sábado, outubro 01, 2016

A fotografia de Santa - CAP. 7

No sexto capítulo, com a revelação da proposta de Santa à família e suas condições, todos começaram a questionar-se descobrindo as falhas uns dos outros, ou mesmo deixando vir à tona tudo o que pensam. A preocupação principal é conhecer as mensagens que todos receberam. Letícia, indignada pela traição do marido e brigando muito com os irmãos, exige que todos revelem as mensagens que receberam. Chegamos agora ao nosso 7º capítulo de nosso folhetim dramático. Divirtam-se como dizia o poeta, porque hoje é sábado.

Capítulo 7

Fonte da ilustração: https://morguefile.com/search/morguefile/18/library/pop. autor: TheBrassGlass

Alfredo que se afastara do grupo após estar na berlinda, dirige-se à mãe, com frieza.

— Faltam apenas o bispo e Linda. Sabe, mamãe, eu não entendo o que a Linda tem a ver com esta história.

Santa aproveita a oportunidade para deixar claro o seu objetivo. Parece mais forte do que toda a repercussão dos acontecimentos. Dirige-se a Alfredo, com estudada segurança.

— Se Linda quiser contar, vocês saberão. Sabe, meu filho, sua irmã não soube interpretar o que eu pedi a você. Ela está desequilibrada e está vendo tudo aos extremos.

— Tem certeza de que a desequilibrada sou eu? – pergunta, encarando-a com ódio.

Mas é Alfredo que responde num tom de extrema emoção, tão sofrido e amargurado, que talvez fosse a única observação que fizesse Santa rever o seu pedido. Nada, no entanto, pode impedi-lo de expressar toda a sua revolta.

— Não se preocupe, comigo mamãe. Sei muito bem o que a senhora quis dizer. Eu sempre senti nos seus olhos uma acusação permanente. Eu sempre soube da sua desconfiança, inclusive, porque não conseguia esconder no próprio tratamento que me dispensava. Às vezes, mamãe, a senhora era rude, fria, quase cruel. Não queria que eu chorasse como uma meminha, lembra? Não admitia que eu brincasse com as meninas, que tivesse outros interesses do que jogar bola. Eu sempre senti sobre mim o peso do seu olhar. Ele sempre queria me dizer alguma coisa, uma acusação, e eu estava sempre em pecado. Cada pensamento era um pecado, cada gesto em direção ao meu sentimento, era um pecado, uma punição.

— Por favor, Alfredo, pare, não continue meu filho. – termina a frase num resmungo choroso.

Ele, entretanto, soma forças para prosseguir com mais ímpeto:

— Por que mamãe? Agora não lhe interessa mais a minha exposição? Foi a senhora que botou na roda que eu... eu tenho dificuldades.

— Todo mundo sabia que ele era veado – avalia, Ricardo, tentando falar baixo no ouvido de Letícia.

Tavinho, no entanto, ao ouvir o cunhado, o recrimina, com raiva:

— Cala boca, Ricardo, eu te quebro a cara!

— Deixa, Tavinho. Parece que ele tem razão. Uma pena que eu nunca fui um veado verdadeiro, nunca assumi a minha homossexualidade. Eu sempre me esquivei destas tentações, eu nunca, se você quer saber, mamãe, nunca eu tive um relacionamento mais íntimo com um homem. Só me puni durante toda a minha vida, vivendo à margem, taciturno, alienado da sociedade, dos grupos. Um homem solitário.

— Santa suplica, aos prantos:

— Pare pelo amor de Deus, você não precisa agir dessa forma, Alfredo. Você não tem que se expor dessa maneira sórdida! Você não precisa se humilhar, meu filho!

— Mas a senhora precisa saber. Tudo que eu tive foram aquelas brincadeiras de criança, nas quais até mesmo os héteros se envolvem. Não, eu apenas sonhei, fui um gay platônico, que nunca se assumiu, que nunca admitiu se assumir.

— Mas então, você é homem – reflete, Sandoval, desajeitado, tentando inferir alguma observação, sem sucesso.

— Claro que sou. Não se preocupe, quanto a isso. Só a minha orientação sexual é diferente. Mas já que eu me mostrei aqui, do modo mais sincero e corajoso, acho que todos devem fazer o mesmo e assumir o que são. Não interessa se é errado ou certo. Somos uma família, não somos? Não sei, se alguma vez esta família existiu, mas em todo caso, continuamos todos juntos, convivendo quase que diariamente. Até mesmo o bispo Martin. O senhor pode nos dizer qual é a sua mensagem?

O bispo olha para todos, perguntando a si mesmo, se chegou a sua hora. Tenta divagar, devolvendo ao próprio Alfredo as suas observações. Começa com voz baixa, alternando aos poucos, até se tornar uma espécie de discurso.

— Bem, Alfredo, eu admiro muito o seu comportamento, afinal você mostrou que está inserido neste grupo familiar, por mais revolta que tenha, você ama esta família, por isso foi tão sincero. Mas lembre-se, você é um menino bom, não é nada disso que pensa. Eu conheço você e sei o que estou dizendo... – faz uma breve pausa – No meu caso, eu não posso, de modo algum me considerar da família, portanto, não tenho muito a dizer.

— Ah, tem sim, o senhor foi convidado como todos nós – extrapola Letícia, empurrando o braço de Ricardo que tenta segurá-la, ainda fingindo um olhar carinhoso.

Sandoval, ratifica a objeção da filha, interessado.

— Letícia, tem razão, Bispo. Se minha mulher fez questão de convidá-lo, acho que nada mais justo do que pôr as cartas na mesa. – e completa, malicioso – Chegou a sua hora.

— Meu amigo Sandoval, não vamos considerar este nosso encontro, um jogo, sem qualquer alusão … o senhor sabe. Aqui não se trata de um confronto, muito pelo contrário, é uma reunião para que encontremos o melhor caminho.

O bispo encerra a frase, fechando as mãos em posição de oração, pousando delicadamente o queixo, como se não esperasse mais nada do encontro.

Tavinho, porém, faz questão de mantê-lo na conversa:

— E qual é o caminho que a Virgem lhe sugeriu?

— Não vamos colocar o nome da Virgem nesta conversa, Tavinho. Você sabe, que eu sempre fui amigo da família, afinal, eu os batizei a todos. Sua mãe...

— Deixe de enrolar, bispo. Abra o jogo – Tavinho o interrompe, impaciente, enquanto Ricardo complementa – Eles sabem fugir pela tangente.

O bispo suspira longamente. Sabe que a melhor estratégia é dizer a verdade, ou seja, igualar-se a todos e dizer o motivo de sua mensagem. Suas mãos suam e a voz estremece, de vez em quando.

— Bem, se vocês insistem, eu não posso fugir da minha participação, digamos, nisso tudo. Se estou aqui, como vocês disseram é por que a nossa querida amiga Santa me convidou. Acho mesmo que é devido a me considerarem quase da família... – Santa desta vez, o interrompe, ansiosa – Por favor, Bispo Martin, esclareça a todos o que lhe foi destinado.

— Está bem, Santa, é justo, é justo. Na verdade, é uma coisa simples e ao mesmo tempo, complexa. Trata-se da bússola, que doei à Santa no dia de seu aniversário.

— Diga a procedência da bússola, sr. Bispo – insiste Sandoval, que parece mais interessado do que os demais na história.

— Claro, amigo Sandoval. Eu explicarei tudo e espero sinceramente que não tirem conclusões precipitadas. Na verdade, a bússola originalmente, era da mãe de Sandoval, Dona Maria Marta de Medeiros e Quental.

— E como foi parar nas suas mãos? – Sandoval grita, impaciente – Como explica aquela história de ser doada à igreja no dia do batismo de Santa?

— Deixe-o concluir, Sandoval – reitera Santa, aborrecida.

O bispo reinicia, num tom um pouco mais baixo e temeroso:

— Bem, eu era muito jovem, quando a mãe de Sandoval também era uma jovem senhora. Perdoe-me Sandoval, eu sei que é um fato muito desagradável para você, eu entendo perfeitamente e para mim, uma mancha terrível. Mas, como vocês bem me alertaram, eu preciso falar. Já que chegamos a esse ponto, não há como recuar. Bem, como eu dizia, ela, a mãe de Sandoval participava muito da comunidade... oh, meu Deus, é tão penoso para mim.

— É difícil para todos, Bispo – acrescenta, Alfredo.

— Sim, Alfredo – e dirigindo-se à Linda, que não se afastava da cadeira onde sentara desde que começara a reunião – Por favor, traga um copo d'água para este velho discípulo do Senhor. Eu já estou muito velho, não tenho saúde suficiente para me ocupar de coisas tão complicadas. Mas se a Virgem me concedeu esta oportunidade, preciso levar à frente. – fez um pequeno silêncio e prosseguiu – Como eu disse, eu era muito jovem e dona Maria Marta era uma mulher muito bonita.

— Cara de pau. Pegou a velha! – exclama Ricardo, sorrindo irônico, calando-se logo em seguida, com a xingação de Letícia – Cale a boca, imbecil. Eu não esqueci o que você fez!

O bispo segura o copo de água, que Linda trouxera, com as mãos trêmulas. Toma um gole, aproxima-se da mesa de tampo de vidro, larga-o e pede licença para sentar-se.

Todos se aproximam, fazendo um círculo, em silêncio.

Ele então, senta-se, tentando refazer-se de um possível mal-estar. Por fim, recomeça:

— Bem, amigos, continuando. Nós tivemos um breve caso, uma coisa passageira, da qual me arrependi por todos os meus dias. Mas, daquele pequeno relacionamento, ficou uma joia, uma joia que ela me doou de despedida. A bússola, que vocês agora conhecem. Esta bússola pertencia à mãe de Sandoval. Eu precisa me livrar dela, era uma punição para mim, o símbolo de meu pecado. Meu amigo, me perdoe, mais uma vez eu lhe peço.

Sandoval bate com os punhos na mesa, enquanto os demais o observam estarrecidos.

Eu tinha certeza que era a bussola da minha avó. Ela morreu repetindo isso, milhões de vezes, dizendo que minha mãe tinha desaparecido com a joia.

O bispo prossegue, pesaroso:

— Pois é, Sandoval, isso me trouxe muitos problemas. Tanto, que tive a ideia de inventar a história que ela tinha sido doada à igreja no dia do batismo de dona Santa. Reconheço que foi uma canalhice sem perdão, mas eu não peço que me perdoem. Pedirei a Deus, como já tenho feito todos os dias de minha vida.

— E você, Santa, compactuou com esta sujeira. Como foi capaz?

— Eu não sabia de nada, Sandoval. O bispo me confidenciou um pouco antes do aniversário. Você não pode me acusar disso, pelo amor de Deus!

— É verdade, amigo Sandoval, ela não sabia de nada – confirma o bispo, mostrando remorso.

— Ora, vai se fuder! Não me chame de amigo, você transou com a minha mãe,ficou com uma joia de família, inventou que era um presente à igreja e fala isso agora, com essa cara de pau!, um padre, um bispo, você na verdade, é um velho sacana, isso sim! Você é um canalha, eu devia acabar com a sua carcaça podre!

Ricardo não esconde o sorriso e uma certa vingança pela revelação de Santa, ouvindo atento a explicação do bispo Martim.

— Eu segui o que dona Santa me pediu, por favor – o bispo suplica, assustado – Eu me expus na frente de todos, revelei situações e sentimentos que já estavam mortos no passado, os quais eu temia até em pensar. Vivos, apenas na minha lembrança e no meu remorso. Agora, estou livre. Se vocês me perdoam ou não, não posso fazer nada. Mas se pequei, devo a Deus o beneplácito do perdão. Mas, parece que não apenas eu devo à sociedade, Sandoval. Acho que Linda também tem muito a dizer.

— Quer acusar a Linda também? Não quer ficar sozinho na sacanagem? – indaga Sandoval, com exagerado desvelo.

Alfredo encara o pai com desconfiança.

