terça-feira, agosto 22, 2017

Uma história em comum

Ele fechou a porta devagarinho e ficou se perguntando se era capaz. Capaz de olhar aquele quadro degradante. Capaz de perguntar-se a si mesmo se havia tido uma história em comum. Se tomara café junto. Se partilhara dos mesmos sonhos, mesmas esperanças, mesmas expectativas.

Lágrimas corriam involuntárias. Mas não tinha aquele sofrimento todo. Uma náusea incólume, que inundava a alma, o espírito. Vontade de sair, de respirar, de tomar ar puro.

Temia abrir a porta e presenciar a cena, ver o corpo estendido no chão, a garrafa de bebida ao lado, espargindo-se entre os ladrilhos brilhantes, límpidos, impolutos. Os dedos longos, frios, finos, anéis, comprimidos, cenário grotesco, comum, teatro barato. Pena. Sentia pena dela. Pena pela fragilidade, penúria.

Ainda ontem, haviam se encantado pelas calçadas, avistado luzes novas no horizonte, ventos favoráveis que sopravam. Deram esmola a pedintes, abrigo a velhos desamparados. Sorriram felizes com a desgraça alheia. Estavam quase felizes. Burocráticos, fiéis ao senso comum. Ao dar para receber. Aparências. Caminhar juntos, fingir que pensavam. Fingir que sentiam-se próximos, vivos. Talvez estivessem mais mortos do que ela, hoje.

Agora aquele vento frio da rua, o barulho das buzinas, o zunzum intermitente do trânsito, as vozes apressadas soando aos ouvidos. Crianças que correm, patins na calçada, skates, bicicletas. Sorrisos francos. Felizes. Por que se sentir assim, alijado desta felicidade? Arremessado ao mundo tenebroso, fúnebre, espectador do outro: cheio de luzes, lá fora, com risos, mãos carinhosas, que se enlaçam, bocas que se tocam sorrateiras, brincando, balbuciando palavras doces, gestos leves e brejeiros. Um mundo distante que avista pela janela.

Por que ficar tão longe, inatingível. Atingido pela dor, pela saudade do que já foi, do que passou ou do que nunca viveu.

Entrou num bar, pediu café, vasculhou no celular pela enésima vez o e-mail. Tomou o café demorado, lento, mãos presas na xícara, como garras, lábios trêmulos, a barba crescida coçando no queixo. Acendeu um cigarro.

De repente, um silêncio quase absoluto no recinto. As bocas pararam devagar, como se mastigassem mingau em câmera lenta. Olhares surpresos, assustados.

Ele, gesto louco que não fazia há tanto tempo. Guardara a carteira para uma ocasião como esta. Sabia disto. Cigarro amassado no canto dos lábios.

Uma batidinha no balcão. Cinzeiro de vidro. Coisa antiga. Objeto obsoleto. Incrível que ainda tivessem ali, naquele bar de quase não fumantes. Olhares de censura. Acenos de cabeça, quase pedidos, súplicas para não cometer aquela loucura.

Acuado, dirigiu-se à porta e tragou mais uma vez. Retornou ao balcão e apagou o cigarro.

Em seguida, levaram o cinzeiro, aliviados. Alguns sorriram, complacentes. Outros voltaram ao assunto usual. Conversas de costume: política, futebol, mulheres, trabalho, não necessariamente nesta ordem. Capricharam nos verbos, nos gestos, na fala alterada.

O barulho do bar ficou ensurdecedor. Voltou ao normal. Doíam-lhe os ouvidos. Ouvia, naquela barafunda toda, a voz da mulher, também pedindo, suplicando por uma nova chance.

Oportunidade única para exercer a bondade.

Cansara de ser bom, de ver os dois lados da moeda, de discutir todos os aspectos das situações e avaliar todos os pontos de vista.

Queria ser egoísta, autoritário, arrogante, malicioso e mau, infinitamente mau, como todos os outros. Como ela. Por isso saiu do bar e não a ouviu mais.

Mas o vento fustigava-lhe o rosto e trazia com ele vozes absurdas, lembranças tão vívidas que temia um retorno ao passado. Um passado que enterrara para sempre.

Via-se sentado, em frente à máquina de escrever, dedos tiritando de frio, noite de inverno e medo. Treze anos de vida e uma carga emocional quase adulta. Via a mãe na janela do quarto, que desembocava no pátio, caminhando pelas vielas do jardim, pesquisando ervas de chá, remédios que curassem a eterna dor da alma, da solidão. Ele batendo os dedos, cada vez mais forte, para não lhe ouvir os passos. Não sentir as mãos pousadas no ombro, pedindo que contasse as noticias do dia, as histórias que escrevia, os trabalhos de aula e aquele cheiro de uísque barato inundando o ambiente. Tinha náusea e sentimento de culpa por não compreender tão grande dor. De ter ódio do pai, de sabê-lo distante, esquecido deles.

Aquele ritual se repetia e as histórias se acumulavam. Muitas das que contava nada tinha a ver com o que escrevia. Ele mesmo as inventava, na hora e punha um ponto final trágico para inspirar suspiros.

A mãe nem ouvia, embalada que estava no teor de suas próprias alucinações. Suas histórias eram bem mais sinistras do que as dele. Um dia a viu morta, inchada, olhos esbugalhados, congestionados de álcool.

Quase a ouvia chamando, pedindo socorro, tal como a mulher o fizera, mas batia tão forte na máquina que não a escutara.

Estava assim, absorto, num passado morto e enterrado, que nem percebera o quanto tinha se afastado de casa.

A noite já chegava depressa. Ouvia o burburinho da volta, os ônibus superlotados, filas imensas nas estações do metrô. Pessoas sozinhas, sem mais aquele brilho de felicidade. Tão solitárias e tristes quanto ele. Apenas sem a tragédia imediata. Somente a tragédia de suas vidas vazias.

Então lembrou em voltar para casa, executar os trâmites necessários, chamar um médico, talvez até a polícia.

Voltou ansioso, coração aos saltos.

Avistou o prédio em polvorosa. Comentários à solta. Porteiros, faxineiras, condôminos conversando, quase aos gritos. Um corpo enrolado em lençóis, numa maca, saindo do elevador. Alguém chamou a polícia.

Eles estavam ali, à espera, à espreita. Que queriam? Correu para a cena, ingressou no cenário e sentiu o feixe de luzes dos refletores na cara.

Uma voz firme, um gesto autoritário e a pergunta fatal:

— É o marido?

Vontade de fugir, afastar-se dali e esconder-se do drama. Argumentar qualquer coisa, fingir desconhecimento.

Era tarde. As mãos se juntaram, o metal brilhante doía, latejavam as veias dos pulsos. E a voz soava mais firme, mais forte:

— Está preso.

sábado, agosto 19, 2017

Impressões de uma Romênia tradicional e bela = Impresii ale unei Românii tradiționale și frumoase

Luisa estabeleceu-se num vagão meio vazio. O trem passava por pequenos vilarejos e ela podia avistar, além deles, Cárpatos, a cadeia de montanhas que domina a paisagem da Romênia.

Havia algumas pessoas e num banco na lateral esquerda, um casal conversava quase em sussurros, ao contrário de algumas senhoras que não paravam de confabular, quase uma discussão política. No entanto, percebia-se um aconchego familiar, risadas e vozes aflitivas, querendo dizer coisas que somente a elas interessavam. Uma outra senhora de lenço azul, com alguns desenhos geométricos coloridos, o ajeitava o tempo todo, tentando cobrir o cabelo, talvez pelo hábito ou por alguma espécie de coceira não identificada. O homem, que devia ser o marido, mexia nos bolsos e mostrava alguns documentos, manifestando um certo nervosismo e discutia o assunto com energia e logo em seguida, os guardava com cuidado. Ficava pensativo e logo examinava os papéis novamente. Discutiam um pouco e ficavam em silêncio, perdendo-se na paisagem velha conhecida.

Luisa esqueceu-os por um momento e ficou também observando as montanhas. Sentia um certo frio, apesar de ser apenas o início do outono, por isso tentava agasalhar-se, vestindo um casaco fino de lã, com uns botões que se fechavam até o pescoço. Deixou-se ficar assim, tentando envolver-se na paisagem bucólica, mas teve um sobressalto, quando um menino loiro correu na direção do fundo do vagão, com a intenção de pegar alguma coisa que lhe havia escapado, fruto de alguma brincadeira.

Luisa tentou descobrir do que se tratava, mas não conseguia ver nada, pois o brinquedo devia ter escorregado para debaixo dos últimos bancos. O barulho chamou a atenção da senhora de lenço azul, pois olhara para trás por alguns minutos. Logo se voltara para o marido e comentara alguma coisa. Os demais pareciam muito envolvidos com seus pensamentos e problemas ou não se interessavam pelo acontecido. Os pais do menino, no entanto um casal que estava na primeira fileira, aos quais Luisa nem percebera, chamaram o menino com severidade. Ele, entretanto, estava agachado entre os últimos bancos, na tentativa de pegar o brinquedo, mas com o balanço do trem, a coisa desembestara para cada vez mais longe, percorrendo cantinhos estranhos e de difícil acesso. O menino não desistia e por isso, escorregou para debaixo do banco, esticando-se e tentando colher o objeto. Luisa, então, levantou-se e sacou uma foto pelo celular. Guardaria aquela cena consigo: um menino romeno procurando o seu brinquedo. O pai levantou-se e encaminhou-se para os fundos, exigindo que ele saísse daquele lugar. Neste momento, Luisa percebeu tratar-se de um cubo mágico. Ele levantou-se com a calça do agasalho empoeirada, mas orgulhoso por ter resgatado o pequeno jogo. Quando passou por Luisa, atrás do pai, sorriu, ao que ela retribuiu. Neste momento, Luisa sentiu uma espécie de conforto, como se a vida se tornasse mais leve, a partir daquela ação do menino.

Luisa ficou observando-os com a sensação de que estava num mundo distante, provavelmente o passado. Era uma jornalista e como tal, tinha ao hábito de observar as pessoas, ouvir as conversas, tal como costumam fazer os escritores. Entretanto, com o passar das horas, tudo aquilo se apagava e ela sentia-se cansada. Esperava chegar cedo à Bucareste, mas sabia que o trem demoraria pelo menos, umas duas horas.

Quando o trem parara na estação de Bucovina, o distrito romeno de Suciava, já da plataforma ela pressentiu o cenário pastoril da região. Sentiu uma estranha vontade de descer ali, misturar-se com aquelas pessoas e descobrir o que faziam. Sabe agora, que deveria ter seguido em frente e alcançar aquelas duas horas que faltava para Bucareste, mas fez tudo ao contrário. Desceu na estação de Bucovina, o que aumentou o tempo de chegada à capital, pois para chegar até lá, era necessário esperar o próximo trem, o que demoraria muito mais do que imaginava. Mas assim, seguiu seu tino jornalístico.

Luisa desceu do trem e espalhou-se entre alguns romenos que pareciam dirigir-se a algum evento muito importante. Na pequena vila, vinham a pé e a maioria era conhecida, e pelo que Luisa conseguia entender, eram conhecidos de muito tempo, desde outras gerações, sendo a maioria vizinhos muito próximos.

Muitas mulheres com lenços na cabeça, vestidas com casacões e alguns homens de gorro de lã e jaquetas pesadas, outros vestidos com menos acessórios, mas bem agasalhados. O frio parecia ser mais intenso devido à região de montanhas. Isto, porém não os impedia de empreenderem conversas bem altas, com muita risada e comentários, que deviam ser relacionados a fatos locais. Por certo, faziam mais sucesso que qualquer publicação em redes sociais.

Luisa percebeu que os vários grupos se dirigiam à igreja ortodoxa, por isso decidiu segui-los um pouco de longe.

