Este blog pretende expressar a literatura em suas distintas modalidades, de modo a representar a liberdade na arte de criar, aliada à criatividade muitas vezes absurda da sociedade em que vivemos. Por outro lado, pretende mostrar o cotidiano, a política, a discussão sobre cinema e filmes favoritos, bem como qualquer assunto referente à cultura.
sábado, agosto 22, 2015
Na fazenda
sábado, agosto 15, 2015
PEQUENA CRÍTICA SOBRE O FILME A VIDA NO PARAÍSO (Så som i himmelen)
terça-feira, agosto 11, 2015
APONTAMENTOS NO SÓTÃO
sexta-feira, agosto 07, 2015
José: um homem de fé
Quisera ser como tu, José. Tiveste a vida devassada pela sociedade patriarcal e machista da época. Carpinteiro que eras, carregaste pedra, para sobreviver. Lutaste contra as injúrias, o preconceito, o ciúme, a dor. Lutaste contra teus sonhos. Mas tua integridade justificou-se no amor por Deus. Um homem de fé. Um homem que superou os preconceitos e derrubou a maledicência. Que honrou a mulher. Que soube ser fiel, quando todos o julgavam, quando ele mesmo temia e a incerteza rondava seus pensamentos; quando a morte da dúvida avassalava seu ser. Um homem de fé. Que soube vencer os medos e discernir entre o que a sociedade lhe tirava e o que a vida lhe entregava de galardão.
Mas como enfrentar tudo isso, se não pelo amor?
Tu amaste, José. E por este amor, sobrepujaste qualquer temor, qualquer discórdia em teu coração. Quantas vezes choraste, José. Turbulências na vida, somente aplacadas pelo anjo a ti enviado. Até que a calma chegou e a mansidão de tua alma alternou a dor com a alegria. Tua sobriedade e honradez te tornaram o pai amoroso que lutou pela vida do filho amado. O medo, as traições te perseguiam, a ponto de precisares fugir para salvar teu filho. E foram tantos os dissabores, que precisaste superar! Por certo, soubeste ensiná-lo! Soubeste transmitir-lhe a sabedoria da paz, da tolerância, do momento certo de agir. Afinal, ficaste quatro anos no Egito para voltares à terra natal. E haja paciência para aguardar o tempo que já não era teu. E quando tudo parecia acomodado e tranquilo, teu filho se sobressaía entre os doutores da lei. Ali perto, à sombra, humilde o procuravas, orgulhoso talvez de o vires tão bem relacionado. Teu coração ordeiro e sábio, no íntimo sabia que ele voaria alto e que o Espírito justificaria em plenitude sua jornada. Por certo, José, não conhecias o futuro, mas teu coração garantia a tua parcela de protagonismo, mesmo ali, apenas na espera de teu rebento. É muito difícil ser como tu, José. Um homem onde a dúvida é aplacada pela fé.
domingo, agosto 02, 2015
QUAL SERIA O ACONTECIMENTO MAIS IMPORTANTE DA SEMANA?
domingo, julho 26, 2015
O invisível e suas previsões
As pessoas que passavam por ele, pouco percebiam seu jeito displicente, sentado no banco, fazendo companhia às pombas que pululavam, se reproduzindo em quantidade extrema.
Um dia, reparei que estava do outro lado da rua, distante alguns metros do largo onde costumava ficar. Vi que se aproximava de uma banca de revistas e examinava detidamente as capas, como se pesquisasse algum assunto interessante. Ficou ali, parado, algum tempo. Logo aborreceu-se, porque afastou-se um pouco, olhando para o chão, mão esquerda dobrada no queixo, a outra estendida alisando a coxa magra, como se refletisse o que havia lido. Voltou em seguida e deparou-se com a revista que me parecia estar mais interessado.
Encostei-me numa vitrine, sob a marquise da loja, porque começava a cair uns pingos finos e procurei abrigar-me. Não conseguia desviar o olhar da cena. Capitão parecia muito interessado. Percebi que chamou a atenção do vendedor, que nem se dignou a responder, entretido em que estava na faina de organizar uma leva de revistas que chegara. Capitão insistiu, mas nisto chegou um outro freguês, que comprou recarga de celular. Atendeu-o e retomou a atividade anterior. Capitão tornava-se ansioso. A saliva brotava-lhe dos lábios, os olhos fixos, com um brilho alucinado. Até que o homem perguntou, negligente, o que queria.
A chuva aumentou, fazendo com que me abrigasse dentro da loja. Ainda prossegui observando Capitão, do outro lado da vitrine. Um balconista me interrompeu, imaginando que deveria vender-me alguma coisa. Mostrou-me calçados, falou-me em bolsas, cintos ou carteiras. Já não o ouvia, tentando explicar-lhe que estava apenas me abrigando da chuva e logo que amainasse um pouco, sairia. Ele se afastou um pouco, mas ficou por perto, talvez temendo que eu não fosse apenas um transeunte atrapalhado pela chuva. Ainda comentei sobre o Capitão, personagem conhecido da cidade, na sua tentativa de comunicar-se com o dono da banca. O rapaz olhou pela vitrine, mas não deu muita importância ao fato. A chuva batia forte no vidro, embaçando a visão.
Do outro lado da rua, a cena se desenrolava sem qualquer avanço, pois Capitão colocava as mãos na cabeça, enquanto a chuva lavava seu corpo mirrado. Afastou-se alguns metros, voltou decidido, parando na frente da banca. Foi só por um minuto, pois desapareceu logo na enxurrada que levava carros e pessoas à tona, em busca de abrigo e fuga do lamaçal.
O dono da banca de jornais, baixou a porta pela metade, impedindo que a chuva molhasse as revistas e talvez temendo que Capitão voltasse. Resmungava sozinho, juntava o que podia rapidamente e espalhava plásticos , envolvendo jornais, revistas e outros objetos que faziam parte do negócio. Olhei em torno, a loja estava cheia de clientes e os funcionários andavam às voltas com o atendimento. Apenas o rapaz que me perguntara, fingia arrumar alguns calçados na vitrine, para cuidar as minhas atitudes.
Resolvi afastar-me, correndo por debaixo de marquises e entrando imediatamente no primeiro bar que encontrara. A tarde já anunciava seus últimos reflexos sobre as lajotas encharcadas, antecipando uma noite escura que surgia entre os prédios, perdidos na chuva que não amainava. Sentia um certo frio, talvez em virtude dos braços molhados e do peito, anteparo para o restante do corpo, enquanto corria em direção ao bar.
Pedi um café expresso, à beira do balcão. Homens conversavam afoitos, falando via de regra em futebol ou nos últimos acontecimentos políticos que estimulavam a frustração da cidade. O vendedor bateu com o copo no granito do balcão, mostrando que eu estava servido. Talvez estivesse distraído, ainda pensando em Capitão, pois tive um leve estremecimento. Olhei-o meio que censurando, mas não disse nada. Tomei o café em alguns goles, aquecendo o corpo. Fiquei ali, algum tempo, encostado no balcão, sentindo o gelo da pedra nas minhas costas.
