele estava muito perto e adormeceu, entende? Alguns cães ficam intoxicados. Outros, apenas meio lesados, entende? Então, não é pra se preocupar, daqui a pouco, ele fica bem.

Rosa o encarava, indignada. Não sabia se pelo estado do cachorro ou pela invasão em sua casa, com o agravo dele estar usando drogas. Ou tudo junto.

–– Por favor, Raul, saia daqui.

––Mas você não vai ouvir o que me aconteceu?

––Não. Outro dia, você me conta. Vá embora.

––Então, está bem. Tome a chave.

–– Como você tinha a minha chave?

––É o que queria explicar-lhe.

–– Você tem muito a me explicar realmente. Mas amanhã, na reunião, nós conversamos. Por favor, saia daqui.

Pegou a chave e seguiu-o até a porta da frente. Viu-o afastar-se na luz do poste até sumir totalmente na noite escura. Rosa estava confusa e irritada. Afinal o que teria acontecido para Raul agir daquela maneira? E esta história de maconha? Se ele era usuário, como nunca havia percebido? Se bem, que não se percebe claramente estas coisas, a não ser que a pessoa esteja sob o efeito da droga. E ela não tinha nenhuma experiência no assunto. Voltou para dentro, ensimesmada e com muita raiva pelo ocorrido. Tentou ligar para o veterinário, mas não conseguiu encontrá-lo. O celular sempre com a monótona mensagem de fora de área. Certamente, ele estava viajando ou metido em uma de suas reuniões, já que costumava se afastar por vários dias da cidade. Diziam as más línguas, que é engajado num grupo de ultraconservadores, que pretende dar um fim aos avanços sociais da humanidade, pelo menos nos representantes de sua cidade. Falácias do povo. O problema é que não conseguia contatá-lo àquela hora.

Rosa lembrou de Ricardo, o jovem médico que chegara à cidade e que estava hospedado no hotel em que trabalhava. Mas chamar um médico para tratar do seu cão, seria uma medida meio absurda. Certamente, ele se recusaria.

domingo, maio 29, 2016

O OUTRO

Estava assim à procura do tempo e o avistei sozinho. Parado que se encontrava à porta da igreja. Barba longa, desleixo involuntário. Pele escura, encardido.

Sol a pino, um boné velho, virado para o lado, uma gosma escorrendo no canto da boca entreaberta com dentes falhados, amarelos, mastigando levemente a vida.

Nos olhos, uma fuga estranha, um olhar para dentro, um não sei o que faço, que assustava.

Por um momento, senti certa náusea. Olhar aquele ser humano, e poder enxergar esta condição, me apavorava. Difícil para qualquer um entender. Difícil pensar no assunto e enfrentar a situação.

Aproximei-me com moedas pesadas, ajustadas na palma da mão, mergulhadas que estavam no bolso, escorregadias no tilintar dos dedos.

Acho que o assustei, porque me olhou de soslaio, meio apalermado, temendo talvez uma sacudida, um pedido que saísse, ou uma ordem de evacuação do espaço.

Que nada. Sorriu ao ver o brilho das moedas, bem maior para os seus olhos. Segurou-as rápido e afagou a minha consciência, no beneplácito da ação.

Senti-me culpado. Dar moedas, quando poderia oferecer qualquer coisa que me tornasse um pouco mais próximo, mais intimo, mais afetuoso. Quem sabe, uma pergunta, uma palavra qualquer. Um desejo inconsciente de relacionamento. Bobagem.

Naquelas condições, o máximo que faria é esfregar o dorso da mão nos olhos, ante a minha figura emoldurada nos últimos vestígios de sol, que ainda iluminavam a praça.

Em volta, pessoas caminhavam rápidas, preocupadas consigo, temerosas de assaltos, envolvidas em suas pequenas paixões do dia, se as tivessem, sobressaindo talvez às mediocridades do cotidiano.

Quem sabe viver plenamente era enfrentar estas contingências da civilização atual.

Quem sabe este confronto não faz parte de nossas existências, para alicerçarmos nossos pequenos desafios, percorrer os degraus às vezes mais acima, outras bem inferiores, irregulares sempre.

Talvez fosse assim este ato de coragem de enfrentar a vida, suas vicissitudes, seus vazios, suas perdas e monótonas contradições, seu dia a dia morno, estável e seguro.