— O que Linda tem a ver com isso, mamãe?

terça-feira, setembro 27, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 6

No quinto capítulo Santa expõe à família que teve uma visão de Nossa Senhora e decidira propor a cada um uma missão que não lhes parecia nada fácil. Cada um receberia um envelope onde haveria uma lista de medidas pessoais que deveriam tomar, para uma mudança em suas vidas. Por isso, teriam seis meses para implantarem tais medidas. Todos estavam envolvidos, os filhos Alfredo, Tavinho, Letícia, o genro Ricardo, seu marido Sandoval e também o bispo Martim, que for a convidado para a reunião. Caso neste período de tempo, ela perceber que não ocorreu mudança nenhuma, sairia da casa para sempre e viveria entre os pobres, inclusive o povo da ilha para onde a bússola apontava o seu norte.

A seguir o 6º capítulo de nosso folhetim dramático que é publicado nas terças-feiras e nos sábados.

Capítulo 6


Talvez uma vida mais simples tivesse mais sentido. Talvez apenas reconhecer-se um esposo e pai, sem se dedicar ao trabalho com tamanha energia. Sandoval mergulha numa incongruência de pensamentos e imagens que o deixam assustado. Por que depois de tanto tempo se preocupar na inabilidade em exercer os papéis familiares? Por que se deixar envolver naquele clima de insegurança no qual Santa jogara toda família?

Ela deveria estar satisfeita com a aparição da Virgem, devia aprofundar-se em orações e permanecer o maior tempo possível na igreja, pedindo pela paz e felicidade de todos.

Afinal, agora despertara para uma espiritualidade muito maior. Ao contrário, parecia disposta a criar conflitos que desuniam a família, cultivando desavenças, protagonista de uma história ridícula, assumindo-se redentora de um grupo que não significava nada para a sociedade.

E para completar, mandara Linda distribuir aqueles malditos envelopes, com mensagens individuais. Qual era o seu verdadeiro objetivo?

Sandoval afasta-se dos demais. Sente-se um execrado naquele grupo, no qual deveria ser o o baluarte, o líder ao lado da mulher que revelava ter tanto poder sobre todos. Na verdade, suas ideias e percepções nunca tiveram grande valia. Sempre o ouviram com ressalvas, sempre o deixaram em segundo plano. Tampouco, se importava com isso. Era até conveniente afastar-se sem dar conta de seus passos. O trabalho na empresa era a desculpa ideal para o seu tempo fora de casa.

Mas agora, Santa está passando dos limites. Faz uma chantagem transversal, usando a imagem da Santa para atingir seus objetivos.

Decide abrir o envelope, mas ignora a mensagem.

Depara-se de súbito, com o olhar inquisitivo da mulher e tem um certo estremecimento.

Santa parece antever alguma coisa obscura, como se o tivesse em suas mãos. Ela se aproxima, sorrateira e comenta ao seu ouvido.

— Veja como todos agitados. Ficam discutindo e nem se fixam nas mensagens.

— Você parece estar se divertindo muito, Santa.

— Você pensa assim? Eu só quero o bem da minha família – enfatiza.

— Você quer dominar a todos. Não pense que sou idiota.

— Sandoval, você está sendo injusto. Se pelo menos, tivesse aberto o seu envelope e lido a mensagem, talvez pensasse diferente.

— Nem sei se vou ler esta bobagem. Com esta história de Virgem, você está usando todo mundo. Não sei onde quer chegar.

Neste momento, Letícia os interrompe, ratificando as palavras do pai.

— Eu também não sei onde você quer chegar mamãe. Papai tem razão, você não pode dispor das nossas vidas assim.

— Isso que você está dizendo é muito bonito, Letícia, parece frase de uma peça dramática, mas eu fui bastante clara no que falei para vocês. Eu disse e repito, quero o melhor para a família, portanto, não há nada me impedirá de ir às últimas consequências. Do que você está reclamando?

— Esta história de ter filho e ser mais religiosa é ridícula. A senhora sabe que eu e o Ricardo decidimos não ter filhos. Tenho o meu cargo de promotora que preenche todo o meu tempo, não posso me dedicar a crianças – pondera, obstinada; a maçã do rosto vermelha. Santa contrapõe a filha: — Mas é um absurdo!

Neste instante, Sandoval acabava de ler a mensagem e reage, indignado, refutando a expressão da mulher.

— Absurda é esta mensagem que você deixou pra mim, Santa. Você está me ofendendo. Eu que me dediquei a esta família, que aumentei a nossa fortuna com o meu trabalho, com a minha dedicação na fábrica e você vem me dizer que devo deixar a jogatina. Quem lhe disse que jogo? Você enlouqueceu, mulher?

Santa não responde, observa o pequeno grupo ao longe, que se desfaz aos poucos. Nem percebe a presença de Alfredo, que ouvira a reclamação do pai, enquanto se aproximava do trio.

— Parece que a coisa tá preta, papai. Mamãe pegou pesado. Se ela desconfia que o senhor joga, imagina o que pensa de mim. Ela sugere que eu me case, que arranje uma mulher, pois nunca me viu com nenhuma namorada – e voltando-se para a mãe, pergunta, ansioso – o que a senhora insinuou, mamãe?

Letícia, entretanto parece estar no ápice da impaciência e destila todo o veneno na primeira oportunidade. Pergunta irônica, a Alfredo, antes que a mãe faça qualquer conjectura: —Ainda precisa confirmar, Alfredo? Mamãe apenas declarou o que nós todos pensamos.

Por favor, Letícia, não seja maldosa – pondera Santa, tentando evitar o pior.

— Eu? Maldosa? A senhora foi cruel e eu que sou má! Ela deixou bem claro que duvida de sua masculinidade, ou seja, que você é gay! Quer que eu esclareça melhor?

— Vocês estão todos loucos – reflete Alfredo, olhando para os lados, procurando um apoio.

Letícia prossegue, implacável: –— Não, Alfredo. Nós não estamos loucos. A verdade é que a mamãe está dizendo o que sempre pensou de nós, mas na sua carolice, na beatice, nunca teve coragem. Agora, aproveitou esta desculpa para dizer o que pensa.

Santa ouve a filha, angustiada. Tenta remendar a situação: — Não é nada disso. Vocês estão distorcendo as minhas palavras. Parece que ninguém entendeu nada. Vocês se desviaram do caminho certo, eu só quero ajudá-los. Custa entender isso?

— Fazendo chantagem, jogando na nossa cara que vai se desfazer da sua fortuna, da parte que lhe cabe e que é nossa também, se não fizermos o que deseja. – e voltando-se para o irmão mais jovem, indaga, sarcástica – Diga, Tavinho, você que é o queridinho da mamãe, se concorda com a proposta dela.

Tavinho se ajeita na poltrona, sem nada dizer, mas revela-se também incomodado com a mensagem que recebera. Santa então se dirige ao filho, defendendo-se.

— Não é apenas uma proposta minha. Foi uma vontade da Virgem.

— Sim, da Santa matriarca, da déspota da casa! – grita Letícia, exaltada.

— Cale a boca, Letícia. Me respeite!

Ela entretanto, prossegue no mesmo tom enfático: — E você, nos respeitou, mamãe, com esta história toda? Você pensou em nós, nos nossos direitos? Você se colocou no nosso lugar? Não, você só pensou nos seus propósitos radicais, no seu modo de ver as coisas. Mas cada um é diferente do outro, você não pode exigir que pensemos como você.

Neste momento, Tavinho parece se acordar da apatia em que se encontra, para confirmar: — E nem que tenhamos a sua fé.

— Por que diz isso, Tavinho? Você foi sempre tão dedicado, quando criança... – reflete Santa, desiludida. Ele responde, ríspido: — Mas eu não sou mais criança, mamãe. A Letícia tem razão. A senhora só pensou em si.

— Até que enfim, alguém me dá razão – assevera Letícia, sacudindo os ombros.

Ele continua no mesmo tom anterior, revelando a sua decepção.

— Eu não tenho que abandonar o meu curso, é o maior desatino que já ouvi, imagine, eu trabalhar na fábrica de papai, a senhora enlouqueceu! Eu sou um artista, mamãe, não posso enquadrar a minha criatividade naquelas paredes de escritório.

Ricardo intervém no grupo, segurando o braço de Letícia, e rogando com um olhar de falsa compreensão: — Amor, vamos embora.

— Por que você quer ir, afinal, qual foi a sua mensagem, Ricardo?

— Uma bobagem, acho que sua mãe estava brincando.

— Não, me deixe ver, Sei muito bem o quanto você é dissimulado. Me dê isto aqui!

— Por favor, Letícia, vamos embora. Não faça escândalos!

— Ah, então é isso – esbraveja, retirando do bolso da calça, o cartão com a mensagem – Você deve deixar de ser mulherengo. Seu miserável, você tem uma amante!

— Pare com a baixaria. Já lhe disse, sua mãe não está bem da cabeça, você mesma não concorda com o que ela lhe escreveu.

— No meu caso, é diferente. Ela deve saber alguma coisa sobre você. Me parece que ela tem olhos na nuca, ela sabe tudo de todo mundo! Me diga, seu patife, você tem uma amante!

— Não se subestime Letícia.

— É muito fácil, agora. Não se subestime, mas você não pensou em mim, quando … oh, meu Deus, será que tudo isso é verdade? Você sempre me enganou, agora, eu tenho certeza.

Neste momento, todos olham para o casal, como se examinassem uma cena estranha. Talvez fiquem se perguntando, o que está acontecendo naquela casa, onde todos parecem participar do jogo da verdade.

Santa e Sandoval ficam alarmados, mas prosseguem impassíveis, enquanto a discussão acelera os ânimos de Letícia e Ricardo. Tudo vem à tona, quando ele chega ao limite da raiva e põe as cartas na mesa.

— E você pensa que é fácil para mim, aguentar essa sua língua afiada, esse seu falar esganiçado o tempo todo? E depois, você se acha, mas não é tao boa de cama assim. Tenho outra mulher sim, uma mulher que não fica me azucrinando o tempo todo e me obrigando a participar desta família falida!

— Letícia atira-se contra o marido, dando-lhe diversas batidas no peito, com as duas mãos, chamando-o de miserável.

Desta vez, Sandoval intervém, segurando a filha.

— Vamos acabar com esta loucura. Letícia, não devia ter feito isso. Minha filha, não se rebaixe.

Este canalha merece muito mais! – ela grita, aos prantos.

Em seguida, Ricardo imediatamente, parece cair em si e tenta recobrar a comprrensão da mulher.

— Letícia, eu sei que estamos todos exaltados, eu não devia ter dito estas coisas para você, mas foi no calor da discussão.

— Não se atreva a falar mais comigo – responde sem olhá-lo.

Ele continua no mesmo tom persuasivo: — Mas você sabe que a amo, depois conversamos melhor em casa. Vamos embora, vamos acabar com isso.

Letícia, ao contrário, pretende desafiar a todos, como se pretendesse jogá-los na mesma ruína.

Não, agora quero ir até o fim. Quero que todos coloquem na mesa as mensagens que receberam. Não é isso que mamãe quer? Pois vamos fazer a sua vontade.

sábado, setembro 24, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 5

No quarto capítulo, Santa reúne a família para fazer uma proposta que se relaciona à missão que acredita possuir, a partir da visão da Virgem. Estão presentes a filha Letícia, que é promotora e seu marido Ricardo, que fica se perguntando qual seria o motivo da reunião. Por acaso a sogra leria o testamento? Também estava presente o filho que é um artista midiático, Tavinho. Por fim, chegara Alfredo, o terceiro filho, que se atrasara e segundo os demais está sempre ocupado com sua empresa. Linda, a empregada de vários anos, recebe a todos com carinho. O marido Sandoval não se furtou em contar, com discrição à Letícia, sobre a sua preocupação com a esposa. Dissera que ela tinha tido uma visão de Nossa Senhora e estava cada dia mais estranha.

A seguir o 5º capítulo de nosso folhetim dramático, porque hoje é sábado, um dos dias de publicação. Os capítulos são publicados nas terças-feiras e nos sábados. Boa diversão!

Capítulo 5

Todos pareciam pouco à vontade na biblioteca.