Um homem aproximou-se e largou uma maleta bem ao meu lado. Parecia preocupado com o horário, pois examinava o relógio, confirmava com o do celular, perguntou-me as horas e respirou aliviado, certificando-se que o seu estava correto. Pediu um café também, mas solicitou algumas gotas de conhaque, que misturaria no líquido, para aquecer a garganta. Mostrava-se ansioso. Os olhos, vez que outra, se grudavam na porta, como à espera de alguém que encontraria numa emergência. Outro atendente trouxe a bebida, desta vez não era o que me servira. Era um menino ruivo, topete nos olhos, cheio de pintas no rosto. Mostrava-se ser muito conhecido dos frequentadores, pois fazia pilhérias a todo momento com um ou outro, exaltando o time pelo qual torcia e desmerecendo o dos demais. O que me atendera o olhava de soslaio, um tanto irritado. Devia ser o dono do bar e não lhe agradava aquela manifestação, que poderia prejudicar o atendimento. Mas nada dizia, já habituado com as manobras futebolísticas do rapaz. O homem que estava ao meu lado, confessou, em dado momento, quase num desabafo. – Deixei de fumar, faz um mês. Mas, hoje, especialmente, não sei se vou suportar ficar sem nenhum. –Mas se faz um mês, é melhor persistir. Quem sabe, esta aflição passa.
Ele me olhou como se estivesse a sua frente um alienígena. Suas mãos Tremiam e o anel vermelho tilintava no granito. Resolveu pedir um conhaque, agora sem o café, um copo cheio. Olhei de esguelha e me aquietei. A chuva já estava parando e estava na hora de voltar para casa, investir nas ruas alagadas até a estação do metrô. Virei-me no balcão para pedir a nota do café e descuidado, derrubei a maleta ao meu lado. Levantei-a rapidamente, pedindo desculpas. Era pesada, a impressão que tinha é que havia um corpo esquartejado e dobrado lá dentro. Imaginação de escritor, pensei. Mas não pude evitar surpreender-me com a ansiedade do homem que a segurou com as duas mãos, como se quisesse protegê-la de um invasor, no caso, eu. Sua voz soou, gutural, metálica. _ Eu precisava tanto dele, e não veio. Deve ser pela chuva.
sábado, julho 25, 2015
PRESO NA IGREJA
Era início de noite de outono, mas havia uma sensação térmica mais fria do que se antevia no final da tarde, sintoma de que a estação do frio se prolongaria por bastante tempo. Uma neblina envolvia a cidade. Pouco se via os edifícios ao longe e suas iluminações fracas, espalhadas no cinza aguado da atmosfera.
Entrei na Igreja do Carmo (Rio Grande,RS) com o intúito de fazer uma oração breve, acompanhado de uma novena escrita, que depositaria na mesa providencial: conforto e esperança para os desanimados, acabrunhados em relação às dificuldades que a vida às vezes nos reserva ou mesmo esperançosos, eufóricos até, na certeza do atendimento das preces. Por vezes, e raríssimas exceções, apenas um momento de reflexão e agradecimento. Os que tem fé nutrem-se destes momentos de verdadeiro encontro consigo e com a Divindade, os que por ventura se alijam destes comprometimentos, ou por terem dúvidas ou mesmo, desprovidos de qualquer entendimento no sentido da entrega total e absoluta de quem crê, servem-se destes momentos para dar uma parada em sua vida cotidiana e mergulharem em seu próprio eu.
Talvez tudo não passe de absolutas divagações. Quem pode traduzir os sentimentos, a ideologia ou mensurar a fé ou falta da mesma nos outros? Ou em nós mesmos. Com que instrumentos podemos transformar em estatísticas estes aspectos tão humanos, que são os da dúvida, do medo de duvidar, da confusão de pensamentos, da ciência como autora indômita de nossas resoluções ou aliada a nossas crenças? Não passa de um exercício de adivinhação.
De qualquer forma, estive na igreja, naquele fim de noite com o mesmo objetivo de milhares de pessoas, exercitar a fé, não talvez aquela fé formal moldada pela religião, mas uma fé personalizada, quase única (não deve servir de modelo), mas que em muitas vezes, me traz um acalento à alma que não encontro em outras relações, a não ser via de regra, pela escrita. Esta me faz sonhar, devanear, envolver-me além das fronteiras do pensamento racional e consequentemente me libertar de mim mesmo. Alçar vôos extremos que me permitem alcançar uma amplidão de sentimentos, que me faz rezar, rezar da maneira mais pura, talvez, um reza interior, incitada pela liberação do eu nos meandros do pensamento mais elaborado. A alma fica solta, despudorada, sem subterfúgios nem máscaras, nas regiões descampadas, nas quais o senso comum e a padronização das virtudes e desejos se desfaçam num rol de coisas inúteis, sem valor. Entre a fronteira da ilusão e da liberdade, aí se encontra o meu mundo ou o mundo dos que escrevem e assumem o seu estar, desimpedidos das fronteiras sociais, estas que realmente impedem o pensamento e a reflexão.
Mas, estava lá, num dos últimos bancos, ainda na penumbra, que por minha surpresa, avançava ainda mais, ficando quase em plena escuridão, somente evitada pelas poucas velas acesas no altar. Ajoelhei-me, fiz minhas orações, larguei dissimulado o papel da novena na mesinha, próxima à parede de vidro que separava o hall de entrada do ambiente interno do templo e voltei-me para o banco, desta vez, sentando-me e observando um número reduzido de pessoas que se agrupavam próximas ao altar.
Não demorou muito e começaram algumas orações, com as pessoas se ajoelhando em torno do altar. Em sequência, houve inúmeras canções religiosas, todas de uma melodia contrita, invocando o Espírito Santo, os anjos e demais santos da Igreja. Não quis afastar-me assim, repentino, porque havia começado o que me parecia um culto não muito usual, embora fosse da igreja católica. Imaginei uma missa de louvor, mas não havia nenhum dos rituais que confirmassem esta minha convicção. Pela minha ignorância, não percebia que era uma espécie de benção às pessoas que ali estavam, recheada de testemunhos, chegando ao clímax da chamada língua dos anjos.
Então, resolvi quebrar as regras da boa educação e afastar-me, já que não tinha me preparado para participar do ritual, mesmo porque havia outros compromissos e nem deixara nenhum recado em casa. As pessoas me esperavam e eu, nem trouxera o celular. Levantei-me no maior sigilo, esgueirando-me por entre os bancos, evitando fazer qualquer ruído e dirigi-me praticamente na escuridão (porque nos fundos da igreja, a penumbra já era escuridão absoluta) em direção à porta, tateando entre uma mesa no caminho, a parede envidraçada, que separava o hall, o mural de informações, e finalmente uma das portas laterais. Respirei, aliviado. Ali estava minha salvação. A porta. A liberdade, não que estivesse me sentindo mal naquele ambiente tão bem sintonizado com a bondade, a contrição do pensamento, a invocação a Deus. Ao contrário, estava guarnecido por um sentimento de paz e serenidade. Mas um outro lado, o do dia-a-dia, das tarefas por fazer, da rua que me esperava para afastar-me em direção à minha casa, o cumprimento de compromissos, o fato de não poder participar na íntegra do acontecimento e a razão maior, de que o tempo limitado não me deixava saídas, a não ser aquela real, austera, maciça. A porta lateral imensa, pesada, bordada em alto relevo me parecia fechada. Aproximei-me um pouco mais, encontrei a maçaneta que brilhava na penumbra resultante da fronteira entre a parede envidraçada e o hall de entrada.
