quarta-feira, outubro 12, 2016

A margem oposta

Fonte da ilustração: fotografia do facebook do escritor e poeta Wilson da Rosa Fonseca

Passei a viver assim taciturno, caminhando sozinho pelas vielas escuras como um vampiro à cata de sangue. Bobagem, a única coisa que talvez nos unisse é a terrível solidão. Tão sozinho como este casaco estirado na poltrona, esperando que sacudisse o pó e o levasse comigo.

Este frio que me atazanava, que me doía as carnes, que me comprimia os ossos e me deixava zonzo. Melhor seria não sair de casa, não enfrentar o vento que fustiga o rosto, que me arde os olhos, que resseca a boca, resfria a alma.

Melhor ficar em casa tomando caldo verde ou chocolate quente.

Melhor esconder-me entre as cobertas macias e ocultar-me do mundo.

Mas precisava ultrapassar as barreiras de meus medos e dar vazão à solidão que me assolava e me deixava assim, desconsolado.

Se ao menos pudesse cometer delito, qualquer delito, mesmo insosso e insano, sem consequência. Qualquer coisa maluca, que não falta grave, mas que me levasse a expiar minha culpa.

Pudera viver como um pária, à margem de tudo, alienado de meus pares, afastado de minha vida mais intima. Por certo, teria motivos para prosseguir.

Caminhada infértil, estéril, vazia.

Quem sabe viveria um momento, um só que fosse, capaz de me transformar em um ser útil.

Desci correndo as escadas e me deparei com a lufada de vento da esquina. Uma esquina sem luz, que se esconde, fronteiriça do mar.

Quisera observar de perto as luzes que oscilam nas ondas negras, brilhando vez que outra, motivadas pelo vento.

Quisera atravessar até a outra margem, afundar meus pés na lama entre os bambus mergulhados. Perscrutar quieto, coração atento, o pousar das corujas, observar seu olhar sagaz nas sombras da noite.

Adentrar mato, inalar o cheiro da terra, esconder-me do vento nas touceiras, conviver com espectros solitários.

Mas ao contrário, o que fiz foi afastar-me da visão noturna da margem oposta, imiscuir-me na cidade, alicerçada em luzes e figuras baratas.

Mulheres que passeavam pelo cais, acenavam, obscenas. Soturnas e sozinhas. Tanto quanto eu e o vampiro de minha fantasia.

De repente, as luzes pareciam mais intensas, movimentos giratórios e alucinantes. Sons que emergiam, línguas de fogo ágeis desfilavam por bares cheios, pessoas que corriam, ruas apinhadas e trânsito parado.

Fechei a gabardine até o pescoço e trouxe a touca aos olhos. Nariz congelado. Óculos embaçados.

Minhas pernas finas, joelhos batendo dentro das calças, ensaiei passos pela calçada lateral.

Um cheiro de gordura do bar de luz amarela e fraca, me dava náusea.

Apoei-me no muro de pedras e sentia as costas doerem. Queria perguntar o ocorrido, acidente, crime, assalto.

Tudo me vinha à mente, mas pouco se transmutava em meus lábios.

Raramente falava, ficava assim, alienado e mudo. Temia ser mal interpretado. Temia respostas. Compartilhamento. Parcerias. Talvez temesse viver.

Olhei em torno, a gordura se misturava com a fumaça do cigarro do homem que passava resmungando coisas sem nexo, iluminado no néon do bar.

Uma mulher se aproximou e por um momento, pensei que se dirigia a mim. Meu coração saltou, desavisado. Mas ela como os outros, entrou no bar ou voltou de onde estava. Nada mais lhe interessava lá fora.

O frio fazia-me bater dentes. Talvez pela ansiedade.

Uma turba voltou aos gritos, conversas aceleradas, corações abalados. Entraram no bar e aos poucos me levaram consigo, como se fosse aquele casaco pendurado na poltrona, que precisava de uso.

Entrei distraído, olhando para o nada.

Mas vi uns balões pendurados no teto e recordei as noites de São João, fogueiras ao relento, chimarrão fumegando, quentão queimando a garganta e nossos olhares congelados na visão dourada do balão que subia. O céu abrilhantado de estrelas, quase cartão postal. Nem percebíamos o frio que enregelava os mais velhos.

Depois, olhei para o chão e vi a lajota rugosa, em preto e branco e me vi pulando amarelinha, espiando no ladrilho brilhante meus olhos curiosos.

Aos poucos, deixei de pensar. Fui empurrado pelo grupo até o balcão.

Um copo de cachaça bateu no tampo de granito danificado.

Uma mão firme no copo, uma mão macia no ombro. O homem me ofereceu, limpando os bigodes, passando a língua pelos lábios, como que purificado pelo álcool. Do outro lado, a mulher da mão macia, me encarava lasciva, revelando na boca vermelha e no olhar, a ponta de alegria que personificava a máscara.

Olhei para um, para outro e aceitei o drinque.

Ela perguntou, voz fina e esganiçada:

— Tá procurando diversão?

Diversão? Foi o que eu procurei em toda a minha vida.

A cachaça escorreu pela garganta e um calor agradável assaltou meu peito. Estufei de alegria. Por um segundo. Logo, a encarei, sério, após largar o copo.

Tentei afastar-me, foi só um gesto.

Ela segurou meu braço, decidida.

— Muito frio lá fora, moço. Aqui dentro está gostoso, não acha? – Apoiou o pé da bota de cano na divisória do banco. O vestido com um rasgo na frente revelou uma coxa branca e macia. Pegou minha mão e fez com que acariciasse sua perna.

Uma música brega envolvia o ambiente, agora numa sonoridade absurda, deixando-me zonzo.

O homem dos bigodes prosseguia ao meu lado, também conversando com outro grupo, inserindo comentários sobre o evento que parecia ter transtornado a todos.

As mulheres já haviam esquecido, mergulhadas em que estavam em suas atividades rotineiras. Umas atendiam no balcão, nas mesas, outras cantavam os clientes.

De súbito, o homem voltou-se pra mim o que me obrigou a fitá-lo, tenso. A voz soou como trovoada longínqua, mas forte, anunciando tempestade.

— Você não é o Gomes?

Balbuciei qualquer coisa, desconfiado.

Ele nem me ouviu. Prosseguiu, inquieto:

— Não é o Gomes, o detetive? Disseram que tu tinha morrido, rapaz. – E antes que eu refutasse a informação, gritou – Pessoal, o Gomes está aqui. Disseram que tinha virado comida de turbarão, mas é mentira.

— Não, não sou o Gomes.

A música mudou para um funk entrecortado. Vozes se misturavam, batidas isoladas. Marinheiros se mexiam nos cantos, ruminando as toadas, conduzindo os corpos em movimentos dublando cantores.

O homem se afastou para um grupo maior, seguido pelo que estava próximo ao balcão. Num círculo, gritou em tom alto:

— Pessoal, hoje a gente paga pro Gomes. Quem diria que o cara está vivo, não é?

Voltei-me para a mulher, afirmando-lhe que não era o Gomes, mas ela parecia apenas acompanhar o movimento dos meus lábios, sem traduzi-los. Repetia, satisfeita:

— Que bom Gomes, que bom que você está aqui. Lembra daquela furada que você me salvou? Jamais vou esquecer, cara.

Tentei argumentar, afastar-me, mas minhas pernas bambolearam.

O banco estremeceu, quase desandando no chão. A mulher o segurou rapidamente. Em seguida, abraçou-me, enquanto dezenas de frequentadores se aproximavam, puxando conversa, narrando casos, aventuras, noitadas, nas quais eu era sempre o protagonista. Não eu, ele, o Gomes.

A bebida rolava no balcão. Até um cigarro de maconha me ofereceram.

—Sei que tu é da lei e não destas coisas, homem. Mas não quer experimentar? Hoje é dia de festa!

Então gritei com raiva, não, não, não queria nada. Eu não era o Gomes. Minha voz, antes indecisa, imprecisa, vibrou uniforme e grave.

Um silêncio sepulcral se fez no ambiente. Até o funk parou.

Entretanto, o homem de bigodes interrompeu e gritou, destemperado. Suava aos borbotões. Eu e ele.

— Pessoal, bota um pagode, que o Gomes quer pregar mais uma das suas peças na gente. Ele é o Gomes! – E um deles gritou, acompanhado nas risadas de muitos: — Gomes, agora tu vai dançar o pagode, cara. E a Marielsa vai te acompanhar. É o seu carma, não tem jeito.

Então, ingeri o restante do copo. E mais enchiam, mais tomava.

O grupo fez um círculo em torno de mim e da mulher, que estava ao meu lado. Devia ser a tal Marielsa, porque ria sem cessar. Reparei que tinha uma falha de dente e o olho esquerdo piscava a cada segundo, fechando de um jeito estranho.

Fiquei paralisado no meio da roda.

O disco tocou, numa voz alucinada, parecendo transbordar de sentimento, num mundo homogêneo de alegria e cumplicidade.

Marielsa aprumava o corpo, seguia o embalo da melodia e se enroscava como uma serpente, tão rápida, que me cegava. A bunda rebolava, sacudindo como gelatina no prato. Minha mão trêmula segurava a gelatina, afastando-se devagar para a cintura fina, mas ela a conduzia para baixo, derreando a mão, seguindo o contorcionismo do corpo.

Fiz alguns gestos, meus pés se espalhavam no chão, desajeitados, filhos pródigos de um pai atencioso.

Minha alma extrapolava o corpo e regurgitava os efeitos do álcool.

Meu cérebro detonava a canção. Ouvia Tom Jobim, Agostinho Santos, “a noite é só nossa, no mundo não há mais ninguém”, Elis Regina, Maysa, meu Deus, “meu mundo caiu”.

Eu estava na bossa nova e eles no pagode, e em seguida, no bonde do tigrão, na Tati Quebra Barraco, boladona, boladona, tapinha nada, me chama de cachorra.

E a acrobacia cada vez mais criativa, nos trejeitos, nos gestos, nos tapinhas na bunda.

E o povo gritava, vai Gomes, vai Gomes, vaaaiiiii.

Então, investi-me no personagem: eu era o Gomes.

O Gomes alegre, folgazão, esperto, ágil, machão e machista. O Gomes do pedaço.

Comecei a abraçar Marielsa, a beijá-la, sentir o seu corpo colado ao meu, até entontecer no bolero da Ângela Maria, “a luz do cabaré já se apagou em mim, o tango na vitrola, também chegou ao fim”.

Comecei a fumar junto à bebida, uma mistura estranha, que me amaciava a alma.

Os amigos do peito se achegavam, contavam casos, se ofereciam a amparar-me em qualquer situação, até insistiam para contar como me livrei do afogamento.

Então, me aventurei pela imaginação, criei desde Melville a Júlio Verne e todos me ouviam quase com fervor literário.

