sábado, abril 12, 2025

Onde encontro a Páscoa?

Que vejo nas praças, nos parques, nas ruas, nas vielas empoeiradas, nos becos encardidos, na tristeza dos olhares, na fome revisitada, nos céus de abandono, no mar distante, nas ruas sem fim. Que vejo nas calçadas ardentes de outono, resquícios de dias quentes da estação passada? Que vejo de chinelos velhos em pés sujos, de andrajos soltos pelas pernas finas e desajeitadas. Que vejo neste balé disperso e deformado da mulher que grita pelo centro da praça? Que pula, dobra os joelhos para o monumento, retira os livros para a doção e os segura como um troféu. Fala alto e forte ante olhares soturnos, abandonados em telas brilhantes ou desconcertados pela loucura, como contagiosa fosse. Apesar das sombras do início da noite, ela continua lá, explanando um discurso que é para si mesma. Um casal de turistas, provavelmente, visita o monumento, tira fotos da criança, observam por um momento a cena e prosseguem na tarefa, convictos de que não lhes fará mal. Que faço eu para cercar-me de cuidados, aproximando-me devagar e desistindo ante a insanidade suprema. Sorrio apenas e por um momento, tenho a impressão de que sou correspondido. Mas não faço nada, tal como os outros. Apenas não me afasto, nem fico alheio ao que diz, talvez absorto em divagações. Como agora, neste momento. Que vejo nos templos, nos encontros religiosos, nos espaços de oração e fé? A morte e o dilaceramento humano de Cristo, antes olhares chorosos e sensação de luto. Até quando? Até a próxima conversa com o amigo que classifica de invisível o gari, da mulher que detesta o motoboy? Da sensação de náusea do bêbado que atravessa a rua? Do professor considerado comunista, e, portanto, um desclassificado que quer a ruína do País? Do adolescente drogado, presumível ameaça às famílias de bem? Que vejo neste mundo saudável que deseja a transformação, a Páscoa, a travessia para um mundo interior espiritualmente pleno? Que vejo nos recantos em que o uísque derrama como água potável, os riscos brancos evoluem nos tampos de mármore inchando as narinas e os negócios são acordados, jurídica, política e socialmente por estes senhores de bem, que abominam o bêbado, o drogado e o comunista. Quantas vezes vão matar Cristo e chorar por suas feridas e sofrimentos? Procuro a Páscoa e não a encontro. Talvez, dentro da mulher da praça, do andrajoso e sujo das ruas, do bêbado, do professor. Talvez dentro de mim, de ti, dos que amam os seus, o próximo, o que está mais próximo e do próximo que vemos por aí, sem censura, sem preconceito, sem racismo, sem ódio. Só empatia e amor. Foto por M Venter em Pexels.com Partilhar isto: Press This X Facebook Customize buttons textosdogilson Março 30, 2024 Uncategorized amor, andrajo, bêbado, comunista, Cristo, drogas, negócios, Páscoa, professor, racismo

sábado, março 22, 2025

Faz-se um silêncio

Faz-se um silêncio lá fora. Parece que, de repente, o mundo parou. Nem um som humano, nem animal, nem de qualquer máquina. Faz-se um silêncio aqui dentro. Um batimento tranquilo, quase meditação. Nada há que incomode, que impressione, que agite. Faz-se um silêncio de água parada. Um rio que não corre, um mar que não avança. Um sopro, uma brisa que não existe. Nem um bater de asas, uma folha que cai, um arbusto que quebra. Um galho seco. Faz-se um silêncio. O sereno que se espalha invisível, uma névoa que se esvai, um brilho de lâmpada no asfalto. Faz-se um silêncio. Nem uma palavra, uma única. Cada sílaba, cada letra, cada fonema, cada respiração. Faz-se um silêncio quase impune. E quem sabe, para alguém, o silêncio é tão forte que grita.

