terça-feira, janeiro 12, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I I

HOJE TERÇA-FEIRA, 12 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O SEGUNDO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM DERRAMADO. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.

Capítulo 2

_Pois não?

_A senhora é dona Úrsula?

Tive vontade de responder, sim, tal como a matriarca dos Cem anos de solidão do Gabriel Garcia Marques. Mulher de fibra, mesmo cega, se mostrava forte, valente. Mas não disse nada. Talvez nem conheça o livro. As jornalistas de hoje em dia são feitas a martelo, como dizia o meu pai. Ele sempre se queixava dos ajudantes. Detestava gente incompetente.

_Desculpe, não entendi o que disse.

Não disse nada, só pensei. Às vezes, penso demais e falo de menos. Também, nesta solidão em que vivo. Costumo falar com minhas plantas. Certamente, me dão mais atenção do que qualquer jornalista interessada em bisbilhotar. Desculpe, Rita, às vezes sou assim, ingrata.

_E quem é você?

_Meu nome é Susana Medeiros. Nos falamos ao telefone, lembra?

_Sim, mas falei com tantas pessoas. E não a conheço pessoalmente.

_Trabalho no Diário de Hoje.

_Não a esperava. É que vem tanta gente aqui, este apartamento está sempre cheio.

_Que bom. Nós combinamos que seria hoje, mas se tem outro compromisso, trocamos de dia.

_Não, não, por favor, entre.

Nunca pensei que seria assim, dissimulada. Na verdade, nem sei porque agi desta forma, talvez para demonstrar que não sou uma mulher solitária, que a casa vive cheia tal como a de Dona Júlia. Detesto a piedade alheia.

Mando-a sentar na poltrona a minha frente, propositalmente, para que tenha a visão da parede como um todo, repleta de quadros, e certificados. Seu olhar pode desviar-se após a sala e ter uma visão gratificante do piano. Logo vai avistar seus olhos intencionalmente perdidos, sua boca entreaberta, revelando um desejo oculto. Femme fatale. Os homens a adoravam, Rita. As mulheres a invejavam.

Agora percebo que é uma moça bem vestida, elegante, mas tem um quê de humilde que não sei muito bem identificar. Talvez a maquiagem inexpressiva, quase transparente e o cabelo penteado para trás, parecendo uma freira recém saída do convento. A roupa é impecável. Um conjunto de blazer e calça na mesma cor, um tom escuro, me parece verde musgo ou azul petróleo, não sei bem – meus olhos já não são os mesmos! Pouco sorri, mas os dentes são claros e muito alinhados. Entretanto, ela não tem nada de glamour, de sedução, de elegância interior.

Será que sirvo alguma coisa? Talvez um chá, é de bom tom. Daqui, posso me olhar no espelho. Bem estratégica esta minha posição na poltrona. Estou perfeita, apesar de todas fragilidades. Depois do banho, soube me ajeitar com cuidado, você não acha? Meu cabelo está penteado, comprido a mais do que devia e a tinta está escassa. Infelizmente, foi difícil esconder a raiz branca. Além disso, as minhas joias não realçaram nesta blusa branca. Talvez contrastassem com uma cor viva, até mesmo o preto daria melhor efeito. Fiquei tanto tempo escolhendo a roupa e não chegava a nenhuma conclusão...

_Muito bem, Susana, o que você quer saber? Espere, espere. Antes de começar, não gostaria de tomar um chá comigo?

_ Aceitaria um cafezinho mais tarde.

Um cafezinho. Estas jovens de hoje não sabem o que é tomar um chá com elegância, Rita. Não se esmeram em pelo menos parecerem finas. Certamente, quer um cafezinho para acompanhar um cigarro. Mas aqui, no meu apartamento, não admito que fumem. O Jaime fumava tanto, mas naquela época, fumar era um deleite, um prazer, um ato quase imponderável, como a vida ou a morte. Você sabe. A redação era uma névoa só. Uma fumaça que se espalhava e se acumulava. Fazia parte do clã. Um grupo de fumantes. Eu, ao contrário, detestava aquele cheiro de nicotina. Mas não me aborrecia tanto quanto hoje. Talvez pela falta de ar que às vezes, sinto.

_Não se preocupe com isso. Na verdade, gostaria de começar a nossa entrevista. Não se assuste, não é nada formal, apenas uma conversa espontânea, sem qualquer constrangimento. A senhora falará apenas o que lhe for conveniente.

_Jaime era um homem muito querido.

_Se a senhora permitir, eu gravarei a entrevista, ou melhor, a nossa conversa. Ficará mais fácil para eu organizar os textos.

_Você pretende escrever um livro sobre ele?

_Sim, sobre a vida dele. Um grande jornalista que foi de certa forma, esquecido. Que viveu no tempo da repressão, que fez grandes reportagens.

_É verdade.

Não consigo acrescentar nada. Não sei o porquê, mas fiquei nervosa, de repente. Talvez por mexer no passado. Não é bom ficar relembrando o passado para estranhos.

_A senhora ficou pensativa...

_De repente, achei que devia mostrar-lhe o meu apartamento. Quero que saiba mais sobre a minha vida.

Ela me encara de uma maneira estranha. Talvez pense que enlouqueci, mas não quero falar sobre o Jaime agora. De qualquer modo, obedeceu, sorrindo. Ela sabe que precisa agradar-me. E sei que precisa de mim. É um jogo, no qual tentamos compor as peças, dar as cartas sem blefar. Com cuidado, atenção. Uma depende da outra e ela muito mais de mim, do que eu dela. Reparei que tem os olhos claros, nem verdes, nem castanhos, uma cor indefinida.

Ao meu lado, mostro-lhe o piano, falo das inúmeras apresentações que dei, em toda a minha vida, do tempo em que lecionava no conservatório, até de pequenos saraus, que se realizaram em minha casa. Sinto que ela olha para você com sincera curiosidade.

_ É Rita Hayworth?

Apenas fiz um gesto de assentimento. Não quero falar de você. Não deveria ser óbvio para ela. Quase uma invasão de privacidade.

_A senhora sempre morou aqui?

_Não, nós morávamos numa casa imensa, um verdadeiro paraíso: com jardins, árvores, muito espaço. Herança de meu pai, um homem esforçado que se ocupava de marcenaria, sabe? Estava sempre repleta de amigos. Houve um tempo em que alguns se hospedaram em nossa residência. Não lembro muito bem o ano, mas Jaime havia voltado de uma viagem da Serra dos Carajás.

_A serra pelada?

_Exatamente. Mas veja, aqui costumávamos ficar horas e horas olhando o pôr-do-sol. Eu, sentada ao piano e... – não consigo prosseguir. A voz falha, a emoção domina. Pudesse tomar distância do passado e tocar de leve, com cautela, apaziguando a ferida.

_Alguma lembrança má?

_Não, uma lembrança muito boa, mas triste.

_Então, não vamos falar nisso. Quem sabe, voltamos para sala?

_Não, eu quero falar. Não se trata de Jaime.

_Não?

_De Luisinho, meu filho.

Não conto em detalhes, apenas comento: quando ele vinha, as noites eram menores, mais felizes. Costumava ficar ao meu lado, até as luzes da cidade ficarem intensas, visíveis. Vez que outra, me ouvia ao piano ou apenas confidenciava um problema, uma preocupação. Seus silêncios nunca eram interrompidos por mim, pois quando aconteciam, eu sabia que alguma coisa estava errada. Se quisesse, me contava. Não o forçava, mas via de regra, acabava abrindo a alma. Somente eu o entendia. Quando a noite caía, examinávamos com cuidado, a lua. Mas não por muito tempo, porque era a hora de voltar para casa. Às vezes, eu percebia que ele escondia algum sofrimento.

_Seu filho não vem mais?

Não se devia exigir tanto dos velhos. Como explicar que ele morreu há cinco anos? Como revelar a dor que senti e que sinto todo este tempo? Como dizer que não sei o que é dormir à noite, há tanto tempo? Depois de falar-lhe rapidamente, vou preparar o maldito cafezinho.

_Eu a acompanho, se não se importa.

Quem diria? Será que ela está sendo gentil apenas ou teve pena do meu sofrimento? Que seja gentileza, mesmo falsa, é menos doído.

Ela me segue batendo o salto no parquê. Devia ser mais comedida. Pelo menos, se esforçar em ser delicada. Caminhar com nobreza, mal tocando o salto no piso. Quase pairando no ar, tal como você. (Eram outros tempos, Rita). Ao contrário, parece caminhar aos atropelos. Quem sabe está aflita, porque ainda não conseguiu nada de mim. De qualquer maneira, está ao meu lado e já aciona a cafeteira.

_A senhora mora sozinha?

Ela não parece jornalista, só faz pergunta idiota. Mas hoje em dia, todo mundo pensa que sabe tudo. Vai ver que é o caso dela. Não respondo, mudo de assunto.

_Sabe que daqui eu só posso ver os fundos dos outros apartamentos? Diferente da sala de música, que dá para a esquina. Mas é bem divertido. Desta janela, vejo centenas de pombais, gente que entra e sai fazendo nada. Às vezes, só as empregadas aparecem, outras vezes, alguns fumantes. Você fuma?

_Não. Mas a senhora, me parece, gosta muito de ficar na janela. Na frente do apartamento também tem uma bela vista.

_Se você considera uma bela vista, um prédio imenso que encobre o meu sol, com um velho parado na frente da minha janela...

_Um velho?

_Um dia, eu falo sobre ele. Mas sente-se aí. Vamos tomar o café aqui mesmo, na cozinha. Trouxe o gravador?

_Sim, está comigo.

_Imagino que você como todo jornalista é uma pessoa muito curiosa e crítica. Então, o que me diz de pessoas que falam sozinhas? Mas por favor, sem demagogia, não vá me dizer que é coisa de solitário.

_A senhora tem este hábito?

Não sei porque ela tem o dom de me tirar do sério. Sempre responde com outra pergunta. Que pretende dizer, que sou uma velha caquética como o outro aí da frente?

_Pela sua expressão, vi que não gostou muito da minha pergunta. Mas não quis ofendê-la. Para mim, é muito natural. Não se refere a pessoas solitárias apenas. Pessoas sozinhas, não obrigatoriamente solitárias.

_Na verdade, falo com minhas plantas. Tenho centenas de violetas, samambaias, azaleias, inclusive uma mini roseira num vaso. Conheço cada uma, sei o que sentem quando me aproximo, quando as acaricio. Elas conhecem a minha voz. Não pense que sou louca.

_Imagine, isso é fabuloso. A senhora é uma pessoa rica, criativa. Uma pessoa de valores.

_Quando perguntei, não pretendia falar de mim.

_Não?

_Do velho aí da frente. Ele costuma falar sozinho, olhando para a rua. Às vezes, até ri. Nunca me encara e quando o faz, desvia os olhos rapidamente.

_Então, no caso dele, deve ser solidão profunda.

_É verdade... Deve ser. Sabe que uma vez eu o vi pelado?

_E o que a senhora sentiu?

_Nada, ou melhor, nojo! Um velho magrela, descarnado. Parece um espectro, quase um espírito. Você me respeite!

