sexta-feira, fevereiro 17, 2017

Alguns comentários sobre o filme irlandês " Life’s a breeze"

O filme Life’s a breeze conta a história de uma família irlandesa que tenta unir-se na crise.

O desempregado Colm (Pat Shortt), sua mãe idosa Nan (Fionnula Flanagan) e sua sobrinha Emma (Kelly Thornton) devem superar suas divergências e lutar contra o tempo para resgatar uma fortuna perdida pelas ruas de Dublin.

Trata-se na verdade de uma comédia suave e em muitos momentos, com forte apelo dramático, sobre a família de Nan, uma senhora idosa e seu mundo caótico, que abriga seu filho desempregado e preguiçoso e por vezes, quase toda a família.

Os filhos de Nan decidem fazer-lhe uma surpresa no dia de seu aniversário. Para tanto, elaboram uma limpeza em sua casa, por acreditarem que ela acumula muita coisa inútil, tranformando, segundo eles, o ambiente num caos.

Neste processo de limpeza, porém, eles se desfazem de um colchão que abrigava todas as economias de sua vida.

A partir daí, começa a luta desesperada em procurar o colchão pelas ruas de Dublin.

Neste momento, percebemos que a harmonia familiar se desfaz numa fúria quase selvagem, na busca descontrolada em achar o tal colchão, revelando-se aqui o verdadeiro caráter de cada um.

Brigam entre si e acabam censurando a mãe, considerando-a demente pela idade avançada, sugerindo inclusive interná-la num asilo.

Entre as discussões, Emma, a neta de treze anos convidou a avó a fazer um passeio pelas ruas de Dublin, deixando-os à vontade em seu objetivo.

Entretanto, com o decorrer da trama, ela interage com a avó e cada vez acredita mais em suas histórias. A influência de Nan sobre a neta aumenta em cada espaço percorrido.

O foco do filme se debruça sobre as relações familiariares, principalmente entre Nan e Colm e suas censuras aos demais componentes. Também, como já mencionado, a relação entre ela e Emma, revela-se aos poucos mais consistente, como se uma linha imperceptível de compreensão as unissem, embora discordassem em muitos aspectos.

Em meio a este emaranhado de sentimentos vestidos de amor, intolerância e ganância desenfreada, o cenário que surge com extrema virulência no filme é o estado atual da sociedade irlandesa, um País, que há algum tempo era um exemplo de sucesso econômico na Europa.

Tudo ocorre sob o humor leve, mas recheado de elementos fortes de sátira sobre as dificuldades atuais do povo irlandês. A metáfora de uma sociedade que procura a sua fortuna a qualquer preço e que parece meio perdida em seus princípios da dignidade humana.

Afinal, sem explicar muito o filme, retomamos a história de Nan, uma mulher de 78 anos, que após a viuvez e ter visto seus filhos adultos, tem a impressão de que não amadureceram e permanecem presos a sua saia, conformados em sua vida comezinha e envolvendo-se no seu cotidiano.

Parece que não conseguiram superar o colapso da economia irlandesa e voltaram à casa materna, tal como um dos filhos, que traz toda a família para morar em sua casa.

No entanto, o diretor sinaliza com uma mudança positiva, pois na busca desenfreada e insana pelo dinheiro que está no colchão, eles acabam não mais se importando tanto nesta busca e no desfecho, mas na própria viagem que fazem juntos, o que justifica o verdadeiro tesouro.

Talvez nem se deem conta disso, mas seus corações ainda batem por um pouco de dignidade e humanidade.

A neta Emma, que sempre está ao lado de Nan é uma lufada de ar fresco na trajetória empreendida. Afinal, são polos opostos da vida de duas mulheres, cujo resultado é mostrado ao espectador de forma sutil e comovente.

Sinal de que nem tudo está perdido. Um belo filme, que me surpreendeu positivamente.

Ficha do filme:ano de produção : 2013

Diretor: Lance Daly

Elenco:

Nan: Fionnula Flanagan

Emma: Kelly Thornton

Colm : Pat Shortt

Margaret: Eva Birthistle

Hawk Man: Brian Gleeson

Cara da Pizza : Barry Keoghan

Mulher Suspeita:
 Seana Kerslake

terça-feira, fevereiro 07, 2017

Uma bomba e a aeromoça gaúcha



Meu amigo tinha por hábito externar qualquer pequeno problema que o acometesse. Às vezes, um mudança abrupta no seu estado psíquico, como uma melancolia, uma vontade de afastar-se de onde estava ou simplesmente um pequeno ruído que o incomodava. Via de regra, sabíamos que reagia com certo exagero às circunstâncias, mas respeitávamos o seu modo de ser e procurávamos conciliar seus pequenos desajustes aos nossos interesses. 

Naquele dia, porém a coisa fora diferente. Estávamos reunidos no aeroporto para seguirmos à Brasília para um curso relâmpago de três dias. Éramos em torno de 30 pessoas e comemorávamos a ideia de projetar o nosso trabalho de marketing para a instituição em que trabalhávamos. 

Ao entrarmos no avião, fomos para nossos acentos e conversamos animados com a possibilidade de ainda chegarmos cedo à cidade para quem sabe, irmos num bom restaurante após a chegada no hotel e nos prepararmos para o dia seguinte que seria bem puxado. 

Meu amigo Júlio (era seu nome) estava num assento próximo à asa do avião. Fazia alguns selfies com os colegas, tirou também algumas fotos de alguns aviões estacionados e de repente, aquietou-se manifestando uma palidez que nos assustou. 

O avião estava prestes a decolar e Júlio parecia fora de si. Suelma, uma morena de olhos grandes, sempre extrovertida e dada a piadas, perguntou o que acontecera. Sandro, um dos que estavam no lado esquerdo ao de Júlio também ficara apreensivo, achando que o colega iria desmaiar. Eu tentei perguntar alguma coisa e fui interrompido antes que chegasse na primeira frase. 

Júlio avisou que estava ouvindo um ruído estranho que vinha de sua poltrona, era uma espécie de chiado, como se houvesse uma bomba ali instalada. Seus lábios estremeciam e sua voz saía rouca, como se o som precisasse atravessar um túnel que a interceptava. 

Alguns riram, achando que meu amigo fazia piada ou tinha na verdade, era medo de voar. Outros reclamavam, achando tudo uma grande bobagem. 

Sandro porém, era o único que parecia paralisado. Pálido, olhos arregalados, sem conseguir dizer nada. Olhava para a namorada um tanto apalermado, achando que alguma coisa errada estava acontecendo. Neusa, a companheira, ria desajeitada, esclarecendo que isso era coisa de Julinho, como ela o chamava. Nada demais. Ele costuma inventar estas bobagens, dizia sem muita convicção. 

Eu perguntei o que estava acontecendo de verdade.
Júlio voltou a afirmar que o chiado permanecia e cada vez mais insistente, como se o dispositivo estivesse ligado, talvez a ponto de explodir o avião. 

Na poltrona a sua frente, estava uma aeromoça de Porto Alegre. Levantou-se um pouco temerosa, aproximou-se dele e sentou ao seu lado, exclamando, naquele sotaque característico da capital: 
– Bah, eu nunca tinha ouvido este chiado antes! Faz muito tempo que tu ouve isso? 