Quando todos entraram, ela se estabeleceu ao fundo da igreja e esperou o início do ritual religioso.

Após uma serie de orações e bençãos inerentes à liturgia, Luisa percebeu que o tema principal da cerimônia era a celebração dos vivos e dos mortos, os parentes dos que participavam da cerimônia. Eles recordavam os seus mortos e manifestavam muito mais do que um sofrimento contido, uma espécie de alegria, relembrando frases, expressões ou desejos dos falecidos.

A surpresa para Luisa, entretanto, não parava por aí, porque eles se afastaram da igreja logo após terminar o culto e dirigiram-se para um pequeno cemitério, ali perto, onde conversavam muito e riam e contavam fatos relacionados com os parentes que ali estavam sepultados. Em seguida, estendiam toalhas sobre os túmulos, abriam cestas e serviam sanduíches organizando um piquenique naquele cenário. Todos lembravam os parentes com ternura, algum sofrimento misturado à alegria, mas principalmente a necessidade de trazer à tona a personalidade do indivíduo, como se ainda estivesse entre eles. Conversavam alto e brindavam à vida.

Luisa conversou com um e outro, mais por mímica do que pela fala, pois não falavam inglês, embora como o seu idioma seja latino, arriscava uma frase ou outra e até mesmo algumas expressões conhecidas.

Agora, sentada próxima à janela, observando a paisagem próxima a Bucareste, lembrava dessas imagens e sentia-se recompensada, como se houvesse encontrado pessoas em plenitude de vida, devido à integridade de pensamento, manifestando a liberdade de ser apenas. Sem máscaras.

Ela gostaria tanto de andar pela bela Bucareste, dirigir a bicicleta às margens do rio, passar pelo pomposo prédio do Parlamento e chegar ao Carol Park, desfrutando a harmonia e o sossego das árvores. Sabia, no entanto, que o povo e suas tradições lhe haviam proporcionado uma vertente que indicava alguma coisa no horizonte, que sabia um dia poder alcançar. E ela nem tinha conhecido o castelo e o túmulo de Vlad, pensou sorrindo.

quarta-feira, agosto 16, 2017

Pai de menina

Pai é ser paciente, é apoio, é conciliação, é encontro, é busca, é espera, mas é sobretudo presença. Pois, pensando bem, ser pai é passear ao lado do filho pela calçada, sugando o ar da manhã e contando histórias enquanto se encaminha para a escola, é talvez empurrar a bicicleta e soltar antes que a criança pare de pedalar e pense estar ainda apoiada e ao mesmo tempo imaginar que já conduz sozinha, quando o pai ainda segura a bicicleta.

Talvez seja também levá-la à praia, conduzi-la ao mar, perpassar as ondas, segurá-la e fingir que aprende a nadar. É ser criança de repente, como ela e fingir que é adulto.

Ser pai, talvez seja uma moldura ativa que corre pela cidade, afoita e embriagada de ar puro, quando avista a menina, esperando a foto, na entrada do teatro em que dança, ou na academia, ou na volta do passeio. A moldura que espera a foto para ser personificada e guardada na lembrança. O pai e a bailarina.

Ser pai é esperar que as horas passem no vestibular e agradecer a ajuda dos deuses pelos resultados, pelas lutas infindas, pelas viagens não programadas, pelo destino incerto, pelo sonho esperado.

Ser pai é ensinar a dirigir e fingir que não teme qualquer desvio, qualquer solavanco que o leve à valeta. E sorrir e dizer: confio em ti.

Ser pai é ser dono de si, completo, inteiro, íntegro e se imaginar dono do mundo. Ser pai é esperar, é rir e amar. Ser pai é uma condição de aprendizagem, quando pensa que sabe tudo e ao mesmo tempo, nada.

Ser pai é viver esperando e talvez revivendo aquilo que seu pai era ou sonhara.

Ser pai é decifrar a malha de linguagem em que se envolve, que o abraça e o atinge na comunicação cotidiana. É reconhecer na filha jovem, como sujeito, detentora de um desejo que merece justamente esse reconhecimento por ser mulher.

Ser pai é ser condição, passagem, caminho e parada. Um pouso talvez, para que tudo se acalme, se alcance a margem e se espie o horizonte.

quarta-feira, agosto 09, 2017

Sexo, erotismo e ...novo estilo?

Ela estava sempre às voltas com o fazer doméstico, preocupada que era com as mazelas do pouco tempo em que ele se esbaldava na poltrona, controle remoto na mão, zapeando desatinado pela mediocridade digital.

Mas era seu direito, depois de um dia estafante, remoendo as contas do chefe, os passos desenfreados dos clientes, os argumentos insossos dos colegas. Era seu direito também, agitar-se no emaranhado de notícias e artigos interessantes no jornal assinado pelo fim de semana.

Não que se lambuzasse assim, de qualquer jeito, na chafurdice que via de regra, embotava os sentimentos mais puros, atirando tudo e a todos no mar de lama, de acordo com as prioridades do editor. Não, relegava-os a segundo plano.

Tinha consigo que a beleza das leituras estavam no que se encontrava nos cadernos, descartando as críticas das artes plásticas, cinema, música ou literatura, podia-se enveredar em caminhos ousados, às vezes, através de alguns incansáveis fazedores de estruturas renovadas, arejadas à brisa da primavera, desprovidos dos modelos da mídia mercadológica.

Até quando? Mas ainda havia flores que nasciam entre pedras, tais como aquela do Drumond. No asfalto? Rompeu o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio.

Mas ela sempre tão metódica, minúcias rodeavam sua cabeça enlaçando nos cabelos loiros que emolduravam o rosto harmônico, a boca perfeita, os olhos azuis, de um azul aguado, quase mar. Por pouco, não escorrega e se transforma em algo que não é mais mar, nem azul, uma coisa gosmenta e sem vida, que se espalha na poeira dos móveis, no brilho ofuscado do espelho, no respingo da chuva pintando pontos disformes na vidraça.

Pudera conversar consigo estes detalhes que fazem toda a diferença: enquanto ela dá brilho na porcelana, no bisotê, no esmalte da cômoda, ele lustra a maçã, o respingo nos óculos, talvez até a lâmpada de Aladim.

Quem sabe um gênio participa de suas vidas e as transforma numa parceria, , com metas semelhantes.

Mas tudo que toca, tem vida, tem seiva, tem visão apimentada das leituras e do sonho, tem imaginação. Por que acinzentar o cotidiano, tentando padronizar o que já é rotina?

Ele a observa do outro lado da mesa, esquivando-se entre o balcão da pia e o fogão.

Estava mais linda hoje, enfeitada num avental de rendas, que em sua visão onírica, trazia um quê de sensualidade. Não que gostasse destes fetiches, mulheres vestidas de enfermeira, aeromoça, mulher gato, o diabo a quatro. Não era dado a estas imaginações rocambolescas.

Também não tinha o menor preconceito, que cada um utilizasse os instrumentos que melhor lhe conviessem. Não era o seu caso.

Aos quarenta anos, nunca imaginara um tipo de coisa semelhante. Mas não parava de pensar no assunto.

A mulher sempre intolerante na organização da casa, hoje, lhe causava um tênue ternura, o que era bom, pois o romance estava esfriando.

Puxou o jornal para o lado, descansou os óculos sobre a mesa e deteve-se examinando-a.

Seu gingado entre uma atividade e outra, nada semelhante a do general que comandava a casa.

Ao contrário, era cadenciado, quente, gostoso e ele até ouvia uma melodia, quase sincopada, dando o tempo adequado ao ruído da saia, que ora prendia no braço da cadeira rivalizando com o avental que esvoaçava, sem rumo, enquanto circulava pela mesa.

Sobressaía um aroma suave de jasmim, que se disseminava pela peça, inebriando as narinas e a mente.

Coração assaltado, passou a tamborilar os dedos na mesa, tentando chamar sua atenção.

Vez por outra, ela se voltava, enquanto arrumava o assado na forma, e para sua surpresa, ao invés de pedir-lhe ajuda para segurar a forma, sorria afável e fazia da atividade, um leve gesto de abandono, deixando a carne a aprontar-se, como se não precisasse mais nada, do que o sopro dos anjos.

Depois, pronta a tarefa, ocupou-se no cortar incessante de tomates, cenouras, pimentões e até um abacaxi e simultaneamente o descascou com a mais afinada diligência.

Executava tudo com tanta eficiência e rapidez, que ele tinha a impressão que uma máquina estranha comandava seus pensamentos. Um robô ou um etê, quem sabe.

Porém, nada havia de grotesco em seus gestos: eram plenos de suavidade e aceitação, como se meditasse em cada corte mais profundo, mais tenso, transformando o frescor das cenouras em pequenas molduras, mimos jogados na panela entre legumes ou raízes, convivendo em plena harmonia.

Tal como ela, em paz. Quase absoluta. Zen.

Não fosse o olhar lânguido e ao mesmo tempo obsceno que o fitou, deixando-o desconcertado.

Após terminar a refeição, retirou uma garrafa Romanée-Contide a trouxe na direção dele.

Embasbacado ficou pela sobriedade do vinho, por que não um da serra?

Abriu-a, juntou duas taças e as serviu, com carinho. Aproximou-se e o beijou demoradamente. Sentiu a proximidade de seu corpo, o cheiro de jasmim mais forte, a boca sedenta procurando a sua e não resistiu a tanto carinho e paixão. Beijou-a com sofreguidão, aproximando em seguida sua boca dos seios, molhando-os na saliva que ainda corria de sua boca surpresa, enrugando os jornais com os cotovelos, tentando levantar-se para tê-la nos braços e esquecer que um dia ela fora intolerante e quase má.

Amava-a muito e agora era outra mulher, uma mulher que parecia sair das páginas das histórias de um folhetim antigo, desses que se compra nas bancas de jornais e as mulheres são tão dóceis e passivas.

Mas ela parecia mais forte do que de costume, tanto que o obrigou a continuar na mesma posição, tomando as iniciativas.

Abriu-lhe a camisa, destravando cáseas, arrancando botões, enquanto beijava o peito peludo e um tanto magro, do qual tinha até algum constrangimento.

Ela desconsiderava qualquer negativa, naquele momento.

Retirou a camisa, bruscamente, mostrando seus braços que já não eram tão musculosos como antigamente, agora acenando um adeus medíocre na região das axilas, resultado de se acomodar na poltrona, sedentário e nunca pegar peso.

Sabia que precisava malhar, ela não devia desnudá-lo daquela maneira agressiva.

Mas de todo modo, sentia-se um novo homem, pois estava a frente da mulher que sempre sonhara, que fazia a comida com carinho e agilidade, que ajeitava a cozinha para deixá-lo à vontade, que servia o vinho e para rematar consumia seus hormônios.

Era a mulher idealizada, embora nunca a tivesse visto naquela perfomance.

A esposa, ainda mais decidida, levantou-o num salto, sungando-lhe as calças até doer-lhe os testículos. Tentou perguntar se o eflúvio amoroso se tratava de uma técnica nova, pois por mais que lutasse contra seus preconceitos, seu jeito ia de encontro ao seus princípios, sentia-se usado e até assediado na hora errada!

Mas aquietou-se. Ela cobria-lhe a boca, com doçura, impedindo-o de reagir.

Por fim, abriu com energia voraz, o zíper da calça, o que o fez estremecer, temendo que ela prendesse de repente o pênis desprevenido.

Foi rápida, quase profissional, puxando as calças aos pés, enrolando-as nos tornozelos que sustentavam pernas finas e ossudas, cheias de pelos e cicatrizes, frutos de antigas peladas nos fins de semana. Saudosos fins de semana!