_Desculpe-me dona Úrsula, não me interprete mal.

_Aqui não tem outra interpretação, moça. Não se faça de idiota.

Acho que me calando alguns minutos, permanecendo assim, emburrada, ela perceberá que tem que escolher as palavras quando se referir a mim. Provavelmente, se esforçará em pedir desculpas e tentar me conquistar de alguma forma. Pois que faça, porque não deixarei que inspire qualquer sentimento desavergonhado em relação a mim. Ora, que diabo. Pensar que eu poderia sentir alguma coisa por aquele velho! Ela está brincando comigo!

_Dona Úrsula, nós tomamos café, aliás, maravilhoso. Conversamos sobre várias coisas, mas não falamos ainda sobre seu marido.

_Você já cansou de mim, não é mesmo?

_De modo algum. Acho, inclusive que vamos nos encontrar diversas vezes, talvez irmos a lugares que a senhora costumava ir com o seu marido. Acho que uma boa razão para ficarmos juntas.

_Praticamente não saio de casa. Apenas, para visitar o túmulo do meu filho. Ele morreu há cinco anos. Ele era a vida desta casa. Quando estava aqui, era uma casa cheia. Bastava a sua presença. A mulher, era uma desqualificada, mal-educada. Não servia pra ele.

Depois que ele morreu, tentei me aproximar dela. Acho que deveria perdoar tudo que me fez sofrer. Ela o separou de mim, sabe? Ou melhor, tentou me separar, mas ele foi forte, nunca cedeu. Esteve sempre ao meu lado, embora vivessem às turras.

_Faz muito tempo que isso aconteceu?

_Cinco anos. Cinco anos que não durmo, que caminho por entre estas salas, esperando as horas passarem, para chegar o novo dia e começar o que nunca terminou. A vida pra mim, não tem intervalo, interrupção, não tem começo nem fim. É tudo uma coisa só.

_Talvez a senhora precise de ajuda.

_Preciso de uma luneta potente.

_O que disse?

_Um binóculo, uma luneta. Bobagem minha. Mas tenho pensado muito nisso. Já que passo as noites acordada, nada mais justo do que olhar o mundo.

_Quando todos dormem.

_Mas por hoje chega. Não quero falar mais nada.

_Está bem. Não quero que a senhora se aborreça. Amanhã, voltamos a conversar.

Quando ela se prepara para pegar a bolsa e a pasta de documentos, volto-me para o corredor e vejo o reflexo do velho na vidraça da porta que divide a sala de estar com a do piano. Estou certa de que está na postura habitual, olhando o nada e falando ao mundo. Quase sem querer, chamo-lhe a atenção.

_Espere, o velho está na janela debruçado. Está falando sozinho, e observe que não há nenhuma flor por perto.

_Mas é do outro lado da rua. E a senhora não pode vê-lo daqui, da cozinha.

_Venha comigo. Tenho certeza de que está lá. Eu posso entendê-lo pelos lábios. Vamos tentar descobrir.

Você viu o aconteceu, Rita? Quando fomos à janela, não consegui me concentrar na fisionomia do velho, pelo menos um bom tempo. Percebi que Susana estremeceu. Seus lábios, de súbito ficaram descorados. Quando o seu cotovelo gelado tocou-me o braço, pensei que fosse desmaiar. Talvez uma lembrança, um fato triste do passado tenha lhe despertado um sentimento de fuga, de medo e angústia.

_O que você tem? Está chorando? Se emocionou com a história dele?

_Não sei qual é a história dele.

_Você não ouviu?

_Não ouvi nada. Não sei ler os lábios, dona Úrsula.

_Mas viu o enfermeiro chegando, não viu?

_Por favor, Dona Úrsula. Nós combinamos um outro dia.

_Escute, eu posso ajudá-la. O que aconteceu?

_Nada, não se preocupe.

_Mas você chorou. Se não foi pelo velho...

_É que, por um momento, eu lembrei meu pai. Mas não há nada que se possa fazer.

_Ah, meu Deus, só me faltava esta, uma jornalista com um drama.

_Exatamente por isso, dona Úrsula. Não devo misturar as coisas. Estou aqui, como profissional.

_Mas quem sabe, eu possa ajudá-la. O que aconteceu com ele?

_É uma longa história. Outro dia, lhe conto.

_Se você quiser, eu posso sair com você. Amanhã, vou visitar o túmulo do Luisinho. Você pode vir aqui, me buscar eu falarei sobre Jaime, prometo.

Às vezes, ela me observa como se avaliasse um vaso velho de porcelana. Não sei se quer realmente sair comigo. Se não quiser, que o diga e, se não precisa de minha ajuda, que se ajeite sozinha.

_Está bem, dona Úrsula, a princípio não há nenhum inconveniente. Podemos marcar uma hora?

_Pode ser às três. Você liga meia hora antes, para eu me aprontar. Sabe que também fiquei com pena do velho? Nunca ele falou tanto em toda a sua vida.

Estou assim, pensativa, que embora Susana tenha ido embora, ficou alguma coisa nova aqui dentro. Nem sei explicar o quê, mas uma pequena mudança, um sopro de vida. Por um momento, me senti útil, como se a tranquilidade daquela menina dependesse de minha ajuda, do meu apoio. Sinto que ela precisa de mim. Talvez todos precisemos uns dos outros em algum momento da vida. Pode ser a vez dela. Aquela humildade que surpreendi em sua fisionomia não passava de uma sombra, um sofrimento denso que ela tenta ocultar.

De qualquer maneira, é bom que eu esqueça este assunto e retome as minhas coisas. Quem sabe, desenrolar aquele novelo de lã velha e retomar o meu tricô. É uma boa maneira de passar o tempo e aliviar o peso das horas.

Sempre que o interfone toca, sinto um estremecimento. Acho que ando ansiosa. Será que Susana esqueceu alguma coisa?

_Quem? Susana?

_Sou eu, dona Úrsula. Dulcina.

_Que Dulcina? Não conheço nenhuma Dulcina!

Esta gente tem mania de se apresentar com tanta intimidade, como se eu fosse obrigada a conhecer todo o mundo. Imagine, não estou interessada em comprar nada, nem atender ninguém, muito menos receber santinho de candidato. Já basta a visita que tive hoje. Valeu pelos próximos meses!

_Moça, não sei do que está falando. Deve ter errado de apartamento.

_Só se a senhora me despediu. Sou a empregada! Esqueceu?

_Não esqueci, atrevida. Você fala como uma doente! Vá, vá entrando e não se demore, porque a casa está imunda!

Como o tempo passou depressa, a ponto de esquecer que Dulcina estava a caminho. Pronto. Acabou o meu dia. Agora, precisamos nos separar, Rita. Me fecho na vida.

Não confio nesta Dulcina e não quero intimidades. Acabou. Falo só o que interessa. Se possível, nem penso.

Úrsula abre a porta, afastando-se em seguida para a poltrona mais próxima, onde afunda-se lentamente deixando as pernas na banqueta. Deixa-se ficar absorta, articulando cuidadosamente os nós de um novelo de lã usada. O silêncio pesa, absoluto. Para ela, a cortina caiu e o espetáculo acabou. O auditório esvazia. Sente-se caminhando entre os corredores, ainda aspirando o odor recente das pessoas nas cadeiras. Os ruídos, as vozes que se despedem, as risadas longínquas, o empurrar de móveis nos bastidores. Observa, vez que outra, a parede dos certificados e quadros e fotografias, sem perceber a presença de Dulcina. Mas esta enche um ambiente. Estabanada, voz grave e em tom avantajado, braços carregando sacolas e uma bolsa sintética vermelha. Esbraveja, ofegante.

_O ônibus tava uma loucura. Fiquei presa entre a porta e o cobrador. Quem disse que eu passava pra frente? Parece que o povo todo resolveu sair pra rua, nem é feriado nem dia santo, meu Deus!

Sem obter resposta e talvez sem preocupar-se com isso, dirige-se à cozinha, solta as sacolas sobre a mesa, guarda a bolsa num armário na área de serviço e retorna, vestindo um avental xadrez. O suor envolve a testa, vindo da nuca, fazendo-a apertar os olhos doídos.

_Que bicho lhe mordeu? A senhora tá esquisita! Toda maquiada, parece que vai a uma festa. E estas joias do fundo do baú? Aconteceu alguma coisa? Esquecer que o meu nome é Dulcina, que trabalho nesta casa, é normal.

Ela levanta, dá alguns passos até a o piano e a encara com os olhos sublinhados a lápis, olhar afiado.

_A rotunda precisa de uns ajustes. Não sei se reparou.

_Rotunda? Por que a senhora não fala língua de gente? Já sei, se refere ao mural da sala de troféus.

_Você realmente nunca entenderá Dulcina – e levantando-se, passeia pela sala, deixando a linha de lã seguir-lhe os passos – rotunda é o pano de fundo. O veludo está ruço, branquicento. Dê uma escovada nele, só isso que lhe peço.

Na porta, ainda ouve a censura rotineira de Úrsula.

_Você não faz juz ao nome que tem. Já lhe disse que Dulcina foi uma grande atriz de teatro? Dulcina de Moraes, uma diva.

_Sei também que Ursula foi a mulher do tal Gabriel Marques. Mulher de fibra, cega e valente. Se tivesse que pegar uma condução até aqui, aturar o cheiro de estivador de banho vencido há três dias se esfregando na gente, não ia ter tempo pra essas baboseiras!

Úrsula empurrou o novelo com o pé, fazendo rolar até a poltrona. Voltou a sentar-se e puxou o fio devagar, tentando levantá-lo do piso, mas inevitavelmente o desenrola. Resmunga, baixinho: – esta imprestável. Não serve nem pra me pegar o novelo.

Desiste do novelo, deixando-o sob o pé da poltrona. Esquece-o e abaixa a cabeça, desconfortada. O cheiro de realidade que Dulcina traz da rua a incomoda. Tudo a irrita: desde seus passos descontrolados pela casa até a música que ouve na rádio. Os ruídos de uma vida sem glamour.

fonte da ilustração: Chelli http://mrg.bz/86qRjl

domingo, janeiro 10, 2016

EU E A POLÍTICA

Tenho observado através de conversas com amigos e por comentários das redes sociais, que algumas pessoas que não são engajadas politicamente ( condição a qual não são obrigadas a sê-lo), possuem restrições e até, salvo engano, me parecem temerosas com os que professam o regime de esquerda.

Eu, na verdade, sou praticamente leigo na seara da política, e tudo o que sei faz parte de minha experiência, enquanto cidadão, com os diversos governos que ocuparam o maior cargo da nação, entre vários partidos políticos, entremeado por uma ditadura feroz de direita.

Entretanto, atenuando esta minha ignorância, debrucei-me em diversas leituras, com autores reconhecidos e acho que adquiri, senão uma expertise na ciência política, pelo menos um conhecimento razoável de nossa história e nossas maneiras de conceber a cidadania de um país.

Não sou político no sentido estrito da palavra, nem filiado a nenhum partido, mas tenho minhas percepções do que considero certo ou errado, adequado ou incorreto nas decisões que influenciam a nossa vida.