Júlio apavorado, não sabia o que dizer, na verdade, sabia sim, afirmava que não, nunca tinha ouvido nada igual e que precisavam tomar alguma providência. O avião não poderia decolar de jeito algum. 
Os demais começavam a se irritar com Júlio, não se contendo em suas observações, uns afirmando que era uma situação absurda, não tinha nada a ver com bomba ou coisa parecida, outros porém tinham suas dúvidas e queriam descer do avião a todo custo. 

Sandro agarrava-se ao braço de Neusa, agora muito vermelho, como se ele fosse a própria bomba pronta a explodir. Doía-lhe a barriga e a sensação de que deveria ir ao banheiro imediatamente, pois seu organismo não o obedecia. Temia estar com dengue ou coisa parecida. Neusa acompanhou-o até a porta. Os colegas se olharam indignados. Só faltava agora um cagão no grupo! 

Alguns minutos depois, o que nos parecia um tempo interminável, Sandro voltava alisando a barriga e caminhando devagar ao lado de Neusa, que também ficava vermelha com os olhares curiosos. Sorria, acenando a cabeça, como quem diz, “coisas de Julinho”. Mas a situação piorava a cada instante, não no que concernia a Sandro, mas ao fato observado por Júlio, o tal chiado que não parava. 

A aeromoça, nestas alturas já se afastara, pedindo ajuda aos engenheiros e mecânicos do avião, mostrando-se apavorada. As demais procuravam não intervir e se limitavam a ficar na cabine, esperando os procedimentos do piloto. A ordem porém era impedir a decolagem imediatamente e aguardar a solução do problema. De vez enquanto, o piloto falava no microfone evitando alarmar a tripulação. 
Aproximei-me da aeromoça e perguntei o que ela pensava disso. Ela respondeu com uma pergunta: 
— Capaz!, tu não acha que o caso é sério? Tri responsável o rapaz avisar dessa coisa. Vai ver que é uma bomba, mesmo! 

Eu não tinha o que dizer. Fiz um gesto qualquer e me afastei na direção de minha poltrona, porque a conduta estabelecida era ficarmos em nossos lugares. Dali, observava os colegas, especialmente Sandro que parecia desabar na poltrona. Em dado momento, levantou-se, tentando falar com um comissário de bordo, que insistiu para que ficasse sentado. No entanto, não havia como impedir a marcha pelo corredor do pobre coitado, cujo único destino parecia ser o vaso sanitário. O comissário deu um meio sorriso e deixou-o ir, mas exigiu, dirigindo-se à Neusa: 
– A senhora não precisa acompanhá-lo. Fique onde está, porque estamos trabalhando para que tudo se resolva da melhor forma possível. É preciso que todos fiquem atentos! 

Ao ouvirem isso, todos começaram a falar em uníssono, já desesperados, temendo que o pior acontecesse. Um burburinho que se transformou em algazarra, com os ânimos cada vez mais exaltados. 

Suelma, a piadista, decidira rezar e o fazia em voz alta, deixando os demais ainda mais irritados. De vez enquanto, olhava de vesgueio para Júlio, quase suplicando que dissesse ser uma brincadeira. Em seguida, leu um salmo da bíblia e todos a mandaram calar-se. Ela sentou-se, pensou numa piada, mas decidiu ficar quieta. Era melhor obedecer.

Enquanto isso, os engenheiros e mecânicos trabalhavam no assento em que Julio se acomodara, do qual se ouvia o chiado , que parecia a todos, cada vez mais sinistro. Só faltava uma luzinha vermelha para que o dispositivo fosse acionado. 
Entretanto, os profissionais reviraram o banco de todas as maneiras e não havia nada que confirmasse a suspeita. Onde estaria a tal bomba? O que causava aquele ruído terrível, que deixava todos em pânico. 

Júlio sentou na poltrona próxima a minha, enquanto esperava o resultado fatídico. Sentiu um pouco de frio e vestiu a jaqueta de couro, que trazia no bagageiro. 

Neste momento, Sandro voltava pelo corredor, quase se arrastando, quando meu amigo resolveu enfiar a mão no bolso e retirar o celular. Quando o fez, não se conteve e exclamou animado, como se tivesse salvo a humanidade: 
— Pessoal, é o meu celular que estava ligado na tv fora do ar! 

Houve um silêncio absoluto, apenas quebrado pelo som surdo de Sandro desmaiando no meio do corredor. 

Os engenherios levantaram-se da posição que estavam, investigando a poltrona e o olharam com uma expressão que demandava uma fúria que em mil anos não se repetiria. 

Os demais levantaram-se dos bancos, também furiosos, como uma turba que planejava vingar a pátria e matar o inimigo. Queriam linchá-lo, não fosse Neusa que pedia clemência porque matariam o namorado pisoteado no piso da aeronave. Este abria um olho e o fechava, como se quisesse permanecer no sonho. 

Todos pararam e afastei-me com Júlio para a parte traseira do avião. De lá, ainda vimos Sandro levantar-se devagar e fazer um sinal para a namorada, que não havia mais tempo de ir ao banheiro. Todos voltaram correndo para a parte dianteira do avião. 

Nesse momento, a aeromoça gaúcha deu a palavra final: 
— Pessoal, pega o rabo quente, porque a única bomba que temos aqui é a do mate! 



"A barca e a biblioteca" na Editora Metamorfose

A barca e a biblioteca na Editora Metamorfose








A barca e a biblioteca é uma ficção que narra a trajetória de um homem que aos poucos descobre a verdadeira história de seu pai, morto nos tempos da Ditadura Militar Brasileira.

Tudo começa nos anos 60, quando César, ainda menino, vive entre a fantasia de aventurar-se na barca à beira do cais e seus livros.

Já na fase adulta, César é um bibliotecário que se vê envolvido em uma trama perigosa, com novos crimes, velhos fantasmas e duas histórias que se entrecruzam. Um romance de fôlego, envolvente e que foge dos clichês da representação da ditadura, mostrando sutis e cotidianas repressões. 

Ficha técnica
Autor: Gilson Corrêa
Nº de páginas: 280
Gênero: Narrativa longa

M o E d A s NaS F r E s T a S

Corri e juntei com as mãos todas as moedas. Nem pareciam de ouro, prata ou qualquer metal precioso. Eram de cobre ou estanho vagabundo, não sei. Mas faziam parte do meu mundo.

Quando as atiraste no assoalho de casa, custou-me encontrá-las, caídas algumas nas frestas quase fendas que se abriam na madeira tosca. Temia até empurrá-las mais para baixo e chegar ao inferno. Temia enfiar a mão e todo meu braço ser sugado pelo inimigo desconhecido.

A noite se formava lenta e eu sabia que precisava com urgência juntá-las e apanhá-las do chão antes que chegasses. Por certo, ririas na minha cara com aquele riso debochado que sempre se acendia nas horas de absoluta ironia.

Quantas vezes te evitei e fingi desconhecer tuas metas.

Quantas não ouvi o guizo de teu pescoço, saltitando pela floresta perto de nossa casa. Quantas vezes te esperei faminto e sonolento, com a certeza de que não virias.

Mas hoje tinha certeza de que o sangue que te alimentava, alimentava também minha solidão. O sangue que trazias em tua boca suculenta, me dilacerava as veias da alma, mas as libertava para entrar no teu mundo bolorento e sujo.

Quisera fugir muitas vezes, é verdade.

Queria recusar teus carinhos, teus afagos, teus mordazes gestos de dominação.

Mas não podia, não ousava nem tinha coragem. Sabias por certo de minhas fraquezas e zombavas disso.