De lá, ouvia os brados sonoros do padre. Fazia um discurso, que de certa forma apontava pessoas, pessoas que como eu não participavam da missa e eventualmente surgiam nestes momentos de ligação com o infinito, revelando que estavam sedentas de fé e religião. Sentia na pele que o discurso era pra mim. Delírios de quem se encontra num aperto. Mas ele prosseguia, como “aquele senhor ali, quer aproximar-se, receber a benção e apagar de vez a sua vida pregressa?” Claro que não se referia a mim, pois eu continuava preso entre o hall e a porta envidraçada. Girei com força a maçaneta. Já não sentia frio, nem me importava a neblina que se transformava em chuva lá fora. Meu coração palpitava agitado, não mais tranquilo, não mais sereno, não mais em paz. Um suor frio escorria-me pela testa atingindo a gola do blusão de lã, passando pelo colarinho da camisa. A porta não se abria de jeito nenhum. Então, afastei-me, titubeando entre as paredes, tentando atingir a outra porta lateral, pois qualquer uma das duas, fatalmente alcançaria a porta principal, de onde partiria para a rua, em definitivo. Fiz a mesma função anterior e nada. A porta até balançava com meu esforço.
Ouvi passos cujos ruídos aumentavam e estremeci. Alguém percebera o meu interesse em fugir e talvez pensasse que eu não passava de um ladrão forçando a porta. Mas era a porta que dava para a principal, ou seja, para a rua! Voltei-me devagar e espiei para descobrir o meu vigilante. Os passos diminuíam, bem como o discurso do padre.
Agora as orações eram quase em silêncio, cada um falando consigo mesmo, baixinho, cada vez mais baixinho. Encostei-me na parede próxima à porta e observei a pessoa que caminhava em rodeios. Era uma senhora obesa, que devia estar esticando as pernas inchadas e doloridas e nem de interessava pelo meu caso. Estiquei o braço para a maçaneta que cada vez me parecia mais imensa. Inesperadamente, esta porta lateral da esquerda abriu-se com uma suavidade que me encheu de alegria e esperança o coração. Mas, a odisséia prosseguia, porque havia a porta principal e desta, eu não tive a menor dúvida. Havia ferrolhos tão fortes, que eu jamais abriria.
Voltei desolado para o meu lugar, principalmente porque imaginava minha família me procurando, pois não demoraria dez minutos e já se passavam duas horas.
Em dado momento, as pessoas começaram a ser convidadas para a benção. A maioria situava-se bem próxima do altar, diferente de mim e de dois ou três, talvez não tão engajados, que se dispersavam em bancos afastados. Aos poucos, numa canção suave, as pessoas se dirigiam. Uma vela acesa, segura por um dos ajudantes e o sacerdote punha as mãos sobre a cabeça do indivíduo, abençoando-o.
Não era minha intenção participar do evento, da forma que se me dispusera, nem havia pensado em tal hipótese, muito menos sabia que ocorreria àquela hora, naquele dia. Arquitetei milhares tentativas em sair pela sacristia, imaginei saídas mirabolantes, rezar na frente de um santo qualquer do altar e evadir pela porta mais próxima. Ou, aproximar-me sorrateiramente do grupo, fazer algumas orações e aos poucos acessar os arredores da sacristia, talvez em marcha-ré, pé ante pé. Avaliei em cálculos os metros que faltavam e o tempo que levaria para chegar até lá. Quem sabe, aproveitaria o testemunho mais enlevado, o sermão mais enfático ou uma dose de absoluta mansidão, onde os sentidos se tornassem vulneráveis apenas aos sentimentos mais profundos de fé. Sairia assim, cauteloso e seguro de minha precisão.
Claro que nada disso funcionou, até porque, eu não tinha certeza de que após a sacristia, haveria uma porta aberta também. Por isso, aderi ao evento e num último convite, como o homem provavelmente alienado da religião, da fé e dos sentimentos bons, fui chamado para a benção. Obedeci. Lá estava claro, à luz das velas e de algumas artificiais estrategicamente acesas. Não era este o meu primeiro objetivo, mas me senti recompensado, até pelo tempo que considerara perdido. Até pela aflição que passara. As pessoas saiam sorridentes e comovidas. Eu ainda pensava, o que vou explicar em casa? Que fiquei preso na igreja? Quem vai acreditar?
O ESTRANHO PRIMO DO INTERIOR
Chamava-se Ismael. Veio morar conosco numa dessas tardes de inverno, quando o sol se põe tão lentamente que parece que vai desaparecer para sempre. Era forte, robusto, ideal para o quartel. Nos meus onze anos, me parecia muito velho. Era um típico exemplar de rapaz do interior. Olhos baixos, gestos miúdos, aperto de mão respeitoso aos mais velhos. Jeito de quem sabe onde pisa. Eu, ao contrário, tão acostumado a minha vida serelepe, sempre à busca de aventuras, me atirava de corpo e alma no exercício das travessuras. Estava sempre à cata de espécies que alimentassem esta gana. Ismael trazia uma mala marrom de um tom avermelhado, com alças de metal, que me deixava curioso. Foi morar no quarto dos fundos, onde passaria os próximos nove ou doze meses, não sabia bem. Percebia, de imediato que não gostava de minhas atitudes. Parecia me julgar infantil, imaturo ou qualquer coisa que lhe viesse na cabeça a respeito de meninos de minha idade. Julgava-se, provavelmente, muito adulto. Sentia um respeito e um carinho pelo meu pai, que me irritavam profundamente. Era o sobrinho de longe, aguardado com gentilezas e salamaleques. Na verdade, não tanto quanto eu imaginava. Mas naquela época, final dos anos sessenta, era fácil para um menino de minha idade importar-se com estas coisas: muita imaginação, poucas oportunidades de alargar horizontes, de movimentar a mente, descobrir coisas novas. Não pouco era o que a leitura me provocava, mas não bastava: havia a astúcia do movimento, a vontade de vencer o impossível, de tornar valente o fraco, de observar a transformação do inimigo, de mexer com o provável bandido, de não ser sempre o mocinho, mas o protagonista da trama.
Pouco nos falávamos. Ismael sempre se dirigia a meu pai ou a minha mãe, mesmo que a situação se referisse a mim. Aos poucos, fui conhecendo os seus pontos fracos, a sua imensa vaidade, os perfumes que guardava na mala marrom avermelhada, as colônias, os cremes de barba, as loções, os talcos, sabonetes, a brilhantina, a base para as unhas. As camisas muito bem passadas e guardadas de forma a não amassarem, as calças com o vinco perfeito, os sapatos lustrosos. Aos sábados, geralmente ia ao cinema à noite, nunca às matinés, como eu. Depois, estendia nas festas de garagens, as chamadas brincadeiras onde os rapazes e as meninas se reuniam para ouvir e dançar ao som dos rocks ingênuos, brindando à cuba libre e samba. Dizia que era coisa de homem, como se eu não soubesse o tipo de festa que faziam: conversinha pra cá, bate-papo pra lá, os homens de um lado, as meninas de outro. E pouco se encontrando. E ele se julgava o máximo.
Certa vez, quando se afastou para ir a uma destas festas, deu-me um cascudo na orelha, me olhou com cara de vilão de filme de caubói e ameaçou despudorado: – não te intromete na minha vida. Sou homem, tu é um frangote, ainda mija nas calças – em seguida, deu um sorriso astuto, puxou uma carteira de cigarro Continental do bolso, aquele com debrum dourado nas laterais (a gente chamava de ourinho), acendeu, deu uma baforada na minha cara e se afastou balançando o corpo. Era a outra personalidade que se desenhava só para mim.