Que seguro? Se precisas fossem as armas que nos apontam. Se não fossem ainda miradas através de olhos humanos, de mãos frágeis, vagabundas, certamente poucos de nós restariam.

Ou só eles, os fortes, os modificados geneticamente, os robôs, os clones, os desumanos. E seriamos então a constituição de todas estas raças artificiais. E nem armas, nem moedas, nem afetos nos trariam à vida. Certamente, tudo descambaria para a vala comum da insanidade.

Mas ainda o vejo ali, deitado, uma perna esticada, mostrando os músculos danificados, através da calça rasgada até o joelho, sujo e fedorento.

As mãos ensimesmadas uma na outra, esfregando-se, fingindo frio, fazendo tilintar as moedas que brilham nos bolsos.

A cabeça encostada no canto da porta, à esquerda, pendente, pedindo socorro.

Cabelos sebosos, amarfanhados, divididos na nuca no confronto da madeira.

Por que continuo observando-o se nada tenho a oferecer.

Talvez este olhar complacente, que raramente possuo. Talvez este jeito despojado, esta vontade esquisita de ir ao poço de mim mesmo e descobrir ali, um pedaço da humanidade, aí, repartida em mil cabeças, cada uma ruminando o seu destino, alijadas de um processo de cidadania que a poucos contempla.

Talvez seja ele um protótipo de nossas insensatezes, de nossas precárias participações da comunidade, do nosso desejo fraco do coletivo.

Afasto-me e temo encontrá-lo novamente.

Por certo, tremerei o coração, mas não por ele. Recordo Hemingway, e entendo por quem os sinos dobram. Eles dobram também por ti.

Meu coração estremece, solitário e doído, por mim.

Fonte da ilustração: http://moradorderua.zip.net

quinta-feira, maio 19, 2016

O ALBATROZ E O VOO INTERROMPIDO

Às vezes, observo as aves sobrevoando a lagoa ou mesmo em voos rasantes nas dunas irregulares do Cassino. No céu, algumas em relevante altitude, mas todas com uma elegância que nos encanta e enche o coração de esperança.

Lembro então da lenda do albatroz, que seguia o navio de Fernão de Magalhães, auxiliando-o na rota, pois após uma tempestade havia se perdido, chegando próximo à Antártica. Ele guiou o navio, afastando-o dos ventos glaciais, mas um marinheiro o matou usando-o como alvo.

O barco naufragou e o único sobrevivente, o marinheiro atirador, teve como castigo a incumbência de contar ao mundo a história do pobre albatroz.

Em determinadas situações, o homem age como o marinheiro desavisado e mata a única esperança de sobrevivência. Ou apenas ele sobrevive por algum tempo em sua traição, mesmo que sua embarcação ainda navegue por águas ilegais. Ocorre um arremedo de vida, de liberdade vigiada e nem sempre a história contada poderá resgatar a solidariedade perdida.

O albatroz morre e mesmo que sua condição de bússola tenha algum respaldo na natureza, o voo livre fora interrompido em definitivo, rasgando a cartilha das aves.

Fonte da ilustração: Portal Brasil — http://www.brasil.gov.br/meio-ambiente/2015/03.

quarta-feira, maio 04, 2016

O papeleiro, a biblioteca e a Instituição Acadêmica

 

Esta crônica foi publicada no Jornal do Cassino, em 2009. Pela atualidade do tema, achei conveniente publicá-la também neste blog.

O artigo da jornalista Marielise Ferreira, na edição de domingo, 30/12/08, de Zero Hora, traz o texto sugestivo “Do lixo para as prateleiras, com o seguinte subtítulo: papeleiro funda biblioteca em Passo Fundo e leva a literatura à periferia.

No decorrer do texto, deparei-me surpreso e ao mesmo tempo emocionado com a atitude do Sr. Valdelírio Nunes de Souza, homem de origem simples, que estudou até a 5ª série fundamental, cuja sensibilidade aliada ao reconhecimento da importância dos livros, (os quais considera tesouros) abdicou do lucro de sua venda, para constituir uma biblioteca, visando compartilhá-la com os seus.