Hoje porém jogaste todas as moedas fora. Deixaste de lado a única coisa que me ligava à vida passada, à vida que não era mais minha, que devia ser esquecida, mas que eu teimava em relembrar e tentar experimentar o que haviam deixado. Marcas, cinzas de um passado glorioso, expurgado pelo fogo tisnando as paredes, envolvendo em brasas o piso maciço, lambendo meus braços e pernas, retorcendo meus dentes e afundando-me o crânio. Não era mais nada, um pedaço tisnado jogado num piso dilacerado.

Sei que me salvaste, que me deste a vida, que me transformaste num brinquedo obediente e cínico. Não importa. Tinha meu visgo deixando marcas no presente. E que o passado se fodesse. Que eu me tornasse único. Um ser só, sem vida, sem perspectivas, sem passado, sem desejos, sem futuro.

Trouxeste as moedas e jogaste na minha mesa.

Puseste tuas mãos peludas e rudes nos meus frágeis frangalhos de braços e mãos, beijaste minha boca com lascivo desejo. Me possuíste com fúria e poder.

Depois, jogaste tudo pro alto. Lambeste o chão, como um verme que vomita o próprio lastro, para marcar presença. Fugiste de mim, volúvel, me deixaste só.

Ouço teu uivo ao longe, nas cercanias, mas longe, só porque o som ecoa. Sei que não virás.

As moedas que jogaste trouxeram a sina que carrego para sempre. As moedas são foscas, velhas e amassadas. Passaram de gerações e não valem nada, nem o valor da substância que as constituem. Sei que foi o símbolo de tua ida e nunca-mais volta. Sei que quiseste afirmar que o guizo anunciará cada vez mais longe e que talvez o teu ciclo acabe e não voltes mais como lobo sedento e amante, mas homem alienado nas rotinas do mundo.

Quisera que fosses assim, como sempre foste. Um mundo à parte, um mundo que se desenrola entre paredes de sangue e paixão. Uma paixão eterna, num lobo deformado e velho. Quisera que teus dentes apodrecessem e teu coração se degringolasse em meu colo. Serias meu. Seria teu. E num lapso de tempo, morreríamos do mesmo mal.

Mas jogaste as moedas e não posso buscá-las, porque o assoalho está cada vez mais podre, tudo em ruínas, o mundo em ruínas, o outro não existe na minha percepção, só o lobo que me persegue. Quisera sentir tuas garras no meu pescoço, teu lombo em minhas costas e teus dentes em minha boca.

Quisera reviver o fascínio da morte em vida.

Agora o silêncio entre árvores milenares, o instante do último sinal, tudo parou, se aquietou.

O vidro da janela se estilhaça no chão. Recolho os cacos devagar e por um momento, me olho, imaginando no espelho. Não reconheço o outro que vejo, não reconheço a diferença em meu entendimento e razão. Não é aquele que sou. Por isso não o quero.

Volto-me para as moedas. Já não ouço nada, nem o eco de teus vagidos. Enfio o meu braço nas fendas do assoalho, devagar, levo a mão direita tateando pelos cantos, sentindo pequenas fricções de penas de pássaros, algumas teias de aranha, tudo muito tranquilo, nada peçonhento, nem monstros me segurando.

Fico cada vez mais curioso e enfio o braço atingindo o chão gosmento de lama.

Enfio os dedos no que suponho a lama encharcada dos esgotos que vazam dos rios. Procuro as moedas, vou de um lado para o outro até me doer o braço direito.

Ouço um leve tilintar, como se encontrasse as moedas na escuridão.

Procuro ansioso e não encontro nada, o ruído aumenta cada vez mais. Sinto que meu braço mergulha naquele aterro sem vida, amorfo e medíocre.

Se Deus que criou esse desejo medonho, porque não me deixa chafurdar na lama com prazer? Por que me reprime e me despe da paixão.

Se amar tem um preço, por que não o valor das moedas que tinha em mãos?

Retiro a mão num ímpeto.

Levanto-me e tropeço numa tábua que se solta.

Meu braço se confunde com a tisna de meu corpo.

O barulho aumenta e se aproxima; o tilintar absurdo que me rasga os tímpanos. Corro para a janela estilhaçada.

Olho para a escuridão e um brilho de chocalho cega meus olhos.

É ele, com o guizo sacudindo no pescoço, como animal desenfreado num estouro da boiada.

É ele que se aproxima fazendo barulho, me procurando para acabar, por certo, com a nossa ruína.

sábado, fevereiro 04, 2017

Um menino que voa alto

Começou devagarinho a chamar-me a atenção. A princípio, uma ideia aqui, outra acolá. Noutros momentos, um pequeno rabisco, como quem recém está se desenvolvendo e quer o peito, faminto.

Aos poucos, se observa que o bebê está crescendo e começa a pedir-nos coisas. Exige cada vez mais cuidados, como se estivesse prestes a cair em ciladas.

Então o analisamos com cautela, aceitamos seus pedidos, aumentamos os recursos.

Começa a ficar bonito, rechonchudo, umas bochechas vermelhas de bebê de rótulo de leite.

Ele cresce mais e já é um adolescente. Aí que o conflito aumenta, nem tudo está adequado aos seus desejos. Quer mais, precisa tornar-se mais forte e resistente, para que todos o vejam com vigor e sabedoria. Mas sabedoria só não basta. É preciso zelo, coerência, beleza, músculos fortes e tórax robusto.

Está quase no ponto de se mostrar à audiência. Precisa então de um clímax e por isso nos enlouquece a ponto de acreditarmos que não chegaremos ao final.

O que busca ele?

O que quer a plateia?

O que quero eu?

Um final deslumbrante, que resista ao senso comum, que permita reflexões, que se mostre inteligente, que busque a elite intelectual, mas que se espalhe no povo.

Aqui está ele, enfim, pronto.

Mas estará no ponto?

E ao alcancançar as ruas, dá-nos uma certa angústia em vê-lo fora do berço familiar, atingindo outros mundos, outras formas de lidar com a verdade e a vida, obtendo outras leituras.

Então, além da angústia, temos também ciúme. Nosso menino já não será mais nosso e cada um o verá de uma maneira.

Será que o entenderão? Será que pensarão como o pai? Será que o aceitarão?

Mas este menino precisa correr o mundo.

Precisa voar alto, longe de nossos braços e mais perto da imaginação alheia.

Este menino é o livro que ao ser publicado, não pertence mais ao autor, mas ao leitor, porque dele fará a sua leitura.

Então vá, menino, corra mundo e se transforme na alma de quem o decifra.

sábado, janeiro 21, 2017

Um passeio no Gordini, com meu pai

Fui apresentado ao Gordini de forma inesperada. Tinha uns oito anos, quando um amigo de meu pai deu-nos carona. Nos acomodamos no carro branco, com os bancos de cor bege, e imediatamente começaram a comentar sobre o tamanho do carro, acostumados com veículos avantajados da época, com espaços generosos entre os bancos e porta-malas gigantescos.

O Gordini, antigo Dauphini não era nada disso. Era pequeno, com espaços milimetricamente medidos para ajustar nossos corpos e alguns pertences. Era o que me parecia, ao observar meu pai e o amigo, quase encostarem a cabeça no teto. Nem sei se era impressão minha, ou sugestão pela conversa.

Mas, também, pra mim, isso não era muito importante. O fato de estar ali, com eles, com meu pai dando os seus palpites sobre carros e motos e fazendo perguntas amistosas sobre o automóvel, já mobilizava toda minha atenção, ao ponto de imaginar, um dia comprar um carro como aquele.