Alfredo passeou os olhos pelas estantes de madeira, repletas de todo o tipo de livro, sem sequer serem organizados sob qualquer ordem e lembrou do avô. Quantas vezes vinha até ali, ao seu lado, examinar as figuras dos atlas, escolher um livro infantil ou deparar-se com uma enciclopédia para os trabalhos da escola.

Ao seu lado, estava sempre a figura plácida e companheira do avô, servindo-lhe de guia naquela mina do tesouro. Recorda-o silencioso, ouvindo suas histórias, um mundo enriquecendo a imaginação.

Quantas vezes o vira agitado, entre jornais, procurando matérias que indicavam algum acontecimento político da época, que via de regra, o deixava de cabelo em pé. Era um homem apaixonado e tentava incutir nele toda a expectativa, a esperança no futuro e o otimismo que carregava consigo.

Alfredo possuía um carinho especial pelo avô, talvez muito mais do que pelos demais membros da família. Infelizmente, seu legado não surtira muitos efeitos. Não era um homem cheio de vida e esperança como ele. Não era um ser social, voltado para os prazeres das conversas prolongadas nas noites de verão.

Não, tinha se tornado um homem do frio, do inverno, da solidão de um quarto de apartamento.

Agora estava ali, entre aquelas prateleiras abarrotadas de livros e pastas com documentos e tinha a sensação que um pouquinho do avô ficara ali também. Estava assim, absorto, quando a mãe iniciou o que passou a ser a tal reunião.

Tavinho estava encostado numa das poltronas de couro, meio estirado, talvez mais preocupado com a sua dissertação, sua vida lá fora, seus compromissos bem mais gratificantes.

Ricardo e Letícia sentaram-se lado a lado, nas poltronas que ficavam em frente da imensa mesa de mogno, coberta de vidro.

Sandoval mostrava-se inquieto, não parando em lugar nenhum, a não ser vez por outra, estabelecer-se no parapeito da janela que desembocava numa área fechada, uma espécie de jardim de inverno. Ao ouvir a voz de Santa, fez um pequeno reparo: — Santa, desculpe interromper. Gostaria que evitasse falar na bússola. No momento, é um dado supérfluo.

— Talvez você tenha razão, Sandoval. Não se preocupe, tudo a seu tempo.

— Mamãe, não acha que está muito solene?

— O momento exige, ou melhor, a situação assim exige, Letícia. Mas serei apenas o suficiente, nada que vá tornar esta reunião demasiado enfadonha.

— Assim, espero – resmunga Ricardo, em seguida, se desculpando.

Tavinho insiste, com um meio sorriso, para não desagradar a mãe: — Vamos começar, então?

—Estou pronta para começar, meus queridos, mas o grupo ainda não está completo.

— De que a senhora está falando? A família está toda reunida. A quem você se refere, mamãe? – Letícia revela impaciência.

Santa, ao contrário, não muda o tom de voz, nem mesmo se embaraça com alguma pergunta mais incisiva. Parece ter tomado o rumo ideal, palmilhado a trajetória que faz sentido a sua vida.

— Por favor, Sandoval, esclareça aos nossos filhos.

— E genro, dona Santa. Não se esqueça de mim – adverte Ricardo, tentando brincar.

— Absolutamente, meu filho. Você é como um dos nossos filhos – e dirigindo-se ao marido, repete o pedido para que esclareça a observação anterior.

Sandoval, por sua vez, revela-se mais inseguro. Afasta-se da janela e aproxima-se da poltrona onde Santa está acomodada, atrás da mesa. Ainda em pé, explica: — Bem, quando sua mãe pediu para conversarmos, ela me convenceu a … Bem, vocês logo saberão, ela achou por bem convidar o bispo Martim para esta reunião.

— Mas por quê? Não faz sentido.

Ao ouvir a observação de Letícia, Alfredo a examina como se não a reconhecesse. Tamborila os dedos nos braços da poltrona e volta a olhar em torno, como quem procura uma resposta para tudo. Talvez, pense em seus próprios problemas. Sua mente anda por paragens bem mais longínquas.

— Sua mãe explicará o motivo do convite mais tarde, Letícia. Tenha paciência, por favor. – e voltando-se para Linda, acrescenta – Há ainda outra pessoa. Linda.

— Era só o que me faltava, mamãe. Até os criados fazem parte da nossa família agora! O que Linda tem a ver com tudo isso?

Ricardo acompanha intrigado o desabafo da mulher. Astucioso, estica o braço até Alfredo, para alertá-lo, perguntando com exagerada preocupação: — Será que sua mãe está bem da cabeça? Não me leve a mal, Alfredo, mas não é normal convidar a empregada e o bispo para uma reunião familiar. Convenhamos!

— Linda é quase da família, Ricardo. E para minha mãe, o bispo também, afinal, ela vive praticamente mais na igreja do que em casa.

— Mas é um absurdo!

Tavinho chama a atenção dos dois, irritado, partindo na defesa da mãe.

— Por que vocês estão discutindo? Nem sabem o teor da conversa, o que ela quer com a gente. Não sei porque você está tão preocupado com esta reunião, Ricardo, você não dá a mínima para nada que diga respeito a nossa família. E você, Alfredo, vive enfurnado em si mesmo, parece que vive só de lembranças!

Antes que a discussão tome proporções desagradáveis, Sandoval aproxima-se dos filhos e pede paciência. Chega ainda a tempo de impedir que Letícia tome partido do marido. Logo em seguida, Santa o chama e ele se desdobra em mostrar-se à vontade, coisa que está longe de sentir.

Santa pede que ele chame os demais convidados que estavam aguardando na sala contígua.

O bispo entra na biblioteca com um sorriso de porcelana, cumprimentando a todos com leves acenos de cabeça e uma certa solicitude que desagrada Tavinho. Acomoda-se imediatamente na poltrona indicada por Santa, que o conduz pessoalmente.

Linda estaca na porta, se desculpando por ter sido chamada. Tenta explicar que veio a pedido da patroa, mas Alfredo a impede, levantando-se e tal como fizera a mãe em relação ao bispo, a conduz para uma cadeira próxima à janela.

Ela estremece ao atravessar a sala, a qual não costuma entrar a não ser para organizar alguma faxina. Senta-se rapidamente, acomodando as mãos nos joelhos, como se quisesse dispersar o foco da atenção que sua presença despertava.

Santa examina a todos, como se pretendesse fixar para a eternidade a reação pessoal de cada um. Seus olhos revelam uma luminosidade estranha, talvez um misto de curiosidade e emoção.

— Bem, não é segredo para ninguém que um fato importante, um acontecimento muito tocante aconteceu comigo, nesta casa. Um fato que confidenciei apenas à Linda, e este é um dos motivos pelos quais ela está aqui. Este acontecimento mudou a minha vida e por consequência, mudará a vida de todos nesta casa. Sr. Bispo, meu marido, meus filhos e meu genro, eu quero afirmar para vocês que eu tive a graça de ver a imagem de Nossa Senhora. A visão material da Virgem na minha casa!

Houve um breve silêncio. Em seguida, todos falaram em uníssono, sem se importarem com a dona da casa ou com boas maneiras.

Até mesmo o bispo confidenciava a Sandoval sobre o fato, exercendo uma espécie de argumentação da qual não se sabia se concordava ou não.

Letícia esbravejava, estabanada, dirigindo-se à mãe, pretendo uma explicação convincente. Afinal, por que a Virgem a visitaria, somente a ela e com que objetivo.

Tavinho levantou-se da poltrona e se juntou ao cunhado e ao irmão, agora, unidos de forma definitiva, achando que tudo não passava de uma insanidade de Santa.

Sandoval perturbava-se ante os argumentos do bispo e o pedido de silêncio ao filhos.

Linda não se afastou da cadeira, ao contrário, baixava a cabeça em absoluto desânimo. Se alguém a observasse naquele momento, veria uma lágrima correr-lhe pela face.

Neste momento, Santa munida de extrema energia, gritou abafando todos os ruídos de uma única vez, pedindo silêncio. energia Surpresos pelo grito da mulher, todos pararam, mas logo continuaram o burburinho que imediatamente se transformaria em gritaria, não fosse ela impedir-lhes novamente, com uma batida na mesa com força. Seu olhar os atingia com grande vivacidade, tal a complexidade de sentimentos que a tomavam. Parecia uma leoa rugindo num ato de desespero.

Todos voltaram-se para Santa. Letícia respirou fundo e começou com um “mamãe”, imediatamente interrompido.

— Por favor, Letícia, não fale nada. Não fale nada – e se dirigindo-se aos demais – não digam nada, nenhum de vocês. Só me ouçam. Eu sei que é difícil de acreditar, mas eu posso provar.

Alfredo conciliador, perguntou, quase numa mensagem de súplica: — Como pode provar, mamãe?

Ela pede que sentem-se nos seus lugares. Precisam discutir o assunto sem grande exaltação, sem delírios. Devem ter paciência.

O bispo é o primeiro a obedecer, sentando-se na posição estratégica em que se encontrava. De certa forma, podia observar a impressão dos presentes e os pequenos comentários que faziam um com o outro. Juntou as mãos ao colo, cruzando os dedos como se estivesse em posição de oração e assegurou à anfitriã que a ouviria com toda a atenção e paciência.

Santa agradeceu e quando todos estavam em seus lugares, ela prosseguiu, entusiasmada: — Vou colocar a bússola sobre a mesa. Como vocês devem se lembrar, ela era um objeto que funcionava muito bem, com a orientação da agulha sempre voltando-se para o norte, como ocorre com qualquer uma.

Letícia não se conteve e interrompeu: — E o que isso prova, mamãe?

— Bem, peço que analisem o objeto. A bússola está com a agulha trancada. Nunca mais se mexeu desde que Nossa Senhora indicou o meu norte.

Ricardo levantou-se, curioso. Examinou o objeto, enquanto os demais se empurravam para se aproximarem da mesa. Afirmou, sem nenhum pudor: — Não prova nada, dona Santa. Desculpe, mas a engrenagem pode ter falhado em qualquer momento.

Sandoval saiu em defesa da mulher, mas fez uma ressalva, incomodado por ela ter-se antecipado aos acontecimentos. Falou num tom mais baixo, mas na verdade, todos ouviram o recado.

— Eu lhe disse que deixasse a bússola para depois. Não era o momento.

Ela não respondeu. Dirigiu-se ao bispo, esperançosa: — O que o senhor me diz, Eminência? É uma prova ou não é?

— Há coisas que não se pode afirmar assim, de supetão, dona Santa. Claro que credito todos os meus votos na sua integridade, na sua verdade. Mas acho também, que a sua palavra é muito mais importante do que a bússola. Se Nossa Senhora apareceu em sua casa, não há nada, não há bússola que possa derrubar esta sua convicção. Ao meu ver, a senhora é uma mulher que está em estado de graça!

— Claro, ele tem interesse financeiro nesta verdade – resmunga Letícia, sem importar-se com o olhar severo da mãe. Esta, reinicia o assunto, tentando esclarecer melhor a situação.

— Não me interessa a desconfiança, a dúvida. Eu estou convicta e basta. A Virgem apontou para o norte, sendo assim, eu avaliei a sua proposta.

— Meu Deus, ela fala como se fosse real! Você vai permitir que este absurdo vá em frente, Letícia? Eu sou apenas o genro, mas você é a filha!

— Espere, Ricardo. Vamos ver onde ela vai chegar.

— Que bom, minha filha que você é compreensiva. Eu serei bastante clara nas minhas observações. O norte que a Virgem apontou fica na ilha isolacionista, onde convive um povo estranho, como vocês sabem. Uns adeptos ao monarquismo. Uma comunidade que não precisa, que não quer o meu dinheiro.

— Menos mal – dispara Letícia, ainda tentando descobrir o sentido das palavras da mãe.

Santa finge não ouvi-la e prossegue tranquila: — Pois bem, a minha intenção é usar a minha fortuna na catequese dessas pessoas, na tentativa de mudar-lhes o pensamento, na integração com as comunidades pobres que circundam a região e mostrar-lhes o real mandamento do Senhor.

— Desculpe, mamãe, mas a senhora acha que conseguiria isso com aquele tipo de gente? Se eles não ligam para nada, vão se importar com religião, com catequese? É uma medida meio infantil, sem ofendê-la... – argumenta Alfredo.