Uma tarde, quando ele havia saído, aproximei-me de seu quarto. Coração aos saltos, assustado. Mão trêmula na fechadura, encaixando a chave de modo a não fazer barulho e não despertar a atenção de ninguém. Abri a porta, espiei longamente para dentro, tentando ver algo extraordinário. O ambiente estava na penumbra. Aproximei-me devagar, esbarrando na cama, fazendo um barulho surdo na minha coxa, franzindo a testa de dor e evitando qualquer ruído denunciante. Subi na cama. Somente as luzes que vinham pelas frestas da veneziana de madeira amarela esvaneciam um pouco o cenário escuro. Apenas pequenos feixes de luz iluminavam o quarto, espraiando-se pela parede oposta à janela, produzindo figuras oscilantes. Nas paredes, fotos de atrizes de Hollywood em poses sensuais. Havia uma prateleira bem alta, acima da cama. Dei alguns passos, atolei os pés entre as molas do colchão, mas não me detive, inquieto. Trombei com os pés na mala, que serviam de anteparo para minhas investigações. A prateleira, cheia de objetos me atraía vigorosamente. Então subi na mala, para alcançar o meu objetivo. O meu pé direito afundou rapidamente, fazendo uma cratera, como se constituísse de papelão, tão frágil em sua consistência. Assustei-me, mas já que estava ali, não poderia desistir. Estiquei-me o mais que pude, alonguei o braço direito em direção ao topo da prateleira, enquanto apoiava-me na mão esquerda encostada na parede, para manter o equilíbrio. Empurrei o que pude, para descobrir com o tato, o que não conseguia ver. Achava contornos estranhos nos objetos, mas não conseguia adivinhar do que se tratava. Um deles, percebi que era apenas um porta-retrato. Peguei-o e atirei-o sobre a cama, sem consideração. Puxeis os demais para a frente, pois estavam afastados, ao fundo. Tratavam-se de pequenos objetos, na semelhança de santos ou bonecos, não conseguia identificar. Aos poucos, vieram na direção de minha cabeça, enquanto segurava um deles, os demais caíam desordenadamente, uns sobre os outros, estatelando-se na cama, ao lado do porta- retratos. Sentei-me rapidamente, para examinar o objeto de minha pesquisa. Eram figuras estranhas. Meus olhos grandes ficaram ainda maiores com a curiosidade. Minha boca entreaberta, nariz fungando, espirrando, provocado pela poeira e pelo cheiro estranho que exalavam. Pareciam divindades africanas, homens com cabeça de animais, um diabo de chifres enormes e capa vermelha. Larguei-os, assustado. Em seguida, detive-me na fotografia em preto em branco: uma mulher, loira, de cabelos crespos, que deveria ser uma namorada ou a mãe ou a irmã ou alguém de sua intimidade. Nada me interessava naquele momento, a não ser fugir dali a qualquer preço: esquecer as figuras estranhas e tão assustadoras, a fotografia que poderia ser de alguém que houvesse morrido há muito tempo, pois restara uma vela usada na prateleira que devia estar perto dos objetos. Olhei para a mala esburacada, quase destruída pela desatenção de meus pés, em desalento.
Pulei da cama e me deparei com a cara na porta, que não se abria de jeito nenhum. Procurei a chave nos bolsos da bermuda, abaixei-me, especulando pelo piso, embaixo da cama e nada. Havia sumido como por encanto. Certamente na euforia, eu a havia esquecido em algum lugar. Talvez na própria prateleira onde se encontravam os objetos. Estava quase em pânico. Aquelas coisas estranhas me assustavam e a aventura parecia ter acabado ali, ou apenas começado. Eu estava preso entre aquelas coisas inanimadas que me olhavam incessantemente a cada gesto que fazia, como se me acompanhassem, observando meus movimentos. Minhas mãos doíam, procurando em cada canto, em cada décimo do assoalho a maldita chave. Subi novamente na cama e fiz um esforço sobre-humano para alcançar a prateleira. Subir na mala, jamais. Não poderia danificar o que restara dela. Mas como chegar mais próximo, se não fazer da mala um trampolim? Não havia outra maneira melhor. Minha cabeça já não raciocinava perfeitamente. Estava confuso. Temia que os objetos me seguissem, subissem em minhas costas, segurassem o meu pescoço e me asfixiassem, irritados em que estavam por eu ter invadido um mundo que não me pertencia. Quando atingi a estante, senti meus dedos se deslocarem no nada, a não ser poeira, e a saliência abrupta da madeira, que me espetava uma farpa furtiva na mão. Definitivamente a chave não estava lá.
Então, desci da cama, num salto, quase em desespero. Pensei em gritar por meu pai, minha mãe, chamar o vizinho. Mas não tive coragem. Precisava encontrar a chave. Precisava sair dali. As horas passavam muito rapidamente, mas significavam uma eternidade, porque a cada minuto, mais um tempo disponível para o meu desespero. Então, em desespero, comecei a gritar em desvario, quase em súplica, pedindo por socorro, cheio de raiva, furor, ira, medo, pavor. Subi na cama, comecei a dar pontapés na mala, até atirá-la ao chão. Foi quando ouvi um tilintar metálico. A chave estava dentro da mala e caíra, quando a empurrei com violência. Com sofreguidão, peguei-a com firmeza, me dirigindo imediatamente à porta. A mão tremia, o braço não atinava ao que o gesto mandava, o corpo todo tremia. Ao abrir a porta, senti uma lufada de vento frio e a noite já se prenunciava em seus primeiros acordes. Um zunido de vento, um balançar de folhas, o revoar dos pássaros agasalhando-se nas copas e subitamente uma luz que despertava meus olhos meio cerrados. Na minha frente, o primo do interior, olhando-me de uma maneira mais estranha do que as imagens que encontrara. Sem fazer qualquer gesto, patético, mãos nos bolsos, boca aberta, esperando explicações. Mais adiante, meu pai, seguido de minha mãe, esbaforida, procurando-me, argumentando que não me encontraram em lugar algum da casa, nem do bairro. Queriam explicações.
Quis sumir naquele momento, agachar-me e passar de soslaio, como se nada do que sucedera me dissesse respeito. Mas não teve jeito: a mão pesada de meu pai, pousou no ombro esquerdo, perdidamente, como se ousasse ficar ali a vida inteira, até que eu desse uma explicação. Então falei: – não te preocupa, pai. Trabalho do colégio.
Saí correndo. Não me perguntaram nada. Foi muito forte o que falei, como se desabasse qualquer argumento. Trabalho da escola era sagrado. Mas que diabo de trabalho eu devia estar fazendo lá? Foi o que tentei explicar durante toda a noite. Era mais uma trama imaginosa que precisava criar.