Eles conversavam animados. O dono, que a recém havia comprado, enaltecia as qualidades do veículo, informando que a velocidade poderia chegar a 115 km/h, o que me parecia um fato extraordinário. O único carro que podia ultrapassar esta velocidade, era o do Batman, mas até ai, as coisas eram outras.

Meu pai perguntou sobre o consumo, ao que o amigo respondeu, satisfeito, que chegava a 13km/l. Parecia feliz e elogiava o pequeno carro branco, durante todo o percurso. Eu percebia aquele cheiro de carro novo, há pouco comprado e lembrava de alguns livros, que tinham aquele cheiro peculiar da tinta ou do tipo de papel utilizado.

Nossa pequena viagem prosseguia, porque o amigo de meu pai resolvera mostrar a velocidade que o carro atingia, naturalmente não a máxima, mas a que seria adequada numa estrada. Meu pai concordou que o veículo era muito confortável, e por certo desempenharia uma velocidade segura.

Eu torcia para que o homem corresse, empolgado com a oportunidade de me embrenhar nas dunas do Cassino. Imaginava que ele iria até lá, afinal um lugar adequado para tal feito.

Seguíamos então pela Avenida Buarque de Macedo e dobramos na esquina do cemitério, pegando em seguida o que chamávamos de linha do parque, em direção ao Cassino, indo até o antigo V (atualmente o viaduto do trevo).

Foi ai que o amigo de meu pai decidiu mostrar a potência do automóvel. Aos poucos, atingiu, já na estrada, uma velocidade de 50km por hora e por momentos chegando a 60. Meu pai ficou impressionado pelo pouco tempo dispendido em alcançar tal velocidade.

Uma poeira levantava as rodas traseiras nublando o vidro, deixando pra trás um pequeno redemoinho, que esmaecia rapidamente nas valetas secas da primavera. O motor emitia um ronco consistente que sustentava a marcha constante. Eu percebia, desenhado no retrovisor um meio sorriso do amigo de meu pai, orgulhoso com a aquisição.

Enquanto falavam, ele estacionou o veículo numa pequena entrada de um sítio, desceram e o homem imediatamente, me perguntou: – e aí, guri, que tu achou do carro?

“Gostei”, foi o que respondi. Talvez elaborasse uma redação sobre o tema, se tivesse tempo, mas falar ali, não tinha muito o que improvisar. Passou a mão pela minha cabeça e deu uma risada. Meu pai, segurou-me pelo braço e me conduziu para o carro, porque dali, voltaríamos para a cidade.

Meu sonho de dunas havia acabado. Mas valeu à pena. Valeu à pena a estreia no Gordini, a conversa dos dois e a maneira solidária de meu pai, ao me olhar. Sabia que estava ali, ao meu lado e queria me dizer muitas coisas. Era o seu jeito. Sempre me olhava com carinho, que expressava muito mais do que falava.

Mais tarde, soube que o Gordini foi um dos primeiros carros populares do Brasil, da Renaut, mas fabricado pela Willys. Antes de se tornar o Gordini, ele era o Dauphine, que não se deu muito bem entre nós e inclusive, apelidado de Leite Glória, pois desmanchava sem bater. Isso acontecia porque as estradas eram muito ruins e suspensão constituída por bolsas de ar que se endureciam com a carga, foi projetada para estradas europeias.

Rebatizaram então, o Dauphine, como Gordini, que teve alguns ajustes, como o câmbio que passou a ter quatro marchas para a frente e o motor que elevou a potência para 40cv e mais tarde, em 1964, para a potência de 55cv, apresentando ainda dois carburadores e taxa de compressão maior.

Segundo a Willys-Overland era mais luxuoso, com melhor acabamento interior, frisos e trincos metálicos elegantes; mais confortável devido possuir quatro portas, grande porta-malas, forração de carpete e espaço interno bem aproveitado e mais estável, seguro, suspensão reforçada, firme nas curvas e em qualquer terreno.

A partir daqueles momentos tão agradáveis com meu pai e seu amigo, passei a sonhar com o Gordini, um carro que me parecia ideal. Imaginava que ao crescer, compraria um Gordini, tal qual o do amigo de meu pai. Talvez, não branco, como o dele, mas de uma cor mais forte e intensa, quem sabe um amarelo? Pensava que meu pai tinha a mesma intenção, mas o que ele fizera a seguir, fora comprar uma tv Philips de 28 polegadas, acho que para assistir as propagandas do Gordini.

De qualquer modo, não concretizei este sonho. O Gordini terminou em 68 e em minha juventude, o sucesso da época era o Chevette e o fusca, claro, em se falando dos carros médios e pequenos.

O que ficou de verdade, foi a lembrança de mais um momento passado ao lado de meu pai, que por certo, tinha os seus sonhos, e de algum modo compartilhava comigo.

quarta-feira, janeiro 18, 2017

Contar estrelas

Dou alguns passos em direção à porta da rua. Lá fora, é tão íntimo quanto aqui dentro.

O quintal sombrio, as estrelas pontilhando o negrume do céu sem lua. Pode haver estrelas, quando a lua se esconde?

Percorro as vielas estreitas, esgueirando-me entre os canteiros mal desenhados, com a cabeça para o alto. Sinto uma dor no pescoço, mas insisto na manobra radical para minha idade.

É bom ficar assim, feito criança, olhando o céu, apenas o vazio infinito, perdido num mundo que não é mais meu. Ou de ninguém. Mas quero viver este momento evasivo, no qual a solidão se esvai como balão estourado. Fugidio, brigando com arvores, destelhando nuvens.

Acendo velas para os mortos ou para os vivos. Não sei.

Agora que a energia faltou, bom viver na escuridão quase total da noite. Não fossem as estrelas...Quisera não sair nunca mais do meu quintal, nem sentir o cheiro agro-doce das velas. Parecem incenso vagabundo da dona da Confeitaria. Que tem a ver incenso com confeitaria, com pães e doces? Mas costuma extrapolar seus desmandos, sua pose de rainha, sentada na caixa, esperando os míseros cobres que soltamos no balcão. Cobres? Falei cobres? Estou velho realmente. Mas não caquético, não admito.

Sou lúcido, sou forte, ainda sonho.

Sonho em ver estrelas mais de perto, com uma luneta colorida.

Quisera ver a vida, na estreiteza das relações, e quem sabe, descrever o que me ficou às escuras, oculto, escondido na miopia de meus sentimentos ou percepções.

Nunca tive a agudeza dos espertos, a argúcia dos empreendedores. O máximo que arregimento é o cultivo de minhas plantas. Organizo-as, converso com elas, como todo velho, fico a olhar o dia e não o deixo passar sem fazer alguma coisa que me enleve, me dê alegria, me mostre algo mais do que meu fraco coração descortina.

Quero não ver apenas, mas vivenciar as urdiduras, as tramas triviais, o velho que desandou esquina abaixo, descendo ladeira, desequilibrado na cadeira de rodas, o menino que regurgitou o sorvete na cara da mãe, com dor de barriga e ansiedade de comer o que a vida lhe oferece, a moça que pintou o piso com o lápis de sobrancelha, beijando o chão que o namorado pisou, o rapaz que deu duas piruetas no ar e transformou a moto numa sanfona, o homem maduro que atravessou o sinal, destemperado, gritando aos brados, faminto de raiva, porque o companheiro de trajetória cortou-lhe o caminho.