Silêncio absoluto. Só minha voz metálica tilintava no ambiente.

O círculo se fechava a minha volta. Eu, cada vez mais solto e seguro.

De repente, ouviu-se o ruído do vai-e-vem da porta e um homem alto e magro, com uma cicatriz próxima à boca surgiu, como nos filmes de faroeste, apossando-se do saloon. Ensaiou dois ou três passos em minha direção.

Eu parei, ousado. Até sorri.

Ele colocou uma mão na cintura, indicando uma arma.

Todos se afastaram um pouco. Marielsa correu para o balcão, seguida pelo homem do bigode. Percebi que enchiam os copos e observavam apreensivos.

Eu segurei-me impávido.

O homem vestia-se todo em couro: calças, jaqueta, botas. Perguntou, retumbante, bem mais forte do que a de trovão do outro. Raio riscando o céu, faiscando os bambus no charco, enchendo de chamas o mar escuro:

— Você é o Gomes?

Confirmei, firme, quase arrogante:

— Sim, sou o Gomes.

Puxou a arma disparou dois tiros. Um pegou bem no ombro esquerdo. Ainda o vi se afastando e confirmando a sentença:

— Paguei a minha dívida.

As pernas fraquejaram.

Marielsa correu ao meu encontro. Segurou-me nos braços, como a Virgem. Os outros como pinguins em bando, me acercaram.

Pensei que cruzava a margem oposta do cais, mergulhando os pés na lama junto aos bambus, espiando as corujas examinarem o mundo e logo baterem asas, produzindo um som abafado acordando a noite.

Adentrar mato, inalar o cheiro da terra, esconder-me do vento nas touceiras, conviver com espectros solitários. Saberiam por certo, que não era o Gomes.

terça-feira, outubro 11, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 10

No nono capítulo, Sandoval decidiu fazer a revelação numa reunião em que não estivessem presentes Santa e Linda, por isso Santa pediu à empregada, que se escondesse na biblioteca e ouvisse tudo, quando ocorresse a reunião da família. Naquela mesma noite, Santa foi surpreendida por uma pessoa estranha no jardim, que fugira em seguida. Linda encontrara um cartão jogado pela janela e Santa percebera que se tratava da mensagem que dera ao bispo Martim. A seguir, o décimo capítulo de nosso folhetim dramático.

Capítulo 10

Santa aproximou-se da janela, pensativa. Seu olhar perdia-se ao longe. De repente, ficava na dúvida se o seu plano em relação à família era uma atitude correta. Afinal, o que sonhara e que imaginara ser o correto para atender à Virgem e transformar a sua vida, poderia não surtir o efeito desejado.

De repente, poria tudo a perder e a paz que imaginava se transformasse num caos. Na verdade, depois das mensagens e da reunião, as coisas pareciam desandar e a paz imaginada estava se transformando num martírio. Cada dia, uma situação nova a deixava mais preocupada e por mais que se esforçasse em acreditar que haveria uma mudança positiva, sua intuição a condenava a um pensamento cada vez mais pessimista.

A noite passada havia sido terrível, o homem que entrara em seu jardim, o cartão jogado pela janela, o anúncio taciturno que rondava sua vida.

Além disso, aconteceria a tal reunião organizada por Sandoval, que parecia muito estimulado e até otimista, o que a deixava ainda mais assustada. Afinal, seu marido tinha muito a esconder e certamente, o seu passado não entraria na pauta, de modo algum.

Santa sabia que somente Linda estava ao seu lado, neste capítulo embaraçoso de sua missão.

Quando a empregada lhe trouxe o chá, perguntou-lhe sobre a presença dos filhos.

— Daqui a pouco, chegarão, dona Santa. Não se preocupe.

— Sabe, Linda, não sei se quero estar em casa, quando eles chegarem. Ficarão me fazendo perguntas e me questionando o porquê de minha ausência. Acho que devo me afastar.

— Acho que a senhora tem razão, dona Santa. Se eu fosse a senhora, iria até a igreja.

Santa tem um arrepio. Veio-lhe à mente, a imagem do cartão com a mensagem deixada ao bispo. Por que o jogaram pela sua janela e daquela maneira estúpida?

— Em que está pensando, dona Santa ?

—Você me conhece, Linda, não precisamos nem falar nada, não é mesmo?

Linda concorda, satisfeita:

— Sei, sim. Eu percebo quando a senhora está em dúvida, quando está sofrendo. Mas acho, dona Santa, que deve ficar tranquila. Afinal, na igreja, ninguém vai lhe fazer mal.

O argumento produz um arrepio em Santa, cuja confiança já havia perdido. Deixa a xícara sobre a mesa e se aproxima da criada, tentando falar-lhe em tom mais baixo, para que ninguém as ouça.

— Você tem razão, Linda, você sempre tem razão. Mas preciso saber se você está segura para fazer o que prometeu.

— Estou com um pouco de medo, mas não vou fugir, não se preocupe.

— Me preocupo, sim, quero que tudo dê certo, que você consiga o seu objetivo. Esta é a nossa salvação.

Linda tenta tranquilizar a patroa. Em seguida, afasta-se para chamar o motorista que a conduzirá até a igreja. Ainda da janela, a vê afastar-se e acena, resignada. Depois, dá alguns passos decidida, com sorriso um tanto arrogante. Talvez se Santa observasse agora, não conseguisse interpretar o o objeto de sua satisfação.

****

Alfredo, como da reunião anterior, foi o primeiro a entrar na biblioteca. Desta vez, limitou-se a sentar-se, exausto. Vinham-lhe à mente as horas que passara no trânsito, que estava tumultuado em virtude das chuvas, tornando os engarrafamentos insuportáveis. Além disso, não estava preparado para aquela reunião, principalmente sem a presença da mãe e por mais que Sandoval se esforçasse para esclarecê-la, ele não conseguia admitir aquela situação.

O pai mostrava-se ansioso e com uma intimidade que o incomodava. Fazia-lhe perguntas sobre o seu trabalho, oferecia-lhe bebidas, como se fosse uma visita de prestígio e o elogiava a todo momento. A impressão que tinha é que ele pretendia conquistá-lo de alguma maneira, não sabia muito bem o porquê.

Deixou-se ficar numa das poltronas, cabisbaixo. Nem Letícia o acordaria do entorpecimento dos sentidos em que se encontrava. Ainda martelavam em seus ouvidos os resquícios das revelações daquele malfadado encontro, no qual dissera coisas tão íntimas que hoje já não achava que fossem tão importantes, nem necessárias para os demais da tribo familiar.

Na verdade, estava arrependido: tudo o que dissera fora no calor da discussão, no emaranhado de ideias que jorravam com a presença altiva da mãe e do seu interesse em unir a família em torno de sentimentos que já não existiam entre eles. Mas agora, tudo parecia demasiado.

Quando Letícia e Ricardo entraram na biblioteca, ele apenas levantou os olhos, num cumprimento distraído. Ela, entretanto, não permitiu aquela desatenção.

— Que está acontecendo, Alfredo? Você está doente? Por que não me cumprimentou decentemente, afinal, não nos vemos desde àquela fatídica reunião com mamãe.

— Desculpe, Letícia, não leve a mal. Estou com uma enxaqueca terrível, hoje. Mas se sintam cumprimentados, os dois, você e seu marido.

Ricardo estava mais preocupado com o teor da reunião. Foi logo perguntando:

— Você está sabendo do que se trata, Alfredo?

— Nada, sei tanto quanto vocês.

— Esta história de mamãe não participar, está me deixando zonza. Qual é o motivo de tanta asneira?

Alfredo não responde. Letícia então se volta para o pai, que entra e sai na biblioteca, olhando as horas, perguntando por Tavinho.

— Papai, mais importante do que a presença de Tavinho, é a ausência de mamãe nesta reunião absurda. Eu quero saber porque ela não está aqui esta noite.

— Por favor, minha filha, não se exaspere antes da hora. Eu e sua mãe concordamos que não era o momento dela estar aqui. Mas, muito mais do que a ausência dela é a proposta que farei a vocês, isto é que deve nos unir, que deve ser refletido com carinho para a verdadeira união da família.

— Do que se trata?

— Olhe, Tavinho vem chegando – exclama Sandoval, satisfeito – graças a Deus! Agora, poderemos levar em frente o meu projeto!

Tavinho entra e abraça o pai. Aos olhos de todos, parece muito mais afetuoso do que na última vez que o encotraram.

Ricardo olha para Letícia, intrigado. Afinal, ele conhece muito bem o humor ácido do cunhado, para vê-lo tão paciente. Aproxima-se e estende-lhe a mão.

Sandoval vai até a porta e a fecha com cuidado, antes observando o imenso corredor para ter certeza de que o mesmo se enconta vazio. Silêncio absoluto. Encosta-se na porta, sorri.

Atrás das cortinas, próxima à velha estante de madeira, que liga-se ao teto, Linda impede um suspiro cortado. Suas pernas tremem e sua boca está seca. Sente que a sua hora chegou.

Sandoval fecha a porta e aproxima-se da poltrona atrás da escrivaninha. Pede a todos que se acomodem. Está ansioso, mas uma energia nova parece injetar-lhe grande dose de ânimo. Seus olhos brilham, perscrutando a todos, numa expectativa que não é só sua.

Todos fazem silêncio, inclusive Letícia que pretende saber onde a mãe se encontra. Espera, entretanto, que o pai defina o motivo da reunião.

Sandoval inicia com um pequeno discurso, como se fosse um politico experiente no palanque, pronto a convencer seus eleitores.

— Bem, meus filhos, meu genro… – E emocionado – Família, acho que todos estão muito curiosos, afinal, a última reunião foi cheia de surpresas, e diga-se de passagem, até com algumas situações inusitadas, mas não se preocupem. A intenção é resgatar aquilo que se quebrou, naquela reunião fatídica organizada por Santa.

— Papai, não estou entendendo nada. Quero antes de tudo saber onde está mamãe.

— Letícia, ela foi à igreja, pelo que me consta, muito adequado, por sinal.

— Ah, é? Foi à igreja, simples assim? Mamãe jamais declinaria de liderar uma reunião, muito menos depois de tudo que aconteceu.

— Mas foi bem assim. Minha filha, tudo está bem, sua mãe e eu concordamos que ela não deveria participar, ela por um motivo bobo e eu... bem, porque quero abrir os olhos de vocês, quero estabilizar a nossa família.

— E os demais, por que não vieram? O bispo Martin estava muito engraçado naquela reunião. Seria divertidíssimo se ele estivesse aqui.

— Tavinho, não faça bricandeiras, por favor. O assunto é sério.

— Ele tem razão, sogro. Mas mais engraçado do que o bispo era a presença de Linda. Ela estava patética.

Linda torce as mãos, nervosa, temendo ser descoberta, ali, tão próxima. Um calor envolve-lhe o corpo, associado ao desconforto do lugar e a sensação interior que a toma por completo. Mas sabe que não deve recuar, muito menos agora, que não há mais volta.