terça-feira, julho 21, 2015
Tio Pedro e a Mangacha
Chamava-se Pedro. Tinha por hábito visitar-nos, mesmo que meus pais não estivessem em casa. Eu, embora adolescente, costumava prestar atenção as suas conversas. Por mais rebeldia que tivesse, não hostilizava as normas da família. Entretanto, intimamente, me incomodava a sua presença. Quando se aproximava e ao vê-lo, disfarçava o desconforto. Nunca era a visita esperada. Entretanto, me esforçava para recebê-lo e agir de forma semelhante a meu pai ou minha mãe. Ou ambos. Servir um café, um chimarrão, jogar conversa fora. O pior de tudo é que via de regra, suas conversas eram recheadas de lamúrias. Ou a vida estava cara demais, pela hora da morte, como dizia, ou os médicos sempre receitavam medicamentos desnecessários, bastava um melhoral para passar a febre, o refriado, a dor de ouvido e eles empurravam-lhe uma série de injeções com cálcio e vitamina c. Também se queixava do fígado. Se lhe doía a cabeça, o culpado era o fígado, se coçava a planta dos pés, o culpado era o fígado e se a digestão estava atravancada, o fígado também era o vilão. Quando estes assuntos não eram ventilados, começava a perguntar por meus pais, indagar sobre minhas irmãs e por fim, sobre meus estudos. E quando nada mais havia a dizer, fazia um silêncio sepulcral, para o qual eu amealhava todos os temas em meus pensamentos para interrompê-lo, mas nada que dissesse parecia aplicar-se ao meu tio. Aliás, pouco sabia sobre ele, a não ser que era um tio distante, se é que este parentesco existe. Nós pelo menos, o considerávamos nosso tio, mas talvez fosse apenas um velho amigo de meus pais. Às vezes, ficava observando-o. Tinha umas feições severas, um olhar arguto, embora, às vezes, parado no nada. Parecia-me que era um homem solitário, viúvo, cujos filhos não o consideravam muito. Costumava reclamar deles. Explicava sobre os pés de laranja que gostava de cultivar, além das bergamotas e goiabas. Gostava de descrever o plantio, as formas de proteção às raízes, aos caules, às folhas para que sobrevivessem ao frio e protegessem os frutos. Mas queixava-se dos filhos que não deixavam que as plantas crescessem, que revelassem o seu esplendor e pudessem ornamentar o pomar que tanto gostava. Eles não respeitavam o tempo de maturação dos frutos, muito menos as suas medidas de cultivo.
Apesar de toda pouca vontade de conversar com aquele tio que sempre vinha nas horas erradas, eu tinha um pouco de piedade dele. E ao aceitar um café, o papo ficava até mais interessante, porque talvez inebriado pela cafeína, ele mostrava-se mais entusiasmado e sua conversa tomava outros rumos. Certa vez, contou-me sobre uma atriz, que conhecera e para minha surpresa, se tornara sua namorada. Uma atriz? Um tio agricultor, dono de um pequeno sítio, um homem da terra, cujas únicas aventuras eram as de aprender novas formas de cultivo e a mania de investir em plantas exóticas, vindas de outras regiões. Como poderia ele ter se apaixonado por uma atriz? E onde acontecera isso? Pois me contara tudo, satisfeito, numa dessas visitas não enderaçadas a mim, mas a minha família, que mais uma vez estava ausente. Às vezes, até desconfiava de que ele gostava de conversar comigo e escolhia os dias e horas certas em que não encontraria meus pais. Mas isso é egocentrismo de adolescente. Pois, segundo o seu relato, ele a conhecera no Cabaré da Mangacha. Lembra-se, como se fosse hoje, como me contara no momento.
"Naquela época, ele estava passando um tempo na cidade, bem longe do sítio da família. Era um pequeno quarto alugado, pois estava procurando emprego no Frigorífico Swift, para afastar-se em definitivo do campo.
Vestira o chapéu e saira às pressas, fechando a porta atrás de si, sem olhar para os lados. A noite se agigantava escura. Ele dobrou a esquina, pegou o bonde que passava em frente ao abrigo de bondes e dirigiu-se para a rua Uruguaiana. Olhou para os lados. O veículo estava quase vazio, a não ser um homem meio barbudo, que desandava a cabeça a cada minuto, num sono sobressaltado. Quando chegou ao ponto, pagou ao cobrador e cumprimentou o motorneiro. Ficou ali parado, na esquina até o bonde desaparecer na rua em direção ao bairro portuário. Olhou para os lados, ensimesmado. Deu alguns passos e observou o prédio, um sobrado bem na esquina. Já ouvia a música da orquestra. Sentiu um certo estremecimento. Era a primeira vez que adentrava no grande salão. Sabia que o esperavam as danças, os shows, a orquestra e principalmente as mulheres que faziam do cabaret, o mais famoso da cidade.
Aproximou-se da porta. Um homem com uma farad colorida o recebeu e disse-lhe alguma coisa inaudível. Ouvia um piano tocar, uma voz feminina que se distanciava pela imensidão do aposento. O homem mandou-o entrar. Finalmente, chegara na Mangacha. Lá chegou a conhecer Dona Ludovina, que era a proprietária do estabelecimento.
Pois nessa noite, chegou à cidade uma atriz linda oriunda do Rio de Janeiro. Era uma morena maravilhosa, olhos amendoados, cabelos crespos e uma pele de seda. Tinha seios fartos e umas ancas de dar arrepios na espinha. Ele ficara embascado com o show, mas mais ainda pela presença daquela mulher lindíssima. Os engomadinhos estavam todos ouriçados, homens de terno e gravata, regados a uísque e notas de dollars embutidos nos couverts. Mas ela só tinha olhos para ele. Os homens se desdobravam em mesuras, galanteios e sorrisos afoitos, ele se resguardava num canto, com seu terno de linho amassado. Vez que outra, ela enderaçava olhares sugestivos que o deixavam louco. Mas o que ele poderia fazer, um quase analfabeto, um agricultor acostumado às atividades rústicas de sua terra, sem o verniz dos homens da cidade? Seus pensamentos se agitavam e seu coração batia descompassado. O que faria? A levaria até a rua Uruguaiana para tonar o bonde em direção ao centro e passariam a noite em seu quarto alugado, quase espelunca? Mas os olhares, os sorrisos e algumas palavras a meia boca se sucediam. E por fim, seu coração estremeceu de vez e suas pernas não se sustentavam sob a mesa, batendo uma na outra, quando ela se aproximou após o show, e entre palmas e assobios, sentou-se a sua mesa. Em seguida, apareceu uma garrafa de uísque importado. E dali em diante, não precisou explicar mais nada. Só sorrir e aproveitar a vida. Acabaram a noite no hotel onde ela se hospedara e por uma semana ficaram juntos.”
Claro que meu tio Pedro não me contou com esta riqueza de detalhes, só mais tarde fui saber as informações complementares e enriquecedoras através de meu pai.
Ele continou nos visitando por algum tempo. Nunca mais falou-me na história e na mulher que chamava de namorada, usando certa autocensura. As visitas foram rareando e quando ele aparecia, eu já tinha muitas atividades, já trabalhava e a fase da adolescência dera lugar a uma fase em que o tempo ficava cada vez mais escasso. Esquecera-o aos poucos, quase por completo. Mas, às vezes, recordo o seu jeito acabrunhado e introvertido, um pouco ranzinza e lamurioso, mas que vez que outra, parece abrir-se para a vida e conta sua trajetória enriquecida de histórias. E ao visitar algum sobrinho, fico me perguntando, será que não sou recebido assim, com cuidados e educação, como o fazia com o tio Pedro? A vida se repete, o tio chato e solitário de ontem, pode ser o visitante de hoje. Espero que não.
domingo, julho 19, 2015
Divagações de um futuro prefeito
sexta-feira, julho 17, 2015
A dor
quinta-feira, julho 16, 2015
A vida, de volta, por favor
Encontrei-a dobrada em dois, na mesa, braços cruzados, nariz enfiado no livro. Quando levantou a cabeça, pude ver-lhe os olhos e nem percebi que havia uma gota de desilusão pelo que tinha lido. Nem uma lágrima mais pousaria tão rápido no papel, quanto aquela sentida, que nem parecia humana. Aproximei-me e sentei ao seu lado. Não compreendia o peso do infortúnio que parecia suportar aquela mulher, já ida nos anos. Girei o salto do sapato no ladrilho irregular e falei desprevenido.
_Não pensei que este livro traria tantas recordações, e que tristes, me parecem.
