sábado, dezembro 10, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 26

Sábado, 10/12/16 - Em breve o final deste folhetim dramático.

Capítulo 26

Após o enterro de Fernando, Linda voltou para a casa e trancou-se em seu quarto. Apesar de todas as desconfianças e presumíveis ameaças da empregada, Santa estava penalizada com o seu estado de sofrimento. Tentou ser solidária embora Linda se mantivesse reticente. Santa também estava desolada pelo fato de Alfredo estar preso. Tudo parecia voltar-se contra a sua família e não havia nada que pudesse fazer. Então teve a ideia de fazer uma nova reunião, já que não havia conseguido unir a família pela missão que acreditava ter que cumprir, a uniria pela salvação do filho.

Aos poucos, todos foram chegando. Sandoval aguardava ansioso e transtornado pelos últimos acontecimentos. Letícia e Ricardo foram os primeiros a chegar. Tavinho desceu do carro, em seguida, incomodado por mais uma convocação da mãe, que achava que poderia resolver tudo ao seu modo. Entrou na casa e foi na direção da biblioteca, mal humorado. Santa aproximou-se do filho e o beijou, pedindo em seguida que sentasse numa das cadeiras em torno da mesa. Em seguida, iniciou a conversa.

– Mais uma vez estamos juntos, só que nunca imaginei que seria desta forma, principalmente por Alfredo estar longe de nós – a voz estremeceu, emocionada ao falar no filho. – Entretanto, precisamos unir forças para tirá-lo daquela prisão.

Ricardo abre uma agenda e rabisca alguma coisa. Fala com certa irritação sobre a ida de Letícia à casa de Fernando, ao lado de Tavinho.

– Se eu soubesse que Letícia tinha feito a bobagem de ir até aquela casa, eu não teria deixado. Aliás, não entendi até agora o motivo.

– Por favor, Ricardo, já conversamos sobre isso. Não recomece.

Santa os interrompe, impedindo que a briga deturpe o objetivo do encontro.

– Agora não é momento para recriminações, Ricardo. Eles foram até lá e assunto encerrado.

– Desculpe, Santa, mas não é assunto encerrado. Eu gostaria que meus filhos explicassem porque foram conversar com o jardineiro naquele dia. Quero saber o motivo, afinal vocês colocaram toda a família em risco.

Letícia fita o pai com certa indignação e responde com veemência:

– Então está bem, papai, já que o senhor quer realmente saber. Nós fomos falar com o Fernando sim, porque ele devia saber muito mais coisas do que sabíamos, principalmente sobre o senhor e Linda.

Sandoval empalidece, mas não se deixa abalar. Defende-se como pode.

– Na verdade, Letícia, sua mae sabe tudo o que aconteceu. Eu fiz questão de esclarecer tudo a ela, contei inclusive que estava sendo chantageado por Linda por causa da gravação de nossa reunião, naquele dia.

Tavinho suspira, manifestando certa culpa pelo que fora proposto na reunião e que certamente Santa devia ter conhecimento de tudo. Aproxima-se da mãe e acaricia-lhe o ombro, desajeitado.

– Mamãe, você deve ter ouvido toda aquela papagaiada, eu só concordei porque quero viver a minha vida, eu fiquei alheio a tudo aquilo.

– Eu sei Tavinho, todos vocês tiveram papel crucial naquela decisão. Todos tinham os seus interesses particulares, ninguém pensou em mim, que seria considerada uma velha louca.

–Não é bem assim, mamãe!

– É sim, Letícia, você sabe que é. Você declarou que eu estaria tirando a liberdade de vocês, talvez tenha razão. Você achou que eu havia me arriscado demais, me metendo onde não devia. E você Tavinho, você lavou as mãos, como Pilatos. O único que sofreu mais e relutou com a decisão foi o Alfredo. Ele concordou também, mas não queria que eu descobrisse que fosse tachada de louca. O Ricardo inclusive, colocou em dúvida a aparição da Virgem, julgando-me sem qualquer escrúpulo.

Ricardo a interrompe, desculpando-se: – Ah, dona Santa, a senhora há de convir que era tudo muito estranho e se o próprio Seu Sandoval, seu marido afirmava isso, seria eu que duvidaria?

Ela o olha entediada. Volta-se para Sandoval e dispara, com raiva:

– E você Sandoval, foi o traidor, infelizmente.

– Por favor, Santa, não vamos recomeçar! Agora não entendo como você sabe de tantos detalhes. Quem lhe contou? Foi você, Letícia?

– A senhora não disse a ele, mamãe?

– A que você se refere Letícia - e voltando-se para Santa – há mais alguma coisa que desconheço, Santa?

– Mamãe recebeu a gravação quando Linda enviou a mensagem para uma amiga. Ela sabia de tudo desde o primeiro momento, por isso não caiu na armadilha que vocês arquitetaram!

– Você sabia, Santa? Então eu não tinha motivo nenhum em obedecer àquela mulher.

– Naquele dia, eu havia ido à igreja, e uma amiga de Linda recebera a mensagem com a gravação. Ela seria o suporte dela, mas eu acabei sabendo de tudo, passei para o meu celular na hora. No entanto, fiquei quieta, pois precisava saber até que ponto você iria, até que ponto tentariam me anular, me transformar numa mulher imprestável.

– É papai, o senhor pisou na bola e mamãe foi muito esperta.

– Mas eu não entendo. Linda deveria ter descoberto que a a tal mulher, se era amiga dela, mandou para você a mensagem.

– Não sei, isso é um mistério. Ela deve ter se comunicado com Lúcia, a mulher que recebeu a mensagem com a gravação. Deve ter contado tudo, mas você sabe que Linda é dissimulada. Certamente, ele mudou de planos. Talvez nem você Sandoval fizesse mais parte dos seus planos.

– Isso é um absurdo, meu Deus! - exclama Sandoval, aniquilado. Santa levanta-se da cadeira e encaminha-se para uma posição em que consegue observar a reação de cada um. Assim, em pé, continua:

– Mas eu não os chamei aqui para ficarmos remoendo esta história. Há muito tempo eu já sabia de tudo, já tinha me frustrado com todas as conclusões que tiveram e agora acabou. Só me interessa encontrar uma maneira de ajudar Alfredo.

– Mas por que vocês acham que o rapaz sabia mais alguma coisa sobre essas manobras de Linda? - pergunta Sandoval, dirigindo-se aos filhos. Santa porém responde com frieza.

– Você mesmo disse Sandoval que ele era o homem que nos assustara naquela noite, andando pelo jardim, aparecendo e desaparecendo e jogando um bilhete pela janela. Você afirmou que tudo fora tudo articulado por Linda.

– É verdade, é verdade. Tenho certeza disso, ela me confiou o seu plano. Mas então… Alfredo também tinha a intenção de descobrir alguma coisa com ele?

Ricardo olha para a mulher intrigado, pretendo impulsionar alguma explicação.

– Vocês dois combinaram ir na casa de Fernando, foi o que você me disse. Eu sabia os motivos, mas por que Alfredo estava lá. Ele deve ter dito alguma coisa para vocês, Letícia.

– Calma, Ricardo. Parece que você está mais interessado do que o papai. Alfredo estava lá, sim, quando chegamos, mas provavelmente tinha a intenção de encontrar alguma coisa que revelasse uma provável armação de Linda. Ele andava desconfiado há algum tempo.

Ricardo intervém, insinuando:

– Eu já tenho as minhas dúvidas, vocês sabem como ele tem interesses estranhos. Vai ver que não era nada do que vocês estão pensando!

– Você é terrível, hem Ricardo, quer calar a boca?

– E o que você acha que tenho que pensar? Você mesma já pensou nisso, que eu sei. Além disso, devemos avaliar todas as hipóteses, querida.

Santa interfere, amargurada:

– Esse não é o caso, gente, pelo amor de Deus. Alfredo é um homem de bem. E por favor, vamos tentar ajudá-lo, não crucificá-lo.

– Estamos aqui para isso. – Complementa, Tavinho.

– Então, contem o que aconteceu naquela casa. - Insiste Sandoval.

Neste momento, batem à porta e Santa afasta-se, tentando saber o que estava acontecendo. Linda surge com o olhar aflito, com olheiras ainda sublinhando a dor que manifesta. Avisa à patroa que o o doutor Tavares, advogado de Alfredo está na sala anterior e tem interesse em conversar com eles. Todos observam a cena surpresos. O que estaria fazendo ali o advogado de Alfredo, o que teria acontecido? Linda afasta-se ao ouvir a ordem de Santa, para que o advogado se dirigisse à biblioteca.

Quando entra, o homem revela-se muito preocupado. Todos fazem silêncio e Santa pede que ele sente à cabeceira da mesa, cedendo o seu lugar. Em seguida, acomoda-se ao lado de Tavinho. O homem começa a falar, desculpando-se.

– Eu não esperava que estivessem tendo uma reunião, por isso peço desculpas. Tenham certeza de que serei breve. Por um lado, foi bom encontrá-los juntos, porque assim, poderei conversar com todos. Como já devem estar imaginando, o assunto só podia referir-se a Alfredo.

– O que aconteceu com meu filho doutor?

– Ele está bem, dona Santa, claro que dentro das condições em que se encontra. Não é nada agradável estar preso, mas pode ter certeza de que está sendo bem tratado, inclusive, por enquanto está numa cela sozinho.

Santa não consegue esconder algumas lágrimas. Tavinho acaricia-lhe as mãos, por um momento. Enquanto isso, o advogado prossegue, enfático.

– Pois é pessoal, eu vim aqui porque preciso da ajuda de vocês para tirar o seu irmão da cadeia. Sei que poderão me informar fatos mais detalhados, que tenho certeza, poderão ajudá-lo com muita eficácia. Infelizmente, posso lhes afirmar que Alfredo está bem encrencado.

– Como assim, o que o senhor quer dizer com isso? - pergunta Sandoval, ansioso.

– Se possível, senhor Sandoval, peço a todos que me ouçam com atenção. Somente assim poderão me ajudar, de algum modo.

– Está bem doutor, por favor, fique à vontade.

– Bem, há uma prova física de que Alfredo esteve lá, embora esteja nos autos que ele confessara ter estado na casa do morto.

– Mas então, essa prova não significa nada. - intervém Ricardo.

– Na verdade, senhores, esta prova corrobora com o que ele disse à polícia. Ou seja, de que esteve lá. O problema é que houve uma limpeza no ambiente, no cenário do crime, entendem? Esta limpeza o incrimina ainda mais, porque ele deve ter feito isso para escapar da condição de suspeito.

– A prova física foi a lente que ele perdeu, doutor? - pergunta Letícia, interessada.

– Sim, foi encontrada, examinada e comprovada que era dele.

– Como meu irmão foi burro! Ele disse que tinha perdido uma lente!

– Meu Deus, Letícia, pobre do seu irmão! Ele é inocente, doutor! Ele não seria capaz de um ato tão torpe!

– É, entretanto alguém tentou se livrar da acusação, seja ele sozinho ou incentivado por outros.

– Estes outros somos nós, não é doutor? É a gente que o senhor se refere?

– Sim, Tavinho, vocês estiveram lá e encontraram o seu irmão apavorado, tentando descobrir se a vítima ainda estava viva. Mas, temos outro problema pior, embora pareça impossível. Uma gravação foi encontrada no celular da vítima. Uma mensagem do próprio Fernando referindo-se a Alfredo.

– Sim, eles devem ter combinado se encontrarem, isso é óbvio.

– Não se trata disso, apenas Letícia.

– Havia mais alguma coisa, doutor? - pergunta Ricardo.

– Sim, eu disse que era uma mensagem do Fernando, uma espécie de monólogo, não uma troca de mensagens apenas.

Santa está cada vez mais nervosa. Questiona o advogado, com a voz trêmula, prevendo que o pior está por acontecer.

– Mas o que o meu filho tem a ver com isso?

– A mensagem é muito grave, dona Santa e está nas mãos da justiça.

– Do que se trata doutor Tavares?

– Senhor Sandoval, eu não gostaria que o senhor soubesse assim dessa maneira do teor da gravação, mas é necessário. Infelizmente, o senhor é o pivô da mensagem deixada pela vítima.

– Mas o que eu tenho a ver com isso?