Deixando este adendo, retomo o tema que abordei no início, sobre à má concepção pelas pessoas quanto ao sistema de esquerda. Talvez, essa deformação do pensamento ocorra em virtude da colossal propaganda política, que ligava os partidos de esquerda exclusivamente ao comunismo praticado na União Soviética, principalmente na época da guerra fria. Claro, que a propaganda dirigida pelos Estados Unidos e plenamente acolhida aqui em nosso País, retratava a esquerda como portal do inferno, onde somente havia governos totalitários, cuja meta principal era  aniquilar as formas de pensar diferente, isso discutindo apenas de uma maneira rasa.

Sendo assim, ocultavam sorrateiramente o perfil antidemocrático da ultra-direita, que grassava nos países detentores do poder no mundo, como a Inglaterra e os Estados Unidos.

O império americano se notabilizava em favorecer o racismo,  na tortura de dissidentes ou espiões presumíveis de outros países, na busca desenfreada pelos comunistas locais, como atores, escritores, filósofos e outros e ainda se interpunha em países ameaçadores econômica ou politicamente (inclusive no Brasil pela CIA e outras intervenções).

Partilhavam da ideologia de que as guerras encomendadas, as invasões aos países, o controle do petróleo e manutenção do status quo do povo americano era a receita adequada para o poderio que pretendia alastrar pelo mundo, não importando a miséria dos outros povos, desde que seu privilégio fosse respeitado.

Eram dois mundos distintos, mas com objetivos até semelhantes, quando segregavam a liberdade, e impunham as suas regras totalitárias.

Tanto a direita totalitária, como a que enfatizou o nazismo, como a esquerda stalinista foram nefastas para a humanidade.

Há porém uma direita que se vale do capitalismo, do estado mínimo, da privatização das empresas estatais, objetivando a geração de riquezas, sem a participação do estado. É uma política excludente, que privilegia a burguesia, os grandes latifundiários, o setor bancário, promovendo a  riqueza na mão de poucos e impedindo a circulação do capital pela população mais pobre. Esta direita privilegia os grandes grupos e como consequência, aumenta a miséria. A sua ideia de  crescimento do país se dá através de um processo de especulação do capital, e quem ganha mais é a elite que possui contas no exterior e que, na maioria das vêzes, como num passado recente, não investia as suas riquezas no país.

De todo modo, não há como negar que  há medidas corretas, desenvolvimentistas, e que segundo a ótica do neoliberalismo, os resultados advém de um processo de ampliação do poder aquisitivo das grandes corporações, respingando na população, em virtude do  progresso de   seus investimentos.

Certamente, podem ter resultados, dos quais evito opinar por desconhecimento econômico, e inclusive acredito, que em certos governos de direita ou centro-direita, possa haver um processo com lisura e competência.
J

á, na esquerda, o foco principal é a valorização da classe mais carente, é o ajustamento das camadas sociais, transformando em iguais aqueles que são desprezados pela sociedade.

É o direito à cidadania, ao poder de compra, ao acesso ao trabalho e aos meios de produção, à inclusão das pessoas em diversos níveis de atividade, tanto no âmbito escolar, quanto na democratização da comunicação, dos direitos humanos e sociais. E tudo acontece a partir de medidas sociais e o aumento do capital, através da distribuição de renda, melhoria do mercado e oportunidade de oferta e procura dos bens.

Numa sociedade de consumo, como a nossa, é normal que os bens sejam distribuídos e que a indústria, o comércio, as empresas, os bancos e a população sejam contemplados.

É obvio que há grandes corporações que injetam grandes fortunas e absorvem o mercado, às vezes de forma abrangente e até agressiva. Mas, o fato de observar que centenas de pessoas saíram da linha de miséria, que a bolsa família é uma oportunidade para ingressarem no mercado de trabalho e dos bens e serviços, que os filhos estão incluídos neste processo, com a obrigação de manterem seus estudos, que os negros são respeitados e que leis de apoio às mulheres são elaboradas para a sua proteção, já capacita o sistema em ser o mais indicado para o país.

Como citei, não sou político, muito menos economista. Sou um escritor, que tenta expor aquilo que o emociona ou angustia, ou mesmo o instiga a exercitar a sua opinião. Utilizo a política, como um cidadão, como todo mundo. Tenho a pecha de ser de esquerda, como se fosse uma cicatriz ferrenha, como um estigma, visto que,  na maioria das vezes, as pessoas acreditam na balela de que os de esquerda tiveram uma lavagem cerebral para serem assim, seres tão radicais (sic).

Na verdade, não sou filiado a nenhum partido político, já votei no pt, no psd e até  no pdt.

Sempre digo que sou orientado à esquerda, mas prioritariamente humanitário, um cara que acredita nas medidas sociais, no acesso da sociedade à leitura, à internet, à universidade, à cultura, e acredito piamente que as cotas sociais e as medidas de ajuda financeira ou alimentar, são transitórias, até que a miséria seja afastada definitivamente de nosso pais.

Posso ser um idealista, mas tenho os pés bem no chão. Sei até onde os governos podem ir.

E se há corrupção, se há roubalheira, se há malfeitos, que sejam punidos, mas punidos de acordo com a justiça do país, sem maniqueísmos, que sigam  um modelo político ditado por uma mídia manipuladora, regida pela ideologia reacionária e econômica.

Em tempo, hoje em dia, as pessoas se manifestam no sentido de que não há mais diferença entre esquerda e direita. Não é verdade. Há conchavos políticos sim que integram estes dois regimes, há acordos com os quais, em sua maioria não aprovo, mas as diferenças são explícitas, a ponto de não haver convergência quando o assunto é a igualdade social. Estes argumentos, na verdade querem desestabilizar os poderes constitucionais do Brasil, através do descrédito da população, colocando em risco a democracia.

Portanto, quando os meus amigos me classificarem de esquerdista, o façam com a parcimônia dos sensatos e educados. Sou antes de tudo, um humanitário, que deseja que o povo de seu país seja o protagonista da história e não apenas um coadjuvante da riqueza de poucos.

sábado, janeiro 09, 2016

SEDUÇÃO

Saiu à noite, pelas vielas escuras. Um impulso indefinido. Talvez sentir-se vivo. Impulso, pulsão, compulsivo. Tudo que milhares de psiquiatras, psicólogos, psicanalistas, até autores de autoajuda já tinham informado. Sabia, entretanto que precisava seguir o ritual. Um sentimento de busca, uma verdade inconteste que latejava no peito e respondia no sexo, o degrau inferior que percorria pensamentos, mas que o impelia a sentir-se alguém.

Talvez fosse um louco, destes que andam às escuras, escondidos nas brumas das árvores dos parques, prontos a atacar ou serem atacados. A praça o seduzia; uma atração tão forte, que não ousava fugir.

Lembrava-lhe brinquedos, dias ensolarados, o avô ao seu lado, o carinho seguro, o passo certo e a certeza de que a vida se resumia na firmeza da mão. Nada os separaria, estariam sempre juntos, ele, ouvindo suas histórias enfadonhas, que o transportavam a sua vida rural: um modelo tão estranho e diferente do seu. Aos dez anos, tinha poucos amigos.

O pai, distante, executivo sempre temeroso da falência aviltada eternamente a seus ouvidos, a mãe envolvida na sua vida social e decadente.

Nada mais restava a não ser o avô, um velho marginalizado pela pouca cultura, narrador de histórias rudes, baseadas no manuseio dos animais, cercado por gente simples como ele, considerada desprezível pelo pai e por toda a família. Também não se importavam com a sua presença, desde que se mantivesse contida no elo familiar do menino. Este aprendera quase tudo sobre cavalos, éguas no cio, vacas prenhes e caças proibidas. Mas o que mais o fascinava não era o enredo inverossímil das histórias, mas o ambiente lúdico da praça, que ficava próxima a sua casa, onde tudo acontecia, onde elas se desenrolavam em narrativas fantásticas. O que o encantava era a intimidade com o avô, naquele espaço de liberdade e paz, onde pombas sobrevoavam, atrevidas, e palhaços produziam publicidade dos circos que chegavam à cidade. Onde percebia nos olhos do avô um certo ar de inocência.

Agora, aos trinta anos, o velho já enterrado há mais de dez, não lhe importavam as luzes da praça, nem o ensolarado dos recantos, nem a mágoa ressentida de se afastar dos meninos mais corajosos, que se arriscavam na gangorra, em pé, ou na roda gigante, da qual se avistava o topo das árvores. Nem a humilhação de se sentir confortável apenas no carrossel, com a certeza de que colocaria os pés em terra firme. Bobagem. Nada disso causava qualquer emoção, apenas lembranças distantes, nos quais a verdade se escondia em seu coração e o refúgio maior era o coração do velho.

Viver pelos becos sombrios, atravessar as vielas sórdidas, envoltas no negrume dos desejos mais recônditos produzia um prazer muito maior do que o gozo que procurava. No entanto, um vazio imenso se instalava em seu peito, que sentia o suor escorrer gelado através das roupas grossas de lã, um frio intenso de bater joelhos, parceiro nestas buscas intermináveis. Via em cada olhar entre as sombras, uma provável fonte de prazer, mais forte do que o medo de ser atacado ou cruelmente humilhado. Em todos, talvez avistasse os meninos que o desprezavam, e por isso, quisesse agradá-los, para se sentir um igual. Ou talvez, as imagens sombrias e disformes traduzissem a rudeza do avô, que mesmo no ensolarado do sol, carregasse com ele, a crueza de um mundo marginalizado, que o atraía intensamente. Olhos passeavam nas sombras agitadas, de rumos diferentes, que se cruzavam a todo momento, que se aproximavam, se tocavam, pedindo sexo. Homens, mulheres, prostitutas, vadios, mendigos, ladrões, traficantes, drogados, policiais, travestis, garotos de programa, todos em fila, à espera de um beijo seu. Uma confirmação que finalmente cederia a sua sina. Coração alerta, as pernas trêmulas, doente de frio.

Noite límpida. Só estrelas no céu e a lua se inseria entre aqueles galhos retorcidos, desenhando imagens absurdas. Ali, próximo, seres que se esgueiravam no ambiente insípido, molhados de sereno e suor, bocas úmidas que procuravam outras bocas e outros corpos. E ele, ali, como um malabarista entre os galhos secos e disformes, meio escondido, obedecendo à hierarquia da sedução, temeroso de ceder também, de se sentir um igual, tão igual que jamais voltasse a ser o que deveria. Alguns sorriam, outros se masturbavam indecentes, na noite vazia de sonhos e ilusões, outros se locupletavam com as moedas que proviam a miséria de seus cofres sem dono. Ladrões de corpos e almas. Ladrões de si mesmos, de suas vidas, seus destinos, desafiados a cada momento no brilhar de facas, no tilintar de faróis oficiais, no disparar de pistolas.

Se pudesse fugir, mas estava preso ao chão, realizando o ritual que ousava repetir.