Nesta altura, fico me perguntando, enquanto bibliotecário e servidor público, o que temos feito com as nossas bibliotecas, o quanto de importância dedicamos a sua estrutura, ao seu acesso, à disponibilidade da comunidade.

Talvez nos dediquemos com profunda dedicação às atividades cotidianas da biblioteca, desde o processamento técnico dos documentos até a sua distribuição no acervo físico.

Quem sabe falta-nos uma integração maior entre os pares, uma mesma expectativa que conduza à mudança, que tire a poeira antiga dos velhos padrões. Talvez nos falte a sensibilidade e a ousadia do enfrentamento da realidade que nos cabe, imposta pelo mundo globalizado, cujas políticas desastrosas de governos anteriores nos transmitiram como herança jamais desejada. Talvez nos acomodemos no cenário de dificuldades que nos cerca e não bisbilhotemos a disposição do vizinho, o projeto “elencado” entre outros tantos para a transformação da realidade. Talvez não saibamos reivindicar nossos direitos e se o fazemos, somos barrados incólumes, por uma cultura ultrapassada e adversa de que recebe quem grita mais (ou chora mais).

Por outro lado, estas divagações me reportam às propostas dos candidatos a cargos superiores das instituições, que via de regra, em suas plataformas políticas, metaforizam a biblioteca como elemento aglutinador da comunidade acadêmica, utilizando-se exaustivamente de figuras criativas, produzindo apostos que a relacionam a órgãos nobres do corpo, quase sagrados. São estes: o cérebro, o coração, a própria mente, quando não muito, o subconsciente ou quem sabe, com o evoluir do abstracionismo mental, o próprio espírito subjacente que paira na atmosfera da academia.

Entretanto, se me parece, estes órgãos e demais processos psíquicos e até espirituais, aos poucos perdem o seu poder de barganha, sendo substituídos por um órgão mais obscuro, não tão elevado, talvez um excretor, não que este não possua extrema importância no desempenho do corpo humano.

Se não vejamos, experimente o leitor acessar a página da biblioteca em um portal de uma instituição educacional. É uma tarefa quase inglória, caso não tivéssemos a pertinácia e desenvolvêssemos uma performance física para tanto. (E aqui falo em dezenas de instituições pesquisadas, excetuando-se a Furg, que já colocou em sua página um link para a biblioteca). Em geral, o nome biblioteca, que às vezes, surge emoldurada por serviços, centro de bibliografia, rede de informação, vem tão escondido que tememos tratar-se de palavrão, proibido a crianças desavisadas ao mergulharem no mundo da informação.

Não me absolvo enquanto profissional da área, porque atirado na rotina das questões pontuais, prescinda de utilizar os recursos de marketing, empregando as ferramentas indispensáveis para mostrar a biblioteca ao mundo, colocando-a no lugar em que merece, seja através de blogs, fóruns, ou na solicitação insistente aos órgãos responsáveis pela divulgação, corroborando assim na luta ferrenha para mostrar nosso trabalho.

Que a biblioteca não seja propagada, abençoada, aliciada, almejada, amada somente nos períodos de eleição, mas que seja plena, visível e alicerçada em suas metas, durante o ano todo. Que cumpra a sua missão, que identifique os seus recursos, que indique caminhos, que vislumbre trajetórias novas e ágeis, que ouse.

Talvez, assim, sigamos o exemplo do Sr. Valdelírio Nunes de Souza, um verdadeiro bibliotecário, cujo único título é reconhecer na sua concepção de vida, um projeto maior, no qual faz as escolhas que seu coração exige. Não apenas um especialista em sua área singular, um mestre na redoma ou um doutor em campanha.

Que sejamos assim, Valdelírios em nossa trajetória profissional e de vida, porque o mundo não espera, a roda das oportunidades e decisões gira e outros tomarão o nosso papel.

domingo, abril 24, 2016

Olhar noir

Nem sabia se devia sair, mas em dado momento, sentiu-se mal. Uma mulher de sua estirpe, por mais que aquele povo representasse a elite, havia entre eles alguns estapafúrdios, que demonstravam uma dissonância com o movimento, que a deixava irritada.