– O que supomos e o que até mesmo a polícia acredita é que o Fernando, a vítima, tenha feito a gravação para se defender, para garantir que estava isento de um presumível crime que estava prestes a acontecer.

– O senhor pode explicar melhor, doutor? Não estou entendendo nada.

– Bem, Sr. Sandoval, a vítima diz textualmente que Alfredo planejava sequestrar o senhor.

– O que? Isso é um absurdo! Meu filho não faria isso! - grita Santa, em desespero.

– Isto é mentira doutor, meu irmão não teria sangue frio para isso.

– Calma Leticia, deixa o doutor continuar - argumenta Ricardo interessado.

– Alfredo não ia se meter numa merda dessas, a menos que estivesse louco. – conclui Tavinho.

– Bem, pessoal, continuando: A vítima deixa claro que Alfredo queria que ele sequestrasse o pai e o levasse para a casa onde estava morando por um tempo determinado, o tempo suficiente para que ele, Alfredo, pudesse comprovar que a mãe era lúcida e capaz de tomar suas decisões quanto ao patrimônio, longe da presença do pai que para todos estaria viajando. Para isso ele daria uma grande recompensa em dinheiro ao rapaz. Mas, segundo as palavras da vítima, ele jamais faria isso, porque seria preso e não teria chances de sair da cadeia. Entretanto, queria deixar claro quem era o culpado de tudo.

Sandoval levanta-se transtornado e golpeia a porta da biblioteca com raiva. Grita indignado:

–Maldito! Meu próprio filho queria a minha ruína! Ele sempre me odiou, aquele bicha miserável! Com certeza, queria matar-me, acabar comigo!

–Não diga isso Sandoval, pare de insultar o nosso filho, com certeza isso é tudo uma armação. Alfredo é um homem doce, de coração bom. Isso não é verdade, não pode nem ser verdade! - Santa conclui descontrolando-se e caindo num choro convulsivo.

Letícia aproxima-se dela e a abraça, pedindo que se acalme para ouvir o que o advogado tem a dizer. Tavinho também conforta a mãe, ao seu lado. O advogado prossegue, expressivo:

– Verdade ou não, o fato é que esta gravação piorou em muito a situação de Alfredo. Para a polícia, ele é o único culpado do assassinato do rapaz e só falta saber a causa motivadora de tal crime.

– Meu filho não seria capaz de um ato tão torpe! -– Insiste Santa, enquanto Letícia exclama, confusa – Eu estou pasma! Alfredo estava louco, possesso!

– Ou ele queria acabar com o seu pai mesmo, Letícia. O dinheiro, o poder, o patrimônio, tudo conta numa hora dessas. – Afirma Ricardo, categórico. Tavinho insiste:

– Deve existir outra coisa nesta historia toda. Não pode ser isso. Eu também não acredito nessa lorota, meu irmão não ia planejar isso. É loucura. O advogado olha em torno e observa que todos estão muito confusos. Então, responde a Tavinho, tentando esclarecer a situação:

– Loucura ou não, Tavinho, nós não sabemos. Eu conversei com ele, ele foi reticente. Mas o problema é o que lhes falei. Ele está muito encrencado!

– Que apodreça na prisão, esse miserável! - grita do outro lado da sala, Sandoval completamente alterado. Santa o repreende, assustada:

– Não diga isso Sandoval, tenha piedade de nosso filho! Ele é inocente!

– Pois saiba Santa, que já nem tenho certeza de que ele é inocente ou matou mesmo o jardineiro! Um homem que planeja sequestrar o próprio pai, é capaz de tudo!

– Você não pode acreditar nisso, é um erro muito grande. Este rapaz estava louco, certamente queria fazer chantagem com Alfredo, não há dúvidas.

O advogado tenta apaziguar a situação.

– Por isso estou aqui, para ajudá-lo. A polícia já sabe que vocês estiveram lá, então é o momento de dizerem o que viram naquele cenário, o que Alfredo estava fazendo. Você Letícia e você Tavinho precisam detalhar o que viram, dar argumentos para a presença de vocês, pois convenhamos, esta história está muito confusa. Vocês precisam ajudá-lo.

– Eu não tenho mais nada a dizer. Cheguei lá e vi o Alfredo segurando o corpo. Nunca imaginei aquela cena horrenda! - exclama Letícia, enquanto Tavinho complementa que vira o irmão em absoluto desespero, por isso pensaram em ajudá-lo naquele momento.

– E como o ajudaram? De quem foi a ideia de fazer uma limpeza na cena do crime?

– Foi minha, claro. Todos nós estariamos implicados, afinal mexemos em tudo naquela casa. Passamos pra lá e pra cá, porque estávamos muito nervosos, inclusive porque o verdadeiro assassino poderia estar ali, bem perto.

– A gente estava ferrado, por isso, fizemos o que Letícia sugeriu.

– Mas vocês sabem que mexer na cena do crime, desfigurar as provas é um considerado uma falta grave, o fato de extinguir os registros que comprovam um assassinato é uma prova de que queriam se livrar de alguma transgressão. Vocês podem ser acusados de serem cúmplices do assassino. Você deve saber isso muito bem, Letícia. É uma promotora. Eu não entendi porque fizeram isso, uma coisa tão primária.

– O senhor tem razão doutor, é que estávamos muito nervosos, como lhe disse, a família toda ali envolvida, Alfredo apavorado. Não sabíamos o que fazer.

– Foi mal mesmo. – Completa Tavinho.

Em seguida, Sandoval abre a porta da biblioteca e se volta para o grupo, desolado.

– Eu vou me retirar, isso já está me dando náusea. Meu próprio filho armando contra mim e os demais limpando a cena do crime. É uma frustração muito grande.

– Não se esqueça que no fundo, o senhor é o culpado de tudo isso que está acontecendo papai. – Reitera Letícia, sem piedade.

Sandoval afasta-se sem olhar para atrás. Santa está desconsolada, ora dirige-se ao advogado, ora aos filhos tentando achar uma solução. O doutor Tavares ratifica o seu pedido: acha que devem comparecer à delegacia e explicar como tudo se sucedeu, provando que o rapaz já estava morto quando Alfredo chegara. Entretanto, Tavinho faz uma pergunta, que faz todos se olharem surpresos.

– Tudo bem, a gente fez tudo isso, a gente ajudou o Alfredo, mas, vejam, não to afirmando nada, e se meu irmão for o verdadeiro culpado? E se ele matou o tal Fernando?

– Você não acredita nele? - indaga o advogado, intrigado, enquanto Santa acena a cabeça desiludida.

– Eu acredito, mas sei lá, agora veio esta confissão do jardineiro dizendo que ele queria sequestrar o pai.

– Isto é um absurdo, Tavinho. É tudo mentira desse homem!

– Não sei, mamãe, me desculpe, não quero que a senhora sofra mais do que já está sofrendo, mas e se for verdade? Eu já não sei em quem confiar!

– Então deixe que a polícia descubra, que a justiça encontre o verdadeiro assassino. Não será você quem julgará o seu irmão, não acha? Quero apenas que cumpra a sua parte. Você e Letícia devem abrir o jogo, contar o que sabem daquele momento. É só isso o que o advogado está pedindo.

terça-feira, dezembro 06, 2016

OS DEZ TEXTOS MAIS LIDOS NO MÊS DE NOVEMBRO DE 2016

Muito feliz com a leitura de meus textos, publico aqui os dez títulos mais acessados. Muito obrigado!

1º - Labirinto

2º - Bandeira do povo brasileiro

3º - Metáforas cruéis: desqualificação das mulheres e negros

4º - Zumbi – 1695 – Dia da consciência negra

5º - Trabalho voluntário no hospital psiquiátrico: uma provocação para a vida

6º - Passos de atriz

7º - O idiota de Dostoiévski

8º. - Estou tão à flor da pele

9º - A fotografia da vida de Santa – cap. 21

10º - Meu rumo

Um amor de avó

Esperei que ela abrisse o manto da proteção e o estendesse sobre mim. Foi em vão. Fitei-a inseguro, olhos de súplica. Pedi perdão.

Olhava-me com frieza, distanciada de meus sentimentos. Orgulhosa. Onipotente.

Esperei que ensaiasse uma atitude, tomasse qualquer decisão. Falei em minhas culpas. Do mal que lhe causara: agruras devidas a preocupações, brincadeiras ofensivas, aborrecimentos inoportunos de menino levado.

Que nada. Não me ouvia. Resolvera agir assim, friamente, numa pedagogia autoritária.

Estava ali, sentada na poltrona de brocado, com novelos entre as mãos, olhar distante, comprido, para a janela. Minha avó.

Olhando-a assim, sentia pena. De mim, dela, de nós. Por sermos o avesso de suas aspirações: cheios de vida, astutos, perspicazes, briguentos, barulhentos, perturbadores.

Ela quieta, silenciosa, solene. Não nos queria por perto. Às vezes, achava que nos odiava.

Tão diferente de meu avô, suave, doce, amigo, franco, feliz.

Ele, no auge da alegria, satisfação com a vida, afeito aos pequenos prazeres, fortalecido na dor, tranquilo, sereno.

Ela, forte, resoluta, uma rocha.

Sempre nos seguia com o olhar e quando não gritava, falava com aspereza e dor. A dor lancinante dos que não aceitam o sofrimento, dos que invejam a vida que aflora, que se tinge de cores douradas, luzes flamejantes, fogos ardentes.

Tinha em seu íntimo uma vontade extrema de nos ensinar, de moldar a sua imagem e semelhança, de nos fazer crescer.

E por isso, nos diminuía, achincalhava nossas misérias, desconsiderava nossas descobertas, nossos progressos, nossos sonhos.

Mesmo assim, eu percebia no seu olhar uma certa fragilidade, uma pureza escondida, uma ingenuidade que temia emergir.

Se pudesse mergulhar naquela alma, por certo, veria muito mais do que aparentava.

Aquela mulher forte, guerreira, autoritária tinha uma doçura e sensibilidade que insistia em ocultar.

Sabia que me amava, mas a sua maneira. Querendo ensinar a todo momento, transmitir uma aprendizagem contida, fabricada, padronizada aos conceitos que internara em seu subconsciente. Uma disciplina autoritária.

No fundo, percebia isso e me dava um alento. Quem sabe um dia, encontraria a verdadeira face daquela mulher sofrida.

Não naquele momento, em que me submeti aos seus caprichos, desvendando minha própria alma, mostrando-me assim, indefeso, fraco, implorando o perdão por pecados tão infantis.

Não naquele momento em que assumi uma mistura de sentimentos, inferioridade e ódio, evitando pensar desta forma, não entendendo como poderia odiar minha avó.

Não naquele momento, quando avistei a mulher enorme, que se agigantava ante meus olhos e se diminuía ante meu coração.

Custou-me entender que a fortaleza ruía a qualquer momento e que mais cedo ou mais tarde, vislumbraria um afeto, um gesto de carinho, mesmo pequeno, tímido e incerto.

Era uma forma de amar, talvez como ela tenha apreendido em toda a sua vida e dela ter feito o seu método de vida.

Um amor de avó.

A fotografia da vida de Santa - CAP. 25

Capítulo 25

Depois da conversa que tiveram, Santa convencera Sandoval a contratar um advogado para defender os filhos. Estava apavorada com o que poderia acontecer. Se eles estiveram lá e a polícia já tinha alguns dados, como as placas dos carros, então poderiam ser suspeitos.

Mas o pior estava por vir, Alfredo fora considerado suspeito, porque além da prova material de que estivera na cena do crime, embora não houvesse provas digitais e ele não tivesse negado de ter ido até a casa de Fernando, havia porém a prova física que era a lente de contato que puderam constatar ser realmente sua.

Além disso, havia o celular, e as várias conversas com Fernando. O delegado queria saber qual era o motivo das conversas. Depois de muitos interrogatórios, ele acabou sendo preso.

Alfredo parece afastar-se de tudo que o cerca. Por um momento, lembra dos passeios que fazia com as crianças, quando pequeno, nos dias de pequenique. Lembrava da mãe e aquele sentimento de melancolia o seguia pela vida afora. Seus olhos pairam no desconhecido, lembrando o acontecimento, sem perceber que o observam.