Mas não quero tragédias, não. Que ninguém morra ou se machuque. Só que permitam gargalhadas.

Que possa rir, sem chorar e que eles aprendam com os erros, se não o fizerem com a maturidade.

Também quero ver bandeiras balançando, gente se enfileirando num mesmo objetivo, desde que não sejam pagos para isso, flores vicejando, pássaros se abrindo em vôos em v, andorinhas visitando as tribos, adolescentes inventando amor em cio de primavera. Quero viver.

Mas agora, quero só voltar a cabeça pra cima, passear pelo meu jardim disforme, olhar para o céu escuro e contar estrelas. Com sorte, pego até uma verruga.

domingo, janeiro 15, 2017

A barca e a biblioteca: um romance como livros foram sitiados também em tempos de recessão

É a trajetória de um homem que aos poucos vai se inteirando da verdadeira história de seu pai e o quanto ela ainda o influencia nos dias atuais, forçado a recorrer ao passado e reconhecer nele um caminho novo, de liberdade e orgulho, que não identificava anteriormente. Uma história que vai modificar e completar a sua. Com o conhecimento destas vivências, cresce como ser humano.

Tudo começa nos anos sessenta, cuja curiosidade infantil o impulsiona a conhecer determinados documentos que parecem comprometer o pai, e que tanto o angustiavam pelo forte conteúdo político que continham.

Ao mesmo tempo, levava a vida de menino, confrontando a fantasia de aventurar-se na barca à beira do cais, sempre impedido pela mão forte do pai, enquanto, que através de outros caminhos, imergia no mundo sagrado da biblioteca, batizado que fôra nas letras, podendo singrar os mares tal como os navegadores antigos, sem que houvesse qualquer intervenção. Aqui ocorre a metáfora da barca que não ousara entrar, mas que se materializava no ambiente dos livros.

Em meio a tudo isso, há a luta política do pai, como voluntário no movimento da legalidade, quando Brizola instalava a rádio nos porões do Palácio. Em decorrência destas atitudes, fôra perseguido e torturado, a partir da derrocada da liberdade pelo advento da ditadura.

Na fase adulta, envolvido com os documentos confidenciais do pai, misturam-se personagens que gravitam em torno deste mistério, na trama que ocorre no cenário de uma biblioteca, chegando ao ápice, a partir de um crime.

Nesta atmosfera misturam-se sentimentos muito fortes, mas bem distantes dos relacionamentos idealizados de sua infância.

quinta-feira, janeiro 12, 2017

Frase clichê

Ao sair apague a luz

Apenas uma frase clichê

Por certo, não daria um verso

Mas expressa a realidade da ética ou ex

Mistura de sentimentos

Raiva, ira ou aversão

Que será que temos

Neste espaço sem sedução?

Apenas manipular e trair?

Ou o que devemos ouvir

Para entender a missão

Dos jornais, das mídias, nas várias plataformas

Anunciando a democracia para quem já esgotou a teoria.

Criei um fake

Criei um fake

Certa vez criei um fake de mim mesmo. Isso é normal, me perguntaram alguns amigos, não sei, nem mesmo sei o que realmente pode ser considerado normal. Afinal, as pessoas apresentam comportamentos distintos das normas concebidas como dentro da normalidade e tudo parece extraordinário, elegante, vanguardista, até pós-moderno (se é que isto existe).

Enfim, tudo depende do contexto em que se insere a situação ou o comportamento.

De todo modo, por um tempo, fui muito feliz com o meu fake, ou melhor, fui contemplado com alguns benefícios.

O meu fake participava de muitas redes sociais. Era esperto, inteligente, adequado às novas tendências tecnológicas e artísticas, além de ser politicamente posicionado, e no final das contas, um grande filósofo.

Mas era um fake, uma figura criada para me proteger, como uma bengala para me amparar, um personagem para dividir comigo as informações mais estrambólicas, para discutir os problemas sociais, para compartilhar as dúvidas existenciais, para tomar atitudes objetivas em relação aos mais diferentes pontos de vista. Sim, porque ele tinha um ponto de vista.

Ele possuía assertivas bem argumentadas, sabia expor suas ideias com incomparável maestria. Era um verdadeiro gênio na arte de examinar, avaliar, abalizar, confrontar situações, encontrar as mais diversas saídas e intervir despudoradamente nas conclusões de outrem, mostrando outros caminhos, outras maneiras de olhar o mundo. Olhares diferentes não lhe faltavam. Alegria e bem humor também. Era perfeito. Educado. Paciente, paciencioso, parcimonioso, contemporizador, elegante. Um gentleman.

Por um tempo, eu o acompanhei em suas elucubrações, suas ideias diversificadas, seus pontos de vista únicos, que fogem do senso comum e desacomodam as coisas.

Afinal, do alto de seus amplos conhecimentos, de suas vivências e sua atribulada trajetória mundana, espraiava pelas cercanias toscas das redes sociais, as mais amplas doses de novas descobertas, de novas maneiras de situar as lacunas, enchendo-as com experiência, conteúdo e ação.

Eu me acostumei com ele.

Habituei-me com o seu jeito de retribuir o que eu pensava, de compartilhar comigo as descobertas, de sinalizar os mesmos caminhos, de alargar horizontes que ao mesmo tempo nos pareciam tão próximos, tão atingíveis que bastava que esticássemos a mão, aquele dedo indicador, aquele que julga, que aponta, para chegarmos mais e mais perto, do objetivo alardeado, quem sabe da verdade.

Era assim que nos comportávamos quase arrogantes. Um entregando ao outro, de mão beijada, a contribuição precisa no momento certo. Como num jogo de dupla, onde um depende do outro. Jogo de tênis, preciso, tenso, concentrado, silencioso. Só o barulho da raquete, do suspiro da plateia, do grito de vitória.

Uma coisa que brilhava no céu empoeirado e nublado do facebook ou de qualquer outra rede social. Qualquer coisa que disséssemos valia milhões de acessos, por nós, é claro, que não estávamos interessados em frases de Arnaldo Jabor [sic], em comentários sobre bebida, cozinha, aquele churrasquinho íntimo, lavado na caipirinha e nos olhares vermelhos e estrábicos de quem abusou da alegria, coisas que só dizem respeito a quem posta na rede, ou na moto usada, no cachorrinho fazendo xixi no sofá, na sogra esticada na rede, mostrando as coxas disformes, ou nas mensagens melosas, instigando culpas e medos, procuras e respostas de correntes intermináveis.

Não, não era nada disso que procurávamos. Isso era coisa do falecido Orkut.

Mas, de repente, o fake foi sendo conectado por outros amigos, foi sendo abordado em pedidos de amizade, de compartilhamento, e cada vez mais assediado por suas ideias e manifestações impunes.

Todos queriam conhece-lo, saber mais do seu perfil, pesquisar suas fotos, seu mural. Queriam acompanha-lo, segui-lo, encontrar nele o caminho que parecia abrir tantas portas, tantas saídas e tantas maneiras de achar a verdade.

Nem todos, é claro. Não aqueles da caipirinha, das fotos pessoais, da mostra diária de seus afazeres, desde a comida do meio dia até a dor de barriga da tarde. Estes não. Estes estavam interessados em curtir outra coisa e compartilhar consigo a mesmice do dia a dia.

Aquela novidade era pra poucos.