sexta-feira, setembro 20, 2024

Do outro lado do rio

Houve momentos em que pensei na ida. Não me refiro à ida às compras, ao médico, ao seminário, à biblioteca, ao museu, à beira do cais. Esta ida sempre tem a volta e por mais que se vá, sempre se observa um detalhe diferente, diverso do que se vê. É assim mesmo, é desta forma. E cada vez que se vai, se volta diferente, não somos mais o mesmo, nem a ida teve o mesmo significado. É como entrar no rio, se entra de um jeito e se sai de outro. E cada vez que se vá, nunca será o mesmo, nem nós, nem o rio. Já até citei Heráclito de Éfeso, o filósofo que falou isso, num outro texto: “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou…” Não somos os mesmos em nenhuma situação, em nenhum momento. Mas não falava desta ida com o retorno garantido, pelo menos o retorno ao local de origem. Falava da ida sem volta, sem retorno, sem saída, sem certeza, sem nada. A ida definitiva. O sol já não era o mesmo, as nuvens, o céu, as pessoas, as árvores, as avenidas. Nada tinha mais sentido. Nem gosto, nem olfato, nem tato. Nada significava, porque não se faria parte jamais, daqui um pouco, mesmo que as coisas continuassem no mesmo estado, acontecendo, a vida seguindo. Na ida definitiva, não se tem o retorno, nem mesmo ao rio, pois suas águas mesmo diferentes, com ritmos e ondas diversos, não mais tocarão nossa pele. Nem as gotas de orvalho, nem o ruído dos carros, nem o grito das crianças, o canto dos pássaros, os passos apressados dos transeuntes, o sorriso dos amigos. Nada voltará. Talvez, se existe alma, esta ainda trafegue por estas bandas e possa sentir um pouco de vida, do outro lado do rio.

sábado, julho 20, 2024

Uma pessoa má

Não sou uma pessoa boa. Talvez tenha até boa índole, mas costumo procrastinar em várias circunstâncias de minha vida. E isso, eu sei, me torna uma pessoa má. Não má, a ponto de planejar algum malefício, ou mesmo, exceder-me em ímpetos de fúria. Mas como disse, postergar, atrasar, adiar providências. Quem sabe, atrasar alguns recados, algumas notícias adversas, algumas informações duvidosas, não fosse de todo mal. Mas, tenho a péssima mania de esquecer determinadas ações a que me propus e isso me torna uma pessoa má. Se não, vejamos, quem esqueceria de entregar figuras de santos em virtude de uma promessa para a saúde de alguém? Quem esqueceria de divulgar, espalhar e ampliar a fé para atingir um objetivo maior, se não, a melhoria da saúde da pessoa? Eu. Outro dia, encontrei centenas deles, espalhados em uma gaveta, hoje já não tão seguro de sua influência nos objetivos terrenos. Por outro lado, quem esqueceria dar um mimo para um amigo, após uma viagem? Como por exemplo a miniatura de um azulejo de Lisboa, a torre Eiffel ou a medalha de Lourdes? Quem os esqueceria no fundo de uma gaveta e um ano depois, os encontraria com o nome das pessoas citadas, enroladas com uma fita, indicando a lembrança do amigo? Eu. E tem aquelas roupas que separamos das usadas no roupeiro, deixamos limpas e perfumadas, guardamos numa sacola para uma futura distribuição nos dias frios e ficam eternamente à espera da correta ação. Quem somente lembraria quando uma alma atenta às atribulações humanas, comentasse dos dias difíceis de um inverno incessante. Eu. Mas faço-o sem planejamento ou organização. A doação ocorre no momento da dor, do sofrimento, do encontro, da imagem da pessoa, olho no olho. Talvez aí, ocorra a minha absolvição. Não sei. Ou talvez nada absolva meus erros, nem conforte meu espírito, talvez, quem sabe, uma virada de chave. Talvez eu precise apenas olhar para dentro de mim, observar as gavetas, mitigar as dores e encontrar as saídas.