—Não se incomode com isso, Alfredo. Há muita coisa a fazer por lá e eu não estarei sozinha, estarei com ela. Mas a Virgem me deu outra proposta e me esclareceu que eu precisava mudar o comportamento dos meus, para poder fazer alguma coisa fora de minha família.

— Como assim, mamãe?

— Muito simples: Vocês precisam mudar o seu comportamento. Ou cada um muda o que desagrada aos olhos de Deus, ou eu assumo a comunidade, passo os meus bens para as comunidades pobres, tento fazer uma mudança na ilha isolacionista.

— Quer dizer que não é uma proposta, mamãe, é uma chantagem.

— Por favor, Letícia, veja como fala com sua mãe – repreende, Sandoval.

— Papai, está muito claro. Ou ela toma conta desta comunidade de malucos ou seja lá o que for, ou nós mudamos o nosso comportamento. Que idiotice é esta?

— Você está absolutamente certa, Letícia – conclui o marido, irônico.

— Cada um de vocês receberá um pequeno envelope onde estarão as medidas que devem tomar para a eventual mudança. Alfredo, Tavinho, você Letícia, Ricardo, Sandoval, Linda e o próprio bispo Martim. Vocês terão seis meses para me provar que realmente mudaram. Se neste período de tempo, eu perceber que um de vocês continua da mesma forma, tudo cairá por terra e eu sairei desta casa para sempre, para viver entre os pobres, os que não aceitam a palavra, ou até mesmo naquele povo estranho que comentamos, afinal, a Virgem apontou para lá. Algum mistério se encontra ali.

O burburinho foi aumentando rapidamente, para se transformar numa balbúrdia geral.

Todos se perguntavam o que teriam que mudar em si próprios, talvez aspectos que nem percebessem ou que evitassem confrontar em suas mentes.

As cartas estavam na mesa e a situação, embora absurda, reunia todos num único objetivo: dissuadir Santa da loucura que estava propondo. Sabiam de antemão que não seria uma empreitada fácil e que ela não parecia disposta a abrir mão de suas convicções.

De repente, um a um foi se afastando do grupo e taciturnos perguntavam a si mesmos, o que estava realmente acontecendo.

Santa pediu a Linda que entregasse os envelopes a cada um dos presentes, com o respectivo nome.

terça-feira, setembro 20, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 4

No terceiro capítulo Santa estava decidida a ajudar o povo da Ilha Libertária, um povo para o qual não há regras, nem governos. É pelo menos o que a cidade comenta. Segundo Santa, a aparição da Virgem, indicando-lhe a bússola para aquela região significa que a sua missão consiste em se alinhar com aquela gente. A seguir o quarto capítulo de nosso folhetim dramático, porque hoje é terça-feira e este é um dos dias de publicação. Espero que curtam mais este capítulo de nossa história.

CAPÍTULO 4

Os carros se alinhavam no jardim.

A promotora desceu, arfante. Olhava em torno, mexia no relógio de pulso, como se quisesse certificar-se da hora. Não queria não, era só nervosismo. O marido a acompanhava, solícito. Seria mais uma daquelas reuniões chatas de família e ele mais uma vez ouviria as baboseiras que se enfileiravam. Não suportava o cunhado metido a artista. Artista mediático, que absurdo. Afinal, o que seria isto? Pediu que a mulher esperasse um momento e voltou ao carro, buscando uma pequena maleta.

Ela perguntou, intrigada: – O que você quer com o netbook, aqui? Por acaso vai jogar paciência, na frente de minha mãe?

— Calma, Letícia, eu só o trouxe, porque posso precisar. Nunca se sabe, quando se precisa conectar ao mundo.

— Você vive no mundo da lua, não sei por que precisa estar conectado.

— Não jogue a sua ansiedade em cima de mim. Afinal, por que a sua mãe marcou esta reunião? Vai ler o testamento?

— Não seja ridículo. Minha mãe anda muito estranha, não sei o que está acontecendo com ela.

— Como sabe? Ela me parecia bem.

Falei com papai. Ele também não sabe o que houve. Ela anda aérea, absorta. – avista o irmão mais novo que se aproxima com uma mochila nas costas – Espere, o Tavinho está chegando. Vamos falar com ele. – e antes que o marido responda, ela corre ao encontro do irmão.

— Parece que todo mundo obedece a velha, não é mesmo? – pergunta ansiosa. Ele sorri, tranquilo.

— Vai ver ela tá precisando da família.

Letícia não disfarça a irritação. – O que mamãe pode querer mais? Há uma semana teve uma festa de aniversário maravilhosa. Vive cercada de empregados. Acho que não precisa de nós.

— Então, por que você veio?

— Por causa de papai. Ele me parecia preocupado.

O marido se aproxima pouco à vontade. Cumprimenta o cunhado e pega o braço de Letícia, conduzindo-a com pressa.

Entram no casarão e são imediatamente recebidos por Linda.

Antes que Linda chame a patroa, Letícia interpela o pai, que desce a escadaria, intrigado.

— Papai, que está acontecendo? Por que esta reunião inesperada?

— Mamãe vai nos fazer uma proposta? – pergunta Tavinho, enquanto se afasta até uma poltrona, soltando a mochila.

— Como assim, proposta? Você sabe de alguma coisa – pergunta a irmã, fortemente interessada.

— Ele está blefando, diz qualquer coisa para ver a nossa cara. É sempre assim, não sogro? – aproveita para alfinetar o cunhado.

Sandoval responde com um ar de preocupação: — Não sei Ricardo. Na verdade, Santa anda estranha, parece esconder alguma coisa muito grave. Não diz nada, não elucida nada. Fala por monossílabos, como se esperasse a hora certa para a revelação.

Letícia antecipa-se, inquieta: – E por que este mistério todo?

— Ah, se eu soubesse lhes diria. Sua mãe ultimamente mudou até o comportamento. Parece sempre introspectiva.

— Como assim?

— Sei lá. Não parece a mesma Santa que conheço há tantos anos. Até com os criados age de modo diferente. Está mais tranquila, mais complacente. Antes não admitia falhas , hoje tolera tudo. E quanto à Linda, está cada dia mais apegada.

Tavinho os interrompe perguntando porque o irmão não veio. Por acaso não foi convidado?

— Não é nada disso, Tavinho. Todos receberam o mesmo convite, quase intimação. Seu irmão tinha um compromisso na empresa, uma reunião com acionistas, se não me engano. É provável que venha mais tarde.

Ricardo serve-se de uma bebida, enquanto Tavinho se espalha na poltrona. Letícia, ao contrário mostra-se mais agitada com a descrição do pai. Afastam-se um pouco dos dois e ela aproveita para inquirir mais sobre a mãe.

— Escute, papai, o senhor tem certeza de que Linda não deixou escapar nada? Se ela sabe do que está acontecendo... O senhor não a interpelou?

Sandoval fala em tom quase confessional, próximo ao ouvido da filha. Talvez se sinta um idiota com o que pretende dizer, mas precisa desabafar.

—Linda fez uma pequena indiscrição. – respirou fundo, taciturno.

—Como assim? O que foi que ela disse?

Ele volta-se para os dois que continuam absortos em suas tarefas. O genro abre o netbook sobre o móvel, onde serviu-se de bebida. Tavinho ouve qualquer coisa nos fones de ouvido.

— Imagine, Letícia, que Linda me contou que – interrompe-se, cético de suas palavras – Santa lhe fez uma confidência.

— Mas do que se trata papai? O senhor está me deixando preocupada!

— Santa lhe disse que viu Nossa Senhora.

Letícia o encara perplexa. Em seguida, suspira, desanimada: — Então é pior do que imaginamos. Está completamente louca.

— Não fale assim de sua mãe Letícia.

— Sei lá, a velha é bem capaz de ver alguma coisa do tipo. Tá sempre na igreja, sempre se confessando, cada vez mais carola.

— Você está falando como Tavinho. Tenha respeito com a sua mãe!

— Mas me diga, papai, o que Linda lhe falou além da .. da tal visão. Como aconteceu a tal coisa?

— Na verdade, ela não foi muito explícita, pelo contrário, se arrependeu de ter me falado.

— O que ela deixou escapar?

— Ela comentou sobre uma tal comunidade, mas ela não soube esclarecer do que se trata. Pelo que pude apreender, sua mãe pretende ajudar uma comunidade pobre.
⁃ ⁃

— Não há novidade nenhuma nisso. Ela sempre ajudou essa gente. Vocês estão superestimando as palavras de mamãe.

— Quem está superestimando as minhas palavras?

Ao som da pergunta os dois se voltam rapidamente para a escada de onde vem a voz. Santa desce lentamente, sorrindo, aparentando uma extrema tranquilidade, como se já esperasse aquela agitação. Tavinho foi o primeiro a abraça-la. Em seguida, Letícia aproximou-se, seguida do marido.

— O que está havendo mamãe?

— É assim que você recebe a sua mãe, Letícia? Por que esta ansiedade?

— Desculpe mamãe, mas esta reunião fora de hora, esta quase convocação. Ficamos preocupados.

— É verdade, dona Santa. A gente pensou que estava doente. – a frase de Ricardo é acompanhada pelo olhar de desconfiança de Letícia. Santa não responde, aproxima-se do filho e pergunta: — E você Tavinho, tá muito ansioso também?

— A senhora sabe, mãe, eu estou terminando o mestrado de design digital. Tô naquela fase de terminar a dissertação, da avaliação do orientador, das inúmeras correções. Tô no desespero, mesmo. Então, nada mais me deixa ansioso, não se preocupe.

— Que bom, até que enfim uma pessoa sensata, porque o que eu tenho para falar não é para assustar ninguém.

— Você pode adiantar alguma coisa?

— Não Letícia, vamos esperar Alfredo.

— Quando ele vai chegar?Aquele lá vive enfurnado naquela empresa, acho que respira computador o dia todo!

Santa faz um pequeno sinal ao marido, pedindo que o acompanhasse até à biblioteca. Lá se daria a reunião com os demais, mas no momento, precisava conversar às sós com ele. Letícia rebelou-se de imediato, com o convite.
_

— Mamãe, por favor, não tenho todo o tempo do mundo. Além disso, tive um dia terrível hoje. A senhora não vai nos fazer penar aqui, esperando?

— Você precisa ter paciência Letícia. É só um minuto. Vou pedir à Linda que telefone ao Alfredo, enquanto falo com seu pai. Por favor, minha filha, por mim. Espere mais um pouco.

Afastam-se os dois, enquanto Letícia aproxima-se de Ricardo, agora, completamente irritada.

Tavinho parece sair do enlevo musical em que se encontrava. Levanta-se do sofá e se encaminha para a dupla. Pergunta à irmã, com o mesmo tom displicente, mas com considerável inquietação.

— Também não tenho o dia todo. O que está acontecendo aqui, afinal?

— Meu cunhado, acho melhor você ir botando esses neurônios pra funcionar. Se a sua mãe está com algum problema de cabeça, a coisa vai ficar preta.

— Ricardo, você não sabe o que está acontecendo. Não diga bobagens.

— E você sabe?

Neste momento, Linda chega na sala e anuncia que Alfredo está chegando.

Todos silenciaram com a presença do irmão mais velho.

Alfredo estava muito pálido. Os olhos injetados, um esboço de cumprimento que mais parecia um pedido de socorro. Deu alguns passos e sentou-se na primeira poltrona que encontrou.

Ninguém se atreveu a perguntar o que lhe acontecera.

Letícia logo imaginou tratar-se das inacabáveis reuniões com os acionistas que o conduziam a um definhamento a ponto de tornar-se um homem alheio à vida cotidiana. Vivia para a empresa e parecia não ter uma vida pessoal. Era um homem solitário, sem se prender a nenhum relacionamento amoroso.

Estava sempre sozinho e quase não se sabia de sua vida particular.

Ele foi primeiro a falar, pedindo um copo de água à Linda, que já se acercava do grupo, avisando que a patroa os esperava na biblioteca.

Eles se olharam e Letícia dirigiu-se à escada, enquanto que os demais a seguiam, com exceção de Alfredo, que entregou o copo à Linda e perguntou, em seguida: — Linda, você sabe o que está acontecendo nesta casa?