Quando o dia deu sinais de mudanças no clima, as crianças já estavam a bordo do pequeno ônibus que as levava para casa. Todas se divertiam e procuravam imaginar as coisas mais estapafúrdias para entreterem uma as outras, ou a si mesmas.

Uma delas, porém parecia distante; olhar perdido nas montanhas que rodeavam a estrada, pensamentos instigantes sobre si ou sobre a família. A família praticamente se reduzia à mãe.

Via-a caminhando pela casa, atravessando quartos, espiando janelas, esfregando as mãos. Nervosa.

Por certo o esperava, ansiosa, no umbral da porta.

Alfredo ouvia seu coração taciturno bater forte, perguntando-se por que sofria, porque não vivia o mesmo dia alegre e descomprometido dos demais. Ele era desse jeito. Não tinha como fugir.

Enquanto os demais se divertiam, ele sofria como se houvesse uma culpa interna, por ter deixado a mãe esperando-o, sozinha, enquanto se divertia com os demais.

Na verdade, a diversão era interrompida, pelo seu pensamento melancólico.

E seu passado parecia ser uma escalada de momentos sombrios, como o único prazer que tivera ao lado de outra pessoa, quando ainda adolescente, tentara viver o que a vida lhe oferecia.

Um lado impróprio para as pessoas, para a família e principalmente para a mãe, que abortava qualquer sentimento, que significasse uma inversão de valores, segundo o que pensava. Também lhe vinham à mente, aquelas imagens.

A carta que enviara ao amigo, o desejo de vê-lo e de livrar-se de sua companhia para sempre, como se devesse afastar de sua vida um prazer que não devia existir.

“Quem sabe me deixasses aqui, entre estas paredes vazias, tao brancas, descoloridas, que parecem um simbolo do infinito, um infinito descorado e triste. Alguma coisa como bruma de Londres evocada nos filmes antigos, aqueles em que costumávamos ver, em preto e branco. Pareces disposto a a apagar cada gesto, cada registro, cada vestígio dos momentos juntos. Não me procuras e sei o motivo. Por certo o vão que ficou entre nossos sentimentos já foram abarrotados de outras imagens da digital em que sinalizas com teu dedo fino. Quisera estar ai, contigo, mas estou só. Nada a fazer, a não ser procurar o pouco de ar que vem da rua. Uma rua funesta, cheia de gases e sombras antigas. Mas te espero e não vai demorar muito que este esperar também se apaga. Também morre aos poucos, como o desejo de te ver.”.

Assim absorto, assim triste, fora chamado a atenção pelo advogado.

– Desculpe senhor Alfredo, mas precisamos refletir sobre o que aconteceu. Parece que o senhor está muito distante.

– É verdade. A vida tem me pregado peças terríveis, dr. Tavares.

– Mas tudo pode ser resolvido. A solução é nos focarmos no problema de frente. O senhor tem que se conscientizar de que precisa me contar tudo.

– Mas eu não tenho o que dizer.

– Desculpe, sr. Alfredo, mas acho que há muito o que dizer e precisa confiar em mim. O senhor poderia começar com as conversas no celular que tivera com o morto.

– Mas ali, não há nada demais. Apenas alguns contatos.

– Há uma coisa que o senhor não sabe, mas que está nas maos da polícia. Certamente, eles irão chamá-lo novamente para explicar-se.

– Como assim? Que gravação?

– Eu ainda não tive acesso, mas logo terei. Mas me parece grave. O tal Fernando parece que queria se garantir contra uma presumível prisão, sei lá, já que ele estava na condicional.

– E o que ele dissera nesta gravação.

– Não sabemos, mas o delegado afirmou que se trata de algo grave que lhe diz respeito. Parece um plano que vocês teriam e ele fez este depoimento para livrar-se da culpa sozinho. Só não sei ainda do que se trata, por isso, o senhor deve me esclarecer tudo, para que possa ajudá-lo.

Alfredo empalidece, lembrando do plano para sequestrar o pai. Fica em silêncio, sem saber se deve confiar no advogado. Está cada vez mais enrolado.

– Então, senhor Alfredo, o que tem a dizer sobre isso?

terça-feira, novembro 29, 2016

A percepção da subjetividade na filosofia e na literatura

Com a Modernidade, houve gradativamente uma mudança de paradigma na literatura filosófica e em muitos aspectos da história da humanidade. Por exemplo, havia a crença de que o sentido das coisas decorria da essência do objeto. A partir de René Descartes, que contribuiu grandemente para a história das ideias, ocorre a relevância do sujeito, ou seja, o sentido passa a estar na consciência do sujeito. Essa nova maneira de pensar, este novo olhar filosófico implica em grandes transformações nas artes, nas ciências, na cultura, enfim, no novo mundo que se insurgia.
 

Na literatura abrangente da filosofia, pode-se dizer que num primeiro momento, no que concerne à época antiga e medieval, que todo o pensamento estava centrado no objeto.

Na modernidade, há a inserção do sujeito, mais do que isso, a ascensão do sujeito dando sentido à consciência, contrariando à supremacia da essência do objeto.

Finalmente, na filosofia contemporânea, afirma-se uma intersubjetividade, ou seja, a relação entre sujeito e / ou objeto. Neste caso, o relacionamento entre indivíduos ocorre no campo da liberdade de ação, o que implica a negociação com o outro. 

Mas voltando ao início, houve nos primeiros momentos da filosofia, uma passagem do paradigma do objeto para o do sujeito. Com a ênfase na subjetividade, descobriu-se que tudo que nos cerca existe além da percepção do objeto, porque na verdade, o objeto não existe apenas em sua essência, sem que haja uma ligação permanente, ou seja, uma relação com o sujeito. O sujeito é que tem a faculdade de transmitir o conhecimento de alguma coisa (objeto), através de sua percepção. O filósofo passa a olhar para a sua própria consciência e a supremacia passa a ser do sujeito.

Neste casos, ocorre uma transição da objetividade para a subjetividade.

Na Antiguidade, o homem contemplava a natureza e na Modernidade, o homem quer controlar a natureza através da ciência, pois considera ter autonomia no processo de construção do seu conhecimento. Acredita-se que o mundo não é algo dado, passivo, mas sim algo construído.
 

No literatura como arte, houve a ascensão do realismo e do naturalismo. Aqui a  questão da racionalidade ocorre ao lado do sujeito extremamente racional, através de um indivíduo que se impõe sobretudo como um sujeito racional seguindo a teoria positivista. Deste modo, ocorre uma ênfase extrema no sujeito, como se este surgisse por acaso, onipotente, com um olhar absoluto para a história.

Na verdade, o sujeito não surge, ele é construido através de sua formação, com a tradição, o relacionamento com outros indivíduos, expressando a sua realidade através de sua origem local, espacial e participando da história.

O homem tem uma história que o precede com uma cultura, uma linguagem e os sentidos da existência.

A literatura expressa a compreensão do mundo através dos sentidos, do subjetivismo e embora no realismo, que propõe uma leitura positivista, percebe-se que o objetivismo não tem primazia sobre o subjetivismo, nem o inverso (muito menos neste caso), porque o sujeito se funde na linguagem. A objetividade não subverte o sujeito. Na verdade, os dois coexistem perfeitamente. Verifica-se esta dualidade em Machado de Assis, Gustave Flaubert, Tolstói, Eça de Queiroz, para citar alguns. 

Conclui-se, deste modo, que embora o realismo aborde temas com um tratamento objetivo da realidade, há na literatura essa integração onde o sujeito é destacado pelo seu estar no mundo, como ser participante da história.
 

Labirinto

Assisti na tv que um homem foi atingido por um raio e sobreviveu. Depois, ouvi vozes ao telefone, como se estivesse aguardando alguma ligação. Como se alguém houvesse ligado!

Passeei pela casa, acabrunhado.

Um gato pulou a janela, parou no parapeito, olhou-me de soslaio, sorrateiro e deu meia volta. Ainda o vi, perder-se sobre os telhados.

Uma luz vibrante iluminou por completo a cena. O sol se punha tão rápido!

Afastei-me da janela, voltei para a tv. Estava desligada, mas tinha a absoluta certeza de alguém falava lá dentro, naquela caixinha de luz.

Será que voltarão? Será que o telefone tocará novamente?

Há meses, não vejo meu filho. Está um rapaz e tanto! Cabelos pelos ombros, hoje quase não o reconheço.

Estou envelhecendo aqui, sozinho, nesta casa.

Se ao menos, pudesse sair, afastar-me deste labirinto que me oprime, desviar os ouvidos dessas vozes que me sussurram coisas obscenas.

Sei que não posso. E tenho medo de afastar-me.

Aqui estou seguro, mesmo que os gatos pulem as janelas, atravessem os telhados, deslizem pelos terraços e roubem minha comida.

Compartilham com as pombas as minhas migalhas. Só a elas me dirijo. Elas bicam a minha vidraça. Perscrutam o espaço, andam em casais. Já me conhecem, se entregam, seguras.

Eles me observam de longe, esperam um descuido para ingressarem na janela, se imiscuírem na minha vida. Tentam me seduzir. Às vezes, os odeio.

Hoje estou menos ansioso. Não me preocupo tanto com eles.

Não fossem estes sons estranhos, esta gente que fala nos meus ouvidos, que me diz coisas que não quero ouvir. Insistem que eu fale, sem se importarem com o que tenho a dizer. Reprovam, certamente, o meu comportamento.

Volto para a sala. Espio a tv desligada e me deito no sofá, estirado, pernas soltas, caídas para o lado.

O raio atingiu o homem e ele não morreu. Será que teve algum dano? Que o paralisasse, que o impedisse de falar, ou que talvez o deixasse cego, surdo? Mas ele sobreviveu.

Como eu. Sem me expressar, sem compartilhar meus sentimentos. Eu sobrevivi.

Meu filho deve vir hoje. É provável que apareça daqui a pouco e chute todos os pombos de minha janela.

Depois se afastará, como sempre, dando um tchau distraído, a um homem qualquer que nem parece seu pai. E não terei forças para impedi-lo, para falar-me de minhas frustrações, minhas pequenas infelicidades diárias, minha dose de raiva, de agonia, de aflição. Minha vontade de morrer.

O telefone toca. Deve ser ele, avisando que não virá. Afinal, é jovem, tem de viver a sua vida, não perder as oportunidades. Encontrar-se com os amigos, tomar um chope.

Mas, quem sabe, lá debaixo ele olha para a minha janela, dá uma espiada nos pombos, e imagina que estou por ali, assistindo a tudo. Talvez ele beba também a minha saúde.

Se pudesse, estaria lá, com ele. Conversaria com os seus amigos, falaria das coisas importantes da vida, como este momento que estaria vivendo, ao lado de meu filho.

Mas quem me escutaria? Quem acharia importante eu estar ali, junto, ao lado de meu filho? Teriam, por certo, assuntos mais urgentes, mais pontuais. Falariam de futebol, mulheres, talvez política. Ririam muito de tudo e de todos. E seriam felizes.

Este telefone não para. Ainda nem levantei para a atender a primeira chamada e ele voltou a tocar de novo. Como é difícil sair deste sofá. É macio, aconchegante, embora sinta as molas nas costas. O pano está tão velho que se avista as fibras, os fios trespassados, pequenos buracos que se formam. E as molas mais parecem costelas de gente magra, expressando toda a miséria de suas vidas. Dói-me as costas, custa-me levantar, enfiar os pés nos chinelos, dobrar os joelhos, segurar-me firme à mesa que tenho ao meu lado.

Mais um pouco, estarei lá, ouvindo o meu filho, esperando que me convide, quem sabe, assistir um filme, jogar xadrez ou apenas conversar, longamente, como nos velhos tempos.

Tempos em que ele era menino e eu o fazia sonhar. Sonhava com mundos distantes, estrelas que se mexiam no céu, nuvens que se enfeitavam para guarnecer a noite. E com ele, eu sonhava junto, olhando o mesmo céu que o fazia viajar.

Quem sabe me convida para viver as suas fantasias, olharmos as estrelas, aqui, da minha janela, esquecidos destes terraços escuros, destes telhados tisnados pela poluição.

Quem sabe ele virá aqui e me convidará para sair, tirando-me desta pasmaceira, fazendo-me viver a vida que já foi minha.

Talvez, mergulhar um pouquinho naquele chope, jogar conversa fora, passear pelas calçadas sem compromisso, observar a natureza.