Achou-se ridículo nas cuecas samba canção estampadas de seda; parece que aumentavam ainda mais a sua fragilidade, ante aquela mulher poderosa.

Pois, foi no exato momento em que ela, ouriçada, desceu as cuecas, com firmeza nas mãos, que ele saltou, num ímpeto.

Aí já era demais, aquilo não era nada erótico, quando muito um atestado de insubordinação feminina!

Todavia, chegou o momento crucial e ele não se fez de rogado, ao contrário, deixou-se acariciar por aquelas mãos sedosas e macias, com cheiro de cenoura tenra e pimentão cortado. Mãos aveludas, que o excitavam.

Então sorriu de prazer, mas foi por pouco tempo.

Sentiu uma espécie de desafio interior, alguma coisa lhe indicava que algo estava errado, porque as mãos agora passeavam por seu corpo, suas coxas, suas costas, seu pescoço e não eram mais suaves, nem deslizavam com carinho pela nuca, nem sentia mais o aroma de jasmim que se exalava do corpo da mulher. Nem a boca que lhe beijava os mamilos produziam qualquer sensação gratificante. Era um ato mecânico, que o compelia com força, a ponto de formar pequenos pontos roxos, como beliscões.

Além disso, um cheiro de borracha, látex ou qualquer coisa parecia desandava de seu corpo e seus olhos se fixavam sem piscar um músculo e seus cabelos pareciam de fibra, e sua boca, agora mordia sem parar e suas intenções não pareciam nada com as de uma mulher apaixonada e cheia de tesão.

Temia que mudasse de estratégia e misturasse as coisas, e pensasse que ele era a fêmea e ela o macho.

Foi aí que a empurrou, mas foi sustentado por uma força extraordinária, brutal, acompanhando um olhar patético que proferia centenas de palavras e expressões de ordem, muito mais do que costumava, quando não passava de um general.

Foi ali que a viu, junto a si, tentando seduzi-lo, fazendo propostas das quais evitava por puro pudor, a sua bela esposa loura se transformando numa boneca inflável.

Ficou desorientado, alucinado, perdido.

Será que era projeção da mídia mercadológica vendendo bens que ele não precisava?

Seria esta exacerbação absurda do sexo pelo sexo, sem qualquer sintoma de carinho ou afeto, apenas a utilização de mecanismos para se chegar ao orgasmo a qualquer preço, mesmo que para isso se paguesse uma fortuna?

Ou seria uma vingança?

Tudo isso indagou, sem obter resposta, apenas uma postura mais erótica acenava do ela era capaz.

Ela queria se vingar dele, por isso o seduzira daquela maneira, ele que jamais pensara em brincar com algum daqueles fetiches.

Então teve uma ideia, que resultava numa espécie de vingança.

Ceder aos impulsos, disputar o espaço parelho entre o macho e a fêmea, mesmo que de borracha, veriam quem teria mais gás, até onde chegariam.

Abraçou-a com força, despindo-lhe o avental e a saia falsa que usava apenas para iludi-lo, empurrando-a, desajeitado para debaixo da mesa, arrastando-a e sendo arrastado, de uma maneira tão insólita, que até duvidava se aquilo era sexo.

O cheiro de látex, agora misturado com chiclete dava um ar um tanto infantil ao enlace.

Então, jogou o seu corpo nu sobre o dela, enlaçou-a com suas pernas com vigor, e a beijou desmedido, impelindo a sua cabeça para o chão, percebendo que ela usava do mesmo expediente, tentando submetê-lo.

Era uma luta renhida.

Entretanto, aquele clima bélico produzia um erotismo vigoroso, que se apoderou de tal forma, que nunca imaginou que desfrutaria de tanto prazer na relação com uma boneca inflável, que diga-se de passagem, também era a sua mulher, loura, bonita, suave e também autoritária, mandona; um general.

Mas o jogo o seduzia mais e mais e finalmente seu sexo, aos poucos, se completava e ele sentia-se o homem mais feliz do mundo, um verdadeiro privilegiado, tanto que a ereção foi natural e fluiu de tal forma a alojar-se numa região quente e palpitante, quase amortecendo de prazer, num vai-e-vem enérgico que se antecipava a qualquer movimento induzido. Era o sexo dos deuses.

Rolaram pelo piso, afastando-se dos pés da mesa que machucavam os quadris e ultrapassaram a cozinha, sentindo os aromas dos ingredientes sacolejando na panela de pressão, o esfolar da grelha do forno na carne tenra e apetitosa.

Estavam assim, no jubilo de corpos integrados e felizes e sentiu, que pela primeira vez, há muitos anos, teria um orgasmo daqueles que se tem, quando adolescente, quando a pulsão é extrema e a capacidade é inesgotável, com a vantagem da plenitude do tempo expedido, sem pressa, sem medo, sem ansiedade: puro gozo.

E quando o clímax se aproximava, tanto para ele, quanto para ela, um momento em que os céus se transformam, alinhando as cores, com matizes densos, chegando a dourado depois do azul, os mares se agigantam em ondas, encapelando-as, espumando a areia, salgando a terra e os ventos agitam bandeiras e lenços, dão vivas a vida e se perpetuam em acenos de louvor.

Foi neste momento tão esperado que sentiu as mãos dela em suas costas, deslizando devagar para chegar a um ponto desconhecido, o qual segurava com energia renovada e pensou que aprenderia outra maneira de atingir o orgasmo e aceitou, confiante.

Suas mãos, porém, eram frias e vibrantes e se entrelaçavam vigorosas em sua coluna.

Então, ouviu um grito de prazer tão forte que lhe doeu os tímpanos: era o dela, no momento em sentiu-se voar em direção ao teto, batendo nas paredes, queimando-se na panela de pressão, que borbulhava por fora da tampa, e voando pela janela, ficava pendurado na vidraça, espichado, ofegante, olhos se moldando no parapeito, boca esticada como uma lesma sem casulo, que se esgueira pelas paredes úmidas, e braços, pernas, e tronco espichado acompanhando o desenho da parede.

Tentou falar e sua voz não saia, a língua presa, submissa, embora seus ouvidos que se desfaziam, esparramando-se em gotas pela sala, ainda ouviram a frase de puro gozo que ela destilava — Finalmente consegui! Retirei a válvula dele — e uma risada autoritária de general ainda ecoou no seu ouvido esquerdo que se dilacerava num prego.

sexta-feira, agosto 04, 2017

De cara com o monstro

O monstro se aproximava devagar. Ninguém sabia de onde viera e qual o seu objetivo. Todavia era um monstro singular. Um monstro que se moldava de acordo com nossos desejos ou esperanças, às vezes tentativas de mudança.

Certa vez eu caminhava pela avenida que atravessava a cidade de ponta a ponta, o trânsito já diminuira e a iluminação começava a ficar precária, conforme eu me afastava do centro. Sabia que mais cedo ou mais tarde, eu o encontraria por ali. Diziam que ele costumava ficar naquelas redondezas do grande canalete que dividia a cidade. Talvez entrasse pelas águas turvas e se lambuzasse na sujeira que por dias alimentava aquela travessia aquática. Eu nem tinha certeza se o canalete tinha como objetivo livrar a cidade das enchentes, porque o povo costumava jogar entulhos, garrafas plásticas e além da poluição gerada, por certo um daqueles objetos iria parar numa saída de água obstruindo-a e facilitando a inundação.

Fiquei assim pensativo e decidi sentar num dos bancos, que margeavam os muros do canalete. O monstro daqui a pouco surgiria, mas eu não o temia. Nunca o tinha visto, porém tinha comigo que aquele monstro tão questionado por sua conduta perigosa, não passava de um monstrinho assustado por toda agonia aquática e seu poder de destruição. No fundo, ele tentava apavorar os homens para esquecer o próprio medo.

Mas estava ali, esperando-o e fiquei por horas a fio, nao sei quanto tempo. A lua desapareceu, dando lugar a nuvens escuras e eu temia que chovesse ou ocorresse uma ventania fora de hora, fazendo redemoinhos de folhas e poeira.

Um homem passou correndo por mim, usava boné, moleton escuro e bermudas. Não vi o seu rosto, mas percebi que fugia de alguma coisa ou de alguém. Talvez do monstro. Não por muito tempo, apenas o suficiente para voltar com uma fisionomia diferente, como se fosse outra pessoa. Parecia transtornado e demasiado eufórico, a ponto de gritar coisas sem nexo e me encarar com olhos sanguinolentos, embora revelasse uma total ausência de minha figura. Atingiu com pontapés uma coluna que projetava alguns degraus para o fundo do canal, descendo-os em seguida e ali mesmo aliviou-se, enquanto simulava articular um funk que somente ele entendia. Como chegou, desapareceu sem deixar vestígios.

Continuei sentado, procurando mensagens no celular, mas logo o guardei no bolso, pois não havia nada de novo, a não ser as mesmas publicações das redes sociais, as eternas correntes religiosas do whatsapp e os incontroláveis votos de boa noite. Fiquei ainda mais pensativo, imaginando o monstro e suas ações. Certamente, se encontrasse aquele rapaz, o golpearia com suas patas enormes e após arremessá-lo ao chão, montaria no seu corpo frágil e enfiaria as garras na garganta até sufocá-lo com o próprio sangue em golfadas.

Estava tão absorto que nem percebi que uma motocicleta se aproximava, subindo sobre a calçada e estacionando num rodopio, em frente ao banco em que eu estava. Aquele banco de pedra já me doía a bunda e eu havia decidido afastar-me de vez daquele cenário vazio, quase absurdo, numa noite de outono. Entretanto, um dos motoqueiros, rápido como um flecha, deu um salto da motocicleta e espetou uma faca em minha garganta, de tal modo que eu sentia a ponta quase rasgando a pele, tendo a sensação de que ele a cortaria. A primeira ameaça, a primeira exigência, o grito de guerra, enquanto o outro puxou o celular do bolso, bem como a carteira, examinado algumas notas que ainda sobraram após a compra de uma cerveja. Logo em seguida, o da faca, golpeou-me a cabeça com o cotovelo e deu-me outro soco para arrematar a ação, quebrando-me os dentes, produzindo um jato de sangue que me escorria da boca, enquanto eles pulavam na moto e desapareciam na névoa que se antecipava.

Fiquei ali, patético e humilhado, sem tomar qualquer atitude. Talvez devesse chamar a polícia ou queixar-me às autoridades competentes o fato de um cidadão de bem ser impedido de ficar observando a noite, cuja claridade se esvaía com o aumento da neblina. Neste ínterim, percebi a volta do rapaz eufórico, embora agora parecesse um tanto depressivo. Vinha acompanhado de um grupo de maltrapilhos, como se estivesse cercado por zumbis, cujas chamas iluminavam os olhos sem vida e a fumaça dos cachimbos se agregasse à cerração que ficava cada vez mais densa. Alguns carros paravam próximos ao grupo, dos quais desciam vários jovens. Alguns subiam nos muros do canalete e caminhavam sobre ele, bamboleando os corpos, numa ousadia que os transformava em verdadeiros equilibristas. Davam gritos, risadas e berravam palavras de ordem, que mais pareciam um amontoado de palavrões.

Eu os observava desiludido. As costas doíam, a cabeça, os ombros, todo o meu corpo e meus lábios cortados sangravam. Eles prosseguiam com a tépida chama dos cachimbos, fumando o crack e manifestando uma euforia semelhante ao do rapaz que urinara no canalete, embora bem mais agressivos. Eu esticava as pernas, na tentativa de levantar-me, quando outra motocicleta apareceu, descendo dois jovens, escondidos em capuzes escuros. Senti um arrepio, temeroso de ser agredido novamente ou talvez morto, caso fossem outros assaltantes. Entretanto, pude perceber que se tratava dos encarregados da venda das drogas. Um dos rapazes que descera do carro, puxou a carteira do bolso e pagou a compra, como se estivesse procendendo uma simples operação financeira.