Foi assim, que percebeu um olhar mais forte, a voz que não se produzia na boca, mas no corpo inteiro, que o deixou tão atraído que pensou que fosse morrer. Até sorriu, quando a beleza se alternou entre a miséria humana e pensou ser um dos seus. Com sonhos, esperanças, ideais, quem sabe, um dia evadir-se daquela vida e se transformar num novo homem, esquecer este universo avesso à realidade dos outros de bem. Então o acompanhou, tropeçando, a voz embargada, o coração aos pulos, a boca estremecida. Excitado. Sua chance. Só uma vez. Um homem como ele não se atreveria jamais a prosseguir naquele caminho. Bastava ser feliz, por alguns momentos e esquecer para sempre. Seguiu-o para uma touceira, desfiou o blusão nos nódulos do tronco, entorpeceu os braços, estendido no alto e, sem ação, enlevou-se em frases bonitas, gestos sedutores que certamente outro homem não faria, pelo menos não um como o avô. Sentiu-se apalpado, invadido. Foi beijado com lascívia e aflição. Suas pernas aconchegavam o sexo vigoroso e deixou-se ficar quieto. Manteve-se como o menino à procura de amigos, frustrando-se por ser covarde, agarrado na figura firme e segura do avô. Não precisava mais dele, porém. Estava seguro, quando o encarou, seduzido na voz sussurrante. Até quando avistou a arma brilhar e pairaram exigências rápidas, como cartão de crédito, dinheiro ou chave do carro. Nada dizia, pois nada acreditava. O torpor impediu a voz. A mãe sorria, afirmando que a página policial não era para a sua família; o pai por sua vez não acreditava na exiguidade da hora, no confronto da conversa, no contra-argumento e por isso se afastava, acenando a cabeça, enfadado.

Apenas o avô, com suas histórias, no ensolarado da praça, contando como se sacrificava o porco e como o sangue jorrava, lavando a mesa improvisada, após gritos dilacerantes de dor. Então, sentiu o sangue correr na mão, oriundo do pescoço, como o porco sacrificado e pensou que encontraria o avô e certamente, seria novamente feliz.

sexta-feira, janeiro 08, 2016

Uma diretora valente

Amlid era diretora de uma escola de periferia. Lutara muito pela escola, nos tempos indefinidos, quando o aproveitamento dos alunos era zero, a liberdade era totalmente cerceada e poucos tinham acesso ao conhecimento. Lutara com seu próprio sangue, dando a sua juventude e energia à causa da aprendizagem.

Muitos eram contra o acolhimento dos alijados da pequena sociedade, inclusive acusando-a de rebelde, de ir contra aos princípios e normas do Estado. Mas ela não se acovardava, ao contrário, procurava os meios de realizar o seu projeto.

Até que o dia da vitória finalmente chegou e a maioria teve acesso aos livros, à merenda escolar, ao lazer, ao conhecimento na íntegra, respeitando a individualidade de cada um, inclusive com acesso à informação digital.

Apesar disso, forças se moviam, esgueirando-se pelos cantos das noites negras da desinformação e ignorância cultural, quando não pelo puro preconceito. Fizeram tudo para excluir de vez a valente Diretora.

Lutaram para tirá-la da escola, vasculharam a sua vida, fizeram inventários e dossiês para encontrar algum fato que a incriminasse, para finalmente expulsá-la. Não interessavam os benefícios aos alunos e à comunidade escolar. Não importavam os inúmeros que haviam ascendido ao patamar do ensino e educação. A única coisa que tinha valor era o fato de ocuparem o mesmo espaço de um grupo que não toleravam. Um grupo que passavam a odiar com todas as forças.

Amlid não recuou. Ao contrário, em cada acusação, esforçava-se em encontrar o culpado e puni-lo como mandava o estatuto da escola. Porém, por mais que seguisse a lei, era achincalhada de todas as maneiras.

Não suportavam uma mulher na liderança, mesmo que numa escola de periferia, onde havia tantos indesejáveis a utilizar os mesmos instrumentos pedagógicos sem a capacidade dos eleitos, segundo seus conceitos retrógrados.

Talvez Amlide tenha errado, quando pensou que sua gestão seria fácil tendo prometido uma aprendizagem segura, sem a intervenção de pedagogias externas. Entretanto, nada pode vencer a maioria da comunidade da escola que exerceu o direito fundamental do cidadão, que é o voto livre e fundamentado. Afinal, entre professores, alunos e pais, ela recebeu como prêmio, a maioria dos votos. Sua eleição foi exemplar.

Entretanto, Amlid terá muito que lutar em 2016, porque as forças conservadoras e retrógradas ainda lutarão muito para retirar o que recebeu de direito pelo povo escolar. Esperemos que a verdade se estabeleça e que a democracia da pequena escola de periferia persista.

E que o mundo não dê marcha à ré.

O cliente na cadeira elétrica

Cortar o cabelo, via de regra não é uma tarefa fácil, principalmente quando os fios no alto da cabeça já são esparsos. É necessário todo um gerenciamento de medidas para que o desenho fique uniforme e a cabeça não destoe do desejo do dono do cabelo.

A bem da verdade, os barbeiros e cabelereiros parecem ter as suas regras já estabelecidas, a ponto de não se preocuparem com as urgências dos clientes. Concordam com os pedidos, fazem uma espécie de desapropriação de qualquer estética ou algum resquício de vaidade. Já tem seu repertório próprio.

Mexem os fios para cá, para lá, invadem a humilde moleira, levando-os para trás e fazendo verdadeiras manobras para encontrarem o estilo ou mesmo para se encontrarem no presumível corte.

Não se importam com o olhar arredio e até apavorado do cliente. Ao contrário, fazem questão de cometer pequenas inconfidências, de preferência que o público presente ouça e até interaja com o pobre coitado que está lá, na cadeira elétrica.

Perguntam de soslaio, como se agissem de uma forma natural e que deveria ser acompanhada pelo interlocutor. A sua tinta é nacional? Como está seco o seu cabelo! Vai precisar de uma boa hidratação!

Mesmo que o cliente faça sinais, senhas, ponha a mão na boca e se recuse a falar, eles continuam implacáveis. Se eu fosse você fazia um upgrade.

Upgrade? Do que ele fala? De informática? Um alongamento na franja seria o ideal. Já que o senhor é um homem vaidoso (quem disse que é vaidoso?), seria bom colocar um bom chumaço aí pra esconder a careca. (Que careca? São apenas entradas um pouco mais abastadas).Na verdade, se tivesse dinheiro ( agora o chama de pobre), o melhor seria fazer um implante. Mas acho que não vale à pena. Vai ver que um dia o senhor resolve parar de pintar o cabelo e fica aquela mancha preta pra toda a vida. Muito artificial.

Depois de uns bons minutos de papo, ele se cala. Suspira depressivo. Resmunga consigo. Mas ainda assim, os demais o escutam.

Com este cabelo, vai ser difícil fazer um bom corte. Quem cortou pela última vez? Ta todo despontado? Caso o cliente afirmasse que teria sido o próprio, seria sempre uma inverdade e não adiantaria nada. Certamente uma desculpa viria em seguida.

Uma falta de cuidado geral, quem sabe o senhor usa uma pomada para reparar os fios, lava com um bom shampoo, usa um creme e deixa secar naturalmente. O secador queima muito as pontas, principalmente cabelo tingido.

Eu finjo ler o jornal, levanto por um segundo os olhos. Tento ser solidário, pois a minha vez vai chegar. Abro a boca para perguntar alguma coisa, mas sou interrompido pelo cabeleiro no mesmo momento.

– O senhor vai lavar e cortar ? – sim, seria o certo, mas no fundo, quem decide é ele –  ah, porque seco do jeito que está, o melhor mesmo seria condicionador com profundidade, uma boa massagem e um tratamento capilar adequado.

Antes que repita que está seco por causa das tintas, melhor insistir em abrandar a situação. Quem sabe falar em shampoo, um tonalizador apenas para minorar a brancura que cobre a cabeça. Não, sem pintura, apenas um shampoo. Não percebeu? Sabe, aquele cinco minutos? Eu também detesto tintas, fica muito artificial em homem, e depois, não fica bem, só para os artistas. A gente fica mais velho e os tons ficam muito diferentes.

Eu, ainda na plateia, deixo o jornal de lado e decido perguntar, enquanto os outros três que estavam quietos nas poltronas defronte do espelho, levantam as cabeças quase em uníssono. – Certos cortes atenuam as entradas, não?
Sem respostas. Impossível concluir ou mesmo começar. O cabelereiro tem a plenitude do poder ditatorial e perene. Insiste no tema: nem pensar! Nada vai disfarçar isso aqui! É tinta da grossa! E o pior, é daquelas compradas em supermercados, as mais vagabundas!

Contra fatos não há argumentos.

quinta-feira, janeiro 07, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA VIDRAÇA - CAPÍTULO I

ESTE É O SEGUNDO FOLHETIM QUE PUBLICAMOS EM CAPÍTULOS. COMO NO ANTERIOR, SERÁ PUBLICADO NAS TERÇAS-FEIRAS E QUINTAS-FEIRAS. HOJE QUINTA-FEIRA, 7 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O 1º CAPÍTULO. ESPERO QUE CURTAM E VOLTEM AO BLOG PARA ACOMPANHAR A SEQUÊNCIA. OBRIGADO.

Capítulo 1

Não sei se me arrumo de jeito. Quero ter as coisas no lugar e os dias passam rápidos que nem me dou conta. Acho que preciso parar e pensar e refletir muito, para não ficar rememorando coisas dormidas, esquecidas, mortas e enterradas.

Por mais que me esforce ao contrário, os fatos acontecem. Pudera amanhecer o dia e nem ver as primeiras cores, os primeiros riscos avermelhados, quando tem sol ou quando o sol vai aparecer daqui a pouco. Que nada. Já nem me animo com estas belezas da natureza. Tudo já é cinza, sem cor.

Afinal, passo as noites olhando pela janela, que nem desconfio se há qualquer diferença no tempo. Se chove, faz frio ou calor, saberei no decorrer do dia. A cabeça pesa, o corpo dói e os anos que se acumulam me entocam nesta casa, me deixam perplexa apenas com minha sisudez, com meu desânimo, com meu pouco fazer.

Quisera sair, nem que fosse para fugir desta janela inexorável como o tempo que corrói meus ossos, que afunila minha garganta, que me deixa rouca, voz cansada e sem vida. Meus cabelos esgadelhados. Se as pessoas me vissem assim, como me olho no espelho, por certo teriam náusea, virariam o rosto, entediados, aflitos.

Meu único filho morreu, faz cinco anos. Ele era lindo, um rapaz forte, homem de grandes paixões, sentimento cru. Morreu de dor, solidão. A mulher vive por aí, esquecida de mim, cobrindo a saudade com flores de plástico. Eu, por meu lado, vou quando posso. Só assim, me afasto de minha janela e visito o seu túmulo.

Recordo os tempos em que era apenas um menino, um garoto franzino, que se vestia de zorro, enfiava a espada nas almofadas e sentia-se um herói. Corria pela sala, batendo joelhos no passo desengonçado, de quem se afirma nas pernas miúdas sem grande presteza.