— Não me falem nessa gente. Vocês estão disvirtuando o que tenho a falar.

— Mas o senhor não acha que ela tinha uma grande revelação para fazer? Foi hilário.

— Pessoal, não viemos aqui para brincar. Eu estou com dor de cabeça, com enxaqueca e quero acabar com isso de uma vez. Deixem papai falar e parem com gracinhas.

— Oh, Alfredo, você está sem senso de humor. Desde que chegou ficou aí, acabrunhado, num canto. Que aconteceu com você?

— Não aconteceu nada, Ricardo! Estou cansado desta palhaçada toda!

— Está bem, pessoal, está bem, não vamos ficar nos agredindo. Meus filhos, precisamos nos acalmar e discutir a situação.

— Mas que situação papai?

— Já que é assim, vou direto ao assunto. Tenho uma coisa terrível para lhes contar, uma coisa que pode mudar o rumo dos acontecimentos em relação à Santa e tudo que ela está tentando fazer com a gente.

— Como assim? Que coisa terrível está acontecendo com mamãe? Ela está doente?

— Alfredo, é com coração alarmado e triste que eu digo para vocês que... é difícil falar, mas não tem outra maneira: sua mãe está louca.

Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/janela-ainda-life-cortina-580982/Esther Merbt

sábado, outubro 08, 2016

Alguns aspectos do filme "A pele em que habito"de Pedro Almodóvar

"A pele em que habito" de Pedro Almodóvar é um filme que a princípio parece uma página em branco. Não há nada a dizer. Mas por pouco tempo.

Aos poucos, nos damos conta da grandiosidade da obra, quando percebemos a realidade perversa das contingências que levam o protagonista a agir de maneira alucinada, ou talvez, excessivamente planejada. 

Mas voltemos ao diretor, Almodóvar, que pensamos por vezes assistirmos filmes semelhantes, com a mesma temática urbana e seus relacionamentos loucos do cotidiano, na efervescência das relações conturbadas do século XXI.

Entretanto, em cada trabalho, o cineasta apresenta a reinvenção do fazer cinema pautada na ousadia dos cortes ou na interrogação da câmera que revela a cena, ocultando.

"A pele que habito” parte de novas narrativas, talvez desconhecidas ao grande público, embora muito bem enfronhadas nos cenários e tramas que por vezes parecem comédia, regadas a certo melodrama.

O filme é uma construção de elementos de muita intensidade, de tal ordem que contabilizam uma narrativa densa e assustadora. Percebe-se que o diretor passeia entre o drama e o humor, cujos elementos de tensão e emoção produzem uma margem estreita entre o sublime, o maravilhoso, o surpreendente e o ridículo. Revela, sem pudores, a imaginação na narrativa, construindo cada passo ao léu dos desvarios das paixões extremas.  

O roteiro é baseado no romance Mygale (1995), que mais tarde foi publicado sobre o título de Tarântula (2005), de autoria do escritor francês Thierry Jonquet.

Para realizar a obra cinematográfica, a partir deste romance, almodovar se mostra mais maduro, distanciado do sistema estabelecido de gêneros de filmes, com a única preocupação de mercado, ao contrário cria uma obra completamente distanciada dos aspectos populares, trazendo um frescor novo ao cinema atual, misturando drama, triller e ficção científica.

A história inicia com a intenção obsessiva de um cirurgião plástico, Robert Legard (Antonio Bandeiras) de criar uma pele nova, pois após a morte de sua mulher num acidente de carro, no qual sofrera potentes queimaduras, ele acredita que através da criação de uma pele ela teria sido salva. Doze anos mais tarde, ele consegue cultivar esta pele em laboratório, aproveitando os avanços da ciência, entretanto atravessando campos proibidos , como a transgênise com seres humanos. 

A partir dessa trama inicial, o filme, com o seu suspense, vai atraindo a atenção do espectador a cada passo.

Almodóvar, assim, toma a ideia do romance de Tierry Jonquet e a transforma a seu gosto, investindo por cenários de sexo, humor, romantismo, obsessão e vingança.

Nesta seara se unem os diversos sentimentos e procuras de cada personagem, culminando com a descoberta do médico e do espectador, que custa a descobrir qual é o rumo que o protagonista realmente persegue.

O filme que mostrar, que a partir da pressão interna e do desejo de vingança, o homem pode cometer as maiores atrocidades, como subverter as regras e aproveitar as capacidades intelectuais e de poder sobre o outro.

Através da morte de sua filha, enferma e presumivelmente estuprada, o médico executa a sua vingança, exercendo o experimento com o estuprador.

Talvez a paixão pudesse ser a grande redentora, ou a morte, ou o encontro da cobaia com a mãe.

Tudo está nas entrelinhas do filme, um misto de terror, drama e o sempre presente humor de Almodovar.

Fica-nos a questão: pode o homem interferir na complexidade da natureza humana, seja sob quaisquer aspectos, tanto sociais, psicológicos ou relacionados à integridade física?

A fotografia da vida de Santa - CAP. 9

No capítulo anterior, quando Linda começou a revelar o que motivara Santa a fazê-la permanecer na reunião, Sandoval teve um mal súbito interrompendo-a. Após a intervenção médica e constando-se que ele não tinha um problema grave, Santa ameaçou-o que se ele não contasse aos filhos sobre o fato que o relacionava à revelação de Linda, ela cumpriria a missão que se propusera. A seguir o nono capítulo de nosso folhetim dramático.

Capítulo 9


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/m%C3%ADstico-árvores-nevoeiro-misty-918502/Unsplash

Sandoval levanta-se da cama e caminha pelo quarto em extrema ansiedade. De repente, a estabilidade de sua família está a perigo. Santa intervém na vida de todos com uma finalidade que não lhe parece nada espiritual, ao contrário, é cheia de vingança e desejos moralistas.

Mas o que fazer para impedir que leve adiante esse delírio?

As últimas palavras da mulher ecoam em sua cabeça, colocando em suas mãos a decisão de propor uma nova reunião.

De repente, uma ideia luminosa, que em sua essência contraditória, o deixa febril e feliz ao mesmo tempo. Olha para os lados, como se temesse ter seus pensamentos descobertos.

Decide então procurar a mulher, para anunciar a sua proposta.

Quando Santa o vê aproximar-se, sorri, satisfeita, pois acha que Sandoval voltou atrás e fará o que pediu. Tem certeza absoluta de que a Virgem iluminou seus pensamentos.

— Eu sabia, Sandoval, que você pensaria com carinho no que conversamos.

— Sim, Santa, acho que você tem razão em tudo o que disse. Você é uma mulher forte, corajosa e sei que está fazendo tudo pelo bem da família.

— Não pense meu querido, que não estou sofrendo também. Infelizmente, é uma provação que devo experimentar, talvez para expiar os meu pecados.

— Você é uma mulher sem pecados. Faz tudo pensando no bem de todos.

— Não diga isso, não sou nenhuma santa, a não ser no nome. Também tenho meus erros e quando tudo estiver decidido, quando todos voltarem para a vida cristã e fizerem o que a Virgem pediu – enxuga uma lágrima, emocionada – eu também me confessarei a todos.

— Você? Não seja irônica, Santa! – arremata, sorrindo. Ela porém, prossegue no mesmo tom grave:

— Não estou sendo irônica, Sandoval, de modo algum. Mas isso será mais tarde, no fim da jornada. Agora, estamos no início do caminho e eu só quero que os meus filhos entendam a minha situação, que você também entenda que não me resta outro caminho. Faria tudo para que não sofressem, que não passassem por humilhações desnecessárias. Deus sabe o quanto sofro com isso, mas não posso voltar atrás.

— Santa, no fundo, eu a admiro por esta bravura, este sentimento forte, você é uma verdadeira fortaleza em relação à família. Talvez você tenha razão, eu não tenha sido um bom marido, tenho levado uma vida desregrada, não tenho me dedicado como deveria a você, tenho também os meus segredos, mas agora, tudo isso não vai significar mais nada. No momento eu que eu me abrir para a família, eles compreenderão que sou um ser humano, falível e que posso me regenerar.

— Sandoval, então quer dizer que pretende marcar mesmo uma nova reunião com todos?

— Ele se aproxima e acaricia o seu ombro. Solta a mão devagar, levando-a até a mão de Santa e a segura com força. Santa o encara, emocionada.

— Eu vou marcar uma reunião com todos, vou fazer exatamente o que você quer.

— Na verdade, o que a Virgem quer.

— Então, está bem, que seja, o que a Virgem quer. Mas, só coloco uma objeção, ou melhor, uma condição para que este encontro familiar aconteça.

— Uma condição? – Santa pergunta, intrigada, recuando um pouco, afastando a mão da do marido. Ele insiste na proposta:

— Sim, uma condição que não fará a menor diferença no conteúdo da informação, ou da revelação, que seja, do que tenho que falar.

— E que condição é esta?

— Não quero a sua presença na reunião.

— Por que? Você me assusta!

— Não há o que temer, apenas, você sabe, querida, o que tenho que revelar aos nossos filhos é um tanto constrangedor para mim. Não queria que você estivesse lá, ouvindo tudo e sentido-se, certamente, pouco à vontade. Desejo que neste momento, você esteja no oratório, pedindo a proteção da Virgem para a nossa reunião. Você acha que é pedir demais? Apenas isso, um momento que não deve ser compartilhado com você, uma humilhação que basta ser somente minha.

Santa fica em silêncio, um pouco desconfiada, mas em seguida reflete na proposta do marido e percebe que ele tem certa razão. Afinal, seria muito penoso para ela aquela demonstração pública de uma mulher sofredora. Não, melhor não participar da reunião, ele estava correto.

Então, aproximou-se e o abraçou.

Sandoval ficou meio sem graça, meio perdido naquela demonstração de carinho. Resumiu rapidamente o enlevo, anunciado que havia uma outra condição.

— O que você quer dizer?

— Desejo que somente a família esteja presente, somente nossos filhos e nosso genro, mais ninguém.

— Você não quer a presença do Bispo Martin e de Linda?

— Muito menos desta mulher. Por favor, Santa, é um pedido que lhe faço. O último, eu juro. A partir desta reunião, farei tudo o que você quiser, mas não me faça sofrer uma humilhação na frente do bispo e daquela zinha!

— Mas ela é a maior interessada...

— Eu sei, eu sei. Depois você repassa a ela, diz que ela pode cumprir a sua missão, que tudo já foi esclarecido a todos. Eu lhe peço, Santa, será muito penoso pra mim, nas atuais circunstâncias, ter que me defrontar com aquela mulher.