— Por favor, Sr. Alfredo, o senhor já vai saber. O que eu sei não vai lhe servir de nada.

— Mas então você sabe.

— Vá, siga os outros. O senhor já vai saber, também.

Alfredo sorriu levemente e bateu com carinho no ombro da empregada. Em seguida, tomou o rumo da biblioteca.

sábado, setembro 17, 2016

CANDIDATO INFLAMADO

Bateram à porta com insistência. Instintivamente, me afastei, sondando outras possibilidades, que não fosse àquela, aterradora, de me deparar com o desconhecido, de me defrontar com a expectativa do outro, que via de regra não é a minha.

Uma visita inesperada, fora de hora, sem qualquer aviso; o pedido de dinheiro por um ser humano alterado na própria concepção de humanidade, onde olhos vermelhos se fundem em olheiras doídas, demonstrando mais humildade do que possui, obedecendo ao ritual produzido pelos desejos involuntários do vício, via de regra, aliado ao ato de roubar.

Talvez um pedido de comida, este sempre melhor aceito, embora menos frequente, quase sempre acompanhado da possibilidade de arrecadação extra, financeira. Ou a venda indecente de revistas religiosas e todo o vocabulário próprio, cujas expressões gastas e repletas de castigos já não atingem a alma de quem apenas aspira seguir a própria fé, ou não. Quando muito, atingem a consideração ao zelo dos vendedores, quando não extrapolam o bom senso e a paciência do comprador.

Uma outra investida em nossa porta, pode ser a entrega da revista ou do jornal, estes com auspiciosos desejos de desvendar o mundo, ou o que dizem dele, desde que não se aceite na sua integridade os conceitos e mensagens subliminares ou pelo menos, se escolha o veículo menos parcial da mídia.

Hoje em dia, a mídia tradicional já nem tem mensagens subliminares, ela entrega de vez a informação manipuladora da ideologia elitista.

Também ocorre a entrega de encartes, publicidade de lojas, de supermercados, de revendedoras de gás e água ou mesmo a visita do carteiro, com a mercadoria esperada e as contas inevitáveis de todo o mês ou avisos de débitos.

Além de todas estas injunções cruéis em nossa vida cotidiana, atualmente há a distribuição sistemática de panfletos.

Panfletos? Sim, panfletos políticos, santinhos, com a figura impudente e maquiada do candidato, via de regra, aquele cujas promessas nunca são avaliadas, quanto mais comprovada a sua eficiência.

São eles que nos chegam a todo o momento, abarrotando a nossa caixa de correspondência, quando não a virtual. Esta, elimina-se rapidamente, mas aquela, material, física e acompanhada da presença humana, é bem mais complicada de eliminar.

Não basta rasgar o papel, consumi-lo no fogo ou arremessá-lo na lata de lixo. É preciso desvendar a porta, abrir a caixa do correio e averiguar entre centenas de papéis inúteis, a maior das inutilidades que é o tal de santinho.

Estão sujando as ruas, conspurcando as calçadas, distribuindo papeis que logo serão atirados em qualquer canto por transeuntes enfarados, entediados e descuidados dos anseios políticos dos futuros candidatos.

Isso, que nem falei nos carros de som e as músicas infames que misturam o nome do candidato a ritimos populares.

Naturalmente, temos os nossos preferidos e é salutar que isto ocorra. Comungam com nossas ideias, ideologias ou conhecimentos da situação política da cidade, do estado e do país. E se não temos, merecemos por certo esta enxurrada de papéis disformes, com caras engessadas em sorrisos falsos e expectativas forçadas.

Mas, tudo o que foi relatado não configura o pior que pode acontecer à tranquilidade de um vivente.

O extremo da crueldade e falta de sorte, acontece quando o candidato se apresenta em nossa porta, via de regra acompanhado de um partidário servil, que acena a cabeça mil vezes concordando com o amigo.

Nestas alturas, o candidato apresenta a pretensa finalidade de resgatar um conhecimento efêmero, (quem sabe um colega do ginásio ou um amigo do irmão do mecânico que certa vez consertou o carro de nossa tia já falecida...), mas que para ele possui a eternidade do universo (pelo menos, agora).

Como refutar suas convicções, ouvir suas promessas, sem transparecer a cara de paisagem.

Afinal, para ele, não interessa a minha opinião contrária ao seu partido que apóia a política entreguista e traiçoeira. Para estes, não há saída melhor.

Não convém argumentar, nem demonstrar qualquer tendência à esquerda. Misturam tudo, como se churrasco levasse pimenta e molho inglês. Fazemos cara de paisagem agora e não votamos ou eles serão a própria paisagem sem vida, mural ruço e mofado, numa câmara cheia de traças e teias de aranha, nos próximos quatro anos.

Que abramos as portas para novos ares, mais adequados a nossas esperanças.

A fotografia da vida de Santa - CAP. 3

No 2º capítulo, Santa entrou na igreja ao lado do marido, observando a família. O filho, artista multimedia estava à esquerda dos demais, um pouco afastado dos parentes. Parecia intrigado com aquela exposição da mãe no dia de seu aniversário. Noutro banco, estavam a filha, uma promotora estadual que mostrava-se muito emocionada e o genro que acenava prudente. O outro filho, muito sisudo, esforçava-se em ajeitar a gravata e naquele momento, esboçar um sorriso. Mas uma outra surpresa foi capaz de desestabilizar Santa por completo, um relicário, um presente doado peloa igreja, através do bispo, que se mostrava sensibilizado. Era uma bússola, que provoca no marido de Santa uma certa indignação. Como hoje é sábado e nosso folhetim dramatico é publicado nas terças-feiras e no sábado, prosseguimos com o 3º capítulo. Divirtam-se!

CAPÍTULO 3

Fonte da ilustração: site www.morgfile.com

Nem dava para perceber, mas o dia seguinte para Santa havia sido por demais estressante. Estivera entretida entre fotografias, álbuns, além de idas às compras vez por outra, para aviar as tarefas de rotina.

Talvez não precisasse disso tudo, pensou consigo. Afinal era uma mulher rica, que dispunha de um número razoável de empregados; havia coisas porém, que se atribuía a necessidade de se ocupar.

De repente, após o almoço, ficou sozinha.

As vozes que ouvia eram de pessoas quase estranhas, apesar de conviverem há bastante tempo. Pessoas que lhe serviam, que traziam chás, ou transmitiam recados. Pessoas que mantinham o seu bem estar.

Mas não se sentia bem.

A quantas andava o marido, não sabia.

Os filhos já voltaram para as suas atividades.

O tempo passava quase insalubre.

Doíam-lhe as pernas. Doía-lhe o corpo.

Deixou que os últimos servidores se afastassem e deitou-se no velho sofá da saleta de leitura, ajeitou as pernas, deixando os tornozelos encostados no tecido, meio que estirados.

Precisava se refazer do cansaço do dia. Um dia sem nada para contar, sem ter o que lembrar.

A festa do dia anterior, as expressões de carinho, de congratulações. Tudo já era passado.

Agora restava o dia depois, aquele que não devia existir. Como uma ressaca, uma vontade de não fazer nada, um tédio acumulado.

Que fazer, se as coisas mudavam assim, tão repentinamente e ela não mais desfrutava o passado recente como coisa presente. Não, ela já não se dava a estes desfrutes.

Ela se repetia na rotina e a dor parecia bem mais intensa e duradoura. Uma dor de saudade, de distância dos seus, de vontade de permanecer junto. Uma dor a mais.

Ligou a tv, trocou várias vezes de canal.

A tragédia da vida cotidiana pintava todas as telas. Nada acrescentava ao espírito. Quando muito, um filme arrastado, ao qual nem tinha paciência de assistir.

Seus pensamentos retomavam a infância, talvez a idade em que fora mais feliz.

As lembranças se acumulavam lentas, ultrapassando uma a outra numa tela distante. Tanto, que os olhos foram pesando e uma leve sonolência tomou conta.

Embora sem abrir os olhos, teve a sensação de ter alguém muito próximo.

Uma voz cálida que lhe dizia coisas difíceis de entender.

Aos poucos, a imagem foi surgindo, cada vez mais nítida e seu coração saltava em êxtase.

Um aroma suave de flores enchia o ar. Uma sensação de alegria genuína. Uma resposta a todas as dores e sofrimentos. Uma passagem para o bem.

Tinha a certeza de que a Virgem Maria estava ali, ao seu lado.

Encolheu-se no sofá, estremecendo. A voz cessou e um objeto tomava forma na mão da Virgem.

Uma bússola, tal como a sua, com a agulha apontando para o norte, indicando algum lugar por detrás das cortinas.

Santa tinha a sensação desfalecer.

A presença de Virgem Maria ali, na sua casa, com uma bússola devia ter um significado muito importante.

Alguma coisa que certamente mudaria a sua vida, que a transformaria numa outra pessoa, ou então, que ratificaria o rumo correto que alcançara na vida.

Mas por que aquela bússola na direção da janela?

O que havia lá, a não ser uma colina que se estendia até uma pequena ilha.

Por que ela surgira assim, daquela maneira, sem os habituais adereços, sem o rosário, sem as flores?

Por que trouxera um objeto que não agregava um símbolo significativo de sua missão?

Por que não aparecera como de hábito, apenas como a Senhora, a Mãe de Jesus, a Mulher que convidava ao conforto da oração ?

Por que a instigava daquela maneira, ela que sempre seguira os mandamentos, que fora uma mulher exemplar, uma benemérita da comunidade?

O que mais queria dela?

Que caminho estranho estava indicando para que seguisse?

Que chamado era aquele?

Por que ela não virara a bússola para outra direção, para o centro, por exemplo ou mesmo para o bairro onde se situava a catedral?

O que havia de tão importante naquele rumo?

Seria então este o caminho indicado pela Virgem? Uma trajetória desconhecida, a qual deveria se determinar a seguir?

Levantou-se num salto e abriu bem os olhos, mas a imagem não estava mais ali. Não havia nada, a não ser uma pequena brisa que balançava as cortinas da janela.

Então, com as pernas trôpegas aproximou-se da janela e olhou ao longe.

O que havia lá, além da colina, além daquela ilha solitária?

Uma região afastada, na qual vivia uma comunidade isolacionista?

Um povo estranho que se dizia sem regras nem leis?

Uns desviados da política, do poder, do governo.

Uns anarquistas, sem eira nem beira, que viviam às custas do que plantavam ou das trocas que faziam?

Santa estremeceu. Anarquistas? Seria este o caminho? Seria para que ela deveria seguir? Seria este o norte mostrado pela Virgem?

Começou a andar pela casa em absoluto desespero. Chamou os empregados.

Poucos apareceram. Não lhes disse nada. Pediu apenas que Linda, uma velha empregada que lhe servia há muitos anos, ficasse. Pediu que sentasse ao seu lado.

— A senhora quer que traga alguma coisa, Dona Santa? Um chá, um café?

— Não, não quero nada Linda. – a voz estava trêmula e uma ansiedade se fixava em cada sílaba – Linda, escute, se eu lhe dissesse que vi Nossa Senhora, você acreditaria?

Linda encarou a patroa, intrigada. Sempre fora religiosa, e já tinha visto muita coisa nessa vida, mas ver Nossa Senhora, assim, do nada, era demais.

Evitou porém, dizer qualquer coisa, mas por certo, concordaria com a patroa, para agradá-la.

— Você acha que estou louca, não é mesmo?

— Não, imagina, Dona Santa. Se a senhora disse, é porque é. Afinal, a senhora é tão religiosa. Nada mais justo que Ela aparecesse para a senhora.

Santa levantou-se e dirigiu-se à janela. Avistou um pássaro pousando suave no telhado vermelho que cobria a sacada lateral. As patas finas, o passo gracioso. Olhou para o alto e se benzeu.

Linda a observava, procurando certificar-se de que dissera a coisa certa. Dona Santa parecia transtornada. Melhor não contrariar.

Santa voltou-se e a interceptou, num ímpeto.

— Isso não importa, agora. Preciso saber de outra coisa.