Já naquela época, eu quase não dormia, não tanto quanto hoje. O Jaime voltava tarde, ficava muito tempo na redação do jornal e Luisinho, cansado, dormia a sono solto. Eu olhava aquele vaivém da barriguinha e pensava comigo que nunca aquele sopro se dissiparia antes do meu. É a lei da vida. É a lógica. Por que não morri antes? Para ficar mais tempo olhando as luzes se apagar pela minha janela e o burburinho da cidade atiçada me empurrar pra dentro?

Na frente de minha janela, mora um velho ranzinza, que costuma falar sozinho. Deve ser mais velho do que eu, porque me parece caquético. Acho até que já caducou. Nunca olha pro meu lado e quando o faz, desvia os olhos depressa, temendo encontrar os meus.

Às vezes, vejo um homem no apartamento. Deve ser o filho, que aparece vez que outra pra ver se ainda vive, o infeliz. Eu não tenho este problema, já que ninguém vem me visitar. A não ser hoje, mas deixa pra lá. Quando chegar a hora, eu vou pensar nisso. Nem sei se vou atender, se vale à pena.

De noite, observo o velho estender a calça na poltrona, guardar os chinelos sob a cama e vestido num pijama démodé, se deita de qualquer jeito, enrolando-se nas cobertas. Acho que passa muito frio. Não fecha a janela, nem puxa as cortinas. Não atina. Faz sempre a mesma coisa. É metódico. Um dia, o vi pelado. Voltava do banho e nem se preocupara em vir com a toalha enrolada. Cena deplorável. Uma bunda magra sustentada em coxas finas, descarnadas. Acho que naquele dia, ou melhor, naquela noite, ele nem vestiu o pijama, porque quando voltei a olhar, já dormia virado pro lado. Cobertas até as orelhas. Será que ele tem ar condicionado? Mesmo assim. Velho sente muito frio. Eu já não sinto. Quer dizer, não sinto tanto, porque me aqueço bem. Meu hobby é fazer estes sapatos de lã que habitualmente uso. Mantenho os pés aquecidos e o restante vem por acréscimo.

Acho que devo me vestir com decência. Tirar estes chinelos de pano, procurar os meus brincos de ouro e todas as jóias que guardo no baú. Um baú de miséria. Se jóia me valesse de alguma coisa! Mas se todos pensassem assim, não existiria o garimpo da serra pelada. Será que ainda existe a serra pelada? Se pudesse, faria uma viagem. Deve ser um lugar muito lindo. O Jaime fez uma reportagem lá. Se eu tenho um sonho nesta minha vida, eu que nem sonho, seria o de ir até a serra pelada. Mas não tenho tempo pra isso, nem dinheiro, nem saúde. Quanto mais, vontade. Não tenho vontade de nada, nem de me vestir.

Estranho, o velho não apareceu na janela. Por estas horas, ele sempre dá uma olhadinha pra baixo. Acho que pra descobrir se os carros aumentaram um pouquinho de tamanho. Velho esquisito!... Olha de soslaio. Não encara. Às vezes, se debruça na janela, como se fosse se atirar na calçada. Qualquer dia desses, cai mesmo. Fraco como é. Mas deixa correr. O velho tem as dele, eu as minhas. Cada um com suas manias.

Hoje ele não apareceu. Será que foi ao médico? Quando velho sai de casa, ou é pra ir ao médico ou pra visitar cemitério. Falar nisso, bom que eu dê jeito nas coisas. Você não acha? Comprar flores, mandar fazer faxina no túmulo do Luisinho. A última vez que fui, tinha chovido muito e se acumulado folhas de tudo que é tipo de árvore. Um lixo só. Vento e chuva só atrapalham os mortos. Quando não os velhos!

Será que ela vem? Deixa eu ver, que dia é hoje? Deve ser amanhã, se não for na segunda...

Bem que podia ser hoje, pra me livrar de vez desta invasão. Sei o que essa gente procura: bisbilhotar a vida dos outros. Até que ponto lhe interessa a história de Jaime?

Vai sentir piedade, dó de uma velha atirada neste apartamento sozinha, que não arreda pé da janela. Uma mulher que um dia foi a esposa do Jaime. Coitada, vive da pobre aposentadoria que ele deixou.

A minha biografia? Deve desconhecer totalmente.

Não sabe, por certo, que fui uma grande pianista, uma mulher acostumada às luzes da ribalta, dos holofotes, ao olhar amoroso dos fãs, ao aplauso arrebatado do público. Mas faz tanto tempo! Não posso me apresentar mal, não acha Rita?

De qualquer forma, o interesse dela deve ser esse: bisbilhotar a minha vida. Detesto esta gente que fica se intrometendo na vida dos outros. Tal como a Dona Júlia, do 403. Não dá ponto sem nó. Vive cercada de gente, marido, filhos, sobrinhos, o diabo a quatro. Não tira a bunda da cadeira, tomando café e falando no telefone, mas não tem dia que não fique espiando da escada pra descobrir alguma novidade no prédio. Um dia ainda jogo aquela zinha escada abaixo.

Meu Deus, por um tempo, fui tão religiosa. Que aconteceu comigo que tenho estes pensamentos de ira? Mas que a Dona Júlia é uma maçante, ah, isso é. Sempre que a Dulcina chega, ela sempre pergunta como estou. Mas não é para saber da minha saúde, se fosse isso realmente, viria até meu apartamento ou ligaria. É pra ver se descobre alguma coisa. Tenho certeza que se ela vir a moça, vai interpelá-la na escada ou no elevador. A curiosidade ainda vai matar aquela lá.

A visita. Deve ser hoje sim. Melhor eu me arrumar para não causar piedade ou nojo. Você não acha Rita? Sabe-se lá como essa gente reage na frente de uma velha como eu.

Já tive meus encantos, fui muito admirada, não só na minha profissão, mas nas relações sociais. O Jaime tinha muito ciúmes, quando eu chamava a atenção dos homens.

Mas que fazer, eu tinha meus predicados. Era alta, a pele muito clara, os cabelos castanhos. E meus olhos eram grandes, expressivos. Hoje, quase não tem vida, escondidos que estão nas papadas que sobraram de minhas pálpebras. Quando o Luisinho se foi, envelheci dez anos. Meus olhos incharam, perderam o brilho. A vida não teve mais sentido. Se havia algum, se foi.

Ah, graças a Deus! O velho apareceu na janela. Você viu? Uhm, está lambendo os lábios. O café foi mais demorado, hoje. Nem deu tempo de passar um guardanapo naquela boca! Que velho desajeitado. Menos mal que está vivo. Não para ninguém naquele apartamento. Este aí, já faz mais de ano.

Olha, como ele não me encara. Acho que tem medo que eu puxe conversa. Pois pra eu abrir a boca, precisa ser alguém muito interessante, ou que me procure, como esta moça que vem aqui hoje: a tal visita. A que vem saber sobre a vida do Jaime. Este velho aí pode se benzer. Eu jamais vou conversar com ele. Nem que o prédio dele incendeie.

Se ele soubesse, que o vi pelado! Ia morrer de vergonha! Ou não, tem jeito de ser confiado. Jamais contaria isso a ele, jamais! Será que é mais cedo do que eu imagino? Quem sabe, ele está na hora correta? Quem sabe, acordou há pouco? Ando meio perdida nos horários. Vou pro meu banho, antes que batam na porta e eu tenha de atender com a boca cheia. Vou fazer o desjejum antes da moça chegar. Não lembro se já tomei café. A noite foi tão longa!

quarta-feira, janeiro 06, 2016

Sobre o romance “Pássaro incauto na janela”

Este romance mostra a solidão de uma idosa que vê, analisa e critica a vida através de sua janela. É viúva de um grande jornalista que lutava contra a repressão nos anos 70. Em sua solidão, costumava conversar com uma fotografia de Rita Hayworth.

Faz um contraponto com a protagonista, uma jornalista que pretende entrevistá-la sobre os envolvimentos do marido. Aos poucos, são revelados os dramas pessoais da jornalista, a partir do conhecimento de que o pai em seus momentos finais pedira que ela desligasse os aparelhos que o mantinham vivo.

Junto a tudo isso, há o homem do prédio da frente, do qual a protagonista tece as suas conjunturas e tudo culmina com o surgimento de sua família, que parece ter interesses especiais em sua vida.

Com o decorrer da história, as duas personagens vão se descobrindo e encontrando novas formas de viver e serem felizes.

É uma história de sentimento, emoção e poesia, na qual as vidas se entrelaçam e se revelam aos poucos.

Como o fiz com “O doce bordado azul”, vou publicar os seus capítulos todas as terças e quintas- feiras.

Na próxima quinta-feira, dia 7/01/2016 apresentarei o primeiro capítulo. Será o nosso folhetim rasgado de 2016.

sábado, dezembro 19, 2015

PENSO NO NATAL

Talvez falasse em consumo, em presentes, em comilança, em festa.

Talvez falasse no Aniversariante, engendrando questões que explicassem, sob um viés capitalista, porque não se preocupam com Ele, ou só o consideram de passagem.

Talvez falasse do Natal, como um feriado para compartilhar com parentes e amigos, a celebração da vida, a tentativa de ser feliz, pelo menos por um dia.

Talvez comentasse tudo isso, mas prefiro pensar no silêncio.

No silêncio daqueles que sofrem em hospitais, dos marginalizados nos depósitos psiquiátricos, dos alienados da vida real, dos que perambulam pelas ruas, dos que bebem da água que sobra nas garrafas sujas, jogadas após uma noite de festa.

Dos amargurados, impedidos de falar, silenciados pelo peso da dor ou do jugo do parceiro.

Das mulheres que descreem da vida, apartadas do seus, nos desvios produzidos por regimes.

Nos pais que não enterraram os filhos, ocultados sob a dor de períodos de trevas, onde a liberdade era apenas um discurso político, e apesar do passar do tempo, revivem a cada Natal, o sorriso do filho, que deixou o quarto intacto.

No silêncio dos meninos de rua, dos palhaços de sinal, dos pedintes, dos incapazes de sonhar. Nos que morrem no trânsito, nos que se suicidam nas estradas, nos que fugiram covardemente da vida.

Nos bêbados andrajosos, nos viciados, perdidos em noites escuras estruturadas em túneis sem fim, bamboleando entre vielas sujas e mal cheirosas, buscando o pouco de vida que lhes foge a cada acesso de prazer.

Nos solitários, nos patéticos frente a monitores, assistindo de longe a vida como cenário abstrato de poucos, tão fugaz e inatingível. Dos que se perdem nos bastidores de softwares, chips, megas, tentando encontrar outros ou a si mesmos, ineptos das ações mais humanas.

Nos velhos solitários, observando a vida da janela, borbulhando a dor nos ossos, na pele flácida, nos olhar aguado, assistindo as imagens em movimento, com alma em apuros; um item do passado, que o mundo esqueceu de conferir.

Penso neles. E também nos que percorrem a vida com calma, vivenciam a dor humana, consolam, ajudam, compartilham. Por tudo isso, penso no Natal. Um Natal que muitos não possuem, ou talvez, não propriamente como imaginamos, mas um Natal que se consagra aos poucos, no dia a dia de suas atribulações, quem sabe, um respaldo para o encontro maior com o Senhor.

sexta-feira, dezembro 18, 2015

Terra do Fogo (Tierra del Fuego)

Não sou especialista em Geografia, mas me incomodava a inclusão de Rio Grande (RS) à Terra do Fogo, por membros do facebook, que moram aqui. Tentei averiguar a razão do aposto e percebi que há uma cidade argentina denominada Rio Grande, e talvez por isso, o engano.