domingo, dezembro 10, 2023

O alarme

Ouço batidas, soam longe, mas aos poucos, ficam mais audíveis, como se ocorressem muito próximas. O som se torna agudo e forte, ríspido como um alarme. Meus ouvidos doem, alma lateja. Observo, aflito, as paredes, os espaços, os cenários que se multiplicam. Fico imaginando se este barulho não parasse jamais. Como viveria assim, nesta voracidade que corrói meus ouvidos. Parece uma eternidade. Não sei se é algum alarme ou é meu coração. Quisera voltar aos poucos, a ouvir sons óbvios, quase inúteis. Quisera apenas ouvir o som do carro que se afasta, da música dormente do apartamento ao lado, do assobio agudo nas noites enrijecidas, dos fonemas dispersos de minha voz afônica. Quisera apenas viver o mesmo do mesmo, sem este alarme que sonda minhas invasões. Se não houvesse essa tela dormindo em meu travesseiro. Se não houvesse esse impulso e pulsão de clicar. Se não houvesse essa aflição em ser ouvido, visto e amado. Talvez, esse alarme parasse de soar. 


sexta-feira, novembro 17, 2023

Quisera

Nem sei o que pensas, se no poema que teces, há alguma trama com a minha marca. Não sei. Sei que teus olhos dizem coisas que jamais falarias. Tua boca sorri, quando quer se calar e teus sentimentos se escondem, sem que se possam ocultar.  Talvez, não saibas. Um amor assim puro, não faz parte das prateleiras dos grandes filmes. Jamais podem retratar o que meu coração exalta. Quisera dizer tudo que me é impedido, quando meus sentimentos quase mergulham num infinito de procuras em tua direção. Sinto a melancolia de momentos que não vivi, de expressões que não criei, de verdades que não disse. Mas está presente, quando caminho nestas folhas que ora caem, quando me afasto em direção ao mar, quando tento ouvir de soslaio, o vento que zune próximo aos ouvidos, quando a brisa se esvai e a força da natureza me impele a seguir o caminho. Quisera apenas respirar aqui, neste ar mais puro, neste espaço marítimo, mas sei que o avanço que espero, jamais será definido, que a vanguarda que procuro, jamais será alcançada. Sinto aqui, a dor da desilusão. Vejo-te ao longe, vejo-te em meus pensamentos mais sinceros e sinto que te afastas, mesmo que te aproximes, pois a barreira social é mais poderosa e impune do que os maiores sentimentos. Quisera sentir a tua mão em meu peito, concedendo-me a cura, o consolo, o conforto, o carinho que não tive, o amor que anseio. Quisera sentir o teu olhar no meu, embora tentando ser displicente, fugindo de vesgueio, procurando o nada, não importa. Estarias perto, então. Quisera ouvir tua voz e saber que os fonemas que emites contam coisas que meu coração desperta. Quisera te ouvir. E ter a impressão de que não estou tão só. 


quinta-feira, agosto 24, 2023

Um só suspiro

Se a noite despertasse um só suspiro que não fosse o meu, se a noite me levasse a sonhos que não despertassem, se a noite dispusesse apenas o silêncio e escamoteasse o medo. Não. Ela se apodera aos poucos de meus pensamentos e sublima as dores esparsas, mas constantes, transforma as linhas da tela, os ecos das músicas, os ruídos da rua. Talvez latidos distantes, resmungos de alguém que surrupia como um mágico também as suas dores. Ali passa, ali funga, ali fuma, ali fica. Depois, quando o mundo já se estabeleceu em sua mente, afasta-se devagar, vivendo outra história. Quem sabe a realidade também mude aqui dentro, as memórias se restabeleçam, a realidade se instaure de vez. Aos poucos, os sons desapareçam e os lamentos fiquem mais lentos e escassos e a noite se reintegre em sua natureza explícita de ceder ao dia que vai nascer.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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