Ah, pensei tanto nestas coisas, arrastei tantos estes chinelos pela casa, que o telefone parou de tocar e nem tive tempo de atender. Pela segunda vez!

Mas, vou sentar aqui, ao lado, esperar. Ele deve estar ansioso para ver-me. Nem vai me ligar, pelo contrário, vai entrar por aquela porta, sorrindo, empurrando com a mão os cabelos que lhe caem na testa e se aproximando, me abraçará. Dirá baixinho que não me esqueceu e que sairemos daqui, esqueceremos os gatos, os pombos, a televisão que fala sozinha, as vozes estranhas do telefone sem fio.

Me pegará pelo braço e sairemos por aí, chutando pedra, como bons amigos: pai e filho na contramão da vida.

Eu não disse?

Agora não me enganei, a porta está se abrindo, a maçaneta gira devagar, do jeito dele, centrado, seguro, sereno.

Empurra a porta lentamente para me fazer uma surpresa.

E eu fitarei o brilho dos seus olhos e nada me impedirá de ser feliz.

Não é ele.

Dói-me a cabeça, porque esperei demais.

Quem é este homem que me traz um prato de sopa, por que se veste de branco como um enfermeiro?

Por que me chama de avô?

A fotografia da vida de Santa -CAP. 24

NESTA TERÇA-FEIRA 29 DE NOVEMBRO, PROSSEGUE O NOSSO FOLHETIM DRAMÁTICO, AGORA COM O CAPÍTULO 24.

Capítulo 24

Santa estava muito nervosa com o sofrimento de Linda. Afinal, o sobrinho havia sido assassinado. De repente, as situações revelavam um caminho bem diferente do que Santa tinha imaginado. Ela agora, arrependia-se por ter pedido ao rapaz que descobrisse o que Linda estava tramando contra ela em conluio com o próprio marido. Precisava provar aos filhos que o seu objetivo era torná-la uma incapaz. Mas não era essse o caminho que queria para a família, ao contrário, queria o bem para todos. Por que tudo desandara dessa maneira? Até ela se envolveu nessa intriga. Por que não foi clara com Sandoval, com os filhos, por que não abriu o jogo. Isso tudo a deixava mortificada. Não era o que a Virgem lhe indicara, ao contrário, afastava-se cada vez mais dos objetivos de união e credenciamento de novos rumos para a família.

Estava assim, perdida em seus pensamentos, quando Sandoval entrou na sala. Observou que ele estava com um ar cansado, como se não tivesse dormindo toda a noite. Por um momento, lembrou das jogatinas, das festas longe de casa, mas poderia ser outro motivo. Quem sabe, ele também não estava triste pela morte do jardineiro.

Ele aproximou-se e sentou-se ao seu lado. Santa pensou em falar tudo que estava pensando. Naquele instante, sentiu uma certa ternura pelo marido, uma coisa antiga, que já não sentia há muito tempo. Entretanto, reprimiu o sentimento. Sandoval não lhe despertava confiança, como antes.

Ele a olhou amargurado e perguntou:

– O que está acontecendo nesta casa Santa? O que está acontecendo com nossa família?

– É isso que me pergunto Sandoval, a todo momento. Mas você estava tão bem, afinado com a família, fazendo uma reunião sem a minha presença. Parece que tudo está nos conformes, não?

– Não diga isso, Santa. E por favor, não vamos brigar, eu preciso conversar com você, com calma.

– Eu sei, eu também estou muito aflita com tudo que está acontecendo. A morte desse rapaz…

– E você sabe que Alfredo foi chamado para depor?

– Alfredo? O que você está dizendo, Sandoval? Por que meu filho teria que depor sobre a morte de Fernando?

– Não sei. Só sei que as câmeras da rua registraram o carro dele ou um vizinho chamou a polícia, coisa assim.

– Mas o que Alfredo estava fazendo lá?

– Ele encontrou o rapaz morto. E tem mais, depois chegaram Letícia e Tavinho. Por enquanto, a polícia não os chamou, mas não vai demorar muito, porque as câmeras pegaram a imagem de outro carro, certamente o deles.

– E como você sabe de tudo isso?

– Acabei de chegar do escritor de Letícia, ela está muito nervosa. Daqui a pouco, tenho certeza, vão começar os interrogatórios.

Santa não consegue conter as lágrimas.

– Meu Deus, como pode chegar a esse ponto. Não era isso que eu queria que acontecesse para a nossa família.

– Sinto muito lhe dizer isso, Santa, mas você foi a culpada. Foi você que veio com esta história de dividir o nosso patrimônio com aquela gentalha da ilha isolada, e esse desejo de modificar as nossas vidas. você começou com essa loucura!

– E o que isso tem a ver com o pedido de Nossa Senhora?

– Letícia me contou, que foi pedir ajuda ao rapaz. Ela e Tavinho estavam desesperados, porque você os instruiu contra mim. Mas você sabe, Letícia é estômago frio e acabou me contando tudo.

– Eu pedi que eles descobrissem o que você está tramando contra mim. Você induziu a família a pensarem que estou louca!

– E isso não é uma loucura? Acabar com o patrimônio da nossa família, dar dinheiro para essa gente, se misturar com eles, sei lá que insanidade você está planejando.

– Cale a boca, Sandoval! Cale a boca! Porque você ia muito mais longe, você queria me deixar uma incapaz, uma mulher que não pode decidir nada. Não pense que sou uma idiota, eu sei de tudo.

Sandoval tenta acalmar-se. Sabe que precisa de tempo para convencer a mulher e muito mais do que tempo, paciência. Talvez seja necessário mostrar-se arrependido do que fizera e até pedir-lhe perdão. Santa prossegue, indignada. Decidiu dizer tudo o que sabe, às claras, chega de mentiras, de meias-palavras. Chegou o momento da verdade.

– Eu sei que você fez um acordo com Linda.

– Como assim, de onde você tirou essa bobagem?

– Eu percebi quando ela começou a me tratar como se eu fosse uma demente, que esquecesse o passado, que esquecesse por exemplo que não tem um filho com você. Ela queria me fazer acreditar que eu estava fantasiando e me trazia chás com calmantes, eu tenho certeza disso. Um dia escondi os comprimidos e mostrei-os ao doutor Oliveira. Ela não deve estar fazendo isso sozinha, Sandoval. Você está nisso.Não tente me enganar, pelo amor de Deus.

Sandoval percebe que precisa fazer da mulher uma aliada. Então, decide contar-lhe toda a verdade. Levanta-se, fecha a porta da sala e volta a sentar ao seu lado. Fala em tom mais baixo.

– Santa, você tem razão. Eu vou contar-lhe toda a verdade.

– Eu sabia que você seram cúmplices!

– Mas agora, você precisa me ouvir, com calma. Temos que nos unir contra esta mulher, principalmente agora, que ela está fragilizada. Precisamos agir de uma maneira, que ela fique encrencada com a polícia e vá embora desta casa!

– Mas o que vocês estavam tramando contra mim?

– Começou com você, quando a mandou gravar a nossa reunião.

– E o que você queria que eu fizesse. Uma reunião que não teria a minha presença. Você acha justo isso?

– Santa, agora não é mais momento de pensarmos se é justo ou não. O fato é que ela gravou, mandou a gravação por mensagem para alguém para se assegurar que eu não tiraria dela a tal prova.

– A prova de que você convenceria os meus filhos a me considerarem louca.

– Não fale nestes termos.

– Mas é verdade. Não foi isso que foi tratado naquela reunião?

– Sim, foi, mas olhe. Vou ser sincero com você Santa, todos acabaram concordando comigo. Os nossos filhos pensaram bem e viram que eu tinha razão.

Santa emudece. Uma lágrima corre rápida dos olhos. Sente-se desolada. Os filhos concordaram que ela não deveria decidir sobre mais nada em sua vida.

– Sinto muito Santa, mas não posso omitir nada de você. Bem, quero falar de Linda. Ela fez uma chantagem comigo, disse que mostraria a gravação para você se eu não fizesse o que ela queria.

– Ela quer o quê? Acabar comigo?

– De certo modo, sim. Ela quer que eu assuma o nosso filho, que lhe dê o meu nome, que divida a fortuna com ele também. Ela quer ser a dona desta casa!

– Então quer me matar realmente.

– Não, o combinado era deixar você cada vez mais incapaz. Ela sugeriu isso, até você não ser mais nada nesta casa, até… bem quem sabe, se afastar daqui, de uma vez por todas.

– E você concordou com isso?

– Claro que não, eu fiquei louco, mas acabei concordando, pedi um tempo de 6 meses para poder por em prática o plano, até conseguir fazer o que ela queria.

– Até me enlouquecerem! Você é tão cruel quanto ela! Você é um criminoso, Sandoval!

– Mas eu não faria isso.

– Seja sincero. Você deixaria que ela tomasse as rédeas, como tentou fazer e me enlouquecer, me deixar tão fraca que acabaria pensando que estava louca realmente.

Sandoval não responde e Santa percebe que está em plena solidão, naquele vendaval de mentiras e planos criminosos.

– Seu miserável! Você é tão indigno quanto ela! Eu o odeio! E odeio aquela mulher!

– Santa, Santa, por favor, eu mudei de ideia, você está vendo. Eu não quero mais fazer isso, precisamos acabar com esta mulher, mandá-la embora. Por isso estou aqui, com você, ao seu lado.

– Nunca mais você estará ao meu lado, como não está agora Sandoval. Você está no seu lado. Você está com medo desta mulher, porque apesar de tanta covardia e sujeira, você nào queria que tudo viesse à tona, que nossos filhos soubessem e principalmente, você não quer dar nada a ela. Pois eu lhe digo, só há uma solução: você legalizar a situação do seu filho, dar-lhe algum dinheiro e a mandar embora. Você não precisa casar com Linda para fazer isso, então não se preocupe tanto com a situação.

– Mas você acha justo? E se este rapaz não for meu filho realmente?

– Faça o DNA. Vá para a justiça. Ela existe para isso.

– E quanto ao sobrinho? Ela tinha algum plano contra nós através dele?

– Sim, naquele dia em que um homem apareceu em nossa casa e deu um susto em você, foi tudo arranjado por ela. Era o tal sobrinho, que se fez de estranho para assustar todo mundo.

– Mas e o bilhete do bispo Martin?

– Linda o tinha pego no dia da reunião o e deu para ele, para parecer mais real.

– Então esta mulher é muito perigosa.

– Sim, por isso, precisamos nos unir, Santa.

– Eu já lhe disse o que fazer. Faça a coisa legal. Quanto a ela, não temos provas de que esteja tramando coisas contra nós, contra mim, principalmente. Não podemos chamar a polícia. Mas o que interessa agora é quanto aos nossos filhos, que parecem implicados com este crime. Afinal, por que mataram o rapaz? Você sabe alguma coisa Sandoval?

sábado, novembro 26, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 23

Capítulo 23

Naquela noite, a polícia foi chamada porque havia um movimento suspeito na casa que estivera há tempo tempo desabitada. Encontraram o corpo de Fernando estirado no chão e nenhuma impressão digital. Entretanto, investigaram com afinco as redondezas e descobriram quem tinha chamado a polícia.

O vizinho do prédio à frente, havia visto as pessoas entrarem e sairem da casa e tinha a impressão de que havia algo errado. Os policiais também examinaram as câmeras de segurança na rua, mas não conseguiram ver as placas dos carros. Entretanto, o final de uma delas estava bem nítido e o vizinho ainda auxiliara, dizendo que anotara a placa de um carro, embora não coincidisse com a parte da placa que surgia nas câmeras. Já no âmbito da polícia, analisando detidamente as cenas, puderam constatar que a placa anotada era de um dos carros que parara no local.

Dali em diante, foi fácil encontrarem o dono do carro, Alfredo Sampaio. Na manhã seguinte, Alfredo recebe uma intimação para ir à Delegacia. Apavorado, liga para Letícia.

– Letícia, o que vou dizer agora? Vão pensar que matei Fernando! Como chegara até mim?

– Calma, Alfredo, você está me deixando nervosa. Não se esqueça, que nós três estávamos lá naquele momento, que nós três fizemos a limpeza das digitais. Meu Deus, se eu for envolvida nisso, estarei perdida!