A Terra do Fogo (em espanhol Tierra del Fuego) é um arquipélago na extremidade sul da América do Sul, formado por uma ilha principal (a Ilha Grande da Terra do Fogo, chamada de Tierra del Fuego) e um grupo de ilhas menores. Sua superfície total é de 73.753 km², sendo o arquipélago separado do continente sul-americano pelo estreito de Magalhães. A ponta mais a sul do arquipélago é o Cabo Horn.

É portanto uma província que fica no sul da Argentina. A paisagem, com as montanhas no último trecho da Cordilheira dos Andes de um lado, e as geleiras, por outro, proporcionam uma visão deslumbrante aos visitantes. É repleta de extensas florestas e paisagens diferentes, como pântanos, vales, geleiras, montanhas, além do litoral. Possui também locais de importante conteúdo histórico, cultural e artístico. Também é conhecida como “Deserto da Patagônia.

Em 1881, o território foi dividido entre a Argentina (província da Terra do Fogo) e o Chile ( província da Terra do Fogo). As localidades mais importantes do arquipélago são Ushuaia, Rio Grande, Tolhuin e Porvenir, as três primeiras na parte argentina e a última na chilena.

De acordo com o Censo Nacional de População de 2010, Tierra del Fuego tem 126,998 habitantes em sua três localidades.

Rio Grande está localizada no norte da província de Tierra del Fuego, mais precisamente na margem norte do Rio Grande, onde ele deságua no Oceano Atlântico. O nome da cidade deriva do rio que a atravessa. De acordo com o Censo Nacional de População de 2010, Rio Grande tem 70,042 habitantes (incluindo Tolhuin). É chamada a "Capital Internacional da Truta", onde o turista pode obter objetos exclusivos feitos de pesca, que cativa milhares de visitantes que procuram truta Brown, arco-íris, ribeiro e salmão do Pacífico.

A cidade possui sítios naturais e históricos, bem como uma Reserva da Província da Costa Atlântica. Há também as atrações como a Missão Salesiana, cerca de 12 km ao norte de Rio Grande, Cabo Domingo e monumentos comemorativos aos mortos em Malvinas, que são lugares e se pode aprender a mergulhar na história de Tierra del Fuego.

Nesta cidade, pode-se desfrutar do turismo rural, com serviço de guias pelas regiões, com caminhadas e observação do trabalho rural, além deing si serviços de catering, guias de pesca e alojamento.

Algumas propriedades têm alojamentos de pesca, localizadas em lugares calmos longe de centros urbanos, próximos aos serviços de pesca, que são reconhecidos internacionalmente pela qualidade e tamanho de sua truta. Neste tipo de estadia, ovisitante tem todas as comodidades necessárias para tornar a estadia muito agradável.

A cidade de Tolhuin é o centro urbano localizado entre Ushuaia e Rio Grande. Na língua Selknam, significa “coração”, por isso é chamada de “o coração da ilha”. Tolhuin está localizada em estreita proximidade com a cabeça do Lago Fagnano, no antigo trajeto da Rota Nacional 3. É distante de Ushuaia cerca de 98 km e 105 km de Rio Grande. Em 2012, a comunidade de Tolhuin adquiriu seu status de município, considerando que o Censo Nacional de População de 2010 revelava uma população de 3004 habitantes.

Ushuaia, capital da província, está situado no Canal Beagle e rodeada pela cordilheira Martial, em uma baía de singular beleza protegida pelos ventos. Seu nome vem da língua Yamana e é interpretado como "baía que penetra em direção ao oeste." Departamento de Ushuaia tem uma área de 9.390 km2 (inclui Staten Island e Ilhas Beagle) e uma população de 56.956 habitantes, segundo o Censo Nacional de População de 2010.

A nossa cidade também chamada de Rio Grande, com o aposto de “Noiva do Mar” é uma bela e rica região que se situa no extremo sul do RS, porém bem distante da Terra do Fogo.

fontes: .
www.tierradelfuego.org.ar/v4/_por/index.php?seccion=4

sexta-feira, dezembro 04, 2015

NOITE FELIZ

Noite feliz

Meu avô, lembras, das noites natalinas, à espera daquela consagrada a Ele?

Lembras das carruagens enfeitadas com luzes, em cenários enluarados, onde fogos riscavam céus e nossos olhos encantados nos anjos vestidos de gente?

Lembras das tuas frases curiosas, tuas histórias brilhantes, teu afago em meu peito, enquanto seguravas firme a minha mão, assim, pequena, na tua tão grande? Mão de avô, firme, forte, segura. Lembras? Não, não mais lembras e se o fazes, deve ser de uma maneira diferente em que as lembranças ecoam contagiadas da mesma alegria anterior, sem esta melancolia que me atinge.

Talvez não haja mais passado para ti, nem futuro. Só o presente em que me acompanhas de longe, inspirando-me melodias e poemas, que inventas sem que eu perceba, para que seja feliz.

És bem capaz disso. Teu coração sublime, tua verdade inabalável.

Tuas histórias em que me incluías ao lado de cada herói, de cada passagem vibrante, onde a vida brotasse plena em nossas mãos. E eu ficava ao teu lado, observando o brilho que purificava o teu olhar, iluminando o teu rosto, e por vezes, revelava um ser diáfano na noite.

Noite de estrelas. Noite de luzes e vozes. Noites de alegria e paz.

Quisera te ver ainda, rodeado desses bônus que a vida, às vezes, nos proporciona. Quisera sentir a brisa leve no rosto, percebendo o friozinho gostoso do sereno, mergulhado na expectativa das celebrações, dos corais, dos anjos, das bailarinas, do presépio e do menino Jesus na manjedoura.

Quisera estar ao teu lado, experimentar a brisa suave, o abraço afetuoso e ter a certeza de que o espírito de Natal ainda permanence.

Mas esbarro numa criança, alguém que se apressa para não perder nenhum acontecimento nesta noite e me volto surpreso.

Por um momento, imaginei que estavas aqui, tão próximo, infundindo em minha alma este desejo de ser feliz, de sentir novamente o espírito sublime desta noite. Quem sabe, me inspiravas mesmo e eu compartilho também esta Noite Feliz?

SOU DO CONTRA!

Eu sou contra tudo isso. Não importa que me fritem com azeite quente, nem que me façam ferver no fogo do inferno. Sou assim e não vou mudar. Quero acabar com as alianças dos que se enfileiravam à direita do prato. Há os que se regozijam do mal que nos fazem, mas tenho comigo, que apenas servem ao verdadeiro sabor da vida. Dias e dias os assisti calado, sem dizer nada, esperando que algum dia liberassem. Dei com os burros nágua. Mas agora, não vou voltar atrás, não vou declinar por falsas ameaças. Está na hora da luta.

Comecei agora. Retirei devagar aquelas alianças de barbante que envolviam as linguiças campeiras, uma por uma e coloquei para o outro lado do prato. Da direita, para o outro canto, para incluir na mesma porção, os temíveis pedaços de bacon alinhavados com o queijo gorgonzola e o paozinho de alho.

Todos os embutidos foram se soltando, as linguiças amarradas se transformaram em pequenos blocos de petiscos proibidos, um a um, pendurados em argolas, agora desfeitas e submissas ao sabor.

Também os charques defumados e o próprio toucinho, assim, in natura. Se preciso, irei à justiça, para tê-las transbordando em gordura na panela do feijão! Nada de dietas, de temores infundados de fazerem mal à saúde.

Peguei minha bandeira e fui à luta. Quero também o meu churrasco de volta, com toda a carne vermelha, fumegando na churrasqueira, com a gordura saturada e o lombinho chamuscado revirando-se na grelha! Se preciso vou à guerra! E o sal será a minha arma, aquele sal grosso, inundando de pedregulhos brilhantes a carne ensanguentada, lambida pela chama glamourosa que vez ou outra produz um frisson, num chiado sublime derretendo a gordura!

Que venham as picanhas, as costelas-janela, o lagarto, o vazio. E para completar, as coxinhas de frango com pele borbulhando na brasa, amaciando o bronzeado para os olhos sedentos. Antes, um gole de caipirinha, porque ninguém é de ferrro.

Por fim, para apaziguar os ânimos, a velha e gostosa cerveja, amainando o rescaldo da fornalha! Vamos à luta, companheiros! Impeachment ao chuchu, à couve e ao alface! E não troquemos de lado! A cerveja é sempre mais gostosa quando a tocamos por fora!

quinta-feira, dezembro 03, 2015

RELAÇÕES MÚTUAS

Este conto deu origem ao mote do romance "O eclípse de Serguei"


Aspirou o cheiro de alho no dorso das mãos. Fungou. Deu até alguns espirros. Alergia danada. Insuportável. Olhos vermelhos, como se esmagasse cebolas. Era somente o alho triturado com a faca, sobre a pia branca, branquinha, mármore impecável. Era mármore mesmo? Olhou para os lados, procurando a hora no relógio da copa. Buscou num canto do olho a luz da rua. Suspirou. Tomou água, pensou na vida. Examinou-se no fundo da concha: aqueles olhos grandes, a pele encardida, dedos esbranquiçados. Sentiu um suor forte escorrer pela nuca, molhando o cabelo. Já estava crescido demais, pensou.

Largou o alho moído, aproximou-se da primeira cadeira que encontrou e encostou a bunda, de leve, temendo afundar no vazio.

Por um momento, pensou que morreria. Bobagem. Era só um contratempo, um empacho qualquer no estômago. Ninguém morre por comer demais. E ela tinha sido glutona demais, como dona Matilde costumava chamá-la.

Você é glutona, saco sem fundo! 

Gostava de Dona Matilde, não fosse aquele jeito arrogante de chamá-la de crioula, com todos os e us que tinha direito. Também, pudera, vivera sempre na casa grande, cercada por serviçais, com pensamentos de vanglória em relação aos negros. Não podia pensar diferente, da noite pro dia. Agora viviam as duas, naquela mansão enorme.

A velha estava cada dia mais sozinha e só tinha ela para lhe preencher a vida.

Também para seu lado, a coisa não era diferente. Vivia quase em simbiose com Dona Matilde. Não tinha vida própria, nem namorado, nem pai, nem mãe. Na verdade, nem conhecera o pai. Como quase todos de seu bairro pobre, da cidade pequena onde morava.

Felizmente, melhorara, o mal-estar estava passando devagar, mas podia respirar com mais propriedade. Tinha um pouco de náusea ainda pelo cheiro do alho.

Levantou-se, enfraquecida e voltou para o balcão de pia. Juntou o alho, o sal, e todos os condimentos que encontrou, jogando tudo na panela, fritando no óleo quente. Pouco tempo e o aroma de comida pronta se espalhava pela cozinha. Afastou-se do fogão, rabiscou com o indicador no ar, como se escrevesse o que faria em seguida. Pensou um pouco e abriu a geladeira, entediada. Vasculhou em todos os cantos, pesquisou as carnes e encontrou um pedaço de vitela estirado num prato. Refez consigo os passos da receita.