Mas estes poucos iam se multiplicando, o que me deu algum medo. Medo de ser ultrapassado pelo fake.

Os meus amigos já nem me ouviam mais, nem compartilhavam o que eu postava, embora concordassem comigo, ah, só porque eu compartilhava com o fake, concordava com o fake, alimentava-me do fake. Eles queriam fazer o mesmo.

Foi um tempo de muito sofrimento. Uns diziam, porque que ele só compartilha contigo? Por que só concorda contigo? Porque descreve em pormenores, com muito mais argumentos, alicerçado em artigos de especialistas, em leituras adequadas, em conhecimentos científicos ou em suas próprias vivencias o que tu enuncias? Por que não colabora conosco, não compartilha conosco?

Então tive que dividir o fake. Ou melhor, tive que escrever por ele para os amigos também.

Então começara a chover  pedidos para acrescentá-lo em suas redes sociais.

Eles o queriam, eles o amavam.

Não era a mim que seguiam, não era o que eu pensava que valia, era o que ele afirmava, eram as suas atitudes que importavam. Ele era o rei da festa. Eu passei a ser só um coadjuvante.

Então tive uma ideia: decidi eliminar o fake.

Resolvi dar um basta naquelas atitudes arrogantes, naquele modo de pensar vanguardista, pós-moderno, aqueles pontos de vista avançados, aquele jeito ousado de fugir do senso comum.

Eu precisava eliminar o fake. Acabar com ele, acabar com sua fama, seu jeito desinibido de ser, sua intimidade cada vez mais exacerbada junto aos meus amigos, que agora eram mais seus do que meus.

Não havia saída. A única saída era acabar com ele.

Foi o que fiz.

Eliminei o fake.

Voltei a ser eu mesmo. A discutir os mesmos assuntos, a política, a sociedade, os movimentos sociais, a beleza da natureza e a luta por sua conservação, a busca pela igualdade étnica, a luta pelo fim dos preconceitos, a filosofia em suas mais diversas vertentes, a música clássica, a boa musica, o teatro, a literatura, a vida cultural... Também fugi do senso comum, vi e revi valores, avaliei outros caminhos...

Os amigos se afastaram, um que outro postava um “curtir” ou compartilhar alguma foto ou desejar uma boa noite, um bom dia, um boa tarde, um bom fim de semana...

E todos voltaram a mostrar as suas casas bonitas, recém-adquiridas, os seus carros último modelo, as suas motos, os seus casacos de couro, os seus churrasquinhos de fim de semana...

Enfim, a mediocridade que faz parte de suas vidas.

Acho que vou criar o fake novamente. 

sexta-feira, janeiro 06, 2017

Ventos escassos de Brasília

Saí pela rua, dobrando esquinas, pesquisando um ar mais puro. Respirar fundo e sentir-me apoiado. Entretanto, alguma coisa ao meu redor revela um futuro incerto, uma armadilha, talvez. Esta quase certeza da ameaça (medo e prazer) que se aproxima.

Embrenhar-me no parque escuro e sentir suas mãos incólumes em minha veia. Um encontro tão próximo, que pensava ser de gozo.

Um homem de olhar intenso, sorriso reluzente, alma escancarada. Um homem que me procura na noite insana dos exilados. Um homem que lança olhares e serpenteia meu corpo suado de fazeres políticos. Um homem que se instala em meu mundo tão cercado, acabrunhado na segurança de meus seguidores.

O desejo é mais forte do que meu raciocínio, o desejo imantado no metal precioso e acalentado nas noites impróprias. Quisera fugir, quisera seguir os caminhos seguros, mas meu coração palpita adiantado. Sabe antes de mim de meus desejos infecundos.

Eu, um homem de meia idade que se esconde de suas vontades mais intimas.

Ele sorriu e se aproximou. Do jeito franco, acostumado à provocação. Dizia que eu não podia fugir agora.

– Não sei, aqui é estranho. Não estou acostumado com estas coisas, estes encontros — foi o que pude dizer a meu favor.

Ele sorriu despropositado. Um sorriso branco na noite de sombras produzidas pelas folhas dos ipês. Sombras que pintavam o chão e cambaleavam ao meu olhar aflito.

Ele não me deu tempo, se aproximou ainda mais com a mão no pescoço, alisando carinhoso, a ferida de minha alma. Amalgamando as dores e prazeres num só momento. Minhas pernas tremeram. Tentei argumentar, arfante, que era um homem casado, um deputado, homem de imagem ilibada, que não estava ali a procura de programas.

Um homem com dinheiro e poder para sacar qualquer prazer.

Um homem que afastara uma presidente.

Mas não consegui.

Soltei a maleta a meus pés, que me doíam os pulsos. Ele se achegou arfante e me disse coisas aos ouvidos, que há muito tempo desconhecia o teor. Coisas que me confortavam, que me deixavam lúcido, de uma lucidez também há muito esquecida em um arquivo qualquer de meu computador.

Então me beijou lascivo e retribui, afoito, num desempenho infantil e desesperado. Suas pernas me prendiam, habilitando o aconchegar do sexo vigoroso em minhas coxas e suas mãos se apossavam em desacato de meu corpo, deslizando rápidas, investindo em caminhos que me faziam rogar desatinado. A barba roçava na minha e nossas bocas vorazes se procuravam, sem medida, sem respeito. Nossos corpos se engalfinhavam, ali mesmo, no deserto de minha alma incompleta, esquecido de tudo, do início e do fim, do infinito, do marco zero de minha vida.

Foi um tempo quase ínfimo, quase imperceptível, pois o mundo se deteriorou num instante. No momento preciso em que a ameaça se tornou real e a mão forte se apoderou do único dom não disponível, a minha vida, de forma cruel e insana.

Também ele queria a vida que eu tinha. Também ele queria o poder. O poder de ter e distribuir talvez com os seus.

Suas frases se tornaram duras e precisas. A poesia despencou das nuvens. O sorriso claro se fechou num punho selvagem, aqui, na terra. Encostou a arma em meu peito, exigiu muito mais do que podia lhe dar. Impeliu meu corpo no chão cheio de manchas. Exigiu o pouco que restava.

E depois de tudo pego e acertado, disparou com raiva no corpo indefeso e desapareceu, formando outras sombras que desapareciam nos pés velozes.

Percebi, que as nuvens não se deslocavam claras, nem as via, deitado. Apenas vestia-me assim, da cor vermelha que tingiu a camisa branca.

Ver uma multidão que se aproximava, carinhosa e festiva. Um carinho sórdido a quem carrega consigo uma mala executiva. A quem tem o poder.

Abrir a porta da sala, sentar na primeira cadeira, ouvir os comentários e espiar as luzes filtradas pela cortina semi-cerrada. Ouvir as queixas, as sugestões. Sentir os tapas nas costas e a dor nos olhos.

Cabeça titubeante.

Desequilíbrio.

Perceber que a esperança escorre ali, pelos dedos, enquanto mãos me tocam afetuosas, se despedem felizes.

No elevador, torcem narizes, fazem muxoxos. Eu sei. Eu também aqui, agora, sozinho, nesta sala grande, com os cotovelos na mesa, também faço. Torço o nariz, faço muxoxos, balanço a cabeça com náusea, mas ainda espio lá fora.

Quem sabe pela luz filtrada da cortina, ainda enxergo o menino escamoteando o tempo, sugando a vida sem pressa e pensando que a vida é só isso, essa felicidade quase plena.

