No terceiro capítulo Santa estava decidida a ajudar o povo da Ilha Libertária, um povo para o qual não há regras, nem governos. É pelo menos o que a cidade comenta. Segundo Santa, a aparição da Virgem, indicando-lhe a bússola para aquela região significa que a sua missão consiste em se alinhar com aquela gente. A seguir o quarto capítulo de nosso folhetim dramático, porque hoje é terça-feira e este é um dos dias de publicação. Espero que curtam mais este capítulo de nossa história.
CAPÍTULO 4
Os carros se alinhavam no jardim.
A promotora desceu, arfante. Olhava em torno, mexia no relógio de pulso, como se quisesse certificar-se da hora. Não queria não, era só nervosismo. O marido a acompanhava, solícito. Seria mais uma daquelas reuniões chatas de família e ele mais uma vez ouviria as baboseiras que se enfileiravam. Não suportava o cunhado metido a artista. Artista mediático, que absurdo. Afinal, o que seria isto? Pediu que a mulher esperasse um momento e voltou ao carro, buscando uma pequena maleta.
Ela perguntou, intrigada: – O que você quer com o netbook, aqui? Por acaso vai jogar paciência, na frente de minha mãe?
— Calma, Letícia, eu só o trouxe, porque posso precisar. Nunca se sabe, quando se precisa conectar ao mundo.
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— Você vive no mundo da lua, não sei por que precisa estar conectado.
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— Não jogue a sua ansiedade em cima de mim. Afinal, por que a sua mãe marcou esta reunião? Vai ler o testamento?
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— Não seja ridículo. Minha mãe anda muito estranha, não sei o que está acontecendo com ela.
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— Como sabe? Ela me parecia bem.
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Falei com papai. Ele também não sabe o que houve. Ela anda aérea, absorta. – avista o irmão mais novo que se aproxima com uma mochila nas costas – Espere, o Tavinho está chegando. Vamos falar com ele. – e antes que o marido responda, ela corre ao encontro do irmão.
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— Parece que todo mundo obedece a velha, não é mesmo? – pergunta ansiosa. Ele sorri, tranquilo.
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— Vai ver ela tá precisando da família.
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Letícia não disfarça a irritação. – O que mamãe pode querer mais? Há uma semana teve uma festa de aniversário maravilhosa. Vive cercada de empregados. Acho que não precisa de nós.
— Então, por que você veio?
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— Por causa de papai. Ele me parecia preocupado.
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O marido se aproxima pouco à vontade. Cumprimenta o cunhado e pega o braço de Letícia, conduzindo-a com pressa.
Entram no casarão e são imediatamente recebidos por Linda.
Antes que Linda chame a patroa, Letícia interpela o pai, que desce a escadaria, intrigado.
— Papai, que está acontecendo? Por que esta reunião inesperada?
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— Mamãe vai nos fazer uma proposta? – pergunta Tavinho, enquanto se afasta até uma poltrona, soltando a mochila.
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— Como assim, proposta? Você sabe de alguma coisa – pergunta a irmã, fortemente interessada.
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— Ele está blefando, diz qualquer coisa para ver a nossa cara. É sempre assim, não sogro? – aproveita para alfinetar o cunhado.
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Sandoval responde com um ar de preocupação: — Não sei Ricardo. Na verdade, Santa anda estranha, parece esconder alguma coisa muito grave. Não diz nada, não elucida nada. Fala por monossílabos, como se esperasse a hora certa para a revelação.
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Letícia antecipa-se, inquieta: – E por que este mistério todo?
— Ah, se eu soubesse lhes diria. Sua mãe ultimamente mudou até o comportamento. Parece sempre introspectiva.
— Como assim?
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— Sei lá. Não parece a mesma Santa que conheço há tantos anos. Até com os criados age de modo diferente. Está mais tranquila, mais complacente. Antes não admitia falhas , hoje tolera tudo. E quanto à Linda, está cada dia mais apegada.
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Tavinho os interrompe perguntando porque o irmão não veio. Por acaso não foi convidado?
— Não é nada disso, Tavinho. Todos receberam o mesmo convite, quase intimação. Seu irmão tinha um compromisso na empresa, uma reunião com acionistas, se não me engano. É provável que venha mais tarde.
Ricardo serve-se de uma bebida, enquanto Tavinho se espalha na poltrona. Letícia, ao contrário mostra-se mais agitada com a descrição do pai. Afastam-se um pouco dos dois e ela aproveita para inquirir mais sobre a mãe.
— Escute, papai, o senhor tem certeza de que Linda não deixou escapar nada? Se ela sabe do que está acontecendo... O senhor não a interpelou?
Sandoval fala em tom quase confessional, próximo ao ouvido da filha. Talvez se sinta um idiota com o que pretende dizer, mas precisa desabafar.
—Linda fez uma pequena indiscrição. – respirou fundo, taciturno.
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—Como assim? O que foi que ela disse?
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Ele volta-se para os dois que continuam absortos em suas tarefas. O genro abre o netbook sobre o móvel, onde serviu-se de bebida. Tavinho ouve qualquer coisa nos fones de ouvido.
— Imagine, Letícia, que Linda me contou que – interrompe-se, cético de suas palavras – Santa lhe fez uma confidência.
