
Saí pela rua, dobrando esquinas, pesquisando um ar mais puro. Respirar fundo e sentir-me apoiado. Entretanto, alguma coisa ao meu redor revela um futuro incerto, uma armadilha, talvez. Esta quase certeza da ameaça (medo e prazer) que se aproxima.
Embrenhar-me no parque escuro e sentir suas mãos incólumes em minha veia. Um encontro tão próximo, que pensava ser de gozo.
Um homem de olhar intenso, sorriso reluzente, alma escancarada. Um homem que me procura na noite insana dos exilados. Um homem que lança olhares e serpenteia meu corpo suado de fazeres políticos. Um homem que se instala em meu mundo tão cercado, acabrunhado na segurança de meus seguidores.
O desejo é mais forte do que meu raciocínio, o desejo imantado no metal precioso e acalentado nas noites impróprias. Quisera fugir, quisera seguir os caminhos seguros, mas meu coração palpita adiantado. Sabe antes de mim de meus desejos infecundos.
Eu, um homem de meia idade que se esconde de suas vontades mais intimas.
Ele sorriu e se aproximou. Do jeito franco, acostumado à provocação. Dizia que eu não podia fugir agora.
– Não sei, aqui é estranho. Não estou acostumado com estas coisas, estes encontros — foi o que pude dizer a meu favor.
Ele sorriu despropositado. Um sorriso branco na noite de sombras produzidas pelas folhas dos ipês. Sombras que pintavam o chão e cambaleavam ao meu olhar aflito.
Ele não me deu tempo, se aproximou ainda mais com a mão no pescoço, alisando carinhoso, a ferida de minha alma. Amalgamando as dores e prazeres num só momento. Minhas pernas tremeram. Tentei argumentar, arfante, que era um homem casado, um deputado, homem de imagem ilibada, que não estava ali a procura de programas.
Um homem com dinheiro e poder para sacar qualquer prazer.
Um homem que afastara uma presidente.
Mas não consegui.
Soltei a maleta a meus pés, que me doíam os pulsos. Ele se achegou arfante e me disse coisas aos ouvidos, que há muito tempo desconhecia o teor. Coisas que me confortavam, que me deixavam lúcido, de uma lucidez também há muito esquecida em um arquivo qualquer de meu computador.
Então me beijou lascivo e retribui, afoito, num desempenho infantil e desesperado. Suas pernas me prendiam, habilitando o aconchegar do sexo vigoroso em minhas coxas e suas mãos se apossavam em desacato de meu corpo, deslizando rápidas, investindo em caminhos que me faziam rogar desatinado. A barba roçava na minha e nossas bocas vorazes se procuravam, sem medida, sem respeito. Nossos corpos se engalfinhavam, ali mesmo, no deserto de minha alma incompleta, esquecido de tudo, do início e do fim, do infinito, do marco zero de minha vida.
Foi um tempo quase ínfimo, quase imperceptível, pois o mundo se deteriorou num instante. No momento preciso em que a ameaça se tornou real e a mão forte se apoderou do único dom não disponível, a minha vida, de forma cruel e insana.
Também ele queria a vida que eu tinha. Também ele queria o poder. O poder de ter e distribuir talvez com os seus.
Suas frases se tornaram duras e precisas. A poesia despencou das nuvens. O sorriso claro se fechou num punho selvagem, aqui, na terra. Encostou a arma em meu peito, exigiu muito mais do que podia lhe dar. Impeliu meu corpo no chão cheio de manchas. Exigiu o pouco que restava.
E depois de tudo pego e acertado, disparou com raiva no corpo indefeso e desapareceu, formando outras sombras que desapareciam nos pés velozes.
Percebi, que as nuvens não se deslocavam claras, nem as via, deitado. Apenas vestia-me assim, da cor vermelha que tingiu a camisa branca.
Ver uma multidão que se aproximava, carinhosa e festiva. Um carinho sórdido a quem carrega consigo uma mala executiva. A quem tem o poder.
Abrir a porta da sala, sentar na primeira cadeira, ouvir os comentários e espiar as luzes filtradas pela cortina semi-cerrada. Ouvir as queixas, as sugestões. Sentir os tapas nas costas e a dor nos olhos.
Cabeça titubeante.
Desequilíbrio.
Perceber que a esperança escorre ali, pelos dedos, enquanto mãos me tocam afetuosas, se despedem felizes.
No elevador, torcem narizes, fazem muxoxos. Eu sei. Eu também aqui, agora, sozinho, nesta sala grande, com os cotovelos na mesa, também faço. Torço o nariz, faço muxoxos, balanço a cabeça com náusea, mas ainda espio lá fora.
Quem sabe pela luz filtrada da cortina, ainda enxergo o menino escamoteando o tempo, sugando a vida sem pressa e pensando que a vida é só isso, essa felicidade quase plena.
Mas é um espaço de tempo tão tênue e sinto que meu corpo já não obedece meus gestos e nem estou a minha mesa, no meu gabinete.
Nem as cortinas brincam nos ventos escassos de Brasília.
É um quarto branco, de luz fraca e todos parecem estar de branco e quem vejo ali, acena tragicamente a cabeça.
Meu assessor me olha e percebo no seu olhar uma censura implícita que não dissimula. Então arquejo, a voz entrecortada, a respiração curta e um ódio tinge de desespero minha retina sem vida. Envieso o olhar para a vidraça sem glamour e aperto o cenho com dor.
Volto-me para ele e observo-lhe as olheiras que emolduram o rosto desorientado e imagino a morte. Acho que grito:
— Essas cortinas estão me matando, um de nós tem que sair!
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