Levantou a cabeça sem jeito, mas examinou no olhar todas as intenções que tentava ocultar. A voz era sonora e forte. Os modos de quem viu neste mundo, o que não encontrava no outro.
_Pois não, meu senhor, é que tenho que ficar assim, depois de quatro séculos. Se me pedissem para amolecer, não acreditaria. Mas o que a menina ia fazer, se não se aproveitar de uma velha ama para abandoná-la mais tarde? Dizem que a primeira onda feminista começou no século IXX, mas ouso vos assegurar que Julinha foi a responsável pelo primeiro movimento feminista no mundo! E em Verona! A menina foi pioneira em transgredir as regras. Misturou o belo no feio. Nunca me ouviu e se me ouviu, fez o que queria e não o que devia. Aliás, me fez de boba.
_Entretanto, ela cresceu à tua imagem e semelhança – tirei uma caneta do bolso e um pequeno bloco. Anotei algumas coisas, enquanto falava.
_Todavia lutou pela classe dela. Caí aqui, por acaso. Talvez porque minha linguagem é normal, como a de qualquer cristão. Nada de epitalâmio – e falava torcendo a boca, afundando os sulcos e fazendo covinha no queixo – elegia, rapsódia, essas coisas de nobres. Julieta também as tinha. Eu falava de coração aberto. Por isso, estou aqui. Quem se aventuraria nos dias atuais, proferir tais versos, disparar o linguajar poético na hora do almoço, arremessando mucos sobre o bufê? Quanto mais, nessa epidemia de gripe, os vírus se acumulariam em desespero na boca prolixa dos nobres!
_ É verdade — assenti, olhando discreto a janela que se abria numa ponta de sol. Ela prosseguia, emblemática. Tinha consigo que conhecia mais do mundo do que qualquer navegante aventureiro.
_Podeis imaginar o Conde Páris, falando ao celular, usando verso alexandrino? Qual vivente ia suportar tal palavreado? Eu, ao contrário, respeitam o que digo.
_Parece que aprendeste a língua dos nobres.
_É claro, meu senhor, pois de bibliotecária à freira, e de freira à ama, passei por todas as culturas. E depois, vindo a esta nação dos trópicos, qual a língua que tem mais valor do que a dos magistrados. Longa vida às CPIs!
_Sei, sei, já me contaste isso um milhão de vezes. Mas Julieta, em sua beleza, seria uma perfeita top model, por exemplo — provoquei.
_ Creio que não, meu senhor. Veja a cena: a menina, arfante, ao lado do seu amado, mastigando monossílabos amorosos no aparelho de dentes, ah, porque neste mundo de loucos, não há quem não use celular, não aplique aparelho dentário e abuse da Internet. Estas coisas modernas!
_Seria terrível. Nada romântico — pontuei desolado. Tive a impressão que o homem de branco atravessou a sala, mas foi só impressão: estávamos sós, naquela cela fria. E ela nem percebia minhas conjecturas.
_Temos a Senhora Capuleto, mandando email para filha, em soneto Petrarca! Que desastre!
_Pensando bem, tens razão.
_Pois não tenho? Haveis de assentir que sou a pessoa indicada para adentrar nestes tempos presentes e aceitar o que se passa. Não vejo qual de meus contemporâneos teria o dom de camaleão, como eu. Bem sabeis, que posso me virar dum jeito ou do outro. Posso entender o que se passa no senado, na câmara, nos grandes duelos mundiais. Já imaginastes o quanto vi, não? Nada do que acontece hoje em dia, me impressiona.
_Disso não tenho dúvidas, mas uma coisa, não podes esconder de mim. Vi uma lágrima no teu olho. Ainda sofres pela pequena – incitei-a, maldoso.
_Naturalmente, pois eu a induzi ao encontro com o amado. Para ela, a morte significava o rompimento com maneira passiva de agir e pensar. No nosso tempo, a mulher não se dava a esses luxos! Entretanto, ela não foi companheira.
_Como assim?
_Sois bem lento, não? Já não te disse que a menina lutava pelas mulheres, para que elas tivessem o seu papel no mundo.
_Papo furado.
_Ninguém acredita. Tanto tempo passado e ninguém ainda acredita. Não é nada surpreendente aos seus conterrâneos, também não acreditaram na odisseia do trono. Há mais de 30 anos que o rei faz o que faz e somente agora é que se deram conta. Mas deixa pra lá.
_ Falas do Senado?
Escondeu um sorriso irônico e prosseguiu, na defensiva. Larguei a caneta e cruzei os braços, intrigado. Ela prosseguiu, enfática.
_Eu era uma delas, estava lá, precisava de uma companheira, alguém que lutasse pelos meus direitos também, que levantasse a bandeira das amas, das criadas, mas ela só pensou nas mulheres de sua estirpe. Uma nobre! – faz uma pausa e suspira — Afinal, até a Sra. Capuleto confirmava que sempre fui uma criada confiável, confidente e amiga. Julinha devia me agradecer, mas qual, se afastou de mim, irritada com meu zelo.
_Estás certa que foi por isso?
_Sim, para mim, ela se mostrava inteira, seus sentimentos à flor da pele, seus desejos mais íntimos. Houve um tempo em que ela seguiu outro caminho, que renegou meus conselhos. Nós éramos diferentes. Cada um que lutasse na sua própria classe.
_Mas ela tinha consciência disso?
_E eu tinha? Só muito intimamente, porém meu coração dizia o que era certo e o que era errado. Pelo menos, o que era conveniente para o momento. Ou para a situação. Ela foi boba. Por isso, não escapou do destino. Nenhum deles. Eu sim.
_Quer dizer que o que te salvou foi a língua.
_Foi o que sempre disseram. Que eu tinha língua grande. O amigo do Sr. Romeu, me chamava de alcoviteira e o Sr. Capuleto, certa vez, pôs-me a alcunha de “dona prudência”, puro escárnio. Disse-me bem assim: “guardai na boca a língua sabe-tudo. Ide ensinar vossas comadres”.
_Me refiro à maneira de falares — confirmei num meio sorriso.
_Não sei. Agora que me deleito neste livro, percebo que o bardo foi bondoso comigo. Quis me salvar, por isso, me purificou com o verso branco. Acho que o bardo me livrou dessa.
_Mas e depois?
_Depois nada. Figuração pura! Além disso, quem poderia querer prêmio maior. Alguém cujo nome quase não fora pronunciado! O Cavalheiro sabe o nome de algum lixeiro, coveiro, camareira ou coisa do gênero? Somos tão invisíveis quanto a poeira dos poderes! Ela encobre tudo e ninguém a vê!
Tentei falar alguma coisa, mas ela interrompeu, rápida: “Ama. Alguém que é só Ama pode querer alguma coisa mais da vida? Eu sou tão secundária que nem perceberam o meu desaparecimento!”
_Mas e daí? Que poderias mudar na trama?
_Na verdade, não sei o que mudaria, mas sei o que ainda posso fazer.
_Por exemplo?
_Que quereis que eu diga, num mundo no qual as pessoas continuam tão intolerantes quanto antes. Em todo o caso, em vosso país, ainda ama, não passo de ama dos livros – mais um silêncio proposital, um muxoxo e uma explicação rápida — que fazer se não apenas zelar pelos livros, já que não posso decidir seu destino? Num país em que os professores são iletrados, a bibliotecária não passa de uma ama, que serve para cuidar, guardar e empilhar no lugar certo.
_E que pretendes fazer?