— Como não importa, dona Santa? – insistiu, sem muita convicção. – É uma coisa maravilhosa! Se ela apareceu, é porque tem um motivo. A senhora lhe deve alguma coisa.

— Este é o problema, Linda, o motivo. Ela me pediu uma coisa extraordinária – afasta-se devagar da janela, aproximando-se da poltrona. Segura o encosto por trás, com as duas maos, dobrando o corpo e fala em tom quase confessional – Linda, ela quer que eu me envolva com aquela gente do lado de lá.

Linda ficou ainda mais confusa. – Aquela gente... do lado de lá...? – pergunta tentando adivinhar, sem saber a quem a patroa se referia.

Santa soltou o encosto do sofá e sentou-se na frente de Linda. Insistiu: — Você sabe sim a quem me refiro. O povo lá da colina, ou melhor, depois da colina. O tal povo da Ilha Libertária, parece que é assim que se autodenominam.

Deus me livre, aquela gente não presta. A Virgem não ia mandar a senhora pra aquelas bandas!

— Mas eu não sei ainda o que ela quer de mim, Linda – acrescenta, angustiada. – Talvez ela queira que eu me embrenhe naquela ilha, que convença aquele povo... ou... – refletindo – talvez eu deva dividir a minha fortuna, minhas jóias, meus bens.

— Como assim, dona Santa?

— Eu sei muito pouco deles, mas dizem que não aceitam dinheiro, que utilizam trocas. Eles são militantes contra o nosso sistema capitalista. Cristo também era assim, como eles. Cristo era um anarquista e queria dividir tudo com todos. E também ele não aceitava governos, nem senhores. – Santa respira fundo, agora a voz soa forte e precisa. Parece fazer um discurso.

Linda a observa sem entender o que realmente pretende. Esforça-se em achar uma frase para participar da conversa.

— Não quero contrariar a senhora, não, dona Santa, mas aquela gente lá não é normal. Como é que um povo pode viver assim, isolado de todo mundo, meu Deus? Pra mim, eles usam é drogas.

— Não é nada disso, Linda. Você não entendeu a proposta, mas eu estou refletindo e aos poucos, estou chegando lá. Quem pode afirmar que eles não estão certos? Talvez seja esta a minha missão, entrar naquela comunidade, participar das suas crenças, ajudá-los. Se eles não usam dinheiro, eu posso ajudar a vida deles com o meu. Dizem inclusive, que são naturalistas, que respeitam a natureza, que vivem com a maior simplicidade.

— Contam por aí, que eles vivem do que plantam – confirma Linda.

Santa levanta-se mais uma vez e caminha pela sala enquanto fala. Quem a visse, além de Linda, diria que se trata de outra pessoa. Uma pessoa que encontrou um norte, um novo objetivo na vida.

– Eles são pessoas simples, que vivem do que plantam, você disse. Pois eu quero viver esta vida simples. Não foi o que Cristo disse aos dois irmãos ricos que lhe perguntaram como alcançariam o céu? Vá, vende tudo o que possuís e dá-o aos pobres. Pois bem, eu me acercarei destes pobres e seguirei as palavras de Jesus. A agulha da bússola apontava para aquela região. Pois lá, edificarei a minha seara.

— Dona Santa, não sei se deveria perguntar, mas os seus filhos vão aceitar isso?

— Claro, Linda. Todos entenderão que a partir de hoje, eu tenho um novo caminho a seguir. Portanto, vou reuni-los o mais breve possível, toda a família, para contar-lhes esta empreitada.

sexta-feira, setembro 16, 2016

Resenha sobre o meu romance “O eclipse de Serguei"

O romance “O eclipse de Serguei” produz a sensação ao leitor de estar incluído num mundo complexo e cheio de veleidades do qual não faz parte. Um mundo da ficção.

Entretanto, com o desenrolar da trama, é possível perceber que o mundo que se apresenta está bem ali, ao alcance da mão, ao folhear das páginas, é o nosso mundo real, onde transitam diversos personagens que podem ser as pessoas com as quais convivemos: o porteiro de nosso prédio, o professor da escola de nossos filhos, a vizinha ao lado.

O eclipse de Serguei é assim ousado, revelando a realidade crua de nossas vidas, nas quais a violência latente campeia devagar, insinuando-se em nossas relações, condutas e preconceitos.

No entanto, esta realidade acontece de uma maneira suave, sem pressa, de tal forma, que nos cativa e remete a um cenário muito peculiar e ao mesmo tempo familiar, inferindo em cada página, o desejo de nos inteirarmos das tramas desenvolvidas.

Há, sem dúvida, a emoção desenhada na cada fala dos personagens, nas descrições mais apuradas das situações apresentadas por personagens complexos e simples, como nós.

Uns, cheios de vida, idealismo e esperança, outros destituídos do senso de humanidade, centrados em seus sentimentos de posse ou convicções retrógradas.

Todos fazem parte da cultura embasada no fundamento falso de vida moderna, da aparência e da vantagem imediata, na qual o homem tem involuído ao invés de crescer.

Assim é Serguei, um homem que acredita fielmente em seu lugar na sociedade, como homem branco, de classe média, acostumado a seguir um código padronizado, há muito registrado em sua mente.

Possui uma vida medíocre, calcada nos conceitos mais primários, alicerçada na vontade imperiosa da mãe e do sentimento de solidão advindo de sua infância perdida.

Dois acontecimentos parecem ter embotado a sua criatividade e a vontade de lutar por si próprio: a perda do esperado fenômeno do eclipse solar e o desaparecimento estranho do pai, um militante de esquerda.

Serguei desempenha atividades monótonas num cartório e através de uma brecha de criatividade, exerce as funções de atendente num turno da biblioteca de um museu, pois considera que aqueles documentos tem uma história para contar.

Fica dividido, quando através da genealogia da noiva, Beatriz, descobre que a mesma é judia.

Influenciado pelas ideias conservadoras da mãe, sempre se dedicara a pensar que sua origem fosse mais nobre do que a da maioria dos mortais.

Para completar, em meio há tanta mediocridade do cartório, desfilam personagens como o funcionário puxa-saco, Anselmo, o próprio chefe, o Sr. Oliveira, do qual Serguei nutre uma admiração pelo poder que exerce e ao mesmo tempo uma certa desconfiança, o misterioso homem do café, que tem o sugestivo nome de Adolf, Dóris, a secretária que desempenha estranhas atividades e que vem a ser sua aliada, chegando a morar em sua casa, detentora de um plano fantástico para a sua liberdade e finalmente, talvez o único personagem íntegro e que possui dotes de inteligência,um negro, fato que deixa Serguei cada vez mais intrigado.

O clima de insatisfação vai crescendo até que ele descobre que Gomes, o funcionário do cartório que se suicidou, era muito parecido com ele.

Finalmente, se depara com a comunidade do cartório, e percebe que atrás daquele grupo bem costurado, há um líder, que pensa como ele, e por isso, considerado o “escolhido”.

Para tanto, chega um momento, em que ele não vê saída, a não ser assumir o seu lado neonazista e por ironia do destino, acaba encontrando no seu caminho perturbado, um homossexual.

Chegou a hora de se tornar um verdadeiro baluarte de sua verdade tantas vezes oprimida.

Torna-se um skinhead, seguindo os preceitos da mãe.

Finalmente, descobre que tal como o eclipse, que se dissipara, o seu passado não passava de uma nuvem de poeira forjada, insossa, padronizada, culminando com a descoberta do verdadeiro delator das atividades clandestinas de seu pai.

A quem seguiria Serguei?

Quem era ele afinal?

e-mail do autor: gcgilson4@gmail.com

terça-feira, setembro 13, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 2

No 1º capítulo de nosso folhetim dramático, conhecemos um pouco a personalidade de Santa, a matriarca da família, uma mulher extremamente religiosa, católica tradicional, que preparava-se para a sua festa de 60 anos na Igreja que conhecia desde criança. Enquanto se encaminha para a missa em sua homenagem, lembra de sua primeira comunhão, das impertinências do irmão, dos cuidados da mãe, da indiferença do pai em alguns momentos, enfim, de sua vida infantil naquele ambiente religioso. Agora, chegando ao momento de entrar na igreja, sentia uma dificuldade, um certo aperto no coração e por isso, fazia-se perguntas inquietantes. Veja a seguir, como hoje é terça-feira e o nosso folhetim é publicado aos sábados e nas terças, o 2º capítulo de nossa eletrizante história. Aqui, aparecerá a família de Santa e suas condutas bem diferentes de suas expectativas. Espero que gostem. Abraços.
CAPÍTULO 2

Quem a conduzia até ali? A sua vaidade? Não, uma mulher temente a Deus, uma dama dos círculos mais nobres da sociedade, uma mulher respeitada por ser o que realmente era. Não podia ceder agora. Não era o momento.

O marido se aproximou, intrigado. Segurou-a novamente pelo braço. Abriu aquele sorriso matreiro, que em algumas vezes a fizera pecar e a convenceu de vez.

— Vamos, vamos sim. Estou nervosa.

— Não é pra menos – antecipou satisfeito.

Os fotógrafos aproveitaram a pausa para mais flashes, quanto mais instantâneos, melhor.

Uma das ajudantes da coleta do ofertório, correu ao seu encontro para informar que logo tocariam a música de entrada, para ela se preparar.

Santa sorriu, obedeceu e deu passos serenos e firmes, ao lado do marido, na direção da porta da igreja.

As luzes se acenderam. Eram focos brilhantes de todos os lados, obedecendo a rigorosa decoração.

Santa pensou que fosse chorar, mas se conteve nas fisionomia dos seus, que se apresentavam nos bancos, um a um, aos quais ultrapassava, no andar cadenciado.

Estavam quase todos juntos, com exceção do filho mais novo, um pouco afastado; um artista multimídia, que observava todo o cenário, talvez engendrando uma futura apresentação de seu trabalho. Era magro, cabelo liso, caído na testa, de um dourado falso, que ocultava vez que outra o olho direito. Vestia-se casual e não parecia muito preocupado com detalhes de pompa.

No banco mais a frente, estava a filha de olhos vermelhos, uma lágrima insistente correndo pela bochecha e embargando a voz, quando se dirigia ao irmão mais velho, que parecia não entender nada do que dizia.

Era alta, elegante, vestida de preto, com uma rosa também preta no decote. Poucos brilhos, poucas joias, mas o suficiente para bordar uma figura deslumbrante.

O marido, em seu lado esquerdo, observava a cena silencioso, cumprindo talvez um compromisso inevitável. Estava vestido de acordo com a ocasião e suava aos borbotões. O cabelo puxado para trás, mostrando entradas proeminentes, um olhar obtuso à deriva e a boca de lábios finos, que ora resmungava o desconforto que sentia. A mulher, pouco o notava.

Santa logo percebeu que os amigos se aglomeravam um pouco atrás dos parentes.

As mulheres bem vestidas em generosos decotes, os homens formatados em ternos comportados. Um que outro se salientava pelo penteado mais ousado ou mesmo por cochichos e sorrisos fora de hora.

Santa por um momento, teve a impressão de ver a mãe, logo seguida pela babá, esgueirando-se pelos bancos e pedindo silêncio com aquele sorriso doce de publicidade. Via-a se enfileirando no corredor, ultrapassando as crianças que se perfilavam e lhes falava com agradável sonoridade. Um sorriso aqui, um muxoxo ali e ela liderava a situação, sempre seguida pela babá, que apalermada no burburinho, às vezes se perdia dela.

Mas foi só por um momento, em seguida se concentrou no altar.

Avistava de longe, o bispo se adiantar, e tinha a impressão que seus olhos estavam vermelhos.

Quem sabe ele também sonhara com aquele momento? Quem sabe ele imaginara a sua igreja cheia de pessoas ilustres, acomodando-se entre os bancos devidamente ornamentados, entre velas que se acendiam à trajetória de Santa e flores que pareciam se abrir, à sua passagem.

Talvez tudo fosse um sonho. Também para ele.

Mas, por certo, ele poderia ver no primeiro banco, um pouco, à esquerda, o prefeito e a mulher, assim, enlaçados, esbanjando afetuosidade e ótimo relacionamento, também um que outro vereador, tanto da situação quanto da oposição e até alguns candidatos, que não dispensavam a oportunidade de aparecerem.