–E o que devemos fazer?

– Em primeiro lugar, manter a calma. Tente descobrir como eles ligaram você ao crime.

– Não me ligaram a nada. Não diga besteiras. Alguém deve ter me visto por ali.

– E o seu carro? Alguém pode ter anotado a placa, ou quem sabe, viram através de alguma câmera da rua?

– É verdade, pode ser isso. Estou apavorado.

– Já lhe disse que não pode ficar assim. Diga-lhes que foi pedir um favor, afinal ele não era o jardineiro de mamãe?

– Sim, mas não posso dizer isso. Eu não posso contar o que eu queria dele.

– Então diga o óbvio.

– A que você se refere?

– Que vocês tinham um caso.

– Você está louca?

– Não, estou tentando ajudar você, seu bobo. E pense bem no que vai dizer, não vá nos envolver nisso. Eu não deveria ter ido lá, foi uma loucura!

Ele desliga o celular ainda mais confuso do que estava antes. Decide vestir-se e ir até a delegacia. Precisa acalmar-se, pensar numa solução para o problema. Afinal de contas, ele não deve nada à justiça. Pensando nisso, tomou um banho rápido e preparou-se para sair.

Quando chegou, o delegado Santos pediu que aguardasse. Alfredo estava muito nervoso. Olhava em torno, tentando encontrar um motivo coerente para o encontro com Fernando, mas nada lhe vinha à mente e o fato de seu carro estar estacionado em frente à casa e principalmente ter sido filmado, o deixava apavorado.

Um policial o encaminhou para a sala do delegado e afastou-se, deixando-os às sós. Pela vidraça que separava da outra sala, Alfredo observava o movimento dos funcionários, computadores e conversas ao celular. Alguns grupos se posicionavam próximos à parede de vidro, numa conversa animada, como se estivessem na mesma sala. Entretanto, não se ouvia o que diziam.

– Muito bem. O seu nome é Alfredo Sampaio.

– Sim, senhor.

– Nós fizemos uma pequena pesquisa a seu respeito: sabemos que é um empresário no ramo de celulose.

– É verdade.

– Senhor Alfredo, o senhor sabe o motivo desta intimação ou pelo menos, imagina, não é mesmo?

– Na verdade, delegado, eu fiquei muito surpreso. Sei que ocorreu um crime, que o rapaz daquela casa foi assassinado. Mas eu não tenho nada a ver com isso.

– Engraçado. Eu não tinha falado sobre nenhum crime.

– Não? É que pensei…

– Pode falar, senhor Alfredo, fique à vontade.

– Ah, senhor delegado, estou muito confuso, essa história toda está me deixando com os nervos à flor da pele.

– A que história o senhor se refere?

– Bem, o senhor mandou me chamar por causa de Fernando?

– Parece que o senhor sabe muito mais do que a polícia. Por isso, o chamamos até aqui.

– Não, eu não sei de nada. Mas o senhor se refere a este caso, não? Ao rapaz que foi assassinado.

– E o nome dele era Fernando?

– Sim.

– E morava na rua Dutra, 53.

– Ele havia se mudado para lá há pouco. Eu sei de tudo, porque ele é o jardineiro de minha família.

– Ah, sim. E é parente de uma empregada de sua família. Neste momento, a polícia está entranto em contato com ela.

– Meu Deus, pobre Linda!

– Pois é, senhor Alfredo, como o senhor mesmo disse, houve um crime na casa deste rapaz, sendo que ele mesmo é a vítima. Nós estamos investigando e por isso, o chamamos.

– O senhor deve ter me chamado, porque ele trabalha conosco, quero dizer, com a minha família, mas eu não posso lhe adiantar muita coisa. Quase não o conhecia.

– Tem certeza de que não o conhecia?

– Na verdade, algumas vezes eu o vi por lá. Poucas, sabe.

– Mas então, o senhor pode me dizer o que fazia em sua casa, ontem à noite, quando ocorreu o crime?

– Foi uma terrível fatalidade. Quando entrei, eu o encontrei atirado no chão, ensanguentado. Tentei reanimá-lo, mas ele já havia morrido.

– Então quer dizer que o senhor esteve lá realmente?

– Não, quero dizer. Eu fui lá porque precisava levar um recado de minha mãe, mas … o senhor está me deixando confuso, delegado.

– Eu estou sendo absolutamente claro, senhor Alfredo. Sabemos que ocorreu um crime, que segundo o que o senhor mesmo afirmou, a vítima estava estendida no chão e tinha levado um tiro.

– Eu acho que foi um tiro.

– Sim, foi um tiro. O senhor tentou reanimá-lo.

– Eu fiquei muito nervoso, chamei por ele. Acho que tentei, agora estou tão nervoso, que nem sei de nada.

– Então, procure acalmar-se, senhor Alfredo. O senhor percebeu que o rapaz estava morto. Por que não chamou a polícia?

– Porque não podia fazer mais nada. Fui embora, apavorado. Foi isso que fiz.

– Mas é muito estranho. Não havia nenhuma impressão digital, como se quem estivesse ali, houvesse apagado todas as impressões.

– No meu caso, eu não toquei em nada.

– Nem na maçaneta?

– Não, a porta estava entreaberta.

– A porta estava entreaberta e o senhor entrou, chamando pelo rapaz, o nome dele era Fernando, não?

– Sim. Fernando.

– Recapitulando: o senhor viu a porta aberta, o que é muito estranho também, chamou por Fernando e não obteve resposta. Então aproximou-se do corpo, deve ter se abaixado para verificar se ele estava vivo ainda.

– Sim, mas não toquei nele, não toquei em nada. Em seguida, fui embora.

– O senhor sabe que havia outro carro estacionado na frente da casa?

– Não, eu não vi ninguém. Mas como o senhor pode afirmar que eu estava de carro? Podia ser o carro de outra pessoa.

– Um vizinho anotou a placa e nas câmeras aparece o seu carro e também o outro.

– Sim, eu vim no meu carro, eu não estou negando que estive lá. Mas como o senhor pode ver, delegado, alguém chegou antes de mim e matou o rapaz. É preciso verificar estas câmeras antes de eu chegar, talvez muitas horas antes.

– Talvez o senhor tenha razão.

– E como viu, não há nenhuma impressão digital, eu praticamente entrei e saí daquela casa. Fui na hora errada, no dia errado. O senhor sabe o que me deixa mais indignado? É que o assassino deve estar andando por aí, rindo da nossa cara, e nós perdendo tempo. O senhor me intimando como se eu tivesse alguma coisa a ver com este crime. Eu nem conhecia o rapaz, direito, como lhe falei!

– Mas apesar de toda a limpeza, achamos alguma coisa que mantém ainda as impressões digitais de alguém, talvez possamos descobrir o DNA através dela.

– Como assim?

– Uma lente de contato. O senhor usa lentes de contato, senhor Alfredo?

quinta-feira, novembro 24, 2016

Sonhos na lagoa


Gosto de observar o cais. Dá-me uma sensação de abandono e uma certa melancolia boa.

Não sei se pela partida e chegada dos barcos ou por recordações do passado.

Coisas boas que se foram, ocultas num cantinho absorto, sem que se dê vazão a sua presença.

Às vezes passeio pela doca, observo de longe o brilho do mar reluzente, sol a pino e dia claro.

Ou até mesmo quando nuvens escurecem a lagoa, tenho prazer em alastrar o olhar e observar nas sombras que se moldam nas ondas, pequenas figuras que se evadem de meus sentimentos.

Quem sabe, um barco há muito tempo não aportou por ali, trazendo além de granjeiros ou pescadores, donas de casas, crianças a reboque chegando na cidade, despejando os sonhos ansiosos antes apenas mergulhados na imaginação.

Ou os que partem, barcos repletos de mantimentos, ferramentas ou utensílios de cozinha.

Mulheres que acenam para os que ficam e descem inseguras no molejo das ondas. Acocoram-se nos bancos de madeira, molhando os pés nas águas que invadem os barcos. Revisam as compras, espiam o mercado, investindo em compras futuras.

Quem sabe voltarão no próximo mês carregando além das esperanças, novos caminhos que talvez partilhem dali em diante.

Ou talvez, voltem para suas terras: ilhas de margens tranquilas, casinhas acenando entre madeira e tijolo, redes espalhadas por gramados, plantações.

Lá vão elas, mulheres, crianças, compras, sonhos, poesias na lagoa.

Homens que passeiam seguros e firmes de um barco a outro, carregando consigo as lembranças da cidade, os amigos que encontraram, cuidadores de carros que nao são seus, os peixes que transitam em suas cestas de desejos: trocas perfeitas de suas necessidades, que se alternam com as contas, o médico, os impostos, a poupança.

E lá se vão e voltam no outro dia, assim como o sol, que hoje se alterna com as nuvens escuras, lá longe, mas que de vez enquanto, empurra-as para o lado e surge majestoso, vermelho magenta, fenecendo aos poucos, vencido pela hora.

E a lua sobressái, discreta. Mas agora, é melhor avistá-la da janela.

Não dá pra enfrentar outros sonhos que já foram quebrados.

Melhor não dividir a rua, muito menos a noite.

quarta-feira, novembro 23, 2016

Passos de atriz

Ela atravessou a rua devagar, lembrando as velhas histórias do rádio. Seus cabelos grisalhos, a pele ressequida e marcada, pouco lembrava a figura brejeira dos anos 60.

Mas ainda tinha a paixão na alma e a vontade de desenterrar o passado e vivê-lo plenamente.

Sabia que não era possível encontrar os amigos, muito já mortos, outros vivendo perspectivas diferentes, burocráticas, mesquinhas e até medíocres.

Ela ainda tinha sonhos, embora sozinha, quem sabe restaurar o que de alegria lhe restava, de novidade e desejo se debater em buscas ainda não realizadas.

Estava velha, mas não cansada. E se vivia do passado, quem a poderia acusar?

Refletia o resto de luz que iluminava a sua mente e da qual não podia nem queria se livrar.

Uma chama frágil, mas densa, que a mantinha viva.

Considerava que suas roupas eram dignas, que o talhe era modesto, mas adequado para a ocasião.

Subiu a calçada, meio falseando o pé no salto alto. Nem tanto, o suficiente para uma senhora como ela.

Parou por um minuto admirando o velho teatro.

Paredes carcomidas pelo tempo e pela falta de manutenção.

Mas lá dentro, certamente, pulsava um coração flamejante.

Espiou pela bilheteria, mas não havia ninguém que pudesse auxiliá-la.

Bateu à porta, repetidas vezes, sem sucesso. Parecia tudo deserto.

Sentiu as pernas fraquejarem e um suor frio ensopar-lhe a fronte.

Encostou-se na parede rugosa.

Lembrou dos tempos em que o palco era a sua casa e o estúdio do rádio, o seu lugar de reflexão.

As novelas e seus personagens ecléticos.

A sua vida passada a limpo, lentamente. Sorrisos nos lábios, olhares para o diretor, soluços, lágrimas verdadeiras de emoção.

O suspirar de corações, o aguardar dos reclames. O bate-papo animado, o encontro enamorado. Tudo ali se passava.

Dali, da voz conhecida e bem colocada, à postura digna e austera no palco. Os aplausos. O carinho dos fãs.

Hoje, aqui, esperando que esta porta se abra e com ela, o grupo que a espera.

Depois, ao reencontrar os amigos antigos e novos, partilhará com eles o doce sabor das palavras ditas e benditas, jogadas à toa, respingando nos ouvidos mais taciturnos e fazendo balbuciar bocas omissas. Bradando verdades absolutas ou não, protestando ou trazendo à tona a emoção que surge como um rebento na planta procurando o sol.

Ali estará ela, finalmente entre os seus.

As horas passam, as portas não se abrem, nem as cortinas, nem a luz da ribalta se espalha e a ilumina.

Apenas o sol fraco do outono, quase inverno.

Alguns pingos finos, quase imperceptíveis se espargem feito água benta.

Ela resiste sozinha.

Alguém se aproxima. Então se anima ao ver ao avistar uma moça gordinha, vestida num uniforme comportado, que parece correr preocupada com o adiantado da hora.

Ela sorri um sorriso de atriz. Bonito, quase firmamento.

Coração palpitante e esperançoso.