Mas é um espaço de tempo tão tênue e sinto que meu corpo já não obedece meus gestos e nem estou a minha mesa, no meu gabinete.

Nem as cortinas brincam nos ventos escassos de Brasília.

É um quarto branco, de luz fraca e todos parecem estar de branco e quem vejo ali, acena tragicamente a cabeça.

Meu assessor me olha e percebo no seu olhar uma censura implícita que não dissimula. Então arquejo, a voz entrecortada, a respiração curta e um ódio tinge de desespero minha retina sem vida. Envieso o olhar para a vidraça sem glamour e aperto o cenho com dor.

Volto-me para ele e observo-lhe as olheiras que emolduram o rosto desorientado e imagino a morte. Acho que grito:

— Essas cortinas estão me matando, um de nós tem que sair!

quinta-feira, dezembro 22, 2016

Isto é Natal

Hoje, acordei, nem sei porquê, tendo como imagem a presença de um buraco ou talvez, a ausência da areia, que ao ser retirada, para constituir a cavidade, aumente cada vez mais a lacuna.

E me veio à mente, o que é natural, que cada vez que se retira a areia, ou a terra, ou a lama, ou o entulho, o buraco fica maior, vira cratera e parece invencível, com sua boca enorme, pedindo mais.

Na verdade, quanto mais se tira, mais se precisa e nos parece que a cavidade que estamos produzindo, nunca chega ao seu termo.

Então, relacionei a areia retirada com os prazeres, que ao serem desfrutados, cada vez mais se precisa de outros maiores, mais intensos e complexos para satisfazer o vazio que se forma.

Os prazeres precisam alimentar a fome que se tem da vida, esse enorme buraco que se forma, pedindo mais, tornando-se o vácuo maior, como uma grande boca sedenta ou faminta.

É o que frequentemente se faz no Natal, queremos tapar esta boca imensa, essa cratera que temos através de presentes, compras de todos os tipos, tamanhos e matizes, para fomentar o imenso monstro que se apega a nossos pés, a nossos corpos, puxando-nos para suas entranhas, sugando o que talvez nem tenhamos para oferecer.

Os pequenos prazeres, no entanto, aqueles que cumprimos à mesa com os nossos, o viver o Natal no dia a dia, enfeitando nossas árvores, puxando um galho daqui, enlaçando o outro ali, cercando-nos de carinho e afeição, um sorriso afetuoso, um olhar denso, terno e sincero, uma oração tranquila, um aperto de mão: estes acalmam a alma. Destronam o monstro que nos cerca, engole o vazio.

Somos assim, plenos, verdadeiros e fortes.

Os menores prazeres ou os mais simples, os que vivemos nos trezentos e tantos dias do ano, estes rotineiros e esquecidos, esses sim, preenchem nossos momentos, afagam o coração, aquecem o espírito.

Basta pouco, basta que vivamos o Natal durante todo o tempo, se possível, lembrando que o Aniversariante busca em nossas almas o melhor de nós mesmos: esta simplicidade que acomoda e aquieta. Esta vida que corre límpida, ordeira e franca. Esta vontade de ser assim, um pouco melhor, cada dia.

Isso basta. Isto acolhe. Isto é Natal.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/natal-sonho-santa-felicidade-1881708/PeteLinforth