Em dado momento, aproximaram-se de mim, oferecendo-me as drogas, que pareciam ser gratuítas naquele momento. Eu poderia pagar num outro dia qualquer. Esforcei-me em argumentar que não usava drogas de modo algum, eu estava ali com outra finalidade: ver o monstro que todos comentavam, eu queria enfrentá-lo, conhecer a sua ferocidade e a fraqueza. Eu queria vencê-lo. Eles sorriram, dizendo-me que estava no caminho certo, bastava usar um comprimido apenas. Podia esquecer o crack, a cocaína ou qualquer outra pílula da felicidade. Eles tinham a saída para todas as minhas dores, tanto físicas quanto psíquicas.

Por um momento, tentei levantar-me, fugir daquele grupo que me cercava e me deixava atônito, mas se mostravam tão amigos e companheiros que não havia como refutar. Eu, que me sentia tão sozinho, estava ali, entre amigos.

Por fim, ofereceram-me o tal comprimido e naquele instante seguinte, alcancei um excesso de felicidade, quase êxtase, um upgrade no desejo sob todas as formas, energia e bem-estar. O mundo girava a meu favor e a vida rendia perdão aos meus sofrimentos, como se a gratidão se antecipasse à dor ou a qualquer infortúnio. Eu estava feliz. Então, pediram-me o número do celular roubado, eu já nem lembrava, mas isso não importava muito, pois logo, logo saberiam. Como parceria aos meus atos, correram até os bandidos que me assaltaram, fizeram buscas, investigações e com uma pertinácia, quase obsessão, acionaram todas as ferramentas para atingir o objetivo e reouveram os meus pertences, meu celular, a carteira e até os poucos trocados que ainda restavam.

Eles me ajudaram com a mais alta competência. Porém, com o passar das horas, percebi que alguma coisa diferente acontecia comigo. Era como se o mundo debandasse às minhas costas e a vida se tornasse insossa e cada vez menos visível. Como se estivesse envolto em feno e era apenas o seu sabor e cheiro que sentisse. Não tinha a impressão de nada, mas tinha a intuição apurada a ponto de perceber o que sempre sonhara: o monstro se aproximava e desta vez, estava bem perto, me encarando.

quinta-feira, agosto 03, 2017

A pedra

Ao terminar de fazer as compras da feira, Maria Emília voltou para casa. Não tinha outra alternativa a não ser tomar o ônibus superlotado porque já era horário de meio-dia. Com dificuldade, passou a roleta e desviando-se de um e de outro, foi até o fundo do ônibus, já que a sua parada era bem distante. Com sorte, conseguiu um lugar, espremida entre as sacolas de compras e uma caixa trazida por um homem ao lado, além de outras pessoas que se equilibravam em pé, ocultando-lhe a frente, sem poder ver por onde o ônibus seguia. Na verdade, não precisava. Conhecia aquela rota como a palma de sua mão.

Um suor forte empapava o rosto e o pescoço. Sentia uma certa vontade de urinar, mas esta necessidade não era adequada para aquele momento. Tinha que esforçar-se em pensar em alguma coisa bem diferente para a vontade não apertar ainda mais. As pessoas se acotovelavam e tentavam se mover de um lado para o outro, tentando adequar-se ao ambiente sufocante. Uma das sacolas, com aquele atropelo próximo a ela se rasgou e alguns tomates e maçãs se espalharam por debaixo do banco.

Maria Emília suspirou desiludida. Como pegar as frutas que se escorregavam para lá e cá. Um rapaz puxou algumas com os pés e ela conseguiu segurá-las, dobrando a barriga sobre os joelhos e sentindo uma fisgada nas costas. Ficou a metade perdida, mas ela sorriu agradecida.

No final da linha, ela desceu e caminhou mais algumas quadras com o que restara das compras. Sentia-se mal no sol intenso. O suor aumentava e agora descia até o peito, talvez percorresse todo o corpo se demorasse mais um pouco. Uma leve tontura e um tremor nas pernas. Maria Emília não queria parar, precisava chegar em casa e atender os filhos, mas percebia que a dificuldade de caminhar aumentava. Então, sentou-se numa pedra que ficava na esquina, de onde avistava uma casa abandonada, um pequeno bar mais adiante e um terreno baldio. Não faltava muito para chegar em casa e logo que pudesse, levantaria e faria o trajeto o mais rápido possível. Entretanto, a tremedeira aumentava e Maria Emília não tinha coragem de confessar a si mesma de que não voltaria para casa. Estava com muito medo e ninguém passava por ali, naquele calor insuportável. Na hora do meio-dia, todos fugiam da rua e se refugiavam nas casas para o almoço e ficar longe do sol o maior tempo possível.

Maria Emília rezou. Precisava de forças para chegar à casa e ver os filhos. Uma dor no peito a deixava angustiada. Tinha medo de morrer ali, no meio daquele vazio ensolarado, enquanto as pessoas preocupavam-se com suas vidas. E o que significava a vida dela, a não ser uma pequena centelha, quase faísca, quase brasa morta no meio de um fogaréu imenso. Tentou olhar para cima, mas a luz do sol não a deixava ver nada, ao contrário, obrigava-a a fechar os olhos e concentrar-se em si mesma, olhando-se internamente, como quem examina um cadáver. As vísceras, as veias, o cérebro. Tinha a impressão que se observava por dentro, como se fosse uma entidade alheia, vendo o próprio sangue em golfadas pela boca, ao mesmo tempo que sentia um gosto insuportável. No entanto, nada mais acontecia, a não ser um silêncio quieto e um apagamento natural.

Quando acordou, achou que tudo ocorrera há muito tempo e que talvez houvesse morrido e voltado à vida, assim, do nada. Sentia-se um pouco melhor e pôde mexer-se. A dureza da pedra e suas reentrâncias doíam-lhe as carnes, esfolava as pernas naquela aspereza e as mãos estavam crispadas, segurando alguma coisa que não sabia muito bem do que se tratava. Conseguiu dobrar-se com esforço e perceber que segurava um livro, um livro de capa branca e se pudesse abri-lo, veria que em nenhuma página havia algum registro, alguma expressão escrita ou desenho, ou qualquer outra ilustração. Era um livro de capa branca e em branco. Deixou-o cair no chão e virou o corpo um pouco para a esquerda, outra vez para a direita, tentando procurar as sacolas e a bolsa que carregava com os seus documentos e alguns trocados que sobrara da passagem do ônibus. Mas somente avistara o título do livro: Constituição. Esqueceu-o, queria apenas a sua bolsa, os seus documentos, as suas sacolas. Mas elas não estavam ali. Maria Emília se desesperou e quis gritar, pedir por socorro, mas a voz parecia sumir-se num túnel tão grande que as ondas sonoras definhavam pelo meio do caminho.

Maria Emília começou a chorar e achou que não havia saída, que nunca mais voltaria para casa, mesmo que estivesse tão perto, pois jamais sairia daquela pedra e que as coisas morreriam com ela, o seu passado, a sua memória, a sua luta, a sua esperança.

Maria Emília não tinha esperanças. Entretanto, por um momento, pensou que tudo mudaria quando as horas passassem. Quando os homens e mulheres de bem voltassem para seus trabalhos, saíssem das casas abrigadas e encarassem o sol escaldante do início da tarde. Então a veriam ali e certamente a ajudariam a voltar. Quem sabe a auxiliassem com algum dinheiro, com algum alimento, já que não havia nada em casa, nem mesmo o leite para as crianças. Mas eles não apareciam nunca como se houvessem feito um pacto para ficar em casa e se esconderem de um clima adverso e perigoso.

Será que ninguém a veria por ali? Será que ficaria eternamente presa àquela pedra?

Aos poucos, Maria Emília percebeu que a pedra era o único apoio que possuía. Ela era muda, firme e passiva. Era o único recurso que não a auxiliava em nada. Tudo parecia parado, descuidado e omisso com pessoas como ela. A pedra, entretanto parecia responder às suas dúvidas e de repente, começou a crescer, a aumentar de tamanho empurrando-a para os lados, ao mesmo tempo em que ela se agarrava com todas as suas forças para não cair, porque ao mesmo tempo em que escorregava, subia para o topo e ficava cada vez mais longe do chão. A pedra inchou tanto, que ela se assemelhava a uma formiga na laranja, porém havia uma vantagem: lá do alto, podia por fim, avistar o povo que se aproximava. De repente, eles saíam de casa. Talvez tivessem um motivo forte para irem para a rua, quem sabe protestarem contra aquela situação absurda em que a apatia tomava o espírito dos brasileiros.

Algumas mulheres se aproximavam como se estivessem num velório, chorosas e sem atitude, desordenadas, parecendo zumbis. Algumas traziam pequenas bolsas, só com documentos para comprovarem quem eram. Nas mãos, visores coloridos se conectando. Os homens carregavam mochilas às costas, também usavam celulares e aparentavam sorrisos mornos, provavelmente fruto de mensagens lúdicas. Entretanto, pareciam mais apáticos e sentiam-se mutilados nos pensamentos, desprovidos de expectativa de alguma mudança da realidade. Talvez nem quisessem isso ou nem se importassem. Talvez soubessem que o Brasil não tinha jeito.

Maria Emília percebeu que eles nem olhavam para ela, talvez nem a vissem lá debaixo e embora gritasse, pedindo ajuda, não a ouviam. Mas ela percebeu que, um pouco afastado, um rapaz de capuz se aproximava, embora dando guinadas e fumando um cachimbo estranho. Quando chegou mais perto, ela pode ver que ele carregava as suas sacolas e sua bolsa, logo atirando-as no terreno baldio. Eram apenas sacolas rasgadas e vazias, um que outro objeto que ela não distinguia bem, talvez um relógio, mas ela não tinha nenhum relógio, o que seria aquilo? Havia um brilho forte no tal objeto, como se fosse uma arma, sim, talvez uma faca, um punhal. Percebia o amarelo dos ovos se esparramando pela grama seca e algumas frutas que ainda restavam se misturavam ao lixo do terreno. E seu dinheiro e seus documentos, o que ele fizera com eles? Gritou em desespero para que a ouvisse. E ele ouviu. Foi o único que a viu sobre a pedra gigante e parecia divertir-se muito com a visão. Ria sem parar e dava pequenos gritos, como uivos até jogar-se ao chão e ficar desacordado.

Maria Emília estava desolada. Nunca mais a encontrariam, nem seus filhos, nem seus amigos, nem mesmo os parentes. Para eles, ela estaria morta e embora aparecessem por ali, jamais a veriam porque havia um pedra gigante em que se apoiaria para toda a vida. Seu destino, por certo, era virar pedra, fazer parte daquele aglomerado de minerais e transformar-se numa figura invisível, um camaleão disfarçado em pedra, para sempre.

Foi quando percebeu que dois policiais se aproximavam. Ela nem gritou, nem falou nada, pois já não tinha esperança de que a ouvissem. No entanto, viu quando pegaram o menino, deram-lhe algumas bordoadas, uns pontapés, golpearam a cabeça com o cassetete e o levaram para o camburão. Depois, viraram-se para a esquina, aquela onde ficava mais perto de sua casa. Tiraram umas faixas do carro, com algumas expressões em letras garrafais. Esticaram-nas de uma árvore à outra ou as prenderam em postes para que ficassem bem à vista.

Maria Emília conseguiu ler alguma coisa, que a deixou mais perturbada ainda. Não era muito boa em matemática, mas a leitura sempre a agradou e por isso, lia bastante, tudo que aparecia, desde textos escolares até algum romance que passava por suas mãos.

As frases eram firmes, exatas quase matemática.