Aos poucos, o sol foi fugindo da janela, acompanhando o fumegar dos molhos. Vapores daqui, humores dali, enxovalhando o teto e o sol cada vez mais longe, trazendo sombra à pequena área. Quando deu meio-dia, a comida estava servida.

Silêncio absoluto. Ainda uma réstia de luz iluminava a pele de dona Matilde.

A parede de piche do prédio ao lado destacava a sombra que se insurgia pela casa. 

Dona Matilde comia devagar e vez que outra a olhava, intrigada, mas se limitava ao silêncio. Enquanto comia, não gostava de conversas. Além disso, não estava disposta, queria mesmo é ficar com seus botões e pensar o mínimo possível. Melhor era só comer aquela comida sem graça que a crioula fazia. 

Mesmo assim, investigou a limpeza da toalha, o arranjo dos talheres, dos pratos. A beleza da comida. Não estava mal, não. Mas bem que podia comer sozinha. Ter aquela mulher a sua frente, mastigando com aquela avidez, voraz como um animal, sem qualquer elegância, era sempre um tormento.

Mas hoje, especialmente, havia uma estranheza em suas atitudes. Ela não comia do mesmo jeito, beliscava. Que coisa acontecera? É sensato e de bom tom, ficar quieta. Pra que saber o que vai naquela cabeça oca? E se descobrisse, não mudaria em nada, a sua vida. Não teria muito tempo e aquela imprestável tinha toda a vida pela frente. Pois que a vivesse sozinha, com seus problemas comezinhos, sua vida vazia, sua quase inutilidade. 

Melhor encarar de frente aquela vitela, que mesmo macia, ainda machucava a gengiva. Seus dentes, os poucos que restavam, não eram os mesmos e os que substituíam os faltantes, ainda a machucavam. O maxilar derreara, como toda a sua vida. Quase não se olhava no espelho, uma mulher como ela, que vivera o esplendor da beleza, mantinha-se assim, medíocre, quase caquética.

A outra, entretanto, quebrou o silêncio.

Dona Matilde levantou os olhos devagar e pensou: ela sempre me suga os pensamentos. Que quer agora? Falar do espinafre que está à hora da morte? Dizer que a carne demorou a descongelar ou se desculpar porque se passou no sal.

–A senhora não reparou nada?

Reparar? Dona Matilde tinha a percepção de que alguma coisa estranha havia acontecido, não tinha dúvidas. Mas não dava o braço a torcer. 

–Não reparei nada. Se passou no sal?

–Não, fiz tudo com muita calma. Pensei bem em cada ingrediente.

Estava ficando cada dia mais burra! Ainda precisava pensar nos ingredientes.

–Ainda não decorou? Você trabalha pra mim há quanto tempo?

–Mais de quarenta anos!

Dona Matilde expressou um meio sorriso, irônica. Depois voltou-se para o copo de suco e o sorveu, paciente. Não perguntou mais nada. Houve insistência. –Acho que foi uma das melhores comidas que fiz! - Convencida - Mastigou a velha.

–Que disse, Dona Matilde?

Sem levantar a cabeça, perguntou, irritada: você é que queria me dizer alguma coisa. Desembucha, crioula!

A outra, com um frio na espinha, concluiu: pensei que a senhora tinha reparado que eu quase não comi, hoje. A senhora sempre reclama, me chama de glutona.

Silêncio. O sol ficou mais fraco e nem uma réstia de luz iluminou o rosto de Dona Matilde.

–Não é normal.

–Não é normal.

–A senhora também acha?

–Mas é claro que acho. Você come que nem uma desvairada. Mas não se preocupe, foi só hoje. Amanhã, você volta a ser a mesma ensandecida.

–Não passei bem hoje. Me deu tonteira, tremedeira. Suador.

–Idade.

 

sábado, novembro 28, 2015

O destino do homem?

Na fábula, o sapo foi terrivelmente traído pelo nefasto escorpião, ao ser transportado pelo rio.

Ao ser ferroado, o sapo pergunta, na agonia da morte, por que o escorpião fez aquilo, se assim os dois morreriam afogados, visto que somente ele sabia nadar.

O escorpião, então responde que é esta é sua natureza.

Observando as pessoas e fatos, fico me perguntando, o que leva certas pessoas a trair, a enganar, mesmo quando são acarinhadas em suas relações.

E logo, me vem a resposta do escorpião da fábula: é de sua natureza.

Seria este o destino do homem, seria esta a sua natureza, a de trair, de mentir, de enganar despudoradamente, mesmo que não haja qualquer ganho?

sexta-feira, novembro 20, 2015

O elo do encontro

Tento prestar atenção em cores, janelas, platibandas, casas antigas restauradas ou em ruínas. Memórias que ficam ou apenas o passado depojado de sua história. Na história que produzimos, talvez as memórias não resistam ao próximo bafejo da moda.

Ando pelas ruas e observo as casas e pessoas na sala de jantar ocupadas em nascer e morrer, como no Panis Et Circenses dos Mutantes. Na verdade, agora ocupadas em revelar no intervalo, a vida que vaza rápido pelas entranhas das vidraças. Vidraças das redes sociais, das fotos instantâneas, dos vídeos do celular, dos olhares importunos. Um selfie a qualquer custo, na vida ou na morte. Importa é revelar.

Ando pelas ruas e vejo as crianças metidas em carros blindados, perdidas nos tablets, em joguinhos não tão inocentes. Ando pelas ruas e observo os meninos já não tão meninos, fazendo o próprio jogo de polícia e bandido, armando-se na aprendizagem cotidiana de seus pares não tão parceiros assim.

Ando pelas ruas e vejo o mar se abrindo na borrasca de nossos processos escusos de desapropriação da natureza, empresas que descarregam veneno transformando em sarjeta o cenário da vida. Vejo as pessoas jogarem as sobras de seus acúmulos, alterando a lagoa, fechando comportas, produzindo enchentes.

Tento prestar atenção em cores, na natureza, na vida que se insurge nos meandros de nossas escolhas visuais, mas me aquieto e me afasto, temendo que ora acabe a beleza observada.

Passo pelas igrejas, pelas escolas, pelos parques. Não ouço porém, os cânticos acolhedores, nem as preces fervorosas. Nem as crianças em bandos, alcançando esquinas, fazendo dos momentos livres, as brincandeiras do encantamento. Vejo-as correndo para os carros mal estacionados como se temessem a vida. Nem os adolescentes disputando espaços nos caminhos arborizados, conversando e rindo como se a vida se reduzisse em seus desejos. Vejo-os afoitos em suas mochilas e celulares, buscando a última conexão com o mundo.

Quem sabe um dia, as ruas se encham de cores de todos os matizes e os temores, as ameaças, o racismo e todos os ismos que afastam o ser humano desapareçam? Quem sabe o homem se integre à natureza e a defenda, revendo assim os seus princípios? E quem sabe a proximidade com o outro seja o elo principal do encontro?

Foto do artista, poeta e escritor Wilson Fonseca.

sexta-feira, novembro 13, 2015

PRESSÁGIO

Colocou o notebook no colo e abriu, afoito, os e-mails, imaginando que pelo menos, naquela situação,  haveria alguma resposta. Era tardia, sabia, mas tinha de haver, tinha que acreditar, um último fio de esperança. Abriu e o que viu era a rotina de spans de sempre, cadastros mal elaborados, informações do trabalho. E nada dela. Nada de sua conduta marcada pelos tons nevrálgicos das discussões inacabadas.

Nada que valesse à pena esperar. Abriu uma página, duas, assustou-se com o imenso número de pessoas participando de chats àquela hora da tarde. Espiou um, bisbilhotou nas mensagens e arrepiou-se com o que viu. Sentia-se perdido no mundo de ilusões que criara desde a infância.

O barulho ensurdecedor do metrô abafou seus pensamentos. Milhares de pessoas corriam para a plataforma, filas se formavam e ele oculto dentro de si mesmo, olhando para o nada, esperando quem sabe, ser assaltado naquele terminal repleto de mal intencionados.

Um homem o olhava de soslaio, desconfiado, examinando-lhe a roupa, o terno bem cortado, a elegância dos sapatos e principalmente a maleta com o laptop em cima. Resolveu guardá-lo, fechar a maleta e levantar-se do banco. Passear dissimulado pela estação. O metrô afastou-se abarrotado, olhares pelas janelas, gente absorta como ele que olhava o que vinha pela frente, pensamentos do dia.

Ele pressentiu que o homem o seguia com o olhar dissimulado, esgueirando-se entre as pessoas que iam e vinham, em busca de  novas chegadas,  extenuadas com as partidas.

Resolveu afastar-se, tomar a escada rolante que levava até a rua, afinal, não estava à espera de transporte, não se afastaria daquele bairro, não faria nada para mudar as coisas. Olhou para trás na mancha escura de pessoas que preenchiam a escada e viu o homem de moletom vermelho, também no mesmo rumo, olhando para os lados, fingindo outros objetivos, que não escusos, outras direções, que não a dele.

Temeu por sua vida. Mas o que ele faria naquela multidão? Melhor era retirar-se rapidamente, quase correr, alcançar a rua e entrar em qualquer bar ou galeria que encontrasse.

De repente, sentiu uma pancada na cabeça, uma dor forte, as veias latejando, parecendo rios inchados e as forças esvaindo-se, vendo-se rolar escada abaixo, esbarrando em pessoas que o empurravam, acotoveladas, desviando-se surpresas, obtusas em suas fisionomias próximas, olhos arregalados, pavor, torpor.

Um vazio imenso. Um nada no infinito. Ouvia-lhe a voz suave, dando-lhe as boas vindas e vontade de estar perto e não mais sentir dor. Nenhuma.

Viu o homem do moletom vermelho afastar-se depressa, como um fugitivo que deixara uma bomba às ocultas, num lugar público.

Avistava o céu embrumar-se em nuvens rápidas que corriam para o sul, trazendo chuva. Sentia os pingos frios e grossos chocarem-se com seu rosto, mas não podia mexer-se.

Pessoas corriam, abrigando-se. Poucos o olhavam e se o faziam, temiam se envolver. Comentários rápidos acenando ajuda.

Um que outro se aproximava e desistia, mas alertava os demais. Como pombos famintos nos grãos deixados na praça, chegando curiosos, cautelosos e debandando rápido, pressentindo  algum perigo. Outro resistia no banco da praça, incauto, à espreita, esperando retorno.

Até que pediram documentos, mexeram em sua maleta, pesquisaram seus bolsos, reviraram a sua vida. Quem sabe o salvariam? Sentiu um nó na garganta de dó e esperança, de medo e aflição, de angústia e espera.

Mãos fortes o seguraram, o retiraram da calçada de ladrilhos coloridos, picotados, como aqueles adornos de festa junina da escola, bandeirolas, correntes de papel de seda, enfeitando a sala. Uma menina de tranças vermelhas, correndo em sua direção, mostrando exultante os enfeites de papel, os desenhos mal acabados, mas coloridos e acalentados com um 10. Ele, empurrando-a, com força, com raiva e inveja, deixando-a esticada no chão, aos gritos, entre lágrimas que molhavam a cara vermelha de sangue.