terça-feira, dezembro 20, 2016

O peso da liberdade

O peso da liberdade Sentia as madrugadas se espraiarem e a sensação de que a vida se alongava, ali, naqueles momentos fugazes. Nada havia para impor: a natureza se completava. A vida estava além das paredes de seu quarto. Estirava-se nas sombras encardidas dos muros mal pintados, nas sacadas fragmentadas, nas quais figuras se expunham assim, descomedidas e sem pudor.Transformavam-se em manchas de água, nas calçadas limpas, sereno incrustado da umidade gélida produzida. Era assim. A natureza se esbaldava em fervor, em criação e criatura, em inventar a vida. Para ele, as madrugadas não passavam de um espiar solitário pelas persianas. Um olhar entrecortado em tiras. Um olhar apenas. Nada que impusesse uma vontade forte, que se derramasse em seu corpo e atingisse a alma. Que nada. Bastavam os sons difusos da noite insípida em que se resumiam suas horas. Uma coisa insossa. Uma coisa sua, mas que não compartilhava com ninguém. Melhor assim. Melhor deixar-se vesgo e perturbado ante o desconhecido que só vislumbrava às apalpadelas na vidraça. Na persiana. No frio da janela. Um olhar qualquer. Nada definitivo. Nada planejado. Nada. Pudesse seguir os instintos e atravessar as paredes, afundar-se na lama que jaz ao lado da janela. Chafurdar e encher-se de gozo. Para ele, porém, a vida era comedida. Não podia ultrapassar os limites. Não devia se arriscar. Pensar apenas. Imaginar. Quase sonhar. Um homem às vezes sonha de vesgueio, com cuidado para não destruir o mínimo de sonho. Um sonho frágil, pouco acalentado, logo acordado para a realidade. Mas um sonho. Na verdade, quisera ousar o sonho dos outros, daqueles além de seus limites, do outro lado de sua janela. Quisera sentir o orvalho mais perto, tão perto que encheria o nariz e os pulmões. A lua lambendo a pele, deixando-a quase translúcida. E um bem-estar de quem atinge a plenitude. Talvez um dia, transpusesse a sua janela e espiasse de perto o que acontecia, ali, ao lado e participasse também. Nem que fosse num salto, num segundo, mesmo que se arrependesse, que retrocedesse, que fugisse. Mas talvez cultivasse uma fresta na mente, que vez por outra se enchesse de luz, produzindo um caminho para viver em paz. Quando saiu de casa, sentiu o bafejo da brisa noturna. Mais do que brisa. Era um frio miúdo, que por vezes, arrepiava a testa e os cabelos. Olhou assustado para o nada. Escuridão total. Nem sabe exatamente o motivo do medo. Teria motivo? Talvez o de ainda estar vivo. As coisas se acomodavam, os dias se sucediam, as noites se alternavam em luzes acesas e latidos ao longe. Estava sempre só. Desanimado. Não era pra tanto, pensava. Devia sentir-se feliz, por alguns minutos. Devia sentir a alma elevada, o coração acalmado. Sua vida era como a de todos. Por que se sentia atribulado por picuinhas do espírito? Por que não desviar o desconforto e partir para a própria misericórdia? Isso, ter dó de si, é o que precisava. Mas não aquela piedade medíocre, aquele ar de pobre coitado. Ao contrário, uma piedade doída, verdadeira, do fundo da alma, que o alimentasse, que alicerçasse os pensamentos e a coragem. Quem sabe tendo dó de si, virava-se de frente para o mundo. E percebesse que ao descer as escadas do prédio, o porteiro tinha um modo aflitivo de o olhar, como se o alertasse para o perigo. Talvez porque pouco o visse sair, principalmente à noite. Que interessava ele, agora? Não passava de um velho amordaçado nas ondas do rádio. Sempre à espreita de uma tragédia. De certa forma, agora, sentia-se livre, pois pelo menos, ultrapassara a soleira da porta. Estava atravessando ruas, pisando nos paralelepípedos, enfrentando esquinas. Podia caminhar, sentir o sereno esfriar a testa, o cabelo molhar e avistar ao longe, figuras disformes que passeavam rápidas pelas calçadas circundantes. Na verdade, sentia a boca ressequida. Alguma coisa que o impede de absorver a liberdade em sua plenitude. Mas quem consegue? Quem realmente é livre? Melhor voltar até a garagem, pegar o carro, sentir-se mais protegido, encontrar um lugar para passar a noite. Talvez beber alguma coisa forte, que lhe queime a garganta e acione o cérebro. Então retirou o carro do estacionamento e dirigiu-se às ruas próximas. Não fazia muito que saíra de casa, mas tempo suficiente, para sentir-se angustiado. O tempo era o resultado de suas memórias. E elas permaneciam e se renovavam a cada calçada que atravessava, cada canteiro que avistava, cada praça que circundava. Lembranças da infância, da adolescência, de tempos marcantes. Tempos em que talvez não fosse tão solitário. Estacionou o carro sob a luz amarela do poste. A avenida ampla vislumbrava algum movimento de pedestres. Namorados que se deslocavam em direção aos cinemas ou a bares. Grupos de rapazes que se dirigiam para casa ou talvez para a universidade. Poucos velhos apressados, segurando as bolsas, entrando e saindo de farmácias, ansiosos em voltar para casa. Observava as pessoas, à sombra das árvores que deitavam os ramos sobre os veículos estacionados em oblíquo. Ouviu uma daquelas músicas antigas que o transportavam ao passado, "Perfídia" executada por Glenn Miller .“For I found you, the love of my life, in somebody else's arms”. Nada mais oportuno do que estes versos cheios de melancolia. Deixou-se ficar assim, introspectivo, absorvido pela linguagem lírica da melodia. Nada o atrapalhava, nada o transportava a lugar nenhum, ou o afastava daquele, no qual seu coração o pusera. Mas às vezes, o imponderável acontece. Nada é uma expressão muito forte, tanto que uma batida no vidro o despertou do sonho. Olhou transtornado para a imagem que se derramava no vidro como uma estampa disforme e não disse nada. Por um momento pensou que... não pensou em nada. Tentou voltar ao enlevo, ao passado, à melodia. Mas a voz ecoou enérgica e definitiva, como uma lâmina na carne. Um revólver calibre 38 raspando a vidraça e a voz ameaçadora exigindo que abrisse o carro. Ele obedeceu trêmulo. O mundo desabava em segundos. Ele vislumbrava uma mulher passeando com um cachorro na direção da praça e perdendo-se na escuridão salpicada de luzes indefinidas. Só neste momento percebera que três homens entraram no carro e o empurravam rapidamente para o banco detrás, enquanto um deles acionava a direção. Em segundos, o carro se afastava em disparada. Sua boca babava no assento do banco com uma arma apontada para a cabeça. Gritos, ordens, ameaças. Em poucos minutos, paravam numa rua escura, uma espécie de encruzilhada onde havia linhas de trens. Retiraram-no do carro, abriram o porta-malas e o enfiaram lá dentro, revelando a intenção definitiva de cumprirem o seu objetivo. O carro partia novamente. Ele sentia um calor constante no corpo, talvez do cano de descarga que ficava ali por baixo, não sabia, tudo se alternando entre tremor e pânico. Uma vontade de urinar que não conseguia adiar. O mijo humilhante alagou até seu pescoço, cujo corpo se dobrara numa postura fetal, a única que lhe cabia. O carro voou por estradas se afastando da zona urbana. Sua cabeça doía, sentindo o peso da lataria nas costas. As batidas cada vez mais fortes, produzidas por retornos mirabolantes, aliados à precariedade das estradas, além do alta velocidade desenvolvida. De repente, o carro parou. Os homens cochichavam. Portões com engrenagens enferrujadas se abriam e pacotes se amontoavam dentro do veículo. Os homens se espremiam nos bancos, como se outros entrassem e participassem da operação. Um deles se aproximou e abriu levemente o porta-malas: um vento frio encheu-lhe as narinas. Respirou fundo. A falta de ar passara. Resmungou entre dentes: – Por favor, deixa aberto... quase não respiro. – Cala a boca, não fala comigo. Só eu falo. Que tu tem ai pra botá gasolina? Essa porra tá vazia! Arrancou-lhe do pulso, o relógio, perguntando se a “bosta” tinha algum valor, ao mesmo tempo que avistara a corrente no pescoço, puxando-a com violência, já que o celular já era moeda de troca desde o início. Em seguida, lacrara a tampa do porta-malas, gritando palavras de ordem. – Cala a boca, tu vai morrê se não fechá essa trela! Tu vai morrê queimado, seu puto! Os demais resmungavam em tom cada vez mais baixo, quase um zunido. Alguém se encarregou de trazer a gasolina. Encheram o tanque. Dentro do porta-malas, ele tinha a impressão de que o líquido escorria pelo seu corpo. Ouvia comentários sobre incêndio do veículo. O desespero, aos poucos, dava lugar a uma intensa resignação. Tentou rezar, mas não conseguia. Não recordava as palavras, nem das pessoas. Quem se lembraria dele? Quem sentiria a sua falta? Quem investigaria para descobrir que morrera assim, transformado num monte de cinzas? O carro se afastava, antes, porém ele ouvia estampidos ao longe. Será que alguém fora assassinado? Talvez um vigia aparecesse e exercesse alguma reação? Eles apagaram um comparsa? O que queriam com ele, por que não o deixaram morrer? O carro disparava numa velocidade alucinante. A escuridão total denunciava a zona rural. De repente, luzes passavam aqui e ali, pelas frestas do porta-malas, como se atravessassem uma ponte. E se eles decidissem se livrarem do carro e o jogassem no rio? Não interessava. Estava morto. Sabia que seu destino estava selado. Era só questão de tempo. Agora, o carro parara novamente e o ruído abafado do motor se misturava a coaxos de sapos, o que significava que ainda estavam na zona rural. De imediato, decidiram livrar-se dos pacotes pesados ou caixas de dentro do veículo. Os homens se comunicavam em ruídos e somente um se aproximava dele. Percebera tratar-se de uma estratégia, para que não os reconhecesse. Mas de que adiantaria isso? Bastava apagá-lo de vez! Não teriam mais problemas. Ele não significava nada para eles. Há muito não tinha qualquer importância para ninguém. Aquele que costumava falar com ele, avisou, ameaçador: – O carro vai parar mais duas vezes, tu vai descer na segunda. A tampa vai tá aberta. Conta até 50, entra no carro e segue em frente. Não olha pra trás. Nós tamos de olho. Um deslize e tu vai sê apagado! Foram as últimas palavras, a ansiedade aumentou, um zunido nos ouvidos, um corte na testa que sangrava, a impossibilidade de articular as palavras, de mexer as pernas, de se sentir apto para sair do carro. Como faria isso? Nem pensava, nem engendrava qualquer imagem, porque sua mente não funcionava de modo racional. Seu coração batia exaltado. As costas contraídas, o corpo todo latejava, num misto de dormência e dor. Quando o carro parou numa rua escura, tentou ingenuamente contar, mas não conseguia articular na mente, os numerais. Não tinha o manejo adequado ao raciocínio. Um vento fino assombrava a fresta do porta-malas. Falou coisas desconexas, riu como se houvesse bebido ou usado uma droga forte, forçou as pernas para se levantar e pular para fora. Os ossos pareciam chocar-se desarticulados, deslocando-se pelo corpo, envolvendo as pernas, os braços e o pescoço. Então tropeçou na grama molhada de sereno e nem entendeu o peso da liberdade. Entrou no carro, seguiu em frente e nem sabe para onde foi.

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