“Só um governo. Só uma justiça. Não à democracia.”

Maria Emília sentiu que a pedra se alongou mais ainda, como um obstáculo que a empurrava para o topo, para o fim do nada. Como pedir ajuda, como sair dali. Então percebeu que pessoas como ela estavam fadadas a serem esmagadas pela pedra e que ela giraria até que ela despencasse sem vida. Então, respirou fundo e se acalmou. Afinal, não havia justiça mesmo, não havia nem democracia. O país estava no fundo do poço.

Maria Emília, porém ainda teve um resquício de esperança quando viu algumas crianças se aproximarem e teve um choro convulso ao perceber que seus filhos também corriam pelas ruas. Só desanimou, quando os viu servirem-se de restos de comida, jogadas nas esquinas, talvez para os cães. Sentiu uma dor profunda no peito, como um golpe de punhal dilacerando as carnes, as vísceras, o cérebro, o coração e escorregou da pedra.

quarta-feira, agosto 02, 2017

UM GOLPE NO OUVIDO

Juntou as chapinhas de bebida e sentou-se à sombra, olhando para o nada, mas com a certeza de que aquela árvore o acolheria para sempre. Puxou um real do bolso e pensou no que poderia fazer dali em diante. Quem sabe, voltar à oficina, juntar os seus pertences, pegar a mochila farrapada e tomar um rumo na vida. Entretanto, sentia-se impotente, até assustado com a situação. Voltar a juntar latas de alumínio, chapinhas de refrigerante, limpar as lixeiras e esconder-se embaixo de qualquer marquise era uma onda que não queria reviver.

Lembrou-se do Guto, com aqueles olhos esbugalhados e a boca aberta, o sangue escorrendo pelo chão visguento de diesel. Sentiu um arrepio. Tinha mesmo que dar o fora, antes que alguém chegasse e o acusasse de ter matado o negrão. Por que ele tinha voltado àquele lugar? Tinha passado tanto tempo e tudo ficava na mesma. A mesma galera, as bebidas de sempre, a maconha, a farra, mas nada tão pesado e difícil. Havia um líder e não era ele. Ele era um pobre coitado que se agregara `aquele pessoal que nem se interessava com a sua presença no barraco.

Melhor seria voltar para casa, pra cidade do outro lado do canal e viver a vida que não pedira a Deus. Mas não pedira aquele caos também. Não quisera participar do tráfico e hoje não era nada, mas a qualquer momento, poderia ser mais um presunto espalhado pela cidade.

Tinha que fugir, desaparecer do mapa, esquecer a mochila, esquecer as latinhas, o material pra vender e tomar outro rumo. Já pensara nisso um milhão de vezes, mas não bastava o pensamento. Precisava de ação, mas não tinha coragem. Precisava de uma coisa forte, não uma simples maconha que só o deixava ausente. Queria um crack, uma cocaína, qualquer merda que funcionasse a cabeça, que o libertasse do medo e enfrentasse o mundo.

Outros lhe vinham à mente, principalmente, o Zarão, um x-nove de primeira, aquele que podia levá-lo a ruína. Ele ia juntar as coisas: ver a mochila, as suas roupas, aquele retrato da família e acusá-lo. Não descansaria enquanto não o pegasse e fizesse justiça conforme as leis do bando.

Não, ele não queria ser torturado, trucidado, morrer feito um infeliz pedindo por clemência.

Ele que já fora um poeta, um cara que curtia compor e cantar na comunidade. Ele que sabia distinguir uma boa letra de um agrupamento de frases sem sentido, sem lirismo, sem sentimento, sem beleza.

Ele que chorava, às vezes, ao ouvir determinada melodia, ele que já fora até humano. Mas agora, precisava juntar as latinhas, vender o que podia para ganhar algum e por o pé na estrada.

Por um momento, sentiu-se atropelado por um pensamento estranho, como um golpe no ouvido. E se o Guto não tivesse morrido? E se o presumível assassino estivesse por aí, procurando-o porque ele mexeu nas coisas, investigou o cenário, certificou-se de que havia furos de balas nos carros e que a gasolina se misturava a todos os óleos que faziam parte da oficina.

Mas por que o matariam se o Guto não houvesse morrido? Por que o procurariam se não fez nada, a não ser deixar marcas pelo piso escorregadio e a maldita mochila esfarrapada, nada mais. Por que o acusariam se não poderia responder por nada?

A cabeça dóia, os cabelos grudavam pelo suor e seus olhos pareciam injetados de sangue, como se todas as drogas que usasse fizessem efeito ao mesmo tempo.

Precisava fazer alguma coisa, antes que alguém chegasse e o crucificasse ali, naquela árvore, em plena sombra numa tarde de verão.

Procurou os documentos no bolso e viu um nome que não era seu: Gustavo da Silva. Não deviam estar ali, nos seus bolsos os documentos do Guto, quem os colocara, o que estava acontecendo? Por que não o deixavam em paz?

E seus documentos, e seu nome e sobrenome que haviam desaparecido. Também ele se esquecera, também ele não sabia de quem se tratava e a cabeça doía muito quando tentava lembrar.

Foi aí que o carro da polícia parou ao seu lado. Eles se aproximaram rápidos, levantaram-no do chão e o algemaram.

O que pensam eles? O que querem dele? Não foi ele quem matou o Guto. Ele é que era o dono da boca. Apenas trabalhava na oficina, era um simples borracheiro.

Disse-lhes ainda que era cantor, que tinha sentimentos, que não estava nessa de crimes, de tráfico de drogas.

Eles sorriram e o empurraram para o camburão e o pior: insistiram em chamá-lo de Gustavo da Silva, vulgo Zarão.

sábado, julho 29, 2017

A esquina iluminada

Fabrício desceu os vinte e cinco andares do prédio, tateando pela luz fraca do celular. Ainda bem que não tomara o elevador, pensara, ainda aturdido pela queda de luz. Dirigiu-se ao carro e em seguida afastou-se, passando pela portaria e cumprimentou com um meio sorriso os dois funcionários, que pareciam olhá-lo surpresos. Já chegando à rua, ouviu um “oh” festivo pelo retorno da iluminação.

A noite se antecipava e ele continuava no bairro tão próximo ao de sua infância, olhando pelo retrovisor do carro, como se a qualquer momento um personagem desavisado voltasse para o cenário antigo.

Coração atribulado. Desceu do veículo e caminhou rápido, atravessando ruas, dobrando esquinas, sentindo o frio produzido pelo sereno que molhava do paletó aos cabelos.

Em seguida, deparou-se com um bar muito parecido com o de seu pai. O frontispício com aquelas ramadas sobre a porta de duas abas, expressando o tempo passado. Havia música ruidosa anunciada por um apresentador, espécie de show improvisado.

Entrou e encostou-se no balcão, acomodando-me entre meia dúzia de homens que se acotovelavam, bebendo e conversando em brados, misturando as vozes com a música que uma cantora se esforçava em dividir com o som e as imagens do futebol na TV. Algumas mesas faziam um círculo com pessoas entusiasmadas que aplaudiam, semelhante a uma plateia de teatro de arena. É provável que fossem amigos ou parentes da cantora magrela, que produzia uma perfomance estranha, vestida de couro em preto, da cabeça aos pés, olhos fundos, salientados por traços escuros, contrastando com uma franja lilás.

Fabrício nem percebera que o atendente perguntara pela décima vez, talvez, o que pretendia beber.

— Cigarros. Pode ser desse azul, aí. – Apontou para o mostrador na parede.

— Só isso?

— Só isso não… – O outro afastou-se para servir o cliente mais à direita, mas insistiu que nem queria cigarros, mas sim uma cerveja.

Fabrício percebeu que o atendente transferira o seu pedido ao garçom magro e de cabeça pelada, que se espalhava entre as mesas. Irritado por ter sido preterido, indagou por que não lhe atendera. Justifiquei a sua indignação, dizendo que teria de esperar que o outro, que estava no lado oposto do bar, viesse até ali e lhe trouxesse uma cerveja.

Alguns homens que estavam ao seu lado voltaram-se para ele, mas logo o esqueceram. Também o caixa fingia não ouvir. O mundo parecia eliminá-lo do cenário.

Antes que o garçom se aproximasse com a cerveja, voltou ao assunto, pedindo esclarecimentos ao homem:

— Não seria melhor teres me atendido? Tiraste o outro da atividade dele.

Ele coçou a cabeça irritado, enquanto o garçom sorriu por um minuto e logo se afastou em direção ao grupo que pedia outras bebidas. Ficou encarando o balconista com raiva estudada.

O vendedor respondeu, sem voltar-se para ele, como se o seu foco fosse alguma coisa abstrata. Enxugava as mãos num guardanapo cinza, que devia ter sido branco e assentava os cotovelos no balcão. Os braços eram fortes, com veias salientes e estranhas tatuagens.

— Olha aqui, meu amigo. Não to aqui pra dar trela. Tu já foi atendido, desencana.

Fabrício percebeu o jeito displicente, o cabelo empapado em gordura, o bigode grisalho mal afeitado. Talvez por isso, decidira levar a discussão adiante. Respondeu que ele estava ali para dar trela sim, usando as suas palavras. Afinal ser atencioso e eficiente devia ser uma regra de boa convivência, pois o bar era um ambiente público, no qual o cliente deveria ter prioridade absoluta.

O outro respondeu já na outra extremidade do balcão, atendendo na caixa:

— Meu amigo, não tenho tempo pra discutir isso tudo que tu falou aí, do teu manual. – Terminou a frase rindo com ironia, piscando para o freguês a quem dava o troco, que também sorria.

Um ódio se insurgiu nos sentimentos de Fabrício e por um instante, imaginou o pai na figura daquele homem, extrapolando as suas funções e dando lições de moral. Foi neste momento, que gritou:

— Para coçar o saco, enquanto oferece um salgado, tu não te importas! Nem ao menos, pegas um garfo, um guardanapo de papel. Estás sempre pendurado neste pano de pratos sujo em cima do balcão. Eu poderia chamar a vigilância sanitária e fechar esta espelunca.

— Tu é da fiscalização? Se não é, vaza! Não me enche o saco!

— Sim, como todo cidadão.

Um dos que estavam ao seu lado, um homem franzino e de pescoço comprido, se pronunciou agressivo, mandando-o calar a boca. Não pensou duas vezes e o acusou de ser um alienado.

— Não te mete, seu garnizé. Se tu és daqueles indivíduos que aceitam tudo sem reclamar, o problema é teu.

— Tu tá criando caso, só isso. Já foi atendido, não foi? Então fecha a matraca, que a gente quer assistir o jogo – disparou com fúria solidária ao companheiro, um outro de corpo avantajado e camisa regatas.

Fabrício sentia náusea do suor que brilhava na axila peluda. Afastou-se um pouco dos braços enlaçados do balcão e resmungou "um bando de idiotas!".

Pegou a cerveja que lhe foi empurrada da caixa e e dirigiu-se a uma mesa próxima ao palco improvisado, no qual a cantora, neste momento encerrava a apresentação.

Em seguida, o rapaz de cabeça pelada limpou a mesa e antes que se afastasse, ele agradeceu e ficou em silêncio.

Bebeu o primeiro gole e a bebida escorria amarga. Entornou um copo atrás do outro até acabar o conteúdo. Havia uma necessidade de terminar e pedir outra cerveja. Desta vez, o garçom foi rápido. Continuou no mesmo processo, embora agora, sentisse uma certa euforia na bebida. Olhava enviesado para os habitués, que a esta altura, o haviam esquecido , fascinados que estavam pelo futebol.

Os ruídos se aceleravam, além do som da TV, como se fosse um final de festa, sem a música, apenas os ruídos remanescentes.