_Até agora, nada. Mas como Julieta, quem sabe lutar pela classe. Fica difícil, pensar sozinha.
Pretendia pedir-lhe silêncio. Não era bom ser tão enfática na política, pois quando o fazia, o homem de branco se aproximava, e trazia consigo uma infinidade de medicamentos. Melhor não arriscar. Então, dourei a pílula: _Pelo que me consta, ela agiu intuitivamente, preocupada com o coração, apenas._E deu no que deu. Caso pensasse mais longe, teria frutos melhores. Mas deixemos a ovelhinha no lugar que lhe cabe. Nunca deixei de amá-la, afinal eu a criei como filha! Quanto a mim, quero mais é apreender os novos rumos.
_Achas que pode dar certo?
_Se não der, um litro de silicone em cada mama, resolve.
Fiquei quieto, me eximindo de emitir opinião. Aproximei-me e a vi no contorno da cortina. Da vidraça do postigo, observava seus olhos argutos, assinalando alguma coisa obscura na mente. De repente, voltou-se e prosseguiu, eufórica.
_Se voltar algum dia, me chamem apenas de Angélica. Depois dessa, acho que mereço, né? Se ele assim designou, que o use.
_Não temes ofendê-lo com teus resmungos?
_Se me criou com este caráter, sabe-o muito bem como aguentar-me. De todo modo, convém me manter neutra e seguir a vida.
Antecipo-me em perguntar-lhe se não considera a hipótese de voltar ao passado. Não responde. Fica pensativa, olhando o nada. Em seguida, levanta-se, larga o livro, pega o chapéu e ensaia alguns passos em direção à porta. Volta-se e pergunta: “Não achais perigoso?”
Fiquei quieto. Seria mais sensato não responder. Ela se afastou, então balbuciei baixinho: “Morrer duas vezes, é indigno. Que seja apenas um Romeu dos trópicos”. A porta se fechou e a janela foi ficando bem maior, mostrando um horizonte amplo, variado. Pela porta, espiava um baile à fantasia, uma avalanche de Marcos Polo, Napoleão Bonaparte, Cleópatra, Helena de Troia e tantos mais. Não vi nenhum brasileiro, apenas o homem de branco que pretendia acabar com a festa. Aproximou-se de minha mesa, puxou-me com cuidado a cabeça que estava enfiada no livro e olhou-me nos olhos dos quais não perceberia uma gota de desilusão do que havia lido. Acho que queria perguntar-me pela Ama. Só voltei-me quando repetiu amiúde: Romeu, Romeu...
quarta-feira, julho 15, 2015
MEU CARRASCO INTERIOR
Este texto foi produzido para um desafio de uma oficina literária. A ideia era descrever conflitos similares aos do romance "O ateneu" de Raul Pompeia, ao conto, nos dias de hoje.
Estava ofegante. Pudera, estava atrasado.Tentei passar pela hall sem ser notado, afinal, àquela hora, o Seu Miguel já teria abandonado o posto, para desfrutar do cigarro à porta do bar e jogar conversa fora com as atendentes. Empurrei com o tênis sujo a portinhola, atravessando a portaria em direção às salas de aula e meu coração se colocou em posição de defesa. Seu Miguel estava ali, patético, me observando dos pés a cabeça. Ao contrário do que imaginava, estava no seu devido lugar, às 8:30h cumprindo o seu dever de impedir a entrada dos retardatários.
— O pirralho tá querendo me enganar, é? – e disparou um palavreado padrão que dispensava desculpa. Exigiu que eu sentasse na poltrona ao lado do balcão. Deu uma olhada na tela do monitor que registrava os corredores e salas de aula e informou que chamaria o diretor. Eu teria de esperar pela próxima aula e não poderia, sob hipótese alguma, me afastar.
Fiquei ali, roendo as unhas, mais preocupado com a pesquisa de Filosofia do que propriamente com a reprimenda do diretor. Quando o diretor dispensou-me com um carimbo de atraso na agenda, já se havia iniciado o intervalo. Esforcei-me em entrar na sala, ultrapassado pelos que se afastavam em marcha de guerra em direção ao pátio. Corria contra a corrente, sentindo o cheiro abafado dos humores que se agitavam em seus corpos ansiosos pela liberdade que corria lá fora. Uns questionavam a minha ausência, outros me premiavam com safanões, abrindo caminho, considerando que o obstáculo os incomodava. Alguns se aproximavam e cheiravam minha boca, perguntando o que eu tinha bebido. Eu é que me sentia nauseado pelo hálito putrefato das bactérias acomodadas, que ora se contorciam em suas bocas famintas, pululando na saliva acordada.
As gurias se juntavam em grupos, pequenas garças se entrincheirando, dando bicadas desenfreadas, procurando vermes desconhecidos para devorar. Não tinham o menor interesse em mim, a não ser no que dizia respeito aos trabalhos escolares. Era considerado nerd. Uma que outra, se aproximava, para mostrar-se catedrática em todos assuntos. Eram astutas e bobas.
Larguei a mochila, desanimado, e voltei para o pátio. Como era proibido permanecer na sala, eu ficaria à espreita, se possível, fugindo dos maus tratos ou das piadas grosseiras dos desafetos. Via de regra, eu me sentia pouco à vontade. Aliás, não ficava bem dentro da carcaça que era o meu corpo: franzino, pernas finas, olhos grandes num rosto pintado de espinhas.
Os guris não se preocupavam muito comigo, naquele momento. A não ser Tiago, um espécime estranho. Era desajustado ao meio, como eu, além de possuir um traço peculiar, que me induzia a afastar-me dele. Era um tolo. Obedecia passivo aos mandos e desmandos dos demais. Sua fisionomia era deprimente: alto, nariz comprido, pescoço vermelho, onde as veias desenhavam variações de fios azulados. A boca grande, os dentes desaparelhados, uma penugem etérea sobre os lábios e um olhar perdido de boi no pasto ralo. Diziam que tinha o hábito de masturbar-se ouvindo músicas sombrias, do estilo emo, que grassava entre pequenos bandos. Na verdade, eu temia ser comparado a ele. Receava juntar-me a um cara tão esquisito, com jeito de tarado e além de tudo, um parvo, um idiota completo. No meu mundo obscuro, entretanto, martelava uma dose dissimulada de culpa por me achar superior.
Do outro lado, próximo ao bar, estava Jura, esgueirando-se por entre um corredor polonês, fingindo que desfilava. Para todos, não passava de um veado exibicionista, que se imaginava mulher. Mas ele tinha alguns amigos, que nem ligavam para as suas preferências, ao contrário de mim, que tinha o estigma da timidez, do medo da aproximação, do rancor pela solidão provocada. Embora levasse encontrões de um que outro mais homofóbico, o Jura tinha lá os seus predicados. Era muito querido entre os professores, tinha a faculdade de organizar grupos e distribuir tarefas e interagia muito bem com as gurias. Além de tudo, a sua auto-estima era alicerçada num corpo forte e numa mente aparentemente resolvida.
Do meu ponto estratégico, podia observar os grupos que se formavam aqui, acolá, de acordo com as preferências ou a necessidade do encontro. As meninas se esforçavam em mostrar os dotes particulares, sacudindo os cabelos e bamboleando o corpo enquanto falavam. No pescoço, nas mãos e nos pulsos, inúmeros badulaques participavam dos movimentos, atiçando olhares, aguçando a curiosidade e a aproximação dos meninos. Michele era uma daquelas audaciosas. Tinha por hábito mascar chicletes, enquanto falava, e gesticulava em demasiado. Mascar não era o problema, o curioso é que o fazia com o aparelho dentário, que a deixava em maus lençóis, quando a engrenagem enguiçava com a goma. Nada demais para os meninos, habituados ao seu jeito ousado de se portar, como beijar de leve no rosto ruborizado, expressando coisas obscenas. Um que outro, mais arrojado tascava um beijo demorado, correspondido como poucos, servindo de modelo à turma.