Santa mais uma vez se aquieta. Afasta-se do marido e senta-se em uma das poltronas da sala. Abre com cuidado uma revista, como se avaliasse cada página, observando o material, o tipo de papel e o próprio conteúdo. Em seguida, deixa-a de lado e dá o veredicto:

— Está bem, Sandoval, eu aceito. Faça a sua reunião com a família. O que vale, afinal de contas, é o resultado. Este, tenho certeza de que será coerente com o seu caráter – E levantando-se, vai ao seu encontro – você é um homem bom, meu marido, eu confio em você.

Naquela noite, quando acordou, Santa teve a impressão de que o mundo vinha abaixo. Coração na garganta, um suor que empapava o pescoço.

Custou-lhe acreditar que havia acordado de um pesadelo.

A realidade era menos precisa do que o sonho. Olhou para o lado e a figura esparramada na cama identificava claramente de que não estava dormindo.

Sandoval de vez em quando estremecia num ronco surdo, danoso, que parecia sufocá-lo a cada movimento.

Santa tentou levantar-se da cama, as costas doíam, os pés estremecidos não obedeciam seu impulso. Passou a mão pelos cabelos, pelo pescoço, tentando amainar a sensação desagradável. Esforçou-se para ficar ali, encostada na cabeceira da cama, ouvindo um leve zunido, que se assenhorava de sua mente, facultando a impossibilidade de ouvir além. Respirou fundo.

De fato, apesar do pesadelo, sua vida estava passando por uma transformação drástica. Por mais que se esforçasse em parecer tranquila, por mais que quisesse manter à promessa à Virgem, havia no seio da sua família um movimento que transformava as águas plácidas em um maremoto.

E tudo de repente, desandava, se distanciava do verdadeiro objetivo que era o de unir a família.

Ao contrário, tanto seus filhos, quanto o marido e o bispo mostravam-se assustados, indignados com a sua virada de mesa. Sabia que o remédio era amargo, mas precisava prová-lo para produzir o resultado final.

Agora, porém, não tinha tanta certeza de que estava certa em pôr na berlinda a vida de todos, como se tivesse a faculdade de mexer com os cordões e dirigir suas vidas.

Além disso, esse sonho terrível, em que as pessoas se associavam como em bando, para liquidar a sua vida. Seria um prenúncio de que estavam tramando às suas costas?

Não, isso é um absurdo, como pode pensar que sua família estaria traçando planos para traí-la. Era um pesadelo, apenas um pesadelo, do qual queria esquecer.

Sandoval fez um resmungo e virou-se de bruços. Santa suspirou, aliviada. Afinal, assim certamente cessaria o ronco.

Mas aquele movimento, a fez pensar mais adiante, o que a deixava mais angustiada. O que acontecera com a sua família? O que acontecera com o seu casamento?

Ali estava um homem quase estranho, que apenas dormia ao seu lado.

Tinha a sua vida privada, envolto em suas noites de jogatinas e amores fortuitos. Um homem que fingira conhecer e que imaginava estar sempre ao seu lado.

E os filhos, a quantas andam?

Letícia, que lhe parecera tão equilibrada, com uma profissão estável, um marido que a amava e a respeitava. Agora, lhe parecia uma mulher despeitada, irritada com qualquer situação que a desagradasse, sem a menor tolerância. Uma mulher imatura, a ponto de não querer ter filhos.

E o marido, Ricardo, que não passava de um mulherengo incorrigível?

Também seu filho mais moço a decepcionara, fazendo de sua vida um verdadeiro circo, sem a capacidade de crescer, de amadurecer, de se tornar um cidadão. Um homem que faz um curso de segunda categoria, que não se esforça em ter um emprego estável, que poderia substituir o próprio pai, na fábrica, futuramente. Não, Tavinho a decepcionou muito.

Ainda havia Alfredo, que sempre fora o ensimesmado da família, que vivia metido em si mesmo, em seus sonhos, em seus ideais, dos quais raramente falava, mas no que depositava tanta esperança que se transformasse num verdadeiro homem, casado, pai de família, que lhe desse netos. Ao contrário, se revelava um homem fraco, que se dizia homossexual. Isso não é verdade. Alfredo é um menino bom, está apenas confuso. Conhecendo-o como o conhece, ela sabe que ele ainda será o filho que lhe causará as maiores alegrias.

Junto a estas revelações insuportáveis, para completar, ainda havia a declaração de bispo Martin, a história da bússola da mãe de Sandoval e o relacionamento obtuso que tivera. Por mais que ela soubesse dessa história, seria preciso muitos anos para que a poeira sentasse e todos recomeçassem as suas vidas em paz.

Agora temia que já não fosse possível o que a Virgem lhe solicitou.

Santa teve a respiração cortada, mas agora após tantas reflexões, sentia-se mais forte para levantar-se da cama e se afastar do quarto. Vestiu um robe e dirigu-se até a cozinha.

A casa estava em silêncio absoluto. Quando serviu-se de água, assustou-se com a presença silenciosa de Linda.

— Desculpe se a assustei dona Santa. É que estava sem sono e...bem, vim pegar um copo d'água.

Santa não responde, apenas a encara com surpresa, como se não a reconhecesse.

Linda se afasta um pouco, com o copo na mão e pergunta, sem graça:

— Que aconteceu? A senhora tá pálida e tá me olhando de um jeito...

— Há quanto tempo você está aqui, Linda?

— Há uns quinze minutos...

— Não me refiro a agora, há quanto tempo você está em nossa casa?

— Bem, há mais de 30 anos – responde, aliviada.

Santa prossegue, incisiva:

— Engraçado, eu nem lembrei de você ainda há pouco. E você está intimamente ligada ao meu passado, ao de Sandoval.

— Por favor, dona Santa, não me lembre disso.

— Não, Linda – Santa exclama, em tom mais alto e decisiva – Eu não vou lembrar de nada. Vou deixar as coisas acontecerem. Um dia todos saberão, porque você também precisa se revelar a toda a família. Você e ele devem se redimir.

— A senhora sabe que eu estava preparada para a reunião e por mim, diria toda a verdade.

— Haverá um outra oportunidade, Linda. Não se preocupe.

— Falando assim, a senhora me assusta.

— Não tem por que ficar apreensiva. Nós todos estamos no mesmo caminho, na mesma trajetória de mudanças, portanto...

— Às vezes, a senhora fala coisas que eu não entendo.

— Sabe, Linda, eu também não entendo muita coisa. Não entendo porque meu marido fará uma reunião sem a minha presença.

— Uma reunião como aquela?

— Sim, mas apenas com os filhos e o genro. – E em seguida, mais afoita – Eu quero que você descubra para mim, tudo que está acontecendo.

— Mas dona Santa, será impossível eu estar lá, como vou participar de uma coisa que nem fui convidada?

— Aí é que você usará o seu ardil. Você é uma mulher esperta, Linda. Pense numa maneira de ficar no escritório, sei lá, escondida, atrás das cortinas, mas dê um jeito.

Linda em seguida sentou-se numa das cadeiras que davam para o pátio, que se observava através de uma imensa janela envidraçada. Alguma luzes tênues no jardim, o orvalho que enfeitava de gotículas as folhas da samambaia, o verde remanescente do avarandado, o único que ela dali conseguia identificar.

Santa sentou-se a sua frente. Neste momento, parecia absorvida em estranha energia. Olhou com cuidado para a mulher, como se quisesse incutir nela o plano que ora envolvia sua mente conturbada. Largou o copo sobre a mesa próxima e acrescentou:

— Linda você precisa me ajudar, você me deve essa!

Linda porém, não a ouve, dá um grito aterrorizado, que a deixa paralisada, sem tomar qualquer atitude.

Santa levanta-se rapidamente e intervém, perguntado o que houve.

Linda repete trêmula:

— Um homem, dona Santa, um homem atravessou o jardim. Ele saiu da casa correndo.

Mas como? Precisamos chamar os criados, chamar a polícia. Para onde foi?

Ele fugiu dona Santa, tenho certeza que pulou o muro, porque desapareceu por meio das árvores... ao menos que esteja escondido.

— Então fique quieta, venha comigo, vamos tentar chamar alguém.

Linda segue a patroa que arrasta os passos pesados, tentando afastar-se da cozinha, seguindo pelo amplo corredor até a copa. Precisam ir ao quarto dos criados, da copeira, do mordomo ou voltar para o seu quarto e acordar o marido.

Santa estava cada vez mais tensa. As pernas quase não a obedeciam.

Linda aproxima-se da janela e percebe um pequeno papel no chão. Abaixa-se com dificuldade, devido ao nervosismo e entrega-o para Santa.

— Olhe, dona Santa.

— Que me interessa isso, agora, Linda. Temos que chamar alguém.

— Mas este papel foi jogado pela janela, olhe como está aberta.

— Meu Deus, é verdade. Deixe-me ver – Santa examina um pequeno cartão e estremece – É uma das mensagens que deixei para vocês naquele dia. E esta é do bispo Martin! O que está acontecendo nesta casa, meu Deus?

terça-feira, outubro 04, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 8

No capítulo anterior, na reunião de Santa com a família, Alfredo assumiu que era gay, o que todos sabiam e comentavam entre si, mas usavam a hipocrisia para disfarçar a desaprovação. Por outro lado, surgiu a revelação do bispo Martim, amigo da família, que contara sobre um relacionamento que tivera no passado com a mãe de Sandoval. Mas o pior ainda estava por vir, pois faltava a revelação de Linda, a empregada que trabalhava há muitos anos para a família. A seguir o 8º capítulo de nosso folhetim dramático.

Capítulo 8


Fonte da ilustração: https://pixabay.com/pt/crianças-homem-face-raiva-660219/por Geralt

Linda não tem nada a ver com esta história, não se preocupem. Mas ela tem também a sua história – responde Santa, aliviada pela revelação do bispo.

Sandoval revela-se cada vez mais ansioso, percebendo que a mulher está satisfeita com a situação:

— Acho uma palhaçada envolver a Linda nesta loucura, Santa. Deixe a moça em paz, mande-a de volta ao trabalho.

— Por que Sandoval? O que você teme do que Linda tem a dizer? – indaga a mulher, com ironia.

— Eu não temo nada. Aliás, a minha vida foi bem devassada, você disse que eu sou um desregrado, que vivo em jogatinas. O que mais você quer de mim? Por que não acaba com esta loucura, Santa, já está indo longe demais!

Alfredo, porém, toma a liderança, pretendendo saber mais, ir até o fim.

— Muito bem, pessoal. Isto está ficando interessante. Temos um mulherengo entre nós, que junto com a esposa não quer ter filhos. Ela, em virtude da profissão e ele, não sabemos. Temos também um artista que não vai a lugar nenhum e que mamãe quer conduzi-lo ao bom caminho, do capital e da competição, temos um jogador profissional, um bispo que transou com a minha avó…

— Alfredo, pare, você está sendo cruel!

— Não, mamãe, estou sendo realista. Só para terminar, temos também um gay que não saiu do armário, que sou eu. E você Linda, o que tem a dizer-nos?