Ao terminar, Fabrício levantou-se da mesa, empurrando-a e riscando os seus pés de metal no piso.

Ato contínuo, aproximou-se da caixa, onde estava o pivô da discussão, agora tranquilo, apenas assistindo o jogo. Chegou bem perto para chamar-lhe a atenção, gritando para que todos ouvissem:

— Um dia, tu vais aprender a tratar bem as pessoas.

O atendente voltou-se surpreso e muito assustado, porque Fabrício apontou uma arma em sua direção.

Os demais se afastaram correndo do balcão, produzindo uma clareira no centro do bar.

Apenas ele e o balconista se enfrentavam.

Algumas mulheres gritavam em pânico.

O rapaz da cabeça pelada escondia-se num nicho de uma porta que certamente existira no passado, atrás de uma cortina ensebada.

Fabrício percebera que o homem da caixa estremecia e falava com uma voz gutural, esforçando-se em me pedir cuidado.

— Calma com este troço aí, amigo, isso não é brinquedo.

Não lhe deu ouvidos, ao contrário, engatilhou com a mão firme e respondeu com fúria:

— Não me chama de amigo, seu palhaço. Eu não sou teu amigo!

O outro fez um anteparo com as mãos espalmadas em sua direção, apavorado.

— Está bem, mas por favor, vai embora. Que pensa que tu vai fazer, pelo amor de Deus!

Ele começou a rir, sempre apontando a arma para ele.

— Agora estás te cagando de medo, seu covarde! Cuidado, vais te borrar nas calças – e voltou-se para a plateia silenciosa – vejam pessoal, o valentão está se borrando de medo!

Virou-se num segundo para o balconista e o viu abaixar-se atrás do balcão, com os olhos arregalados, suplicando por sua vida.

Não podia atendê-lo, significava muito a sua liberdade, por isso, o atingiu.

Um estampido somente. Um breve instante e uma risca de sangue pela boca, o pulmão perfurado. Rápido, fulminante, certeiro. A morte atrás do balcão. Mais um idiota intolerante fora eliminado.

O garçom de cabelo muito curto trazia outra cerveja e comentava alguma coisa, mas não o ouvia. Ficou parado, pensativo, tentando adivinhar o que estava fazendo ali. Entretanto, segurou a garrafa com parcimônia, agradeceu e deixei-a sobre o balcão de pedra.

Quando voltou a vê-lo, ele já estava do outro lado, servindo as mesas restantes.

Olhou para o caixa que parecia esforçar-se em manter-se alheio. De vez enquanto, arriscava por debaixo dos olhos para os fregueses e acenava a cabeça, entediado com as conversas e as beberagens. Quando respondia alguma pergunta, nunca encarava as pessoas e quase sempre entregava as tarefas ao garçom, mesmo que este estivesse perdido entre outras mesas.

Examinou o seu olhar miúdo, um tanto ausente. Devia ser o dono daquela espelunca, pois demonstrava muito zelo pelas contas.

O atendimento deveria ser mais amistoso e pessoal, pensou. Entretanto, não reagiu, não tomou qualquer atitude que expressasse o seu descontentamento.

Se tivesse uma arma naquele momento, teria atirado naquele imbecil ou talvez apenas avistasse pela janela a esquina toda iluminada e decidisse seguir em frente.

sexta-feira, julho 28, 2017

Meu padrinho, o turfe e a laguna

Meu padrinho estava sempre disposto a levar-me ao hipódromo, a sua paixão. Eu, guri de 12 ou 13 anos, não me interessava muito pelo esporte, entretanto, aquele passeio de certo modo, representava uma liberdade de ação, da qual não tinha acesso à época, em virtude da severidade da disciplina paterna.

Meus pais muito severos no encontro com os colegas ou na eventualidade de passeios com desconhecidos, não permitiam passeio sozinho pela cidade, principalmente em lugares diferentes dos que frequentava. A possibilidade de me relacionar com meninos desconhecidos, de jogar bola nos campinhos de várzea, de me embrenhar pelas dunas próximas à laguna, geralmente criavam muitos conflitos.

Pois bem, meu padrinho significava essa liberdade, essa possibilidade de passear com ele, mas com o direito de fazer o que quisesse, ou seja, não participar das carreiras com as quais tanto se encantava. Eu aproveitava o momento para encontrar os amigos.

Naquela tarde domingueira, fui como de hábito ao jóquei-clube ao seu lado. Para mim, era uma pequena viagem, pois demorávamos muito a chegar. Lá, meu padrinho se ocupava dos conhecidos e eu aproveitava para sair. Deixava-o tomando uma cerveja e confabulando sobre o cavalo que sinalizava o melhor prêmio, ou mais previsível ou o azarão e me afastava, indo ao encontro dos meus melhores momentos.

Ali, bem próximo ao hipódromo, ficava a laguna, cujas margens contornavam a cidade em toda a extensão e naquele espaço não havia casas, mas muitas dunas, algum pequeno campo com areia onde jogávamos futebol e depois nos refrescávamos nas águas da prainha, deixando o futebol improvisado para a natação mais precária ainda.

Atravessávamos o lamerão, o chamado lodaçal que se desenhava numa ampla faixa para chegarmos á agua límpida da laguna e ali nos envolvíamos nas marolas e passávamos tanto tempo que nem percebíamos se era tarde ou cedo.

O problema era sempre a volta, cujas explicações não convenciam em nada meus pais pela roupa encharcada e suja ou pelos tênis embarrados. Embora, muitas vezes, eu participasse do ambiente dos jogos, dos bilhetes, das apostas, da torcida, naquele cenário fervoroso do turfe, meu padrinho sabia que mais dia, menos dia, eu fugiria para aquele tufo de liberdade, do qual buscava como um cavalo marchador. Eu que me explicasse em casa. Sua alma, sua palma, dizia ele.

Outras vezes, saíamos pela cidade. Ele costumava tomar café no mercado público, tinha muitos amigos pelas redondezas e cercava-se do pessoal das ilhas ou mesmo dos amigos do turfe, que também frequentavam o lugar. Eu costumava observá-los e perceber que apesar da rudeza das argumentações, das conversas sobre a lida no campo ou no trato com os animais, ou mesmo entre aqueles, que como meu tio eram pequenos comerciantes, havia entre eles um elo de amizade muito grande, cuja sensibilidade revelava homens com maturidade humana muito forte. Percebia, nos discursos pouco estruturados, as informações que indicavam confiança na vida e no ser humano, que somente mais tarde a vida me revelaria.

Por vezes, observava-o sorver o café devagar, enquanto saboreava o pastel frito na hora e de vez enquanto, tentava me incluir nas conversas. Esse guri estuda muito, é muito dedicado, vai ser grande coisa na vida. E dava um meio sorriso que às vezes parecia revelar uma certa desconfiança, misturada com orgulho. Na verdade, ele acreditava que eu teria uma profissão digna, mas talvez não conseguisse projetar em suas percepções simples, o que realmente eu faria na vida. Estudar já bastava.

Era um homem tímido, mas ao mesmo tempo de muitos amigos. Eu gostava de sua presença, gostava da companhia e deixava outros companheiros para ficar ao seu lado.

Talvez aquele misto de liberdade, aquela volta na laguna, o encontro com os amigos, o encantamento nas corridas do jóquei-clube, simbolizassem para mim um homem que aproveitava o lado bom da vida com uma certa leveza difícil de se aceitar nos dias de hoje, e de certo modo, indicava um caminho, me deixando livre para também acolher o que a vida me oferecesse.

Um bom homem.

Fonte da ilustração: Escritor, poeta e fotógrafo Wilson Rosa da Fonseca.

quarta-feira, julho 26, 2017

O VIGÉSIMO ANDAR

Às vezes, tenho a impressão de que as paredes do elevador se aproximam e me acolhem com delicada impaciência. Passam por meu corpo faminto e suado e me dizem coisas desconexas, que somente elas entendem.

Seguro-as com força: as mãos espalmadas, o peito encostado em suas carnes metálicas. Sinto um leve arrepio.

Não consigo afastar-me, como se estivesse irremediavelmente preso, quase fundido em suas fibras e entranhas.

O elevador para no décimo andar.

Um homem entra e finge não me ver.

Ao mesmo tempo, as paredes se afastam, tal como eu, que me encosto no ângulo da esquerda. Ali, a minha visão é privilegiada.

Olho em torno, retribuindo a distração.

Ele abre uma maleta, retira um notebook e examina qualquer coisa, sem muita atenção.

Observo-o firmar os olhos na direção da porta. Parece ansioso. Reparo que tem olhos claros e frios. Talvez seja um executivo, um professor de línguas, um advogado. Não é, porém, um cidadão de bem.

Percebo a aflição que paira inquieta em seus olhos. Um olhar oblíquo, dissimulado. As mãos magras e ossudas.

De vez em quando, lambe os lábios, ressequidos, e se eu não estivesse ali, talvez lambesse os dedos. Ou coçasse a cabeça, ou limpasse o nariz com o mindinho.

Sei que se comporta em atitude imóvel, porque estou aqui, bem a sua frente.

O elevador para no vigésimo andar.

Ele tenta abrir a porta. Espalma as mãos, com força, mas nada acontece. Emperrada. Decidida. Mais forte do que ele.

Às escondidas, dou um meio sorriso. Sei como são estas coisas e como acabam.

Ele empurra com o joelho, esfola a perna. Debate-se na parede. Então, se volta para mim, aturdido. Pergunta:

― Que está acontecendo? – não respondo, também tenho meus caprichos.

Aquela sofreguidão na fala, a total insegurança, o medo estampado no rosto, me deixam quase feliz.

Ele me olha cada vez mais apavorado. Aperta todos os botões. Grita por socorro.

Por fim, eu vaticino, despreocupado:

― Já estou acostumado.

__ Acostumado com o que? Que quer dizer?

—Que tudo é possível, quando se está assim, sozinho dentro desta caixa, não há como sair, escapar, fugir. É inevitável.

— Como assim? Por que diz isso? Eu quero sair daqui, imediatamente! Pelo amor de Deus, eu quero sair! Aqui dentro – afirma ofegante – Eu fico louco!

― É tudo uma questão de hábito. Com o tempo, tudo fica normal.

—Como “normal”?! Nada é normal preso aqui dentro. Escuta, eu quero sair, dessa porra! Pelo amor de Deus!

— Sinto muito, meu amigo. Não posso fazer nada.

— Por que está tão tranquilo? Por que não pede ajuda?

— Porque nunca mais sairemos daqui. Estamos no vigésimo, não?

—E daí, você é louco! Claro que vou sair. Alguém tem que nos ajudar! Socorro! Socorro! – Dá pontapés na porta, em absoluto desespero.

— Não adianta, ninguém vai ouvir você daqui!

— Não diga bobagens! É só uma questão de tempo. Faça alguma coisa, você também!

— Não posso, porque chegamos ao vigésimo!

— O que isso tem a ver? Não me interessa em que andar estou, quero é sair dessa merda, não ta me entendendo?

—Uma pena, que você não possa entender.

—Então me explique, pelo amor de Deus! O que quer dizer com isso?

— Que o vigésimo não existe! Do décimo nono, saltamos para o vigésimo primeiro.

— Como assim?

— Muito simples. O vigésimo é uma porta sem saída, para o nada. Quando chegamos aqui, devemos ser pacientes e esperar, apenas.

— Você é louco, não vou entrar na sua insanidade! Vou pedir socorro pelo celular, vou ligar para um amigo, para polícia, para minha mulher, alguém que resolva esta merda!

— Perda de tempo. Aqui não há conexão. A conexão é outra. O mundo é outro.

Ele digita um número com os dedos trêmulos. Por certo, o sofrimento ainda nem começou, mas aos poucos se dará conta que não há como fugir. As coisas são o que são e acontecem de maneira determinada. Não há o que fazer.