Estava muito calor, homens suados e sem charme, vestidos em camisetas bregas pedindo autógrafos e às vezes, dando encontrões maliciosos. Se ao menos partisse de um garoto malhado, barriga tanquinho, barba mal feita e boca sensual, daquelas que suplicam um beijo cinematográfico. Que nada, havia até uns velhos decrépitos, de bermuda branca e sandalha de velcro, uh, que coisa execrável! Era hora de dar o fora, uma atriz de seu cabedal, filha de militar, que fora casada com diretores e até mágicos, inclusive se tornado virgem a pedido do policial, aquele cafajeste! Mas deixa pra lá, agora ela ainda dá os seus pitacos nos novinhos!

Afastou-se do grupo constrangedor. Ouvia o seu nome a todo momento, Susi Silveira, Susi Silveira, o que produzia uma amaciada no ego. Entretanto, havia alguém diferente na turba famigerada: um rapaz fascinante, que a atraiu de imediato. Percebeu o seu olhar incisivo, revelando um sorriso que a desconcertava. Foi num destes mimos que a vida às vezes nos propicia, que o viu aproximar-se, segurar-lhe o braço, e em seguida envolver-lhe a cintura. Ela o beijou com avidez, enfiando a língua naquela boca sedenta, girando até o céu da boca e sentindo o hálito quente e agradável de um verão que retornava.

Chamou seu assessor e pediu que o motorista os levassem para um bar descolado, bem afastado da praia. Descobriu que estudava publicidade, sonhava em ser ator e a considerava uma mulher encantadora, além de ter enorme tesão por suas pernas perfeitas. Susi estava feliz: não é sempre que aparece um deus assim!

Em seguida, foram para o seu apartamento na Barra, um local onde os paparazzi não a encontrariam. Cumprimentaram o porteiro e ela o beijou com despudor no elevador.

No quarto, a sacada para a praia, o rapaz com o olhar perdido ao longe. Ela tomou um banho e voltou envolta na toalha. Pediu que ele fizesse o mesmo, mas de modo inusitado, ele disse que desceria para tomar ar. Garantiu que voltaria com enorme tesão, o que a deixou mais animada.

Esperou como uma dama. Quem sabe, seria este o seu novo amor? Porém, o tempo passou e o rapaz não voltava. Ligou para o porteiro, sem obter resposta. Ficou ansiosa. Se aquele cara fosse um marginal, um bandido? Não, ele era um estudante que lutava contra a corrupção, um cara da zona sul, da elite.

Vestiu-se, desceu os 23 andares e observou da porta do elevador, que o silêncio imperava no prédio. Dirigiu-se à portaria. Não havia ninguém. Caminhou pelo hall do edifício e avistou a sala dos funcionários.

Aproximou-se, tentou bater na porta, mas aquietou-se, quem sabe, o porteiro estava ali, cumprindo alguma tarefa. Mesmo assim, decidiu entrar, precisava saber onde estava o rapaz que … afinal, como era mesmo o seu nome?

Empurrou a porta com força e na penumbra, ouviu suspiros e frases inintelingiveis. Seus olhos acostumaram-se um pouco e percebeu que dois homens nus disputavam um prazer que se revelava quase em desespero, resgatado em suas bocas, seus corpos, seus membros intumecidos. Tudo isso ela viu, até mesmo o olhar que se projetou, quase num foco de cinema noir, aqueles olhos claros e límpidos que a encaravam transtornados.

Lá embaixo, o assessor sorrindo, feliz pela ousadia da amiga correu ao seu encontro, perguntando, curioso: – Então, não me esconde nada! Como é que foi, amiga?

O motorista encostado no carro, levantou os olhos do visor do celular e misterioso, exclamou: – Por essa, nem Bolsonaro esperava!

sexta-feira, abril 08, 2016

OS DEZ TEXTOS MAIS ACESSADOS DO BLOG

1º O uruguai e seus carros antigos

2º Metáforas cruéis: desqualificação de mulheres e negros

3º Trabalho voluntário no Hospital Psiquiátrico: uma provocação para a vida

4º Um passeio no gordini, com meu pai

5º Pequena resenha do filme “De porta em porta”(Door to door)

6º Minha apreensão da vida e a dos outros

7º Caminhos traçados

8º Comentários emocionantes sobre a crônica “Refugiados em seus sonhos publicada em abril/2015