Podia ser ela, podia ser Eugênia, ali, ao seu lado, sem despedidas, sem brigas, sem dores, repleta de mensagens reais em sua face macia, seus olhos vivos, brilhantes, examinadores. Olhos de detetive.

Deixaram-no no carro, o frio que sentia não era mais o dos pingos da chuva chocando-se com seu rosto, nem o medo do assalto, nem a expectativa da espera.

Era um frio interior que aumentava a cada minuto.

Sirenes invadindo as ruas, os ouvidos doendo, vozes misturadas, confundindo-lhe a mente.

Por que não se mexia? Por que não tomava o notebook que estava tão perto, por que não procurava novamente as mensagens, não buscava as informações que precisava, não levantava a cabeça para ver além. Além do carro, da sirene, das vozes, do corredor branco, do soro no braço, da cama inerte, do vizinho do quarto. Havia quarto? Vizinho?

Quem estava do seu lado, só divisava sombras, vozes distantes, absurdas, um buraco no estômago dilacerando-lhe as entranhas, um sentimento de onipotência, uma falta de dor, de consciência.

Quando distinguiu uma frase nítida aos ouvidos, pensou que fossem recados do celular. Quem sabe ela atendeu. Quem sabe estava ali, tão próxima, tão intima, esquecida das brigas, dos maus tratos, das vinganças, dos perigos da rua.

Mas não era a voz dela.

Era uma voz estranha, tão distante quanto o tempo em que estava assim, sem se mexer. Referiam-se a ele e precisava ouvir para ter certeza. Desligar os aparelhos. Foi tempo demais. Não tem mais volta. A família não suporta esperar. É muito sofrimento. Esperar o que? Desligar o que?  Suportar o que? Por que vão desligar...?

quinta-feira, novembro 12, 2015

A primavera e a Academia Rio-grandina de Letras

Antes de iniciar a primavera, apavorado com o inverno, ousei fazer alguns versos o que chamei de poesia. Utilizando a mulher como a metáfora de primavera, eu a suplicava junto a mim, ouriçando-me os cabelos, guerreira e forte e superando o inverno que não acabava.

Hoje, porém, tive a primavera bem próxima. E não foram os ventos que a trouxeram, talvez a temperatura suave acalentada pelo sol esparso sobre as árvores. Pois revelou-se com o encontro. Um encontro inédito e espontâneo, que se deu, a partir da sessão da Academia que se desenvolveu sob as árvores da praça Xavier, na falta da chave da biblioteca.

Ali, nos expomos em nossas atitudes mais despojadas, sem didatismos ou preocupações formais. A ordem foi invertida, a lírica, a literatura e a harmonia dos textos chegou antes das atividades administrativas.

Até mesmo o tradicional chá com salgadinhos e doces, alternou-se com a poesia.

Senti o bafejo da primavera, bem perto, junto com meus colegas, perfazendo um círculo em que a alegria espontânea dava lugar a sisudez das discussões. Parecíamos mais livres e dispostos a interagir uns com os outros, mesmo ante os olhos desavisados que vez ou outra nos observavam intrigados.

Como um bando de crianças, nos divertíamos com o encontro, um piquenique da 3å infância, como nos intitulara o Gerundo. Cada um manifestava a sua personalidade, e eu, como de hábito, observava as nuances de cada um.

Uns brejeiros, conversando em brados, rindo com a interrupção inusitada de um entregador de folhetos religiosos, que irado, nos punia com o inferno.

Outros inferindo temas e possibilidades para presumíveis sessões em lugares públicos como aquele. Um na câmera, outros fazendo pose.

Entre registros fotográficos e dizeres poéticos, senti a primavera exaltar-se no grupo que se afinava num único objetivo: o fazer literário, experienciando o momento que a vida nos legava.

Que bom! Bendita chave que não apareceu! Bendito sol que nos aqueceu o coração e nos deixou mais próximos.

segunda-feira, novembro 09, 2015

A CALÇA COMPRIDA

Lembro-me dele. Chamava-se Camilo, um nome que eu achava estranho. Mas nossa amizade era segura, firme, quase madura. Confidenciávamos sobre tudo o que nos acontecia, falávamos da família, das ideias políticas de nossos pais, das agruras de minha avó, que se limitava a sentir aquela falta de ar absurda, o sorriso complacente e tranquilo de meu avô, o seu olhar sereno e belo.

Parecíamos adultos, mas éramos crianças e não passávamos da 5ª. Série.

Ele parecia mais velho, era mais forte, mais ágil. Eu franzino, pernas finas, calças curtas, meias até o joelho.

Estávamos felizes. Aproximava-se o dia da procissão de Corpus Christi que eu ansiosamente aguardava, não exatamente a procissão, mas a oportunidade que se antecipava de eu usar calças compridas. Minha mãe prometera que usaria neste dia.

Naquela época, usar calças compridas significava quase a passagem para a vida adulta, um símbolo de masculidade. Estávamos ficando homens de fato, portando-nos como tal.

Minha mãe passou dias na costura. Antes porém, enveredou-se por lojas, buscando o tecido adequado, a cor, naturalmente azul-marinho, um tecido firme e ao mesmo tempo maleável, que fosse possível se fazer o friso.

Acabou na mesma loja de sempre, onde se encontravam os tecidos finos e mais baratos. Comprou a fazenda, como ela dizia, cortou o pano ante meus olhos grandes por detrás da mesa, espiando, fingindo preocupar-me com as figuras dos jogadores da copa, ocupado em que estava em demonstrar indiferença.

De vez em quando, meus olhos aflitos se deparavam com os de minha mãe. Ela olhava-me, encarava por alguns segundos, depois, se mantinha entretida nas linhas, nos dedais, retroses, carretéis, tesouras e agulhas.

Contornava delicadamente o tecido, desenhando um esboço de calça que me encantava. Suas mãos brancas, de dedos pequenos e finos percorriam delicados os viés da costura, os tortuosos vai-e-vem dos alinhavos, na construção da obra imaginada. Em seguida, um corte aqui, uma fisgada no dedo ali, um jeito ágil de chupar o sangue e esquecer de imediato a dor, partindo para a atividade almejada.

Eu corria os olhos atentos, obedecendo a ordem de ligar o interruptor, clarear o ambiente, buscar o pão quentinho, estalando nos dentes no caminho, roubando um pedaço rápido, antes de chegar em casa, conhecendo de antemão a rotineira repreensão.

Coração aflito, voz esganiçada, perguntando se queria mais algum favor. Não queria, nem precisava, o que me angustiava mais.

Desejava permanecer ali, ao seu lado, parado, vendo o espectro tornar-se real: a calça imaginada correndo comigo, passeando orgulhosa entre os colegas menores, seguindo a procissão, ouvindo o “louvado-seja-nosso-Senhor-Jesus-Cristo-do-padre”, com um olhar entre orgulhoso e cúmplice, querendo dizer “tu, heim, já é um homem, de calças compridas” e eu mais orgulhoso e seguro”para-sempre-seja-louvado”, querendo dizer ”isso-mesmo-seu padre-já-sou-um-homem, igualzinho ao meu pai.”

Mas ela não se dispunha a ouvir-me, mandava-me estudar, os livros me esperavam no quarto, a escrivaninha estava cheia, um dez não basta, um dez não é definitivo, é preciso alimentar a cabeça. Que ela queria dizer com isso? Que eu ainda não estava feito por inteiro? Seria por causa das calças curtas? Mas logo, logo, eu usaria as tão esperadas e amadas calças compridas, como todo o mundo.

E vinha dia e voltava noite e a labuta na costura ficava ainda mais acirrada. Era uma briga constante com a máquina, dor nas costas, olhos inchados, pouco dormir, camisa por fazer, ah, branca, colarinho de entretela, passado na goma para ficar bem duro. Cinto? Aquele de couro que ganhei no Natal.

Até que chegou o grande dia. Meu coração saltitava exuberante no peito, os olhos grandes vibravam, o espírito voejava translúcido, a boca estremecia ressequida, ofegante, esperando os olhares invejosos dos menores ou dos que não tinham conseguido uma calça comprida e além de tudo, o respeito dos mais velhos.

Minha mãe ficou me vigiando da esquina, não sei se orgulhosa de fato comigo ou com a sua obra-prima.

Na verdade, ficava feliz com a minha alegria. Tanto que passara horas na noite anterior, espargindo borrifadas de água, com leveza, para ajustar o vinco com o ferro quente. Depois de alisada, observada, examinada e almejada, deixara-se ficar assim, a calça, quase feliz como eu, estirada na cadeira, preguiçosa, longe de qualquer toque mais abrupto para não desmanchar o desenho. A camisa branquinha, lavada em anil, de gola bem engomada e passada rigorosamente para não fazer feio na procissão.

Como a noite custou-me a passar. Só fui vencido pelo sono e não sonhei com nada. Quando acordei, já me via longe, abanando para a mãe que prosseguia na esquina, até eu desaparecer no colégio.

A pequena igreja estava em construção. A escola em rebuliço. As crianças eufóricas.

Meu amigo Camilo foi o primeiro a me ver com a calça nova. Sorriu satisfeito e mostrou a dele, de tergal, com um certo brilho, meio furta-cor, que me incomodava um pouco. Mas não comentei nada.

Em seguida, o orgulho deu lugar à euforia das brincadeiras. Outros chegaram e passamos, como de hábito a correr, pega daqui, esconde ali, agora pelos escombros da igreja antiga, subindo no altar ainda em construção da nova e gigante que se antecipava aos nossos olhos e corações.

Corria tanto que nem via padre, ou professora, ou qualquer outra autoridade que me fizesse parar. O prazer era mais forte do que meus brios de homem recém adentrado na sociedade masculina. Tanto foi, que no puxar de cá, empurra pra lá, caí de um aterro da construção de concreto, assim, de modo abrupto, rasgando inexoravelmente a calça, bem na altura do joelho.

Meu amigo me viu e não deu muita importância. Falou alguma coisa como voltar para a casa, trocar de calça.

Os demais chegaram rápidos como saídos do ninho, bando em disparada, ao meu encontro. Era tudo que eu não queria.

Voltei para casa decepcionado.

Na cadeira, como se estivesse a minha espera, a calça curta, marinho, velha amiga de guerra, das brincadeiras de criança, menino que não queria mais ser.

Minha mãe assentiu com a cabeça, como se conhecesse antecipadamente o meu infortúnio. Não tinha remédio. Voltei para a procissão de calças curtas. Percebi que nada havia mudado. Só a certeza de que não seria daquela vez que eu usaria definitivamente as calças compridas. Quando isto ocorreu? Acho que não teve nenhum sentido. Talvez tivesse amadurecido naquele tombo e descoberto que não significavam nada a mais do que um vestuário novo. Só lembro que voltamos da procissão com a sensação de liberdade plena, como se a nós fosse dada a oportunidade da vida e livrarmo-nos de todas as opressões da infância. Talvez por isso, tocássemos “indisciplinadamente” a campainha de todas as casas que víamos pela frente.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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