Gosto de ver, o quanto a fisionomia deste homem mudou, do olhar frio e dissimulado, passa a ser atarantado, um animal acuado na armadilha. Pânico em suas atitudes, refletindo-se na postura desequilibrada, que se espalha pelo piso do elevador.

Sei que não devo ajudá-lo, é preciso que absorva a realidade. Sua mente deve encher-se do novo. Não adianta esbravejar porque o sinal do celular não funciona. Nem se apavorar com o temor da prisão. Isso é somente o começo.

**********

Iolanda desligou o celular e desceu as escadas devagar.

Na rua, um silêncio absurdo parecia isolar a praça do resto do mundo. Espiou pela porta do prédio e viu o ambiente amplo, completamente vazio. Sombras de árvores deitavam em bancos de pedra. Alguns caminhos irregulares. Afastou a porta devagar, deslocando-se em ritmo lento pela calçada. Sôfrega. Um cansaço parecia acumular-se nos ombros. Aflita dirigiu-se à praça, atravessando rapidamente a avenida deserta.

Que horas seriam? Mais de três horas num dia ermo de semana, sem qualquer possibilidade de movimento. Cães ladravam ao longe e uma pequena brisa começava a sacudir as folhas das árvores.

Olhou para o alto. A lua desaparecia lenta, por entre nuvens e o céu tomava um negrume extraordinário. Se não fossem as luzes da cidade, tudo estaria numa escuridão total. Sentia-se estranhamente calma apesar de tudo. Nem mesmo aquele deserto humano a assustava, não fosse o fato de precisar voltar para casa.

Mas faria isso?

Esperaria aquele elevador infinito que a aturdia, que a impelia a pensar sempre a mesma coisa?

Até quando continuará tão solitária ao lado daquele homem de olhar frio e dissimulado?

Se tivesse coragem, conversaria com o ascensorista para tomar uma atitude extrema. Ele sim, sabia portar-se como um gentleman, desses que não existem mais hoje em dia.

Ah, se tivesse coragem, por certo, Ricardo não atravessaria a porta de casa.

Nunca mais alcançaria o vigésimo primeiro andar.

sexta-feira, julho 21, 2017

Saco de plumas

Nos dias de hoje, quando a intolerância, o preconceito e ódio grassam nas relações humanas, revelados principalmente nas redes sociais, lembramos de histórias que destroem pessoas, não edificam quem as pratica, muito menos servem de exemplos. Histórias que expressam calúnias, opiniões preconceituosas sob qualquer espécie, tanto étnica, política, de gênero ou classe social.

Nestes momentos, as pessoas desandam a falar qualquer coisa que as aparte, aos olhos dos outros, de quem as incomoda. Para estas e até para nós mesmos, quando agimos sem pensar e atribuímos aos outros, como absurdo e imoral, o que discordamos segundo nossos princípios, cabe o fato a seguir que tão bem ilustra o nefasto desfecho de uma calúnia.

Para tanto, pegue um saco de plumas e jogue-as ao vento. Nem precisa subir a montanha. Jogue-as ali mesmo, no terreno baldio em frente a sua casa, ou naquela esquina próxima à praia, onde não passa ninguém, só pequenas dunas se formando pelo vento.

Quem sabe, use os campos, para não sujar as ruas. Nem as dunas, nem o mar. Será muito fácil espalhá-las. Voarão céleres pelo ar, mesmo que não haja vento, tal a sua leveza e fragilidade.

O duro será juntá-las novamente. Na verdade, impossível.

Muito melhor explicado está em histórias antigas, mas a moral é esta mesmo.

Impossível juntar o que se distribui assim, ao léu.

É o que acontece com as calúnias, as presumíveis histórias que impingimos aos outros, os rótulos com que caracterizamos o próximo.

Estas, quanto efetuadas, mesmo perdoadas, jamais poderão ser completamente reparadas, porque ficarão escondidas em várias bocas, vários ouvidos, e nem todos serão esclarecidos.

sábado, julho 15, 2017

UMA PLANTAÇÃO DE BONECAS

Centenas de bonecas se espalhavam no jardim. Quando passeávamos por ali, tínhamos a impressão de que um leilão de brinquedos era instalado ou talvez, tudo procedesse de um longo pesadelo do qual não podíamos acordar.

Passamos por perto, chutando o que nos vinha pela frente, tanto as bonecas, quanto pedras e pequenos objetos de madeira que não significavam nada. Pelo menos, nada relacionado a brinquedos.

Continuamos nosso percurso, um tanto desolados. Parecia também que uma inundação havia deixado aqueles rastros espalhados, a água viera, se acumulara até as janelas, mergulhara os jardins e por fim, retomava ao seu curso, deixando as bonecas arremessadas e sujas ao relento.

Sentia pena. Não podia ser verdade o que diziam. Uma plantação de bonecas, como se fossem espantalhos no meio do milharal? Cada coisa estranha se passava em nossas cabeças, por isso, parei um pouco e tentei refletir sem qualquer emoção. Talvez aqueles objetos fossem apenas fruto de um total desconsolo pessoal, de um desapego de sentimentos relacionados à infancia.

Sentei num dos bancos e o estagiário de psicologia parou alguns segundos me observando. Percebi que ele tinha uma questão que evitava, talvez por imaginar que fosse demasiado primitiva. Então, incentivei-o e ele perguntou, entredentes:

__ Estive pensando... Tudo isso pode ser apenas uma negligência, uma falta de cuidado, mas...

Silenciei por um momento, esperando o desfecho. Como ele deixou o pensamento no ar, conclui:

__Uma falta de cuidado não significa apenas isso, uma negligência. A própria negligência, a falta de interesse revela uma provável tristeza.

__ Então, fico imaginando de onde tantas bonecas? Quem as acumulava? Quem as guardava?

__ Acredito serem de um orfanato antigo.

__ Então os donos que assumiram a casa as jogaram fora.

__ E as deixaram espalhadas pelo jardim? Não há lógica.

Ficamos novamente em silêncio. O círculo se fechava.

Olhei em torno e avistei as bonecas atiradas bem ao longe, tanto que pareciam diminutas. Por um momento, pensei num parque maravilhoso, muito verde e iluminado no qual as pessoas desfrutavam seus pequeniques. Traziam suas maletas vermelhas e abriam os guardanapos xadrez, a toalha, a szarlotka, a torta de maçã ou sękacz, ou os pães de mel em forma de anel. As mães de lenço de seda escondendo os cabelos ruivos e os pais de chapéu, inventando brincadeiras com os meninos. Ah, foi só um pensamento involuntário!

O estagiário sentou ao meu lado e suspirou fundo. Eu sorri e perguntei:

__ Você falou com alguém sobre isso? Alguém da casa?

Não havia ninguém na casa. Talvez nem houvesse novos donos, como imaginávamos. E se tentássemos entrar, e se tentássemos algum encontro?

O dia agora estava mais cinza, mais nublado e as bonecas pareciam pontos escuros no meio do verde arranhado pela lama. Nada do que falássemos nos levaria a algum desfecho.

Por isso, levantei-me e quando pretendia convidá-lo a fazer o mesmo, percebi que fumava uma bagana escura. Talvez tirasse do bolso uma bagana de maconha, já fumada lá mesmo, entre as bonecas. Aquele cheiro adocicado, por um momento me prendeu ao banco, mas resisti e afastei-me uns dez metros. Ele sorriu e permaneceu no mesmo lugar. Queria terminar o processo e parecia se dar bem no que fazia. Sorria de vez enquanto e às vezes, cuspia, limpando a borda da boca com a mão esquerda. Sentia uns arrepios e se mexia todo, sempre sorrindo.

Afastei-me mais alguns metros em direção às bonecas.

Quanto mais me aproximava, mais meu coração me ludibriava descompassado e eu tinha a impressão de não pertencimento ao local.

O cenário ficava lúgubre, áspero, uma dor que me alfinetava, como se um punhal muito fino e afiado me espetasse bem próximo ao coração, entre as costelas, tentando perfurar-me as carnes.

Eu já sentia até o sangue jorrar, mas não era o meu sangue, era um sangue sujo, misturado à lama e brotava das bonecas. Seus olhinhos aguados, as bocas entreabertas, os cabelos queimados, as carecas de plástico cheias de pontos de agulha e fios, aparecendo, como se fossem escalpeladas. Outras de louça, se quebravam no primeiro impacto dos pés.

Dei mais alguns passos na direção delas e percebi que havia sapatos e roupas e óculos e malas. As bonecas não estavam sozinhas, elas tiveram vida algum dia. Elas respiraram, sorriram, foram aos piqueniques nos parques verdes, foram às escolas, às brincadeiras nas casas das amigas, às festinhas de aniversários. Eram lindas as bonecas, eram vistosas e tinham sonhos, muitos sonhos. Agora estavam lá, arremessadas como coisas do passado, coisas usadas e abandonadas, símbolos de uma vida que se rompeu arrebatada pela força, pelo medo, pelo preconceito, pelo ódio, pelo nazismo.

Queria ser como o estagiário e ter a coragem de me afastar daquele mundo, de sorrir de tudo, de zombar da vida e da morte, do ódio e da clemência, da violência e do clamor dos inocentes. Mas não pude.

Meu dever era enfrentar a dor. As bonecas, os brinquedos, os óculos, as malas, as maletas, os sapatos, as mochilas da escola, os retratos na parede. Não podia ficar alheio, precisava abrir bem meus olhos e perceber que elas não mais estavam estiradas no chão, era tudo uma ilusão que minha alma surrada e sofrida criava para me proteger.

Elas estavam bem guardadas entre paredes envidraçadas, em cúpulas de vidro para mostrar a mim e ao mundo que o sofrimento ainda não acabara. Elas estavam lá, me encarando e alertando que tudo voltava como um círculo sem fim. As bonecas de Auschwitz, os laços de fita de Auschwitz, os sapatos, os óculos, os brinquedos, as malas, os retratos na parede de Auschwitz. Elas estão lá e eu jamais as esquecerei. Ficarão na minha mente como semente de dor e horror, como emblema do ódio e da desesperança, do preconceito e da desumanidade.

Quisera ser como o estagiário e nublar minha mente e me desviar da dor, mas não posso.

sexta-feira, julho 14, 2017

Uma saída para o nunca

Todos corríamos pela sala, excitados. Ríamos sem sabermos bem o motivo, talvez impulsionado pela adrenalina de sermos felizes.

Quando a professora chegou, o burburinho custou a desfazer-se, até que nossas almas se acomodassem nos corpos agitados.

Ela parecia mais severa do que de costume, mas de uma seriedade estranha, como se alguma coisa terrível houvesse acontecido. Os cabelos escondidos atrás de um lenço colorido, preso ao pescoço. Os óculos pesados e embaçados, um certo vermelho nos olhos parecendo conjuntivite.

Mas não demos muita importância. Estávamos demasiadamente felizes para nos preocuparmos com a fisionomia de Dona Glória.

Ela permaneceu parada num canto da sala, talvez esperando o momento adquado para dar a notícia.

Mas que notícia seria tão importante a ponto de nos fazer cúmplices de sua angústia.

Alguém gritou do fundo da aula, quase em desafio, perguntando se não teríamos aula, ao que ela, talvez aproveitando a brecha, rapidamente, respondeu que ele estava certo. Confirmou que não haveria aula porque Dona Agripina, a benemérita e devotada às causas nobres da comunidade, havia morrido.

Na verdade, nem a conhecíamos muito bem. Ouvíamos falar dela, sem qualquer deferência que a qualificasse perante a outras pessoas consideradas importantes pela paróquia.