— Linda, se você quiser, pode sair. Não é obrigada a nada – arrisca, Sandoval, numa última tentativa.

— Não, seu Sandoval. Agora faço questão de contar a verdade. Eu também não aguento segurar essa barra. Bom, gente, eu tenho um filho doente, com problema de …

— Que desatino essa história, não nos interessa – exclama Sandoval, exasperado.

Faz-se um silêncio que parecia ser perene. Todos aguardam o que Linda tem a dizer.

De repente, Sandoval deu um grito, pedindo ajuda. Senta-se na cadeira, segurando o peito e queixando de uma forte dor, achando que estava tendo um infarto.

Todos correm ao seu encontro e ele desequilibra-se, dando a impressão que desmaiará. Alfredo então o segura, pedindo que Linda chame o medico ou uma ambulância. Ele ainda diz que não precisa de ambulância, apenas o Dr. Oliveira, amigo da família é suficiente.

Tavinho observa a cena do outro lado da sala.

Algum tempo depois, Sandoval olha em torno, já em seu quarto. Uma atmosfera singular. Um silêncio precavido. Tudo parece à espreita, para ele. Até mesmo o olhar assustado de Santa assume uma acusação que o deixa aniquilado.

Ela o ajuda levantar-se, enquanto ele pergunta pelos demais.

— Pedi que saíssem, já que não se sentia bem.

— Foi uma dor terrível no peito, Santa, achei que ia enfartar.

Santa pede que o marido apenas reflita sobre o que o médico dissera. Seu mal súbito não passava de uma forte pressão emocional.

— Você não parece muito feliz com isso. Gostaria que eu estivesse morto?

— Não diga bobagens, Sandoval. Só acho que você encenou um pouco. Afinal, conseguiu acabar com a reunião.

— Como pode pensar uma coisa dessas de mim, Santa? Já não basta o que você me fez passar? Aliás, não apenas eu, mas todos nesta casa. Até mesmo o seu próprio filho, Alfredo, foi humilhado.

— Na verdade, Sandoval, ninguém gostou do que ouviu. Uma pena que Linda não pode esclarecer a sua mensagem.

— Não me fale nesta mulher. Você exagerou trazendo esta empregada para a reunião. O que você está pretendendo, afinal, acabar com a família?

— Por que você tem tanto medo da revelação de Linda?

— Porque ela quer tirar partido da situação, eu percebi bem a intenção dela, atrás daquela cara de sonsa, ela quer fazer chantagem. Conheço muito bem este tipo de gente!

— Como chantagem? Fui eu que coloquei a mensagem e sei muito bem o porquê.

— Pois se você sabe, por que me crucifica desse jeito?

Santa desvia o olhar, absorta no próprio discurso. Quando começa a falar, sua voz soa amarga e melancólica.

— Eu sei, mas todos deviam saber da mesma forma, deviam sofrer como eu sofri durante toda a minha vida.

— Então é uma vingança! – Sandoval grita, indignado.

— Não, não é uma vingança. É uma maneira de vocês se emendarem, de transformarem as suas vidas. Você deveria dar o exemplo, assumir a sua culpa e se redimir.

— Eu? você me atirando às feras, dizendo que sou um jogador...

Eu não disse nenhuma inverdade, mesmo porque a sua culpa não se resume nisso, implica outras pessoas – e desabafa, com a voz embargada – você sabe muito bem o que Linda pretendia falar.

Sandoval senta-se na cama e encara a mulher com súplica. Sabe que deve mudar a estratégia. Santa está decidida e ele precisa um tempo para que a poeira assente.

Eu sei,.. você sabe... querida, vamos esquecer esta história, afinal, são coisas do passado. Como você deixou bem claro, ninguém é santo, aqui. Eu cometi erros, como todo mundo, erros sem dúvida, que fizeram você sofrer, mas agora, não é justo que todos soframos por coisas passadas. Coisas que não tem a menor importância. Eu já me redimi, vivo para a família, para você, para esta casa...Você sabe disso.

Santa que estava ao seu lado, levanta-se, afastando-se em direção à cômoda. De repente, aquele quarto não parece o seu e aquele homem, ali, tão próximo, é um estranho. Olha-o de longe, como se devesse manter uma distância regulamentar. Fala com frieza:

— Não, Sandoval, você vive para você mesmo. Você é um individualista. Todas as coisas aconteceram, porque você só pensou em você próprio, no seu prazer, na sua vida íntima. Você não se preocupou comigo, com os seus filhos. Mas já que você diz que se redimiu, só há uma maneira de você arcar com as consequências.

— Como assim? Você pretende reunir a família, novamente e me obrigar a contar tudo?

— Não, eu não. Você fará isso.

Desta vez, Sandoval extrapola toda a raiva contida. Na verdade, sente-se confuso, Santa tem a faculdade de lhe deixar assim, ansioso e com ódio ao mesmo tempo, deixando-o sem saída, querendo que resolva tudo a sua maneira.

— Você quer me enlouquecer, mulher? Você acha que vou me prestar a este papel ridículo? Olhe, na verdade, eu nem sei porque estou discutindo estas sandices com você. Acho que temos que parar aqui, agora. Estou farto dos seus caprichos. Você é uma mulher má, cruel, nem respeita a minha doença.

— Sandoval, eu fui bem clara. Não são caprichos. Se vocês não concordarem comigo, terei que reformular meu testamento e transformar a minha herança numa doação espontânea. Sairei desta casa, me dedicarei à comunidade carente e vocês terão o seu patrimônio dividido. É isso que você quer Sandoval?

— Mas com que sentido, meu Deus! O que adianta que façamos o que você deseja, se o mais importante, ajudar às pessoas necessitadas, fica de fora.

— Você realmente não entende nada, Sandoval. Para a Virgem, o mais importante é a redenção de vocês, da família, é a volta para a origem, para a vida cristã. De qualquer modo, eu atuarei nestas comunidades, apenas não disporei toda a minha fortuna nem deixarei a família. O que custa a você se humilhar uma vez na vida?

— Não, eu não posso fazer isso, é uma loucura.

Santa dá alguns passos em direção à porta. Volta-se para ele e acrescenta, enfática:

— Bem, se um de vocês não seguir o que foi solicitado na mensagem, nada feito. Eu terei que cumprir a minha missão. Pense nisso, Sandoval, antes de cometer qualquer desatino.

Bate a porta do quarto, enquanto ele põe as mãos na cabeça, sem saber o que pensar.

— Meu Deus, meu Deus, que loucura! Preciso fazer alguma coisa para impedir que esta mulher leve toda a família à ruína!

sábado, outubro 01, 2016

Os dez textos mais lidos no mês de setembro de 2016

O que vem na lancha?

Trabalho voluntário no hospital psiquiátrico: uma provocação para a vida

Piolhos de rico

Metáforas cruéis: desqualificação das mulheres e negros

Candidato inflamado

As divagações e sonhos de Marina

A fotografia de Santa - CAP. 2

Os pecados de Xavier

A fotografia de Santa - CAP. 1

Sabrina

Um cirurgião de almas, apenas

Às vezes, fico imaginando algumas coisas de um modo estranho que não combina com o que muita gente pensa. E me pergunto, se há alguma maneira de pensar da mesma forma. Claro que não há. Por mais que nos esforcemos em sermos semelhantes, somos muito diferentes, e por conseguinte, nosso modo de agir e de pensar.

Que bom que pensamos de maneira distinta, porque aí se dá a democracia de ideias, tão arranhada hoje em dia.

Cada um com o seu jeito, a sua história de vida, a memória que carrega consigo entrincheirada nas suas vivências e experiências com os seus e os que estão próximos.

Pensamos antes na família, depois na escola, nos amigos, mais tarde nos colegas de profissão e assim por diante.

Mas, às vezes fico pensando um pouco diferente demais, se é que é possível engendrar esta expressão assim, no nosso rico idioma.

Por exemplo, observo a maneira contraditória como as pessoas agem em relação a determinados temas, como por exemplo, a leitura da realidade que fazem através da mídia tradicional.

Se há um autor de algum romance ou crônicas ou mesmo poesias, citado em alguma cena de dramaturgia da TV, elas de imediato o consideram um excelente autor, que deve ser um dos eleitos em sua biblioteca, seguindo a opinião do personagem.

Por outro lado, se uma atriz ou um ator decide publicar um livro, embora sendo escrito por um ghost-writer, estas pessoas correm às livrarias para comprá-lo como se estivessem à frente de uma obra prima.

Entretanto, se um escritor brasileiro ganha um conceituado concurso literário e publica um excelente livro, preferem um escritor estrangeiro e de preferência, bem citado pela mídia. Se o autor é de autoajuda, aí seu sucesso é imediato.

Destacando outro tema, percebo que caso um artista, principalmente de televisão faça um plástica sem interessar de que parte do corpo seja, ela (ou ele) é aceita (o) e aliada (o) a uma série de justificativas que levam ao julgamento elogioso do mesmo.

Caso um amigo ou parente, ou vizinho ou aquele colega do outro departamento decida consertar o nariz adunco e meio torto, a censura é quase unânime.

Então reflito que na relação com os artistas ou celebridades da mídia, as pessoas não enxergam o ser humano, mas o personagem que ali está embutido. O que conhecemos do Tony Ramos, por exemplo? O que a mídia inistentemente nos mostra? A imagem de um homem honrado, educado, amigo generoso e solidário. Em parte, pelos papéis que costuma representar, na maioria e em parte porque é a maneira como ele se mostra para os telespectadores e fãs.

Pode ser que ele seja mesmo assim, até acredito que seja um bom homem. Mas quem pode garantir que ele não é ranzinza, mau colega e até negligente com a família? Não sabemos nada dele, além do que a telinha da TV, as revistas especializadas e os sites de celebridades nos mostram. Mas amamos o personagem que vemos, que nos é descrito e apresentado como um produto bom.

Há também a possibilidade de passarmos horas discutindo a separação de Angelina Jolie e Brad Pitt, quando nossos casamentos transcorrem enfadonhos e destinados a aceitar a rotina ou a indiferença. Por certo, questionar estas divisões de casais famosos expande nossa zona de conforto, sem mergulharmos em nossos problemas. É uma atitude humana que causa estranhamento, mas só para quem pensa.

Por outro lado, quando morre um artista, sofremos como uma pessoa muito íntima, ou quando ele sofre um acidente ou foi assaltado em seu condomínio de luxo, ficamos imediatamente indignados. Não percebemos, porém, as pessoas que morrem a nossa volta, às vezes um vizinho que costumamos cumprimentar quando nos detemos no elevador, ou um colega de trabalho que conhecemos há trinta anos ou o carteiro que foi assaltado quando nos levava a mercadoria à nossa porta.