Eu me surpreendia com tanta facilidade nas demonstrações de afeto e um estreito sentimento de raiva se apoderava aos poucos de mim. Passava, então, a odiar a todos, sem exceção, mesmo aqueles poucos que me dirigiam a palavra e que não zombavam de minhas atitudes. Estava tão absorvido em minhas mágoas, que não reparei a presença inoportuna de Jonas, um dos líderes dos movimentos de demonstração de força. Caminhava em minha direção, naquele modo pretensioso de quem tem a certeza de tudo, gingando o corpo malhado, fazendo estilo e publicidade. A proximidade daquela figura me causava estremecimento, até arrepios de temor, pois não tinha boas recordações do truculento. Tinha a impressão de que estava sempre me testando, havia no olhar, na postura e em toda a sua gesticulação ostensiva uma ameaça latente, uma acusação baseada numa dúvida interna que fazia questão de expressar. Costumava dar umas batidinhas em meu rosto, logo após um estranho gesto de afeto, alisando-me a pele, como se dissesse, “não te aproveita cara, eu sou macho!”Ele sempre deixava claro que duvidava de minha masculinidade e dessa forma, se aproveitava para me agredir.
Algumas meninas espiavam, entre comentários e risadas exageradas, a performance estudada de Jonas. Eu pairava como um galho seco, encolhido na sombra da parede do bar, que fazia um ele na calçada deserta de árvores. Me escondia da turba alegre, que fazia coro com as novidades da manhã, do dia, dos cotidianos férteis. Se eu pudesse, teria um livro na mão, naquele momento. Mas seria expulso do recinto. Jonas, por uma tragédia do destino, continuava ao meu encalço. Seus dentes salientes, atarraxados pelo aparelho lhe produziam um ar de ser interplanetário. Por que chegava daquela maneira rompante, de caçador que já tinha decidido o destino da presa? Examinou-me, assinalou qualquer coisa no meu pé e espetou minha barriga com o indicador, o que me deu uma fisgada intensa nas entranhas. Depois, deu as rituais alisadas no meu rosto e as batidas rotineiras.
— E aí, beleza?
— Beleza – respondi, acabrunhado.
— Por que tu não veio na hora combinada?
— Que hora?
–A hora do desafio. Nerd pensa demais, depois destrambelha. Agora ta decidido, tu vai fazer o trabalho, to avisando.
— Que trabalho?
— Qual é, comeu capim no café da manhã? To falando da Marina.
—Tu falas da professora?
— Não, da tua mãe. É claro, cara, da tia. Ela já sacaneou o suficiente, tu não achas?
— Sei lá cara. Acho que não to nessa.
— Ah, ta sim!Tu foi o escolhido.
— Por que me escolheram? Eu não pedi nada.
—Porque tu é o meu gurizinho – e falou sorrindo, me segurando o pescoço, com as duas mãos. Senti uma mistura de ódio e um frenesi, que não sabia muito bem identificar. Talvez porque nunca tivera qualquer envolvimento com nenhuma guria, eu estava numa fase de conflitos e ambiguidades. Ele se aproveitava da falta de jeito. Me largou, com raiva e clamou, indignado, na direção dos seguidores – e ai, moçada, vem clareá as idéia do nerd aqui. Parece que não entendeu o trato!
Um dos meninos, um baixinho parrudo, disparou ao meu encontro, e em gesto consentâneo, amarrou-me os cadarços dos tênis, um no outro. Todos caíram na risada e se afastaram quando o líder deu o sinal decisivo. — Ele vai cumpri o prometido – e se dirigindo a mim, ameaçador — se não, vai ser pior pra ti. Ou cumpre ou assume!
Na sala, eu não prestava a atenção na prova de matemática. Não me saíam da cabeça as ameaças de Jonas. Não era justo produzir um fake com o perfil da professora Marina no facebook. Queriam humilhá-la utilizando imagens falsas, incluindo comunidades eróticas, e tendo a sua foto manipulada, além de enviar e-mail para todos os professores e alunos com as alterações. E por que eu deveria fazer aquilo? Uma tarefa que seria fácil para qualquer um.
O prazo venceu. Depois de noites de tortura e sentimentos confusos, não cedi, mas o mundo desabava e não havia como reerguer-me dos escombros. Sabia que era o meu fim. Jonas me procurou mais uma vez, só que agora o encontro foi na biblioteca. Estávamos numa sala de estudos, ao fundo do acervo, onde não havia quase ninguém. Ele estava diferente. Não havia brutalidade em seus gestos. Sua postura estava quase tranquila, a não ser o pé, que movimentava, involuntário, embaixo da mesa.
—Então, podemos abrir pra turma?
—Abrir o que?
—Que tu que ser a minha guria?
—Cara, tu enlouqueceu.
—Tu não fez o combinado. Então não resta saída. Só que não vai ser só minha, mas de toda a escola!
—Então, o seguinte, me confessa uma coisa. Diz aí, que tudo foi armação, que tu só quiseste humilhar a professora porque ela disse a verdade sobre ti, não tem nada a ver com a turma, não tem nada a ver com a prova difícil, tem a ver só contigo — blefei, desatinado.
Neste momento, sua segurança desapareceu e voltou a ser agressivo.—Olha, aqui, cara, não to te entendendo, ta ligado? Fecha esta matraca, se não vou te socá até acabar contigo.
—Então é verdade – arrisquei.
—Verdade o quê? Ta zoando de mim?
Pensei em ameaçá-lo, afirmando que o trato estava gravado no meu celular, mas ele percebeu a minha tramóia. Indignado, começou a bater em cada partícula do meu corpo, empurrando-me contra a parede envidraçada, ensopando as mãos no sangue que me escorria do nariz. Foi então, que num ímpeto desesperado, reagi e lhe acertei um murro tão forte, que o deixou atônito, pelo inesperado e o desequilibrou de encontro à mesa, se estatelando no chão. Aproveitei a queda e calcei seu pescoço com o solado do tênis, enquanto ele tentava desviar o rosto e serpentear o corpo para fugir da postura ultrajante. Eu não lhe dava chance. Quem me visse naquele momento, certamente perceberia um brilho ferino, selvagem em meu olhar. Minha boca sangrava, mas eu cuspia uma dose prazerosa em sua cara, confirmando, pelo menos naquele momento, a minha superioridade.
A porta foi escancarada e Seu Miguel, ao lado de outro funcionário me segurou pelos ombros, pelos cotovelos, retirando-me da sala como um animal acuado. Percebi que atrás deles, os meninos se acotovelavam, pasmados, olhos argutos, bocas que se abriam intermitentes, produzindo sons que eu não conseguia ouvir. Sabia, no entanto, que chegara a minha hora, não importava o custo. Uma leve brisa lambeu meus cabelos e meu coração se acomodou, quieto. Confessava a mim mesmo, que pretendia matá-lo de verdade, embora meu corpo sinalizasse muitas vezes, uma leve excitação na sua presença. Uma lágrima, porém, correu do meu olho apesar do desfecho clichê. Por pior que seja o carrasco, ele sempre nos seduz.
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