Estudar naquela escola religiosa era participar ativamente da comunidade, mas não para nós, encantados que estávamos com a vida que se desenrolava dentro de nossa imaginação, sem refletir o que significavam todos os demais acontecimentos que não se coadunavam com nossos objetivos ligados ao nosso prazer.

A turma silenciou, colaborando ingenuamente com a professora.

Aí se sucedeu uma etapa nova, principalmente em minha vida.

Organizou-se uma fila e nos dirigimos à igreja, que ficava ao lado do pátio da escola.

Já o silêncio dera lugar aos rumores, cada um falando o que lhe vinha à mente, que lhe aprouvesse, tentando atrasar ao máximo os pensamentos tristes.

Eu estava acabrunhado. Mexia no cabelo rebelde, que me caía aos olhos. Fungava e vez que outra, dava uns espirros que me arrepiavam os pelos ralos dos braços.

A professora pedia silêncio, compungida.

Entramos na igreja e ficamos meio esparsos, entre as pessoas, certamente parentes e outros amigos, que se acotovelavam na fila, entrando rápidos, querendo avistar o que eu insistia em não ver.

Fiquei quieto, entre os colegas, que conversavam, aproveitando a balbúrdia da entrada.

Dona Glória insistiu no silêncio, desta vez irritada.

Todos silenciavam, mas por pouco tempo.

Logo voltavam às conversas ordinárias, preocupados em que estavam com o que fariam após saírem da missa, como o filme da TV, o jogo de futebol na pracinha ou as corridas de bicicleta.

Para mim, não havia estas preocupações, pois tudo se nublava ante meus olhos, que somente os levantava por absoluta curiosidade.

E só avistava os pés de Dona Agripina, sapatos que brilhavam, voltados para a saída da igreja, dividindo o corredor.

A missa parecia interminável e eu não conseguia afastar o olhar daqueles sapatos bem lustrados, enfeitados por rendas, sinalizando a saída que parecia longa demais, quase eterna. Pés que ficavam na minha memória, que se alternavam em meus pensamentos angustiados, que abrangiam um sentimento mais profundo, envoltos que estavam em aflição e medo.

Não entendia muito bem o que acontecia comigo, mas aqueles símbolos mexiam com minha estabilidade emocional.

A tampa do caixão, encostada na parede, com uma cruz dourada em alto relevo, as mulheres de preto fazendo coros de choro intermitente, o cheiro das velas, os paramentos fúnebres, as frases diferentes do ritual, onde se falava constantemente em descanso eterno.

E os pés de Dona Agripina, que apontavam inertes, fortes, mensageiros de uma saída para o nunca, um lugar que eu teimava em desconhecer.

Acho que naquele dia, eu tive a consciência da morte.

O dia que se exibia ensolarado lá fora, lançando rastros de luzes pelos vitrais coloridos, me parecia nublado e triste.

O jogo com os amigos, o passeio de bicicleta, a chegada em casa, numa rotina que agora perdera subitamente a graça, era um presságio de que as coisas mudaram e que eu, aos sete anos, acordara para a vida.

Ou para a morte.

Os pés de Dona Agripina foram os culpados.

segunda-feira, julho 10, 2017

O despertar do brinde

Saber como se adequar às coisas, como se apropriar da vida, como sobreviver. Poderiam ser frases de um reality show de desafios, mas nos dias em que vivemos, parece que os desafios são mais reais e incongruentes do que qualquer programa desse gênero.

As pessoas já não se encaram, nem mesmo quando estão do outro lado do balcão. Basta-lhes a tela do computador ou o visor do celular. Buscam, pesquisam, navegam, incluem números e documentos e quase não se olham. Um trabalho qualquer numa loja é suficiente para se observar estas facetas dos funcionários, bem como dos clientes.

O sistema é o deus onipotente de qualquer trabalho. O sistema abrange desde a contabilidade das empresas e bancos, até o humor dos empresários ou do passante distraído na avenida. Mesmo no transporte, não existe nada mais importante, nem mesmo os sinais de trânsito do que o gps e o celular.

Isso sem falar nas redes sociais. Ali tudo é possível, a mídia virtual manisfesta a todo o momento as necessidades mais urgentes ou menos importantes dos usuários.

Por um momento, penso, como nos apropriarmos de nós mesmos, das coisas que observamos na rua, da natureza, das construções antigas, da beleza das fortalezas, dos faróis, dos mares, dos navegantes, do povo.

Como nos adequarmos ao simples, ao verdadeiro e real? Como ver apenas, sem registrar para os outros, como assistir o show com a intensidade de sua perfomance, sem lançá-lo instantaneamente para o mundo através de milhões de bites, sem aproveitá-lo na íntegra?

É agradável mostrar aos amigos os nossos prazeres, como viagens e festas, mas de um modo tranquilo, registrado sem perder o momento, a espontaneidade da alegria, o despertar do brinde.

Que brindemos à experiência da vida e somente a partilhemos num registro posterior.

Viver é experienciar no ato.

domingo, julho 09, 2017

Aplaudam o palhaço!

Dona Marina surgiu esbaforida, prendendo nervosa, o lenço colorido ao pescoço, fugindo do frio e do vento. Entrou na sala e se recompôs rapidamente. Cumprimentou a turma, esclareceu alguns pontos que ficaram vagos da aula anterior e colocou-nos, de sobressalto, o assunto da prova, que seria na semana seguinte.

Eu sentava entre dois colegas mais chegados. À minha volta, principalmente nas cadeiras da frente, as meninas que voltavam os olhos e os narizes vermelhos, cada vez que um de nós fazia qualquer gracinha.

Camilo estava ao meu lado e comentava os gibis que havia trocado no sebo. Luís encantava-se com o torneio feito por Seu Matias, uma espécie de patrono dos meninos, jogadores de várzea que se esforçavam para fazerem bonito nos campinhos de futebol.

Eu estava quieto, recordando as histórias que criava em casa, as quais escrevia e interpretava sozinho, executando a sonoplastia com uma batida na mesa com um biscuit de minha mãe, embalando as vozes em diferentes timbres, para identificar cada personagem. Sempre um primo ou prima me acompanhava. Tinham paciência para ouvir as histórias e pouco davam palpite sobre o desfecho que eu estabelecia. Importava talvez a nossa cumplicidade em criar um cenário só nosso, de fantasia, sonho e satisfação.

Tais como na rádio, com suas novelas melodramáticas, cheias de lágrimas, tiros e assassinos perdoados, assim eram as nossas histórias. Por isso, naquele dia, estava alheio, lembrando de nossos encontros, esperando ansioso que acontecessem, que a aula acabasse, que Dona Marina desse o bom dia fatal e nos deixasse livres, para vivermos os nossos sonhos.

Ela percebera a minha alienação e naquele dia ventoso, parecia mais atenta e perspicaz do que o normal. Perguntou-me o que estava acontecendo comigo, o porquê de não estar prestando atenção à aula e a partir daí, informou-me uma série de medidas relacionadas à prova, inclusive reprimendas para melhorar o meu comportamento.

Não sei porque cargas d`água, não me contive quieto e passei a ironizar tudo o que ela dizia, todas as frases que expressava ou questionamentos que nos fazia pondo em prática a lição.

Lembrava das perguntas e expressões caricatas que as novelas esculpiam em suas histórias e comecei a falar tal como fazia em minhas sessões solitárias ou ao lado de meus primos. A cada explicação, eu respondia com um “não diga!”, ou a cada pergunta, exclamava “Meu Deus!” ou “Cale-se!”.

Os meninos ao meu redor, dobravam-se em risadas hilariantes.

Aquela atmosfera de alegria, me estimulava a ir mais longe. Então, passei a fazer uso da pasta, que era uma pequena mala de couro, com uma alça, semelhante a dos executivos (moda, naquela época), de forma a parecer-se com um acordeão.

Eu nem ligava se ela estava preocupada comigo ou mesmo indignada ao ser interrompida em sua aula. Ao contrário, tudo aquilo me divertia muito, principalmente porque percebia a molecada se divertir imensamente.

Algumas meninas faziam caras e bocas, denunciando censura. Olhavam para a professora, desconfiadas, exigindo com os olhares que ela tomasse uma providência. Outras, mais brejeiras, riam despudoradas, do meu tango imaginário.

De repente, a professora emudeceu. Exigiu com energia, que nos calássemos.

Eu, soltei a pasta devagar, depositando-a aos meus pés, fingindo que nada havia acontecido. Empurrei-a para baixo da cadeira e selecionei algumas páginas do livro de gramática, sinalizando uma provável pesquisa.

Silêncio absoluto.

Ainda de cabeça baixa, ouvi quando Dona Marina citou o meu nome com a voz metálica e o timbre mais nítido que pôde soar em toda a sala.

Simulei qualquer coisa, resgatar a borracha do chão, impedir a caneta que escorregava pela reentrância do tampo da escrivaninha ou segurar uma folha providencial que despencava do caderno.

Mas não havia como evitar: meu nome fora pronunciado claramente e em som bastante elevado.

Levantei-me ante os olhares assustados dos colegas.

Ela exigiu que eu fosse até a frente da turma.

Ergui-me e fiz o primeiro gesto em obediência, estimulado, acreditando que ela me mandaria para casa. Era o máximo que poderia me acontecer, pois iria para casa, voltaria para as minhas histórias, criaria outras e as interpretaria. Quem sabe, não colocaria Dona Marina como vilã?

Mas foi só por um segundo. Antes que eu desse o segundo passo, ela gritou imperiosa, que eu trouxesse a gaita, ou melhor, a pasta.

Fiquei confuso, o que ela queria dizer? Então, eu deveria ir embora realmente, pois levaria a pasta comigo.

Obedeci, mas agora um pouco inseguro.

Havia alguma coisa em sua voz e principalmente no olhar que não se coadunavam com minha imaginação.

Desviei das carteiras, sorri sem graça para Camilo que esticava o pescoço, jogando dois olhos grandes da órbita em minha direção.

Passos incertos, mãos trêmulas, segurando a pasta pela alça.

Aproximei-me devagar para a frente, como se me dirigisse ao palco do teatro.

Percebi que Dona Marina havia sentado e se escondia atrás da imensa escrivaninha.

Tentei dar alguns passos até ela, mas insistiu que ficasse ali, bem no centro, próximo ao quadro-negro, para que todos me vissem, sem perder nenhum detalhe.

Perguntei, balbuciando:

– Então...? – Não completei a frase, não foi preciso. Ela foi determinada, objetiva, categórica:

– Agora toca a tua gaita. Segura-a como estavas fazendo e toca, de modo que todos te vejam e te aplaudam. O palco é todo teu. – E dirigindo-se ao pessoal, acrescentou, irônica: – Aplaudam o palhaço! Vamos dar um tempo para que ele apresente o show que estava fazendo no fundo da aula.

Eu olhei para a turma, olhei para ela, olhei para mim mesmo. Nem sei se com ódio, ou comiseração. Não havia alternativa, mas uma coisa, eu tinha certeza, não tocaria de jeito nenhum!

Ela então ameaçou mandar-me embora e só voltaria com um de meus pais.

Foi a saída digna da qual eu não abriria mão. Respondi com a voz sumida, que não tocaria.

Ela então me expulsou da sala, imediatamente, sem qualquer tolerância.

Saí aos tropeços, ainda ouvindo do pátio da escola, as risadas da turma.

No dia seguinte, voltei com minha mãe e percebi em Dona Marina uma dualidade que desconhecia.

Era outra pessoa, gentil, educada, até suave. Nem parecia a vilã do dia anterior e, inclusive, me elogiara.

Só restara a corrida de passos miúdos, fugindo do vento do inverno, segurando o lenço colorido para não lhe cair da cabeça, fazendo um nó suave no pescoço e começar uma outra aula, como se nada houvesse acontecido.

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