A moça estanca na porta, abre a bolsa sintética, retira uma chave enorme e a enfia na fechadura.

A atriz a interpela com voz suave:

– Estava esperando você.

A moça sorri, mostrando os dentes amarelados.

– Quem bom! Quase me atrasei. Veio para a hora da benção?

Não consegue entender. Tudo fica nublado, obtuso. Teias de aranhas descem na chuva fina, empapando-se dágua. Ela tenta desviar, desvencilhar-se. Está confusa.

Pergunta pelo teatro, pelo grupo que encena, pelos artistas que se reúnem para o ensaio.

A outra sorri e responde conclusiva:

– O único teatro é a hora do descarrego, moça. Isso aqui agora é um templo. E me dê licença, que eu estou atrasada.

Ela ficou ali, parada e patética.

Deu uns passos miúdos, delicados, imprecisos. Uns passos de atriz.

E se afastou devagar.

segunda-feira, novembro 21, 2016

ZUMBI- 1695 - DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA

“Zumbi dos Palmares, delatado por Antonio Soares, é surpreendido pelo Cap. Furtado de Mendonça em seu reduto (talvez a serra Dois Irmãos). Apunhalado, resiste, mas é morto com 20 guerreiros. Tem a cabeça cortada, salgada e levada, com o pênis dentro da boca, ao governador Melo e Castro. No 3º centenário de sua morte, emergirá como o grande heróis da luta pela liberdade no Brasil. A data é o dia Nacional da Consciência Negra”. Fonte: www.vermelho.org.br.

Nos dias de hoje, questões são elaboradas e discutidas e abrangendo vários aspectos sobre a intricada situação do negro no Brasil.

Muitos há que acreditam que os preconceitos étnicos já debandaram e que os envolvidos nas questões raciais, nada mais fazem do que subjugar a inteligência das pessoas, quando afirmam sentirem-se prejudicados pelo preconceito.

Acham que não existe preconceito e se os há, ocorrem de maneira dispersa, atingindo apenas alguns menos qualificados no cenário intelectual, ou seja, os operários, as pessoas que trabalham apenas com as atividades físicas ou que sobrevivem sob o domínio de drogas e miséria generalizada.

Para estes, o preconceito até é suave, pois estes seres representam exatamente aquilo que a sociedade considera perverso. Como se perversidade fosse privilégio dos homens negros, dos pobres, dos desprovidos de bens materiais e intelectuais.

Estes que assim pensam, na verdade, impingem o desqualificativo de indivíduos de segunda classe, que embora não admitam publicamente, são convictos desta “verdade”e a revelam em seus pensamentos e condutas.

Entretanto, o que se percebe é que o homem desta geração não evoluiu como se esperava, pelo menos, a partir dos grandes movimentos dos anos 60, quando se lutava pela liberdade, pelo direito de ser como se é e de se respeitar o outro, independente de raça, credo, orientação sexual, classe social ou qualquer outra considerada “diferença” do status quo estabelecido.

Pensávamos que o homem mudara e se transformara num ser múltiplo, cultural, evoluido, marcado por sentimentos, que desencadeassem em atitudes de acordo com o seu olhar no mundo.

Desta forma, fugiria do senso comum, que padroniza todos os gostos, todos os sabores, todos os nuances, todas os matizes e transforma a vida num cinza sem graça e insosso.

Na época de 60, eu ainda não me conectara ao mundo novo, porque ainda era uma criança. No final dos 70 e em plena ditadura, já adolescente, entendi a duras penas, que o homem estava aprisionado num sistema de medo e escapismo da realidade.

Naquele momento, era preciso reinventar a vida, para não morrer de inanição e tédio. Muitos optaram pelas drogas. Outros, como eu no final dos 70, num período de transição entre a infância e adolescência, percebi que me cabia lutar a meu modo, ou seja pelo conhecimento, pela leitura, pela religião, pela música de protesto, pela escrita, pelo engajamento político através de grupos de jovens, lendo tudo que aparecia sobre ciência política e filosofia. Uma maneira de me ajustar àquele mundo que desimbestara a consumir os encontros, a separar as conversas e alienar os jovens.

Houve outros, mais velhos que se engajaram nas guerrilhas, nas lutas contra a ditadura e estes foram corajosos e verdadeiros amantes da Nação.

Parece-me entretanto, que esta luta foi em vão em muitos aspectos. Não me refiro à democracia estabelecida, (embora estremecida nos dias de hoje). Esta foi fruto, sem qualquer contestação dos inúmeros movimentos sociais e políticos.

Refiro-me ao legado do novo modo de pensar, das novas diretrizes nos relacionamentos humanos, que em nada se assemelhavam às atitudes patriarcais e autoritárias da época, ao contrário, lutavam contra tudo que era proibido.

Houve execessos, claro, como em qualquer vanguarda, tanto na sociedade alternativa, quanto nos movimentos de amor livre e drogas.

Na verdade, tudo que se pensava de um novo mundo e compartilhado, um tanto utópico, não se concretizou.

Ao contrario, a ignorância parece ser o ingrediente mais utilizado nas relações humanas nos dias de hoje.
Este pensamento canhestro e torpe é repercutido e disseminado em várias áreas.
Há pouco, uma mulher que participou de uma manifestação que pedia a intervenção militar no Congresso Nacional, denunciou um painel com a Bandeira Nacional e a Bandeira do Japão, em homenagem ao centenário da imigração japonesa no Brasil, confundindo-o como comunista. Para ela, a nossa bandeira nacional era comunista porque tinha o símbolo vermelho, questionando a nova bandeira do Brasil. Neste caso, a ignorância anda em Boeings de última geração, mas conhecimento a passos de jumento.

Neste mês da consciência negra, observamos que toda a história de luta, de aprendizagem, de busca de liberdade das gerações anteriores não trouxe os objetivos almejados.

Nem vem ao caso, aqui, tentar elucidar os motivos, inclusive, porque é imprescindível grandes pesquisas sociológicas para identificar estes retrocessos.

Talvez a violência, o esfacelamento do núcleo familiar, o uso intensivo da tecnologia em proveito apenas da divulgação individual, através das redes sociais, na tentativa de se inventar um personagem perfeito, onde as mazelas se escondem atrás dos perfis imaginários, a hipocrisia dos relacionamentos, o uso abusivo e inadequado das tecnologias, nao sei.

É necessário um verdadeiro tratado sociológico e antropológico para chegar a alguma conclusão.

Entretanto, o que se tem claramente estabelecido é, que o homem persiste na linha da ignorância cega e individualizada, e aqui, parafraseando o texto de Bruno Rico, em seu blog, uma ignorância que encerra os homens em seus condomínios, que não tem paciência em ouvir os protestos de um artista, sobre sua condição social ou o discurso sobre os problemas de seu país.

Segundo Bruno Rico, “ A ignorância sempre foi, e sempre será um dos maiores problemas do brasileiro, e engana-se quem pensa que ignorância tem a ver com pobreza ou grau de instrução, tem muita gente com a conta bancária lotada de cifras, com diploma não sei de onde, que é totalmente ignorante em diversos aspectos”.

Em 1695, Zumbi dos Palmares foi apunhalado e morto.

Além disso, foi vilipendiado, como ser humano, sem o direito de um julgamento digno.

Se tal fato ocorresse nos dias de hoje, os instrumentos de justiça seriam outros, mas as atitudes das pessoas não seriam as mesmas: preconceituosas, intolerantes, hipócritas, imbecis?

Um nível de extrema involução a que o brasileiro médio chegou.

Resta-nos esperar, que as coisas mudem, que os registros sejam mais limpos e que a história seja contada noutros moldes, menos reacionários e mais libertários.

Que o dia nacional da consciência negra se multiplique em muitos dias, e que se promovam também outras consciências, que o homem habite outros sentimentos tanto nas relações humanas, quanto para as interações com a arte, com a cultura, com as religiões ou a falta delas, com o livre pensar, com as orientações sexuais, com as ideologias, com a convivência sem divisões.

Que o homem tenha consciência!

Que evolua!

A fotografia da vida de Santa - CAP. 22

Capítulo 22

Aquela noite, Fernando não conseguira dormir. O plano de Alfredo era coisa de amador. Afinal, sequestrar o pai para que tivesse tempo de provar que a mãe era uma mulher lúcida e capaz de decidir sobre o seu patrimônio, era uma coisa absurda, a não ser que ele tivesse outros planos na cabeça. Talvez ele quisesse se livrar do velho para sempre. E se tudo desse errado? O Sr. Sandoval anda sempre acompanhado de seguranças, além de ser um homem esperto. Talvez o próprio Alfredo tenha uma maneira de deixá-lo sozinho para que ele o capturasse. E depois? O que aconteceria depois? Ele teria de sumir do país e como faria, sendo um homem em liberdade condicional.

Não podia fazer aquilo, era muito perigoso e se descobrissem ele não teria chances de se defender. Procuraria Alfredo e diria isso a ele. Procurou o número no celular e ligou para Alfredo pedindo que viesse procurá-lo. Teria que resolver esse problema ainda esta noite, não poderia continuar com aquela preocupação.

De repente, Fernando ouve um ruído, como se houvesse alguém na casa. Apaga a luz do quarto, ficando apenas com uma pequena luminosidade do celular. Desliga-o por fim e fica na penumbra, ouvindo passos que se aproximam. Procura rapidamente a arma sob o travesseiro, engatilha-a e fica à espreita. Pergunta quem está ali, mas não obtém resposta.

Afasta-se para um canto do quarto e se esconde próximo ao guarda-roupa.

Neste momento, percebe um homem na penumbra do corredor, que passa muito rápido, só iluminado pelas luzes oriundas da janela.

Corre para o outro lado, aproximando-se da porta. Grita com raiva, querendo saber quem está na sua casa e o que pretende.

Nisto, um tiro o atinge no ombro, fazendo-o cambalear, mesmo assim, atira na direção da figura que surgira de súbito na porta. Entretanto, a pessoa parece muito ágil e conhecedora do que está praticando, pois atira mais uma vez, num disparo definitivo. Em seguida, afasta-se na direção do corredor que conduz à porta.

Fernando, por sua vez dá vários disparos, mas sente-se cada vez mais fraco, tombando no chão. Não percebera que um tiro o atingira no peito e desesperado, arrasta-se com as últimas forças que possui para a sala ao lado. Perecebe que agira errado, deixando o celular no quarto e não podendo pedir socorro.

Algum tempo depois, Alfredo chega na casa de Fernando. Observa que a porta da frente está entreaberta e imagina que ele prefere que seja discreto, provavelmente temendo que a vizinhança pense que ele tem alguma relação afetiva com ele. É um idiota, pensa. Será que nos dias atuais, alguém está preocupado com quem chega na casa dos vizinhos, logo ele, um homem discreto e consciente de sua posição na sociedade. Mas como lidar com um matuto como aquele, que embora tenha tido uma educação acadêmica, não havia evoluído em sua mentalidade.

Alfredo empurra a porta devagar e chama por Fernando. Não obtem resposta e fica um pouco assustado. Afinal de contas, ele é um homem que tem muitos inimigos, que matou um colega de trabalho, não é uma pessoa confiável. Talvez não devesse ter se envolvido com ele, mas agora era tarde demais. Já fizera a proposta e não havia como recusar.

Chama mais um vez e decide ligar o interruptor, iluminando o corredor que desemboca na sala e nos quartos.

Dá alguns passos e observa Fernando estirado com a cabeça encostada no pé de uma poltrona.

Apavorado, percebe que um filete de sangue escorre da boca do rapaz e seus olhos estão abertos como se estivesse morto.

Para certificar-se, aproxima-se e abaixando-se ao seu lado, examina a carótida, percebe que é tarde demais. Fernando está morto.

Levanta-se num salto, as pernas tremem e suas mãos parecem não obedecer os gestos, paralisadas.

Encosta-se na parede e fica ali, sem saber o que fazer, quando ouve passos que se aproximam.

Tenta esconder-se, deve ser a pessoa que o matou que voltou para asseverar-se de que o homem estava realmente morto ou pretendia outra coisa.

Para sua surpresa, entretanto, é a voz indignada de Letícia que ouve:

– Alfredo, o que você fez?