Esses fatos passam como corriqueiros. São personagens bem mais apagados, sem o glamour da mídia, sem o sorriso franco de dentes de porcelana das celebridades, sem aquela presença constante em nossa casa, como se fossem parentes muito próximos, cuja conduta jamais é reticente, ao contrário, complexa e verdadeira.

É aqui que o belo personagem, com sua perfomance adequada aos nossos sentimentos, que manda. É por eles que choramos. Por eles dobram os sinos. Não o carteiro que mal conhecíamos e nem nos parecia tão simpático, ou aquele vizinho que aparecia nas horas mais impróprias nos pedindo alguma ferramenta ou aquele colega de trabalho, que apesar de convivermos tanto tempo, nunca o conhecemos tão profundamente, como o Tony Ramos, por exemplo.

Eram personagens fracos, que não nos sensibilizavam nem enfeitavam nosso mundinho cinza.

Por isso penso, que deveria haver algum cirurgião de almas. Sim, que fizesse uma plástica que rejuvenescesse, não o nosso rosto, mas a nossa alma, que a transformasse numa alma menos enrugada e insossa, menos atrofiada por preconceitos e mais apaixonada, menos iludida por personagens e mais humana.

É, um cirurgião de almas. Deveria haver, quem sabe, consertaria o mundo.

Fonte da ilustração: https://morguefile.com/search/morguefile/3/actors/pop. Autor: DuBoix

A fotografia de Santa - CAP. 7

No sexto capítulo, com a revelação da proposta de Santa à família e suas condições, todos começaram a questionar-se descobrindo as falhas uns dos outros, ou mesmo deixando vir à tona tudo o que pensam. A preocupação principal é conhecer as mensagens que todos receberam. Letícia, indignada pela traição do marido e brigando muito com os irmãos, exige que todos revelem as mensagens que receberam. Chegamos agora ao nosso 7º capítulo de nosso folhetim dramático. Divirtam-se como dizia o poeta, porque hoje é sábado.

Capítulo 7

Fonte da ilustração: https://morguefile.com/search/morguefile/18/library/pop. autor: TheBrassGlass

Alfredo que se afastara do grupo após estar na berlinda, dirige-se à mãe, com frieza.

— Faltam apenas o bispo e Linda. Sabe, mamãe, eu não entendo o que a Linda tem a ver com esta história.

Santa aproveita a oportunidade para deixar claro o seu objetivo. Parece mais forte do que toda a repercussão dos acontecimentos. Dirige-se a Alfredo, com estudada segurança.

— Se Linda quiser contar, vocês saberão. Sabe, meu filho, sua irmã não soube interpretar o que eu pedi a você. Ela está desequilibrada e está vendo tudo aos extremos.

— Tem certeza de que a desequilibrada sou eu? – pergunta, encarando-a com ódio.

Mas é Alfredo que responde num tom de extrema emoção, tão sofrido e amargurado, que talvez fosse a única observação que fizesse Santa rever o seu pedido. Nada, no entanto, pode impedi-lo de expressar toda a sua revolta.

— Não se preocupe, comigo mamãe. Sei muito bem o que a senhora quis dizer. Eu sempre senti nos seus olhos uma acusação permanente. Eu sempre soube da sua desconfiança, inclusive, porque não conseguia esconder no próprio tratamento que me dispensava. Às vezes, mamãe, a senhora era rude, fria, quase cruel. Não queria que eu chorasse como uma meminha, lembra? Não admitia que eu brincasse com as meninas, que tivesse outros interesses do que jogar bola. Eu sempre senti sobre mim o peso do seu olhar. Ele sempre queria me dizer alguma coisa, uma acusação, e eu estava sempre em pecado. Cada pensamento era um pecado, cada gesto em direção ao meu sentimento, era um pecado, uma punição.

— Por favor, Alfredo, pare, não continue meu filho. – termina a frase num resmungo choroso.

Ele, entretanto, soma forças para prosseguir com mais ímpeto:

— Por que mamãe? Agora não lhe interessa mais a minha exposição? Foi a senhora que botou na roda que eu... eu tenho dificuldades.

— Todo mundo sabia que ele era veado – avalia, Ricardo, tentando falar baixo no ouvido de Letícia.

Tavinho, no entanto, ao ouvir o cunhado, o recrimina, com raiva:

— Cala boca, Ricardo, eu te quebro a cara!

— Deixa, Tavinho. Parece que ele tem razão. Uma pena que eu nunca fui um veado verdadeiro, nunca assumi a minha homossexualidade. Eu sempre me esquivei destas tentações, eu nunca, se você quer saber, mamãe, nunca eu tive um relacionamento mais íntimo com um homem. Só me puni durante toda a minha vida, vivendo à margem, taciturno, alienado da sociedade, dos grupos. Um homem solitário.

— Santa suplica, aos prantos:

— Pare pelo amor de Deus, você não precisa agir dessa forma, Alfredo. Você não tem que se expor dessa maneira sórdida! Você não precisa se humilhar, meu filho!

— Mas a senhora precisa saber. Tudo que eu tive foram aquelas brincadeiras de criança, nas quais até mesmo os héteros se envolvem. Não, eu apenas sonhei, fui um gay platônico, que nunca se assumiu, que nunca admitiu se assumir.

— Mas então, você é homem – reflete, Sandoval, desajeitado, tentando inferir alguma observação, sem sucesso.

— Claro que sou. Não se preocupe, quanto a isso. Só a minha orientação sexual é diferente. Mas já que eu me mostrei aqui, do modo mais sincero e corajoso, acho que todos devem fazer o mesmo e assumir o que são. Não interessa se é errado ou certo. Somos uma família, não somos? Não sei, se alguma vez esta família existiu, mas em todo caso, continuamos todos juntos, convivendo quase que diariamente. Até mesmo o bispo Martin. O senhor pode nos dizer qual é a sua mensagem?

O bispo olha para todos, perguntando a si mesmo, se chegou a sua hora. Tenta divagar, devolvendo ao próprio Alfredo as suas observações. Começa com voz baixa, alternando aos poucos, até se tornar uma espécie de discurso.

— Bem, Alfredo, eu admiro muito o seu comportamento, afinal você mostrou que está inserido neste grupo familiar, por mais revolta que tenha, você ama esta família, por isso foi tão sincero. Mas lembre-se, você é um menino bom, não é nada disso que pensa. Eu conheço você e sei o que estou dizendo... – faz uma breve pausa – No meu caso, eu não posso, de modo algum me considerar da família, portanto, não tenho muito a dizer.

— Ah, tem sim, o senhor foi convidado como todos nós – extrapola Letícia, empurrando o braço de Ricardo que tenta segurá-la, ainda fingindo um olhar carinhoso.

Sandoval, ratifica a objeção da filha, interessado.

— Letícia, tem razão, Bispo. Se minha mulher fez questão de convidá-lo, acho que nada mais justo do que pôr as cartas na mesa. – e completa, malicioso – Chegou a sua hora.

— Meu amigo Sandoval, não vamos considerar este nosso encontro, um jogo, sem qualquer alusão … o senhor sabe. Aqui não se trata de um confronto, muito pelo contrário, é uma reunião para que encontremos o melhor caminho.

O bispo encerra a frase, fechando as mãos em posição de oração, pousando delicadamente o queixo, como se não esperasse mais nada do encontro.

Tavinho, porém, faz questão de mantê-lo na conversa:

— E qual é o caminho que a Virgem lhe sugeriu?

— Não vamos colocar o nome da Virgem nesta conversa, Tavinho. Você sabe, que eu sempre fui amigo da família, afinal, eu os batizei a todos. Sua mãe...

— Deixe de enrolar, bispo. Abra o jogo – Tavinho o interrompe, impaciente, enquanto Ricardo complementa – Eles sabem fugir pela tangente.

O bispo suspira longamente. Sabe que a melhor estratégia é dizer a verdade, ou seja, igualar-se a todos e dizer o motivo de sua mensagem. Suas mãos suam e a voz estremece, de vez em quando.

— Bem, se vocês insistem, eu não posso fugir da minha participação, digamos, nisso tudo. Se estou aqui, como vocês disseram é por que a nossa querida amiga Santa me convidou. Acho mesmo que é devido a me considerarem quase da família... – Santa desta vez, o interrompe, ansiosa – Por favor, Bispo Martin, esclareça a todos o que lhe foi destinado.

— Está bem, Santa, é justo, é justo. Na verdade, é uma coisa simples e ao mesmo tempo, complexa. Trata-se da bússola, que doei à Santa no dia de seu aniversário.

— Diga a procedência da bússola, sr. Bispo – insiste Sandoval, que parece mais interessado do que os demais na história.

— Claro, amigo Sandoval. Eu explicarei tudo e espero sinceramente que não tirem conclusões precipitadas. Na verdade, a bússola originalmente, era da mãe de Sandoval, Dona Maria Marta de Medeiros e Quental.

— E como foi parar nas suas mãos? – Sandoval grita, impaciente – Como explica aquela história de ser doada à igreja no dia do batismo de Santa?

— Deixe-o concluir, Sandoval – reitera Santa, aborrecida.

O bispo reinicia, num tom um pouco mais baixo e temeroso:

— Bem, eu era muito jovem, quando a mãe de Sandoval também era uma jovem senhora. Perdoe-me Sandoval, eu sei que é um fato muito desagradável para você, eu entendo perfeitamente e para mim, uma mancha terrível. Mas, como vocês bem me alertaram, eu preciso falar. Já que chegamos a esse ponto, não há como recuar. Bem, como eu dizia, ela, a mãe de Sandoval participava muito da comunidade... oh, meu Deus, é tão penoso para mim.

— É difícil para todos, Bispo – acrescenta, Alfredo.

— Sim, Alfredo – e dirigindo-se à Linda, que não se afastava da cadeira onde sentara desde que começara a reunião – Por favor, traga um copo d'água para este velho discípulo do Senhor. Eu já estou muito velho, não tenho saúde suficiente para me ocupar de coisas tão complicadas. Mas se a Virgem me concedeu esta oportunidade, preciso levar à frente. – fez um pequeno silêncio e prosseguiu – Como eu disse, eu era muito jovem e dona Maria Marta era uma mulher muito bonita.

— Cara de pau. Pegou a velha! – exclama Ricardo, sorrindo irônico, calando-se logo em seguida, com a xingação de Letícia – Cale a boca, imbecil. Eu não esqueci o que você fez!

O bispo segura o copo de água, que Linda trouxera, com as mãos trêmulas. Toma um gole, aproxima-se da mesa de tampo de vidro, larga-o e pede licença para sentar-se.

Todos se aproximam, fazendo um círculo, em silêncio.