Como não exultar com a igreja tão cheia de celebridades, de notáveis que abrilhantavam o evento!

Agora, ela e o marido estavam cada vez mais próximos da chegada.

Piscou para o filho artista, que estava à esquerda dos demais e ele a olhou intrigado, quem sabe se perguntando que papel fazia a sua mãe, naquele momento. Não sorriu, mas acenou lentamente, levantando uma mão absorta, no ar, que se abandonava em seguida, no colo, embora a mãe já disparasse o olhar para outra direção.

Ela agora dedicava-se ao trio: os dois irmãos e o genro. O filho, sisudo, mas que por ora abria-se num sorriso para a mãe. Ajeitava, sôfrego, a gravata, acondicionando-a de modo a ficar reta, o que parecia fora de seu alcance. Também estava ansioso.

A filha se apoiava no marido, os olhos marejados, quase se transformavam em soluço. Sorriu para a mãe, para não assustá-la. Também porque deveria conter-se: era uma promotora estadual, uma mulher afeita à singularidade da discrição, do cuidado, da sutileza. Devia evitar a emoção.

O genro limitou-se a acenar, prudente.

A música parou e Santa, ao lado do marido, se posicionou no primeiro banco, no local especialmente dedicado a eles, que ficava bem ao centro e próximo ao altar.

Respirou fundo e ouviu as primeiras palavras do bispo, as quais se referiam a ela, antes de iniciar a missa.

No sermão, mais uma vez o seu nome foi lembrado, desta vez, para discorrer toda a sua trajetória de mãe, esposa fiel e digna representante da sociedade, além de benfeitora e participante entusiasmada da comunidade.

De repente, o bispo desceu do púlpito e se aproximou do casal.

Todos os olhares imediatamente se voltaram para os dois. Ele solicitou que o coroinha lhe trouxesse uma pequena caixa.

Pegou-a com cuidado, enquanto o menino se afastava rapidamente para o seu lugar.

Santa aguardava a surpresa, com verdadeira expectativa.

O bispo então, abriu a caixa e retirou uma pequena joia, uma espécie de bússola estilizada, constituída de prata, ouro branco e alguns brilhantes incrustados. A pergunta que emendou à Santa tinha a finalidade maior que a plateia participasse, tal o esforço verbal que produziu, sem utilizar o microfone.

– Então, nossa benemérita amiga, sabe o que é esta pequena joia?

Santa engoliu em seco. Os olhos brilharam profundos, em lágrimas que se espalharam rápidas pela face. Utilizou um lenço que o marido com presteza lhe entregou, e tal como ela, sua expressão era de extrema perplexidade.

Antes mesmo que Santa respondesse, o marido resmungou, apalermado: – Minha avó se revirou no túmulo.

Santa o olhou espantada. O bispo fingiu não ouvir e repetiu a pergunta.

Ela então, respondeu, indecisa.

– Na verdade, não sei bem.

O bispo prosseguiu, entusiasmado: – Mas a comunidade se lembra muito bem, minha amiga. Esta joia foi o simbolo de sua apresentação à igreja.

Ela gostaria de perguntar – como assim ? – se não lembrava do que se tratava. Entretanto, se conteve, quieta.

Evitou qualquer gesto, a não ser o de enxugar as lágrimas.

Tinha consigo que tal objeto devia fazer parte de sua infância, que suscitava lembranças da mãe, da sua família, mas não conseguia identificar a razão de estar nas mãos do bispo.

Também havia aquela observação infeliz do marido. O que ele queria dizer com aquilo?

— Pois bem, sua mãe doou esta pequena relíquia para a igreja. Isso aconteceu no seu batizado, mas quis a Providência, que um padre de nossa comunidade, um velho e diligente capuchinho, guardasse-a com cuidado e ela permaneceu conosco até os dias de hoje. Ele se foi, a joia ficou e a história transcorreu. Este pequeno relicário, tenha a certeza, é o símbolo da sua fé. Por isso, tivemos a feliz e providencial ideia de devolvê-la à senhora, Dona Santa. Acho que esta bússola que indicou o seu caminho para a igreja, que transformou a sua trajetória numa vida santificada, esta bússola, hoje lhe pertence.

– Mas eu não posso aceitá-la.

– Aceite-a sim, porque é sua e de hoje em diante, norteará o restante de sua vida. É um objeto abençoado que só lhe transmitirá paz. Além disso, a senhora é a única pessoa indicada para ter uma bússola em sua vida. Quem sabe, não norteará mais pessoas para que se engajem no caminho do bem? Contamos com a senhora, Dona Santa.

– Santa teve a impressão que a voz do bispo se tornava um pouco rouca e uma emoção mais forte o atingia.

Então, fitou o marido, solicitando a sua intervenção.

Ele estremeceu levemente as pernas, denunciando a total incapacidade de decisão. Fitou-a, meio intrigado e abriu bem os olhos sob as sobrancelhas cerradas. Por um momento, parecia envolvido em terríveis pesadelos, mas subitamente, como se tomado por uma entidade salvadora, abriu-se num sorriso condescendente. https://pixabay.com/pt/users/josuemei72-141099/

Ela aceitou a joia.

Foi assim que Santa participou do momento mais doce de sua existência.

Mas a incongruência de seus pensamentos não demoraram a deixá-la ansiosa.

Uma joia tão importante para a igreja e que possuía um significado para a sua vida, deveria representar uma grande responsabilidade.

Suas mãos, por um momento, começaram a suar e seu coração tomou-se de pequenos saltos, agitando o sangue que corria nas veias.

Que mensagem seria aquela para a sua vida? Que caminhos deveria tomar de agora em diante? E o que o marido pretendia com aquele devaneio? Um mistério que somente o futuro resolveria.

Fonte da ilustração: Josué Miguel Escudero. in site: https://pixabay.com/pt/users/josuemei72-141099/

segunda-feira, setembro 12, 2016

Sonhos que jazem acordados

Fonte da ilustração: waldryano do site www.pixabay.com

Olhar-se no espelho, meio dormindo, assim pela manhã e deparar-se com uma face nova, que não a sua, não é tão surpreendente assim.

Acontece, às vezes, com qualquer mortal. Principalmente, se ele está completamente desiludido de seus sonhos.

Aconteceu com Gustavo, certa vez.

Olhou-se no espelho, demorado. Piscou um olho, a resposta simultânea assegurava que era ele. Mas tinha consigo, que alguma coisa estranha tinha acontecido naquela noite.

Afinal, o mundo desandara a seus pés.

Escrevera mil histórias, publicou algumas, contos, crônicas, artigos em revistas, até um romance, considerado o primogênito bem amado. Esperou afoito que acontecesse, que desabrochasse para as audiências, que o lessem sofregamente.

Nada aconteceu. Nem um comentário, nem uma notícia boa, nem uma página de jornal.

Tudo burocrático, organizado por ele e 10% pela editora.
Como pensava que teria este vigor todo para tocar em frente, conquistar as plateias, dar entrevistas, divulgar o seu produto.

Apenas um filho, acalentado em sonhos durante as viagens que fizera em torno da imaginação claustrófoba.

Nada acontecera. Fizera umas sessões de autógrafos, umas reuniões com os amigos. Vendera alguns livros, mas só isso.

Não foi adiante.

Teve que tomar uma decisão difícil. Botar a boca no trombone, gritar aos quatro ventos, mostrar o que tinha produzido e revelar ao mundo a enganação que sofrera, ingenuamente.

Pensara que seria ajudado pela editora, que teria sua obra fixada no mural dos autores, que veria resenhas nos jornais, em páginas da Internet. Ilusão.

Calar-se. Era a outra atitude.

Aquietar o espírito e conceber a si mesmo que a estrada bifurcava logo ali adiante e que não havia caminhos paralelos.

Foi o que fez ou o que se permitiu fazer.

Deprimiu-se. Foi desta vez, que se olhou no espelho e viu apenas um espectro de si mesmo, um reflexo apagado da própria figura.

Era apenas mais um, na busca de um troféu que não era o seu, de um prêmio que não lhe entregaram, de um reconhecimento que não tivera.

Gustavo ficou assim, se olhando por mais um minuto. Mas foi só.

Afinal, o tempo passava depressa.

Aquele hálito pegajoso no espelho, já não era mais seu. Era do espelho, que bafejava satisfeito na sua cara.

Abandonou-o de vez e disse para si mesmo que recomeçaria mesmo assim.

Não com aquela manifestação de espírito exacerbada, mas com a vontade de expressar-se sob qualquer circunstância, em qualquer suporte, em que pese as dificuldades para fazê-lo.

Quem sabe, num feedback de comentários, sinta novamente o sabor da luta.

sábado, setembro 10, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 1

Santa, a matriarca de uma família rica e respeitada, muito religiosa e benfeitora da comunidade prepara-se para uma ocasião especial, que é o seu aniversário de sessenta anos celebrado por uma missa. Aos poucos a fotografia de sua vida revela que a harmonia da família é apenas um flash da câmera e aos poucos, todos vão mostrando o seu discurso, em cujo tema a hipocrisia humana é flagrada.

Assim começa o nosso folhetim dramático.

A seguir o 1º capítulo (as publicações dos capítulos são feitas aos sábados e terças-feiras)

Fonte da ilustração: MichaelGaida. Do site www.pixbay.com

Nem sempre se tem a convicção de que a vida revela uma atmosfera de conforto ao espírito, mas para Santa, tudo parecia suave e doce, a ponto de transportá-la aos melhores momentos de sua infância.

Enquanto se dirigia para a igreja, lembrava da mãe, sempre zelosa com o vestuário e de seu cuidado obsessivo com o comportamento. Nada lhe escapava: um gesto sorrateiro, um olhar gracioso para o irmão, uma implicância com o véu. A vida andava numa trajetória densa e comportada. De acordo com seus princípios.

Era uma primavera, como a de hoje. Havia aquele friozinho insistente, produzido pelo vento que enrolava papéis na esquina. Talvez o único rodamoinho que se permitisse.

A mãe descera do carro, segurando o vestido, acomodando-o como podia, para manter-se em pé, sem que o mesmo lhe subisse à cabeça. Nesta tarefa quase inglória, conduzia as duas crianças. Não confiava na babá.

Um pouco mais atrás, taciturno, com as mãos coladas aos bolsos, surgia o pai, devagar, com uma aparência não tão comportada e mais acostumada a lugares profanos. A missa não parecia ser o melhor programa, mas ele a acompanhava.

Santa percebia o quanto o pai se aborrecia com aqueles rituais. A mãe, ao contrário, sentia-se renovada e feliz. Era mais do que um dever de cristã: uma alegria genuína.

Ao entrar na igreja, ela separara os irmãos, com a ajuda da babá. Um iria para a esquerda, ao lado dos meninos, e Santa seguia a sua turma que a aguardava próxima ao altar. Era a primeira comunhão, uma solenidade tão esperada.

O irmão se colocara na posição entre dois colegas menores, ajudado pela professora de catecismo. Antes mesmo de qualquer observação da professora, o menino voltou-se para trás, à procura da mãe e gritou com a voz aguda, atingindo o ápice, no leve burburinho: — Mamãe, a minha vela tá torta!

Houve uma risada geral das crianças próximas. A professora o advertiu que ficasse quieto, esclarecendo que aquela envergadura era produzida devido ao calor da mão, mas ele insistiu na reclamação.

Santa olhou para o irmão e escondeu o riso, com a mão em concha. A mãe, apesar da impossibilidade de conseguir outra vela, aproximou-se do menino, reprendendo-o, fazendo-o calar-se com dificuldade.

Quando os ânimos se acalmaram, ela se afastou rapidamente, já que a cerimônia não demoraria a iniciar.

Mãe, pai e babá sentaram-se um pouco atrás, confiantes em que poderiam orientá-los, tanto a um, quanto ao outro, apesar da distância física entre os irmãos e a própria distância entre os bancos.