Alfredo tenta responder, mas o maxilar parece ajustado de modo a não se mover, tal o bater de dentes como se um frio extremo o atingisse.

Observa que Tavinho também está ao lado da irmã e sem entender o que está acontecendo, reúne todas as forças que possui para defender-se:

– Eu não fiz nada, está louca! Cheguei aqui e o encontrei assim, caído. O cara está muito ferido.

Tavinho se aproxima do corpo e exclama, apavorado:

– Ferido não! Ele está morto, mortinho da silva. Quem foi que o matou?

Alfredo precisa explicar por que está ali, naquele momento, mas apenas se defende, porque na verdade, não tem o que dizer, não sabe o que aconteceu, quem matou Fernando. Como defesa, também os questiona, agora mais seguro, através do poder adrenalina.

– E vou saber? Mas e vocês, o que fazem aqui?

Letícia responde, exasperada:

– Viemos conversar com ele, a pedido de mamãe.

– Mas agora, o que vai acontecer? Este cara foi assassinado há pouco, tenho certeza. Ele me ligou, pediu que eu viesse, pois queria acertar umas coisas, um negócio que estávamos fazendo.

– Um negócio? Desde quando você tem negócios com o jardineiro? A menos, que seus interesses fossem outros. - responde com ironia.

– O que você está imaginando, Letícia? Acha que eu vim aqui para transar com o cara?

Tavinho intervém, muito nervoso:

– Pessoal, vamos parar com esta briga idiota. Precisamos sair daqui, não podemos ficar nem mais um minuto. Não se esqueça Alfredo, as suas digitais estão no morto. A polícia pode pensar que você o matou.

– Nós os três, porque vocês tocaram em portas, maçanetas. – Responde Alfredo, alterado.

Letícia, percebendo a situação de perigo em que se encontra, grita em verdadeiro pânico:

– Tavinho, faça alguma coisa. De uma limpada por aí. Eu não quero me envolver nisso. Sou uma promotora, meu Deus, só faltava essa.

Tavinho concorda e começa a circular pela sala, em redor do morto e dos objetos que presumivelmente foram tocados, usando um lenço de papel.

– Então vamos limpar tudo. Você Alfredo, procure álcool na cozinha, na despensa ou seja onde for e limpe onde você tocou no cara, sei lá, tire as suas digitais.

Alfredo fica em silêncio, pensativo, sem mover-se. Letícia pergunta, indignada:

– Você quer que a polícia chegue, quem sabe algum vizinho já chamou a polícia, vai ficar aí pensando em vez de procurar fazer o que o Tavinho falou?

– E se nos livrássemos do corpo? – pergunta Alfredo.

– Como assim? Se você não tem nada a ver com isso, pra que se livrar do corpo?

– Porque tem as minhas digitais, Letícia, eu o examinei, peguei a arma que ele tem por perto. Pensei que havia se suicidado.

– Você é um idiota, mesmo! E o que você queria com ele?

– O mesmo que vocês. Eu descobri umas coisas relacionadas ao nosso pai.

– E o qual era o seu plano?

Tavinho os interrompe, alarmado:

– Pessoal, vamos limpar os vestígios rapidamente e dar o fora daqui. Esqueceram que quem o matou, pode voltar a qualquer momento?

– É verdade e o desgraçado por estar por aí e se é uma vingança, pode pensar que temos algum envolvimento com ele. – Responde Letícia. Em seguida, observa Alfredo que parece enxugar uma lágrima e acena a cabeça com censura. Acredita que tem razão ao pensar que o irmão tinha algum interesse no jardineiro. Não se contendo, pergunta, irônica:

– Parece que você sentiu muito a morte do coitado. Está aí enxugando as lágrimas.

– Não pense besteiras, Letícia. Não vê que perdiu uma lente, e estou incomodado com isso. Mas não se preocupe, desde que estava no carro, tinha este desconforto nos olhos. Deve ter sido lá.

Ela não responde, mas não acredita em nenhuma de suas palavras.

Em seguida, após fazerem o combinado, os três saem da casa de Alfredo e afastam-se de imediato em direção aos seus carros.

No prédio da frente, a luz de uma janela se apaga e pode-se avistar apenas a chama de um cigarro.

sábado, novembro 19, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 21

Nosso folhetim dramático e exagerado é publicado às terças-feiras e aos sábados. A seguir mais um capítulo, agora nos capítulos finais, no qual os desfechos aos poucos vão acontecendo. Boa diversão!

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/chá-preto-e-branco-bule-de-chá-1001654/

Capítulo 21

Santa desliga o celular e se surpreende com a visita de Letícia. A filha dificilmente apareceria, a menos que fosse chamada para algum encontro de família, como no caso das reuniões que aconteceram há pouco. De todo modo, estava feliz com a presença da filha, embora a achasse um pouco estranha. Leticia tomava chá ao seu lado, na varanda que desembocava num jardim enorme, do qual se avistava algumas montanhas. O por do sol ficava muito bonito, naquela região.

Santa observa a filha com carinho e mostra-se afável. Percebe, no entanto um certo desconforto, que não caracteriza a personalidade de Letícia, afinal sempre categórica e arrogante.

– Fico muito contente que você tenha vindo, Letícia. Anda sempre tão ocupada com o seu serviço, não consegue encontrar um tempo para nada a não ser o seu escritório e o tribunal.

– Não é tanto assim, mamãe. Na verdade, ando um pouco preocupada, com vocês dois: Você e papai.

– Seu pai está bem. Não se queixou mais de nada.

– Mas e você, com aquela história de dividir o patrimônio, de manter aquelas condições absurdas. Estas coisas ainda estão em pé?

– Claro, Letícia. Foi uma missão que recebi de Nossa Senhora e não posso me furtar a obedecê-la. Ela quer o bem das pessoas, a união da família.

– Mamãe, não acha que está exagerando?

– Nós já conversamos sobre isso, Letícia. Tivemos uma reunião para discutir. Para mim, é assunto encerrado.

– Mas Linda me disse que a senhora não anda nada bem.

– Como assim?

– A senhora anda nervosa, esquecendo de coisas importantes, parece que anda alheia a tudo que acontece em casa.

– Esta Linda está me saindo pior do que a encomenda. Mas você acredita nela ou em mim, Letícia?

– Em você, mamãe, é claro. Mas ao mesmo tempo, acho tudo um absurdo. A senhora acha que porque uma bússola emperrou virada não sei pra onde, e a partir de tudo isso, resolveu mandar nas nossas vidas, nós temos que fazer o que quer?

– Minha filha, eu fui bem clara. Contei-lhe sobre o que aconteceu, falei sobre a ilha isolada com a qual eu terei que participar de sua vida, de sua gente, de me transformar numa parceira e utilizar a parte de meu patrimônio para ajudar aquela gente. E se for o caso, ir embora desta casa para sempre.

– Como pode pensar neste absurdo! A senhora parece não estar bem da cabeça!

– É o que querem imputar em mim, uma loucura, não é isso?

– Eu não disse isso, mamãe.

– O que importa, agora? Você não acha que é muito fácil fazer o que eu peço, o que a Virgem me ditou? No seu caso, seria o privilégio da maternidade, terem um filho e se tornarem mais religiosos. O que isto tem de mal, meu Deus?

– Tem que ninguém pode dispor da vida das pessoas assim, de uma hora para outra.

– Mas eu dei um tempo, seis meses. É só ter um pouco de paciência e boa vontade.

– Acha que isso é honesto, mamãe? Dividir a nossa fortuna, o nosso patrimônio em prol de uma causa que nem sabemos muito bem do que se trata. Essa gente dessa ilha, acha que poderá fazer alguma coisa por eles?

– O bispo Martim vai me ajudar.

– O bispo Martim é um canalha. Teve até um caso com a mãe de meu pai.

– Foram coisas do passado e uma das condições, você sabe, era ele contar para a família e se redimir.

– São todos uns hipócritas!Basta abrir o jogo, se confessarem uns aos outros e tudo fica muito bem. O Ricardo andava me traindo, era isso que ficou bem claro na reunião e eu tenho que aturar! Mas ele se alinha com o que penso, ou cai fora.

– E você, o que pretende fazer Letícia?

– Eu vim aqui pedir-lhe que desista desta loucura, mamãe.

– Não posso, minha filha. E saiba, que estou tendo oposição em muitos setores desta casa. Muita gente está contra mim.

– É claro, imagine Tavinho querer levar uma vida regrada, mudar de curso ou coisa parecida. E o próprio Alfredo, acha que ele vai casar algum dia? Ponha na sua cabeça de uma vez por todas, Alfredo é gay, ele jamais casaria com uma mulher, está me entendendo? A senhora não pode obrigá-lo a isso!

– Por que não? Por que não satisfazer a Virgem?

– Porque é desumano, mamãe!

– Então me diga, a reunião que esteve com seu pai não foi desumana? Por que não me convidaram? E Linda, naquela desfaçatez, você acha que ela não está contra mim e em conluio com o seu pai? Sabe o que eles querem que aconteça, que eu seja dada como louca e fiquem com toda a fortuna. Todos vocês!

– Mamãe, a senhora está sendo injusta. Meu pai está preocupado com a senhora. É verdade que a senhora tem proporcionado dúvidas, porque as coisas que diz, que pensa não apropriadas, pense bem.

– São de uma pessoa louca, é isso.

– Não foi isso que quis dizer.

– Mas foi o que pensou, porque é mais fácil acreditar que eu seja louca, do que ter fé, acreditar que eu vi a Virgem se materializar aqui, na minha casa e apontar a bússola para aquela região, aquele povo. Ela só quer o bem de todos e a verdade.Bastam que aceitem se confessarem e mudar de vida, só isso.

– Só uma coisa eu não entendo nesta história toda.

– A que você se refere.

–À presença de Linda, que a senhora tanto insistiu para que ela participasse da reunião. Agora diz que ela está em conluio com o meu pai. Por que a presença dessa mulher era tão importante na nossa reunião? Já bastava o chato do bispo Martim, ainda tinha Linda. Por que mamãe?

– Seu pai não explicou para vocês? Não, ele não teve coragem, é claro. Decidiu ir por outro caminho mais fácil, insinuando que eu havia enlouquecido.

– Então me fale, me diga a verdade. Eu quero estar ao seu lado, eu quero ouvi-la.

– Temos um jardineiro nesta casa, que foi trazido por Linda para trabalhar aqui. Até poucos dias atrás, morava com ela, naquela casa dos fundos, mas agora se mudou para uma antiga casa onde morava antigamente, antes de ser preso.

– O que? Tem um presidiário que trabalha aqui?

– Na verdade, ele está em licença condicional, pois já tem direito, ficou preso durante cinco anos e teve bom comportamento.

– Mas isto é uma verdadeira catástrofe, um ex-presidiário trabalhando nesta casa.

– Pois bem, ele é sobrinho de Linda. Informe-se mais sobre ela, converse com ele, convide seus irmãos a fazê-lo, de repente descobrem mais coisas do que eu. Mas olhe, ele apesar de tudo, é um bom rapaz, eu até o contratei para ajudar-me.

– Ajudá-la? Um bandido!

– Fernando não é um bandido, Letícia. Ele é um homem que teve alguns percalços, andou com maus elementos, mas quer se redimir. Ela vai ajudar-me a descobrir tudo o que estão tramando sobre mim. Se você não acredita, procure informar-se. Fale com Tavinho, quem sabe, ele tem outras ideias.

Letícia fica calada. Talvez sua mãe esteja inventando toda aquela história e sua insanidade esteja aumentando a cada dia. Mas ainda havia alguma coisa dúbia nisso tudo, a presença de Linda na reunião, a qual ela não informara o motivo.

– E quanto à presença de Linda, você ainda não esclareceu.

– Pois bem, já que seu pai não lhe disse, nem aos seus irmãos, eu vou contar-lhe agora. Isso fazia parte de uma das condições e Linda, que fora minha empregada e amiga por tanto tempo, tinha que desabafar, redimir-se também do erro e contar a todos a verdade. Também seu pai seria desmascarado e a verdade seria completa, para ambos os lados.

– Não estou entendendo nada.

– Linda teve um filho com seu pai.

– O que? Só faltava essa! Meu pai, com aquela mulher? Não pode ser mamãe, não pode ser!