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— Mas do que se trata papai? O senhor está me deixando preocupada!
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— Santa lhe disse que viu Nossa Senhora.
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Letícia o encara perplexa. Em seguida, suspira, desanimada: — Então é pior do que imaginamos. Está completamente louca.
— Não fale assim de sua mãe Letícia.
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— Sei lá, a velha é bem capaz de ver alguma coisa do tipo. Tá sempre na igreja, sempre se confessando, cada vez mais carola.
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— Você está falando como Tavinho. Tenha respeito com a sua mãe!
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— Mas me diga, papai, o que Linda lhe falou além da .. da tal visão. Como aconteceu a tal coisa?
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— Na verdade, ela não foi muito explícita, pelo contrário, se arrependeu de ter me falado.
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— O que ela deixou escapar?
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— Ela comentou sobre uma tal comunidade, mas ela não soube esclarecer do que se trata. Pelo que pude apreender, sua mãe pretende ajudar uma comunidade pobre.
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— Não há novidade nenhuma nisso. Ela sempre ajudou essa gente.
Vocês estão superestimando as palavras de mamãe.
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— Quem está superestimando as minhas palavras?
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Ao som da pergunta os dois se voltam rapidamente para a escada de onde vem a voz. Santa desce lentamente, sorrindo, aparentando uma extrema tranquilidade, como se já esperasse aquela agitação. Tavinho foi o primeiro a abraça-la. Em seguida, Letícia aproximou-se, seguida do marido.
— O que está havendo mamãe?
— É assim que você recebe a sua mãe, Letícia? Por que esta ansiedade?
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— Desculpe mamãe, mas esta reunião fora de hora, esta quase convocação. Ficamos preocupados.
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— É verdade, dona Santa. A gente pensou que estava doente. – a frase de Ricardo é acompanhada pelo olhar de desconfiança de Letícia. Santa não responde, aproxima-se do filho e pergunta: — E você Tavinho, tá muito ansioso também?
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— A senhora sabe, mãe, eu estou terminando o mestrado de design digital. Tô naquela fase de terminar a dissertação, da avaliação do orientador, das inúmeras correções. Tô no desespero, mesmo. Então, nada mais me deixa ansioso, não se preocupe.
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— Que bom, até que enfim uma pessoa sensata, porque o que eu tenho para falar não é para assustar ninguém.
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— Você pode adiantar alguma coisa?
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— Não Letícia, vamos esperar Alfredo.
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— Quando ele vai chegar?Aquele lá vive enfurnado naquela empresa, acho que respira computador o dia todo!
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Santa faz um pequeno sinal ao marido, pedindo que o acompanhasse até à biblioteca. Lá se daria a reunião com os demais, mas no momento, precisava conversar às sós com ele. Letícia rebelou-se de imediato, com o convite.
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— Mamãe, por favor, não tenho todo o tempo do mundo. Além disso, tive um dia terrível hoje. A senhora não vai nos fazer penar aqui, esperando?
— Você precisa ter paciência Letícia. É só um minuto. Vou pedir à Linda que telefone ao Alfredo, enquanto falo com seu pai. Por favor, minha filha, por mim. Espere mais um pouco.
Afastam-se os dois, enquanto Letícia aproxima-se de Ricardo, agora, completamente irritada.
Tavinho parece sair do enlevo musical em que se encontrava. Levanta-se do sofá e se encaminha para a dupla. Pergunta à irmã, com o mesmo tom displicente, mas com considerável inquietação.
— Também não tenho o dia todo. O que está acontecendo aqui, afinal?
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— Meu cunhado, acho melhor você ir botando esses neurônios pra funcionar. Se a sua mãe está com algum problema de cabeça, a coisa vai ficar preta.
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— Ricardo, você não sabe o que está acontecendo. Não diga bobagens.
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— E você sabe?
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Neste momento, Linda chega na sala e anuncia que Alfredo está chegando.
Todos silenciaram com a presença do irmão mais velho.
Alfredo estava muito pálido. Os olhos injetados, um esboço de cumprimento que mais parecia um pedido de socorro. Deu alguns passos e sentou-se na primeira poltrona que encontrou.
Ninguém se atreveu a perguntar o que lhe acontecera.
Letícia logo imaginou tratar-se das inacabáveis reuniões com os acionistas que o conduziam a um definhamento a ponto de tornar-se um homem alheio à vida cotidiana. Vivia para a empresa e parecia não ter uma vida pessoal. Era um homem solitário, sem se prender a nenhum relacionamento amoroso.
Estava sempre sozinho e quase não se sabia de sua vida particular.
Ele foi primeiro a falar, pedindo um copo de água à Linda, que já se acercava do grupo, avisando que a patroa os esperava na biblioteca.
Eles se olharam e Letícia dirigiu-se à escada, enquanto que os demais a seguiam, com exceção de Alfredo, que entregou o copo à Linda e perguntou, em seguida: — Linda, você sabe o que está acontecendo nesta casa?
— Por favor, Sr. Alfredo, o senhor já vai saber. O que eu sei não vai lhe servir de nada.
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— Mas então você sabe.
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— Vá, siga os outros. O senhor já vai saber, também.
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Alfredo sorriu levemente e bateu com carinho no ombro da empregada. Em seguida, tomou o rumo da biblioteca.
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