Ele então, senta-se, tentando refazer-se de um possível mal-estar. Por fim, recomeça:

— Bem, amigos, continuando. Nós tivemos um breve caso, uma coisa passageira, da qual me arrependi por todos os meus dias. Mas, daquele pequeno relacionamento, ficou uma joia, uma joia que ela me doou de despedida. A bússola, que vocês agora conhecem. Esta bússola pertencia à mãe de Sandoval. Eu precisa me livrar dela, era uma punição para mim, o símbolo de meu pecado. Meu amigo, me perdoe, mais uma vez eu lhe peço.

Sandoval bate com os punhos na mesa, enquanto os demais o observam estarrecidos.

Eu tinha certeza que era a bussola da minha avó. Ela morreu repetindo isso, milhões de vezes, dizendo que minha mãe tinha desaparecido com a joia.

O bispo prossegue, pesaroso:

— Pois é, Sandoval, isso me trouxe muitos problemas. Tanto, que tive a ideia de inventar a história que ela tinha sido doada à igreja no dia do batismo de dona Santa. Reconheço que foi uma canalhice sem perdão, mas eu não peço que me perdoem. Pedirei a Deus, como já tenho feito todos os dias de minha vida.

— E você, Santa, compactuou com esta sujeira. Como foi capaz?

— Eu não sabia de nada, Sandoval. O bispo me confidenciou um pouco antes do aniversário. Você não pode me acusar disso, pelo amor de Deus!

— É verdade, amigo Sandoval, ela não sabia de nada – confirma o bispo, mostrando remorso.

— Ora, vai se fuder! Não me chame de amigo, você transou com a minha mãe,ficou com uma joia de família, inventou que era um presente à igreja e fala isso agora, com essa cara de pau!, um padre, um bispo, você na verdade, é um velho sacana, isso sim! Você é um canalha, eu devia acabar com a sua carcaça podre!

Ricardo não esconde o sorriso e uma certa vingança pela revelação de Santa, ouvindo atento a explicação do bispo Martim.

— Eu segui o que dona Santa me pediu, por favor – o bispo suplica, assustado – Eu me expus na frente de todos, revelei situações e sentimentos que já estavam mortos no passado, os quais eu temia até em pensar. Vivos, apenas na minha lembrança e no meu remorso. Agora, estou livre. Se vocês me perdoam ou não, não posso fazer nada. Mas se pequei, devo a Deus o beneplácito do perdão. Mas, parece que não apenas eu devo à sociedade, Sandoval. Acho que Linda também tem muito a dizer.

— Quer acusar a Linda também? Não quer ficar sozinho na sacanagem? – indaga Sandoval, com exagerado desvelo.

Alfredo encara o pai com desconfiança.

— O que Linda tem a ver com isso, mamãe?

terça-feira, setembro 27, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 6

No quinto capítulo Santa expõe à família que teve uma visão de Nossa Senhora e decidira propor a cada um uma missão que não lhes parecia nada fácil. Cada um receberia um envelope onde haveria uma lista de medidas pessoais que deveriam tomar, para uma mudança em suas vidas. Por isso, teriam seis meses para implantarem tais medidas. Todos estavam envolvidos, os filhos Alfredo, Tavinho, Letícia, o genro Ricardo, seu marido Sandoval e também o bispo Martim, que for a convidado para a reunião. Caso neste período de tempo, ela perceber que não ocorreu mudança nenhuma, sairia da casa para sempre e viveria entre os pobres, inclusive o povo da ilha para onde a bússola apontava o seu norte.

A seguir o 6º capítulo de nosso folhetim dramático que é publicado nas terças-feiras e nos sábados.

Capítulo 6


Talvez uma vida mais simples tivesse mais sentido. Talvez apenas reconhecer-se um esposo e pai, sem se dedicar ao trabalho com tamanha energia. Sandoval mergulha numa incongruência de pensamentos e imagens que o deixam assustado. Por que depois de tanto tempo se preocupar na inabilidade em exercer os papéis familiares? Por que se deixar envolver naquele clima de insegurança no qual Santa jogara toda família?

Ela deveria estar satisfeita com a aparição da Virgem, devia aprofundar-se em orações e permanecer o maior tempo possível na igreja, pedindo pela paz e felicidade de todos.

Afinal, agora despertara para uma espiritualidade muito maior. Ao contrário, parecia disposta a criar conflitos que desuniam a família, cultivando desavenças, protagonista de uma história ridícula, assumindo-se redentora de um grupo que não significava nada para a sociedade.

E para completar, mandara Linda distribuir aqueles malditos envelopes, com mensagens individuais. Qual era o seu verdadeiro objetivo?

Sandoval afasta-se dos demais. Sente-se um execrado naquele grupo, no qual deveria ser o o baluarte, o líder ao lado da mulher que revelava ter tanto poder sobre todos. Na verdade, suas ideias e percepções nunca tiveram grande valia. Sempre o ouviram com ressalvas, sempre o deixaram em segundo plano. Tampouco, se importava com isso. Era até conveniente afastar-se sem dar conta de seus passos. O trabalho na empresa era a desculpa ideal para o seu tempo fora de casa.

Mas agora, Santa está passando dos limites. Faz uma chantagem transversal, usando a imagem da Santa para atingir seus objetivos.

Decide abrir o envelope, mas ignora a mensagem.

Depara-se de súbito, com o olhar inquisitivo da mulher e tem um certo estremecimento.

Santa parece antever alguma coisa obscura, como se o tivesse em suas mãos. Ela se aproxima, sorrateira e comenta ao seu ouvido.

— Veja como todos agitados. Ficam discutindo e nem se fixam nas mensagens.

— Você parece estar se divertindo muito, Santa.

— Você pensa assim? Eu só quero o bem da minha família – enfatiza.

— Você quer dominar a todos. Não pense que sou idiota.

— Sandoval, você está sendo injusto. Se pelo menos, tivesse aberto o seu envelope e lido a mensagem, talvez pensasse diferente.

— Nem sei se vou ler esta bobagem. Com esta história de Virgem, você está usando todo mundo. Não sei onde quer chegar.

Neste momento, Letícia os interrompe, ratificando as palavras do pai.

— Eu também não sei onde você quer chegar mamãe. Papai tem razão, você não pode dispor das nossas vidas assim.

— Isso que você está dizendo é muito bonito, Letícia, parece frase de uma peça dramática, mas eu fui bastante clara no que falei para vocês. Eu disse e repito, quero o melhor para a família, portanto, não há nada me impedirá de ir às últimas consequências. Do que você está reclamando?

— Esta história de ter filho e ser mais religiosa é ridícula. A senhora sabe que eu e o Ricardo decidimos não ter filhos. Tenho o meu cargo de promotora que preenche todo o meu tempo, não posso me dedicar a crianças – pondera, obstinada; a maçã do rosto vermelha. Santa contrapõe a filha: — Mas é um absurdo!

Neste instante, Sandoval acabava de ler a mensagem e reage, indignado, refutando a expressão da mulher.

— Absurda é esta mensagem que você deixou pra mim, Santa. Você está me ofendendo. Eu que me dediquei a esta família, que aumentei a nossa fortuna com o meu trabalho, com a minha dedicação na fábrica e você vem me dizer que devo deixar a jogatina. Quem lhe disse que jogo? Você enlouqueceu, mulher?

Santa não responde, observa o pequeno grupo ao longe, que se desfaz aos poucos. Nem percebe a presença de Alfredo, que ouvira a reclamação do pai, enquanto se aproximava do trio.

— Parece que a coisa tá preta, papai. Mamãe pegou pesado. Se ela desconfia que o senhor joga, imagina o que pensa de mim. Ela sugere que eu me case, que arranje uma mulher, pois nunca me viu com nenhuma namorada – e voltando-se para a mãe, pergunta, ansioso – o que a senhora insinuou, mamãe?

Letícia, entretanto parece estar no ápice da impaciência e destila todo o veneno na primeira oportunidade. Pergunta irônica, a Alfredo, antes que a mãe faça qualquer conjectura: —Ainda precisa confirmar, Alfredo? Mamãe apenas declarou o que nós todos pensamos.

Por favor, Letícia, não seja maldosa – pondera Santa, tentando evitar o pior.

— Eu? Maldosa? A senhora foi cruel e eu que sou má! Ela deixou bem claro que duvida de sua masculinidade, ou seja, que você é gay! Quer que eu esclareça melhor?

— Vocês estão todos loucos – reflete Alfredo, olhando para os lados, procurando um apoio.

Letícia prossegue, implacável: –— Não, Alfredo. Nós não estamos loucos. A verdade é que a mamãe está dizendo o que sempre pensou de nós, mas na sua carolice, na beatice, nunca teve coragem. Agora, aproveitou esta desculpa para dizer o que pensa.

Santa ouve a filha, angustiada. Tenta remendar a situação: — Não é nada disso. Vocês estão distorcendo as minhas palavras. Parece que ninguém entendeu nada. Vocês se desviaram do caminho certo, eu só quero ajudá-los. Custa entender isso?

— Fazendo chantagem, jogando na nossa cara que vai se desfazer da sua fortuna, da parte que lhe cabe e que é nossa também, se não fizermos o que deseja. – e voltando-se para o irmão mais jovem, indaga, sarcástica – Diga, Tavinho, você que é o queridinho da mamãe, se concorda com a proposta dela.

Tavinho se ajeita na poltrona, sem nada dizer, mas revela-se também incomodado com a mensagem que recebera. Santa então se dirige ao filho, defendendo-se.

— Não é apenas uma proposta minha. Foi uma vontade da Virgem.

— Sim, da Santa matriarca, da déspota da casa! – grita Letícia, exaltada.

— Cale a boca, Letícia. Me respeite!

Ela entretanto, prossegue no mesmo tom enfático: — E você, nos respeitou, mamãe, com esta história toda? Você pensou em nós, nos nossos direitos? Você se colocou no nosso lugar? Não, você só pensou nos seus propósitos radicais, no seu modo de ver as coisas. Mas cada um é diferente do outro, você não pode exigir que pensemos como você.

Neste momento, Tavinho parece se acordar da apatia em que se encontra, para confirmar: — E nem que tenhamos a sua fé.

— Por que diz isso, Tavinho? Você foi sempre tão dedicado, quando criança... – reflete Santa, desiludida. Ele responde, ríspido: — Mas eu não sou mais criança, mamãe. A Letícia tem razão. A senhora só pensou em si.

— Até que enfim, alguém me dá razão – assevera Letícia, sacudindo os ombros.

Ele continua no mesmo tom anterior, revelando a sua decepção.

— Eu não tenho que abandonar o meu curso, é o maior desatino que já ouvi, imagine, eu trabalhar na fábrica de papai, a senhora enlouqueceu! Eu sou um artista, mamãe, não posso enquadrar a minha criatividade naquelas paredes de escritório.

Ricardo intervém no grupo, segurando o braço de Letícia, e rogando com um olhar de falsa compreensão: — Amor, vamos embora.

— Por que você quer ir, afinal, qual foi a sua mensagem, Ricardo?

— Uma bobagem, acho que sua mãe estava brincando.