– E eu fico me perguntando, se os dois não querem ficar juntos e por isso a solução seria me porem a escanteio. Você não pensa assim, Letícia?

– Eu não sei o que pensar, mamãe, agora não sei de nada. Tenho vontade de encontrar aquela mulher e quebrar as fuças dela!

– Não, na verdade precisamos examinar todos os lados. Saber se ela está unida a Sandoval, ou se está planejando sozinha ou se ele tem os seus próprios planos. Mas desconfio de que um está contra o outro, embora fingindo que possuem o mesmo objetivo.

– E você descobriu alguma coisa?

– Descobri. No dia da reunião de vocês, eu pedi a Linda que gravasse toda a discussão atrás da cortina, mas ela disse que não havia conseguido, que tinha se enganado ou coisa parecida. Mas eu descobri que havia gravado tudo.

– E como, a senhora pegou o celular dela?

– Não, ela enviou a gravação por mensagem para uma amiga, uma mulher que a acompanha na igreja, sempre que vai ao rosário. Eu a procurei e pedi o celular, o qual entregaria mais tarde. É uma senhora simples, que não entende muito da coisa. Foi fácil conseguir.

– Mas como soube que estava com ela?

– No dia da reunião, fui à igeja, lembra? Sentei-me ao lado dessa senhora, chama-se Lúcia e percebi que ela recebia uma mensagem intermitente. Ela não entendia nada, eu então tentei ajudá-la. Era a gravação na íntegra de Linda.

– E ela, o que fez?

– Nada, deu-me o celular para que eu passasse a gravação para o meu. Entreguei-a depois, dizendo que não era nada demais. Apenas uma mensagem de Linda.

– E Linda, não descobriu nada?

– Acredito que não. Esta senhora é muito atrapalhada nestas tecnologias, com certeza nem tocou no assunto. Entregou a gravação para Linda e ficou nisso mesmo.

– Então, o que faremos mamãe, eu estou apavorada com tudo isso.

– Eu dei a sugestão de vocês procurarem este rapaz, ele sabe muito mais do que parece. Não vá sozinha, convença o Tavinho, que é muito mais atilado para estas coisas.

– E sua situação com papai, como está?

– Distante, cada vez pior. Nós quase não nos vemos, ele passa o dia fora. Acho que além da empresa, ele vai para as rodadas de jogos. Mas tudo bem, as minhas condições foram dadas e não voltarei atrás. Agora me diga, Letícia, você acredita em sua mãe? Acha ainda que sou uma maluca, uma alucinada?

– Não sei de nada, mamãe, não quero me precipitar, mas tenha certeza de que o que me disse, me balançou bastante. Vou falar com Tavinho sim, quem sabe, a gente descobre mais coisas sobre esta mulher e a põe no olho da rua!

Neste momento, Linda bate à porta, perguntando se precisam de mais chá. Letícia a olha com frieza. Ela continua, sorridente.

– Fico tão feliz que minha amiga não esteja sozinha. Ela anda tão solitária, ultimamente.

– Linda, limite-se a servir o chá. Deixe que eu cuide da solidão de mamãe.

– Eu pensei que poderia ajudá-la, Dona Santa tem tido umas crises bem difíceis.

– De que está falando, Linda? – pergunta Santa, intrigada.

–Não me leve a mal, Dona Santa, mas é que nós já conversamos sobre isso, lembra?

– Não, não lembro de nada.

– É verdade, aí é que está o problema.

– Linda, não tenho paciência para papo fora de hora. Quero conversar com minha mãe, por favor, se você nos der licença.

Linda retira-se, piscando o olha para Santa, com certa cumplicidade. Santa suspira, desolada.

sexta-feira, novembro 18, 2016

Bandeira do povo brasileiro

Quantas vezes, tremulaste abrandando as nuvens cinzas e deixando o céu mais azul.

Quantos olhos infantis te miravam, ensaiando teu hino e experimentando a emoção de teu emblema.

Quantas vezes, mãos juvenis te ergueram, levantaram no mastro, garbosa e alvissareira de novos rumos e esperanças da Nação.

Quantas vezes, foste chamada por vozes ufanistas, num patriotismo para poucos, num mundo de excessão. Foste assim usada, para ser um símbolo apenas de pensamentos restritos, não ligados ao povo, em períodos em que tua presença não era herança de todos.

Quantas vezes, cobriste ombros e corações de quem lutava por direito à liberdade e mostraste teu desempenho nas faces confiantes dos que lutavam por teu país.

Quantas vezes, lembram de ti nos hinos, nas glórias e nos feitos e esquecem quem teceu tuas entranhas e o vigor com que te vestes.

Hoje te vejo desperta no céu, bandeira, pavilhão de amor e glória e espero que representes o povo a quem te serve como discípulo fiel e não te trai.

Salve lindo pendão da esperança, como diz a letra de Olavo Bilac. E que esta esperança sejamos nós, somente nós, o povo brasileiro.

quarta-feira, novembro 16, 2016

Um amontoado de ossos

Percebia um corpo franzino que se esgueirava rápido, por entre as árvores. A noite já se aproximava e o parque, aos poucos, ficava deserto. De repente, ela sentou num dos bancos, de súbito, como houvesse se assustado de alguma coisa. Eu podia vê-la de longe, e por um momento, pensei fotografá-la com o celular. Mas foi só por um momento. Meu coração disparou, assustado, pois a mulher despencou literalmente no chão. Corri até o banco onde estava e abaixei-me, tentando descobrir o que estava acontecendo.

Ela estava no chão, a cabeça estirada próxima aos pés do banco. Ao seu lado, um cachorro preto olhava compassivo, como se soubesse o que acontecera. Ou como se fosse de rotina.

Tentei acordá-la, olhei para os lados, para ver algum passante por perto que me acudisse. Um que outro olhava de longe e se afastava ainda mais.

Peguei a sua cabeça entre as mãos. Era tão pequena aquela cabeça, que parecia um crânio vazio, sem cabelos, sem pele, sem couro cabeludo, apenas ossos. Tão leve, que nem parecia de um adulto. Pior, de um ser humano.

Ela abriu os olhos que se revelavam ainda maiores, efeito do rosto mirrado. Parecia ensimesmada, como quem diz, o que este cara quer aqui? O que faz ao meu lado? Moveu a cabeça, tentou levantar-se. Então, perguntei se havia se machucado. Não respondeu.

Conseguiu sentar-se ali no chão mesmo. Esticou as pernas finas, envolta em andrajos sujos e os braços seguravam-nas como se tentasse se equilibrar.

Percebia que as mãos tremiam. As mãos eram grandes e disformes, com sulcos esbranquiçados na ponta dos dedos. A pele preta nem tinha uma cor definida, como se o sol, o tempo, o vento ou qualquer fenômeno da natureza a tivesse desbotado.

Tentei ajudá-la a levantar. Ela me empurrou. Tinha medo de mim. Queria afastar-se de qualquer modo. Por certo, dispensava a minha proximidade. Eu era um estranho, que se intrometia na sua vida.

A roupa que cobria seu corpo estava em pedaços. Nem sei se devia chamar de roupa, tal era o estado de sujeira e farrapos em que se encontrava. Havia uma sacola velha sobre o banco, com mais trapos guardados, eu supunha. Ela segurou-a, empurrou o cão com o pé descalço e para minha surpresa, não foi embora. Voltou a sentar no banco e ficou ali, calada, enfiada em suas mais profundas lembranças ou na falta delas. Mascava um ar de nostalgia que me doía o coração.

Nem sei porque eu continuava ali. O fato é que precisava fazer alguma coisa.

Não sentei ao seu lado, pois sei que se o fizesse, ela se afastaria, por mais dificuldade que tivesse. Fiquei em pé, meio distante, eu e o cachorro que agora se preocupava com o seu rabo, procurando-o em círculo. Mesmo assim, perguntei:

— Você está bem agora?

Ela não me olhou. Ao contrário, levantou a cabeça para o horizonte. As árvores ficavam atrás e sol ante seus olhos. O sol que enfraquecia, cujos raios já nem se viam, só uma luminosidade difusa que também ia morrendo. Daqui a pouco, a noite chegava. O que ela faria à noite?

— Você bateu com a cabeça. Não está doendo?

Desta vez, ela se virou em minha direção e pude ver um certo brilho nos olhos. Um brilho que me incentivou a continuar.

— Não está com fome?

Ela disse alguma coisa. A voz era gutural, inaudível. Talvez não falasse com alguém há muito tempo. Mesmo assim, ela proferiu alguma coisa, o que era um avanço. O maior desafio agora, era entender o que queria. Voltei a perguntar se estava com fome.

Ela esboçou um sorriso, onde se via mais gengiva do que dentes. Foi aí que ela apontou para o cachorro.

— O cachorro? Ele está com fome?

— Cachorra.

Agora entendi, ela me corrigia e com bastante consistência. Era a sua companheira, por certo.

— Cida.

—Cida? – Perguntei meio bobo.

Falava da cachorra ou dela? Quem era Cida? Cida, Aparecida, devia ser ela.

Mas ela repetiu a frase, afirmando que Cida estava com fome.

Como insistir na pergunta e revelar, que no fundo, eu a confundia com o animal? Não somente pelo nome, mas pela condição em que se encontrava. Tudo acontecia em nível interno, quase inconsciente, em que meus pensamentos se misturavam com centenas de experiências que não conseguia interpretar.

Quem seria aquela mulher mirrada, de vida espremida, desatenta de tudo. Havia mais vida na cadela, certamente.

Uma mulher infeliz. Uma mulher que acabara de cair, de desmaiar e que se preocupava com a fiel companheira, que estava faminta.

Então, indaguei, tentando ser entendido:

— E você, não está com fome?

Ela abaixou a cabeça, como quem diz, que interessa agora. Alguém tem que se salvar. Que se salve Cida.

Confirmei que traria algum alimento para Cida e também para ela.

Ela me olhou mais uma vez, pensei até que seria a última, porque seus olhos estavam tão vazios e perdidos, que pensei que fosse morrer naquele momento.

Afastei-me rápido, atravessei o parque, procurei um quiosque no outro lado da rua e em seguida, estava de volta. Cida parecia desconfiar de meu propósito, pois me seguia o tempo todo. A cada contorno que fazia, ela me acompanhava solidária. Quando me dava conta de voltar-me, tinha a impressão que me olhava agradecida.

Comprei um sanduíche e já na saída do bar, ela o engoliu quase instantaneamente. A baba ainda escorria da boca, quando lambia o prato de isopor.

Atravessei a pequena viela que conduzia até o interior do parque. Vi ao longe, já quase na escuridão, um amontoado de ossos, encostado no banco. A mulher estava com a cabeça baixa, coberta por um pano, que lhe ocultava a boca.

Aproximei-me com o lanche. Tentei entregar-lhe, mas ela nem me reconheceu. Cheirava alguma coisa numa lata e se enrolava ainda mais no trapo sujo.

Cida afastou-se de mim e se aproximou rápida, da dona. Sentou-se ao seu lado, como se compartilhasse o seu drama. Permaneceu ali, esperando. Talvez esperasse horas por alguma reação. Ou não esperasse nada. Nem um afago na cabeça, um sorriso, um coçar na barriga. Talvez apenas esperasse um empurrão em suas coxas magras. Era de hábito. Um hábito bom, do qual ela já se acostumara. Era o carinho que lhe restara.

De todo modo, estava alimentada. De vez enquanto, seu olhar pairava no movimento tépido das folhas das árvores, investigando algum movimento diferente. Mas eram apenas as folhas, agora amarelecidas pelas lâmpadas que se moviam na noite cada vez mais escura. Somente voltou-se, encantada, quando joguei o lanche que trouxera ao seu encontro. Agora, não o devorou de uma vez, abanou levemente o rabo, satisfeita e o deixou por um momento ali, talvez pensando que não era para ela. Cheirou, cheirou e o engoliu em seguida. Mais devagar, a bem da verdade, mas o engoliu por inteiro.

Afastei-me. Segurei firme a mochila temeroso em voltar a atravessar o parque, pela penumbra que se antecipava. Apalpei o celular, pelo lado de fora, para ter a certeza de que ela estava ali.

Depois, afastei-me devagar e dei uma última olhada para a cena.

Cida voltava a observar as árvores.
13/03/2023 23:37:53

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