Santa esvoaçava o véu e o vestido, assumindo uma postura digna, quase santificada, segurando o rosário entre as mãos enluvadas. Santa, que naquela época, era chamada de Santinha pelos pais, olhou de vesgueio, com cuidado, volteando levemente o pescoço. Pôde ver a mãe toda animada, mas o que mais a impressionou foi certificar-se de que havia uma lágrima salgando a face inexpressiva do pai. Uma emoção talvez atingisse aquele coração dissimulado, revelando a alma que evitava mostrar-se.

Santa ou Santinha virou a cabeça feliz. Fitou a cruz e agradeceu emocionada o singular encontro espiritual do pai. Nem se deu conta de que o irmão era chamado à atenção pelo diálogo inesperado com um colega, talvez até contando piadas.

Agora, após tanto tempo, estava ela naquele carro, sentindo a sensação primitiva da primeira comunhão, dos primeiros gestos de afeição à religião, pela sensação quase explícita de se encontrar com Jesus. Estava ela, se encaminhando à rica catedral, não como a criança que explorava um mundo novo, mas a mulher de 60 anos, Dona Santa, que havia enfrentado tantos percalços na vida, mas que se abastecia plenamente dos frutos religiosos, para se manter uma mulher digna.

Além de tudo, era uma benfeitora, participante da Igreja como ministra da comunhão, querida na comunidade e que agora se preparava para enfrentar um dos dias mais felizes de sua vida: a festa de seu aniversário.

Desceu do carro ao lado do marido. Ela estava exuberante, no vestido esvoaçante, que lembrava um pouco aquele da primeira comunhão, descontando as proporções exageradas de massa corporal que adquirira. Mas era assim: um vestido leve, que lhe descia até a canela, num tom verde- água, pernas emolduradas por um sapato de salto preto, que acompanhava a bolsa da mesma cor. As pernas também já não eram as mesmas, os sapatos mal cabiam nos pés, tão inchadas se encontravam. O passo, entretanto era firme tal como o daquela época.

O olhar, embora guarnecido por pequenas bolsas, atenuadas pela maquiagem, ainda apresentava o mesmo brilho e a mesma curiosidade que a abastecia nos momentos de plena euforia.

Quem a observasse ao sair do carro, e havia uma centena de curiosos próximos à catedral, perceberia um penteado simples, no cabelo doirado, preso num coque suave, com contornos quase infantis, que lhe caíam nos olhos pequenas mechas douradas, como uma franja mal comportada. Seus olhos azuis acinzentados davam uma cumplicidade de magia e festa, produzindo uma delicadeza cúmplice com o acontecimento. Era uma mulher jovial e ainda muito bonita.

O marido, ao contrário, apesar da estatura esguia, sua constituição física era um tanto desarmoniosa: os braços imensos para o corpo franzino, as pernas finas, cujas calças balançam ao mínimo movimento, um nariz alongado e olhos sumidos, quase fechados sob sobrancelhas extremamente cerradas. Tinha, porém uma coisa que o salvava: o sorriso largo e amigável. Não se podia dizer o mesmo da voz, que via de regra, balançava os tons mais diminutos, tornando-os estridentes e intoleráveis. Falava aos gritos, e costumava ser prolixo. Entretanto, era um bom homem, não tão chegado às coisas do céu, mas criara uma família com seu temperamento comportado de industrial pequeno, mas bem sucedido.

Os dois se aproximaram da igreja. Por um momento, Santa soltou o seu braço, parou e recuou alguns passos, como se não se atrevesse a entrar naquela igreja da qual participara inúmeras vezes. E o fizera nas situações mais diversas, desde as dedicadas às ajudas comunitárias até em planejamentos onde passava noites a fio, para resolver determinadas pendengas na comunidade. Outras vezes, ficara apenas rezando para que os seus projetos se coadunassem com os do Senhor e a coisa andasse, talvez não como desejasse, mas de acordo com a vontade do Altíssimo.

Entretanto, não estava pronta ainda. Suas pernas tremiam e suas mãos se apegavam ao peito, como se protegessem de alguma coisa desconhecida e inexorável, que fosse arremessá-la para longe e tirá-la do caminho proposto.

sexta-feira, setembro 09, 2016

As divagações e sonhos de Marina

Seus pés pequenos mergulhavam, solitários, na água morna. O sol ardia, escaldante, nas têmporas. Mas aquele minuto de sol significava mais do que tudo que precisava fazer. Quase deslizava na água. A ponta dos dedos observavam mariscos, a areia da praia que afundava na pressão do calcanhar, as pequenas conchas que teciam a rede de espumas que se espalhava. Era lindo e ela sabia disso. Suas pernas finas e ágeis davam, de vez enquanto, pulos, como uma rã em busca de insetos. E assim, passavam a correr, mal pisando a água clara e morna, limpando a planta dos pés, deixando-as mais brancas ainda. Os pés e as pernas eram escuras, como o resto do corpo, mas as plantas eram claras, tão claras que tinha a impressão que as tinham pintado. Agora estavam quase murchas. O sol a pino produzia gotas de suor na testa ampla. Os olhos grandes, argutos, analisavam apenas o que lhe convinha: o conviver com o que a natureza oferecia. E não era pouco. Ali ficou, nos saltos e em cada um, vislumbrava um pensamento rápido de quem sonha. O vestido já molhado não obedecia aos gestos e se ajustava às pernas. Não havia vento, nem frio. Só aquela brisa suave e a sensação boa de estar sozinha. Há tanto tempo permanecia assim no vazio de sua vida, sem ninguém, que estava até acostumada. O vazio, que experimentava agora, era diferente. Era gostoso. Um vazio de pessoas, embora um momento pleno de si mesma.

Ouviu um assobio bem longe de seus ouvidos, mas o suficiente para parar de supetão. De repente, seus pés se acomodaram na areia, afundaram na água morna e se enterravam devagar, pelas canelas finas, quase na altura do joelho, já alcançando o vestido. Vestido que pairava quieto, sobre a água. Uma pequena deusa, que se vestia de santa e olhava ao longe, com cara de menina bondosa. Na verdade, não era tão menina assim. Já tinha os seus 14 anos e apesar de mirrada, parecendo um pouco mais do que 11, já se considerava uma mocinha.

O assobio insistiu, estava mais próximo. Dava arrepio voltar à realidade, assim, de repente. Que bom se pudesse ficar saltitando pela água do mar, chutando as espumas, fazendo rodopios com o corpo. Mas de sonho, já vivera até demais. Melhor aquietar-se no mundo que a esperava. Um mundo desconhecido, do qual não dava conta.

Às vezes, se imaginava branca, de olhos claros. Aliás, quando pensava em si, não tinha uma identidade negra. Quando se olhava no espelho, não era ela, que via. Era uma outra menina, com um olhar diferente, muito mais sério, com uns lábios apertados que não descreviam o que sentia.

E esse assobio que penetrava nos seus ouvidos. Alguém se aproximava, alguém muito familiar que causava esse desassossego. Quando Omar se aproximou, ela já era outra. Seu olhar maduro, os gestos robotizados, lábios apertados.

Omar perguntou, ríspido, se ela não voltaria ao trabalho. “As doceiras lhe esperam. Ou pensa que os doces se vendem, sozinhos, de mão em mão?”

Marina baixou a cabeça, ou melhor enviesou os olhos o mais que pode. Não lhe interessava argumentar sobre a água, nem se desculpar, muito menos encarar aquele homem que não lhe transmitia nenhuma segurança. Afastou-se na sua frente, na direção das cozinhas do velho restaurante. Em pouco tempo, voltaria para a praia, agora não mais deserta, nem agradável aos pés e olhos. Apenas a areia escaldante, o grito rouco da propaganda, o abrir e fechar de cestas, divulgando a mercadoria. E assim, as horas passaram e quando se deu conta, estava em casa, entre centenas de crianças que se embrulhavam como presentes nos cobertores ralos. Ela agora sentia um pouco de frio, mas a memória da água morna e das espumas ainda estavam presentes. Foi com isso que sonhou, pois dormiu num sono só. Só acordou com o chamado do sino habitual para a higiene e o café da manhã. Havia poucas meninas com as quais se relacionava. Uma que outra lhe passava mais confiança. Com estas costumava falar de Omar.

Apesar da raiva que sentia dele, por tratá-la com um certo desprezo, ele lhe despertava alguma coisa lá dentro. Talvez fosse esse o motivo de tanta raiva. Afinal, Omar não era um homem feio: forte, cara dura, braços e pernas musculosas. Tinha um olhar obtuso que não levava a lugar nenhum, a não ser um gestual peculiar de empáfia. Mas não o achava feio. Se não fosse tão mal...pensou.

― Qual é a dele – perguntou uma das meninas – anda sempre atrás de você.

― O negócio dele é vender doces. Estou lá para isso. Tenho que me arranjar.

― Você é quem sabe. Por mim, eu dava um chega pra lá neste cara. Ele marca de cima, parece seu namorado

Marina enrubesceu. Seu coração batucou no peito, agora de raiva da colega. Ela não tinha namorado e quanto a Omar, estava descartado, afinal ele era muito mais velho do que ela, apenas o sócio do restaurante perto da praia, e jamais pensaria nela como namorada. Além disso, diziam que ele andava metido com gente da cidade, isto é, tinha uma mulher que morava no centro. O interesse dele era exclusivamente ganhar dinheiro. Mas vai explicar isso para a colega. Melhor levantar-se rápida do café e arrumar as suas coisas.

As noites passavam sem graça para Marina. Por vezes, pensava numa família que não teve. Afinal quem seria o pai? Talvez alguém muito parecido com Omar, um homem frio, cheio de salamaleques, metido a dono de tudo. A mãe? Desaparecera no mundo, certamente quando ela nascera, pois fora morar naquela Casa de Meninas. E jamais fora escolhida para ser filha de alguém. Ninguém queria uma menina negra, mirrada, de nariz sujo e olhos grandes como ela. Agora, porém, era outra pessoa. Uma pessoa diferente. Talvez não tanto quanto gostaria, mas uma pessoa que pensa consigo, sem se interessar mais com a opinião de ninguém. Afinal, nunca se importaram com ela. A não ser uma ou outra pessoa que a ajudou na Casa ou mesmo no restaurante, do qual vendia os doces na praia. As noites se alongavam, intermináveis. Tinha vontade de sair da Casa de Meninas, por rumo na sua vida. Mas nem tudo acontecia como se imaginava, ou quase nada. Acha que viverá a vida vendendo doces. Até morrer.

Um dia recebeu um livro de um instrutor. Leu algumas paginas, enjoou. Mas vez que outra, abria aquelas folhas amassadas e lia um ou dois parágrafos. Apesar da dificuldade na leitura, sempre gostava do que lia. Talvez algum dia, lesse o livro todo. O instrutor foi embora e deixou como herança o livro. Bem diferente de Omar. Ao contrário deste, o instrutor era um homem educado, generoso, tranquilo. Sabia conversar com facilidade, sabia dar conselhos. Mas dava-os de modo que o receptor nem se desse conta da mensagem. Ou se desse conta apenas do conteúdo, sem saber que estava sendo doutrinado. Era isso que as meninas diziam. “O instrutor de educação física sabia doutrinar a gente, parece um padre”. Mas ele foi embora de uma maneira triste, decepcionante. Até hoje, Marina não acreditava na versão que deram. Não pode ser, ele era um homem tão íntegro, tão verdadeiro. Ele não faria o que disseram. Mas todos juravam que era verdade. Que aquilo aconteceu mesmo.

Marina se lembrava como se fosse hoje. A professora irrompeu na sala, aos soluços. Tratava-se de dona Sarita, uma mulher já passada nos quarenta, que se julgou ofendida pelo assédio do instrutor. Ela fora chamada à atenção pela diretora da Casa e certamente seria demitida, se houvesse participado dos galanteios do instrutor, isto é, se os tivesse aceitado, assim se comentava na época. Foi uma situação desesperadora, porque ela teimava que era inocente, que não tinha aceito aquelas obscenidades em plena sala de aula. Era o que diziam. Ela ficou e ele acabou indo embora.

Marina nunca gostara de dona Sarita. Preferia que o instrutor ficasse. Mas isso, ela não podia decidir.

Fonte da ilustração.: www.pixbay.com

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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