9º O amor e a piedade: sentimentos distintos

10º Uma diretora valente

quinta-feira, abril 07, 2016

Roteiro de viagem

Parodiando o conto "Circuito fechado"de Ricardo Ramos, eu fiz como exercício para nosso Curso de Formação de escritores o conto "Roteiro de viagem".
Quarto.cama.travesseiro. criado-mudo. alarme. celular. pijama. banheiro. sanitário. pia. sabonete.dentifrício. escova. boxe.chuveiro.toalha. pente.cabelo. cueca. camisa.calça. meia. sapato.agasalho.carteira. mochila. celular.sala.chave. porta.quadra.esquina.rodoviária. box. ônibus. carteira. passagem. poltrona.celular. tablet. sono. manhã.pessoas. conversas. ruas. sinaleiras. rodovia. paradouro. comanda.banheiro. mictório. pia. toalha.bufê.sonho. café.balcão. mesa. cadeira.café. sonho. adoçante. guardanapo.caixa.comanda.tridente.carteira. dinheiro. ônibus. poltrona. celular. tablet. livro. textos. sono. conversas. sons. celular. buzinas. rodovia.rodoviária. banheiro. mictório. descarga. pia. sabonete. toalha. restaurante. salada de frutas. café. tridente.táxi.motorista. conversas. ruas. sinais. placas. veículos. trânsito. engarrafamento. viaduto. celular. mensagem. mulher. filha. mensagem. whatsApp. farmácia. prédio. portaria. porteiro. elevador. sala. curso. pessoas. professora. cadeira. mochila. piso. folhas. café. balas. conversas. café. aula. ar. celular. pesssoas. elevador. portaria. porteiro. ruas. táxi. motorista. gps. conversas. ruas. sinais. trânsito. engarrafamento. viaduto. celular. mensagens. carteira. dinheiro. rodoviária. guichê. passagem. restaurante. café. pastel. água. tridente. box.ônibus. poltrona. celular. tablet. sono. rodovia. noite.paradouro. comanda.café. croassant. mictório. pia. sabonete. toalha. balcão.caixa. comanda. carteira. dinheiro. ônibus. poltrona.sono. silêncio. rodovia. ruas. cidade.centro. mochila.agasalho. rodoviária. esquina. quadra. porta.chave.sala.mulher. filha. conversas. quarto.sapato. meia. calça. camisa. cueca. toalha. boxe. chuveiro. pia.escova. dentifrício.pijama. quarto.criado-mudo.celular.cama.travesseiro.sono.

quinta-feira, março 31, 2016

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI EM FLORES II

Rosas se espalhavam pelo alambrado, tingindo de vermelho o cenário, no qual se avistavam pequenos pedaços de azul da parede do prédio.

Quase não se via o outro lado da cerca, tão fortes estavam as rosas.

Tínhamos a impressão que o verde era apenas um adereço à beleza e ao perfume que revelavam.

Houve momentos em que cresceram tanto, que atingiram o jardim por trás da cerca, envolvendo-se nas margaridas, nas frágeis papoulas ou nos vigorosos cravos amarelos.

Achavamos que o vermelho suplantava as cores da discórdia, do ódio, da intolerância.

Pensávamos que o desafio estava tomado, que o sangue vertido nas lutas pela democracia representava os anseios de uma sociedade fragilizada por anos e anos de dissociação cidadã de sua pátria. Achávamos por fim que a sociedade estava madura.

Mas as pétalas foram caindo aos poucos, lentamente, no subterrâneo dos insetos devoradores, minando as raízes, as folhas, os galhos. Minando o verde da esperança até chegar no vermelho. O vermelho símbolo de tantas lutas, para estas formigas, pulgões e toda a sorte de predadores estimula o ódio, a intolerância, o desamor, o desrespeito, o embate furioso contra as leis, contra a democracia, o golpe.

Pois as pétalas se espalhavam, as rosas vermelhas que enfeitavam e transformavam milhares de cenários cinzas e pobres em espaços de esperança e melhoria, hoje estão sendo dizimadas através da mão canhestra do carrasco, até mesmo dos alienados que seguem o fluxo dos desinformados (ou manipulados).

Mas o mundo gira, e as flores tem a temperança da natureza, há tempo de brotar e por certo nem todas serão destruídas, porque a terra é fértil e o adubo está aí, pra ser espalhado.

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