— Não, me deixe ver, Sei muito bem o quanto você é dissimulado. Me dê isto aqui!

— Por favor, Letícia, vamos embora. Não faça escândalos!

— Ah, então é isso – esbraveja, retirando do bolso da calça, o cartão com a mensagem – Você deve deixar de ser mulherengo. Seu miserável, você tem uma amante!

— Pare com a baixaria. Já lhe disse, sua mãe não está bem da cabeça, você mesma não concorda com o que ela lhe escreveu.

— No meu caso, é diferente. Ela deve saber alguma coisa sobre você. Me parece que ela tem olhos na nuca, ela sabe tudo de todo mundo! Me diga, seu patife, você tem uma amante!

— Não se subestime Letícia.

— É muito fácil, agora. Não se subestime, mas você não pensou em mim, quando … oh, meu Deus, será que tudo isso é verdade? Você sempre me enganou, agora, eu tenho certeza.

Neste momento, todos olham para o casal, como se examinassem uma cena estranha. Talvez fiquem se perguntando, o que está acontecendo naquela casa, onde todos parecem participar do jogo da verdade.

Santa e Sandoval ficam alarmados, mas prosseguem impassíveis, enquanto a discussão acelera os ânimos de Letícia e Ricardo. Tudo vem à tona, quando ele chega ao limite da raiva e põe as cartas na mesa.

— E você pensa que é fácil para mim, aguentar essa sua língua afiada, esse seu falar esganiçado o tempo todo? E depois, você se acha, mas não é tao boa de cama assim. Tenho outra mulher sim, uma mulher que não fica me azucrinando o tempo todo e me obrigando a participar desta família falida!

— Letícia atira-se contra o marido, dando-lhe diversas batidas no peito, com as duas mãos, chamando-o de miserável.

Desta vez, Sandoval intervém, segurando a filha.

— Vamos acabar com esta loucura. Letícia, não devia ter feito isso. Minha filha, não se rebaixe.

Este canalha merece muito mais! – ela grita, aos prantos.

Em seguida, Ricardo imediatamente, parece cair em si e tenta recobrar a comprrensão da mulher.

— Letícia, eu sei que estamos todos exaltados, eu não devia ter dito estas coisas para você, mas foi no calor da discussão.

— Não se atreva a falar mais comigo – responde sem olhá-lo.

Ele continua no mesmo tom persuasivo: — Mas você sabe que a amo, depois conversamos melhor em casa. Vamos embora, vamos acabar com isso.

Letícia, ao contrário, pretende desafiar a todos, como se pretendesse jogá-los na mesma ruína.

Não, agora quero ir até o fim. Quero que todos coloquem na mesa as mensagens que receberam. Não é isso que mamãe quer? Pois vamos fazer a sua vontade.

sábado, setembro 24, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 5

No quarto capítulo, Santa reúne a família para fazer uma proposta que se relaciona à missão que acredita possuir, a partir da visão da Virgem. Estão presentes a filha Letícia, que é promotora e seu marido Ricardo, que fica se perguntando qual seria o motivo da reunião. Por acaso a sogra leria o testamento? Também estava presente o filho que é um artista midiático, Tavinho. Por fim, chegara Alfredo, o terceiro filho, que se atrasara e segundo os demais está sempre ocupado com sua empresa. Linda, a empregada de vários anos, recebe a todos com carinho. O marido Sandoval não se furtou em contar, com discrição à Letícia, sobre a sua preocupação com a esposa. Dissera que ela tinha tido uma visão de Nossa Senhora e estava cada dia mais estranha.

A seguir o 5º capítulo de nosso folhetim dramático, porque hoje é sábado, um dos dias de publicação. Os capítulos são publicados nas terças-feiras e nos sábados. Boa diversão!

Capítulo 5

Todos pareciam pouco à vontade na biblioteca.

Alfredo passeou os olhos pelas estantes de madeira, repletas de todo o tipo de livro, sem sequer serem organizados sob qualquer ordem e lembrou do avô. Quantas vezes vinha até ali, ao seu lado, examinar as figuras dos atlas, escolher um livro infantil ou deparar-se com uma enciclopédia para os trabalhos da escola.

Ao seu lado, estava sempre a figura plácida e companheira do avô, servindo-lhe de guia naquela mina do tesouro. Recorda-o silencioso, ouvindo suas histórias, um mundo enriquecendo a imaginação.

Quantas vezes o vira agitado, entre jornais, procurando matérias que indicavam algum acontecimento político da época, que via de regra, o deixava de cabelo em pé. Era um homem apaixonado e tentava incutir nele toda a expectativa, a esperança no futuro e o otimismo que carregava consigo.

Alfredo possuía um carinho especial pelo avô, talvez muito mais do que pelos demais membros da família. Infelizmente, seu legado não surtira muitos efeitos. Não era um homem cheio de vida e esperança como ele. Não era um ser social, voltado para os prazeres das conversas prolongadas nas noites de verão.

Não, tinha se tornado um homem do frio, do inverno, da solidão de um quarto de apartamento.

Agora estava ali, entre aquelas prateleiras abarrotadas de livros e pastas com documentos e tinha a sensação que um pouquinho do avô ficara ali também. Estava assim, absorto, quando a mãe iniciou o que passou a ser a tal reunião.

Tavinho estava encostado numa das poltronas de couro, meio estirado, talvez mais preocupado com a sua dissertação, sua vida lá fora, seus compromissos bem mais gratificantes.

Ricardo e Letícia sentaram-se lado a lado, nas poltronas que ficavam em frente da imensa mesa de mogno, coberta de vidro.

Sandoval mostrava-se inquieto, não parando em lugar nenhum, a não ser vez por outra, estabelecer-se no parapeito da janela que desembocava numa área fechada, uma espécie de jardim de inverno. Ao ouvir a voz de Santa, fez um pequeno reparo: — Santa, desculpe interromper. Gostaria que evitasse falar na bússola. No momento, é um dado supérfluo.

— Talvez você tenha razão, Sandoval. Não se preocupe, tudo a seu tempo.

— Mamãe, não acha que está muito solene?

— O momento exige, ou melhor, a situação assim exige, Letícia. Mas serei apenas o suficiente, nada que vá tornar esta reunião demasiado enfadonha.

— Assim, espero – resmunga Ricardo, em seguida, se desculpando.

Tavinho insiste, com um meio sorriso, para não desagradar a mãe: — Vamos começar, então?

—Estou pronta para começar, meus queridos, mas o grupo ainda não está completo.

— De que a senhora está falando? A família está toda reunida. A quem você se refere, mamãe? – Letícia revela impaciência.

Santa, ao contrário, não muda o tom de voz, nem mesmo se embaraça com alguma pergunta mais incisiva. Parece ter tomado o rumo ideal, palmilhado a trajetória que faz sentido a sua vida.

— Por favor, Sandoval, esclareça aos nossos filhos.

— E genro, dona Santa. Não se esqueça de mim – adverte Ricardo, tentando brincar.

— Absolutamente, meu filho. Você é como um dos nossos filhos – e dirigindo-se ao marido, repete o pedido para que esclareça a observação anterior.

Sandoval, por sua vez, revela-se mais inseguro. Afasta-se da janela e aproxima-se da poltrona onde Santa está acomodada, atrás da mesa. Ainda em pé, explica: — Bem, quando sua mãe pediu para conversarmos, ela me convenceu a … Bem, vocês logo saberão, ela achou por bem convidar o bispo Martim para esta reunião.

— Mas por quê? Não faz sentido.

Ao ouvir a observação de Letícia, Alfredo a examina como se não a reconhecesse. Tamborila os dedos nos braços da poltrona e volta a olhar em torno, como quem procura uma resposta para tudo. Talvez, pense em seus próprios problemas. Sua mente anda por paragens bem mais longínquas.

— Sua mãe explicará o motivo do convite mais tarde, Letícia. Tenha paciência, por favor. – e voltando-se para Linda, acrescenta – Há ainda outra pessoa. Linda.

— Era só o que me faltava, mamãe. Até os criados fazem parte da nossa família agora! O que Linda tem a ver com tudo isso?

Ricardo acompanha intrigado o desabafo da mulher. Astucioso, estica o braço até Alfredo, para alertá-lo, perguntando com exagerada preocupação: — Será que sua mãe está bem da cabeça? Não me leve a mal, Alfredo, mas não é normal convidar a empregada e o bispo para uma reunião familiar. Convenhamos!

— Linda é quase da família, Ricardo. E para minha mãe, o bispo também, afinal, ela vive praticamente mais na igreja do que em casa.

— Mas é um absurdo!

Tavinho chama a atenção dos dois, irritado, partindo na defesa da mãe.

— Por que vocês estão discutindo? Nem sabem o teor da conversa, o que ela quer com a gente. Não sei porque você está tão preocupado com esta reunião, Ricardo, você não dá a mínima para nada que diga respeito a nossa família. E você, Alfredo, vive enfurnado em si mesmo, parece que vive só de lembranças!

Antes que a discussão tome proporções desagradáveis, Sandoval aproxima-se dos filhos e pede paciência. Chega ainda a tempo de impedir que Letícia tome partido do marido. Logo em seguida, Santa o chama e ele se desdobra em mostrar-se à vontade, coisa que está longe de sentir.

Santa pede que ele chame os demais convidados que estavam aguardando na sala contígua.

O bispo entra na biblioteca com um sorriso de porcelana, cumprimentando a todos com leves acenos de cabeça e uma certa solicitude que desagrada Tavinho. Acomoda-se imediatamente na poltrona indicada por Santa, que o conduz pessoalmente.

Linda estaca na porta, se desculpando por ter sido chamada. Tenta explicar que veio a pedido da patroa, mas Alfredo a impede, levantando-se e tal como fizera a mãe em relação ao bispo, a conduz para uma cadeira próxima à janela.

Ela estremece ao atravessar a sala, a qual não costuma entrar a não ser para organizar alguma faxina. Senta-se rapidamente, acomodando as mãos nos joelhos, como se quisesse dispersar o foco da atenção que sua presença despertava.

Santa examina a todos, como se pretendesse fixar para a eternidade a reação pessoal de cada um. Seus olhos revelam uma luminosidade estranha, talvez um misto de curiosidade e emoção.

— Bem, não é segredo para ninguém que um fato importante, um acontecimento muito tocante aconteceu comigo, nesta casa. Um fato que confidenciei apenas à Linda, e este é um dos motivos pelos quais ela está aqui. Este acontecimento mudou a minha vida e por consequência, mudará a vida de todos nesta casa. Sr. Bispo, meu marido, meus filhos e meu genro, eu quero afirmar para vocês que eu tive a graça de ver a imagem de Nossa Senhora. A visão material da Virgem na minha casa!

Houve um breve silêncio. Em seguida, todos falaram em uníssono, sem se importarem com a dona da casa ou com boas maneiras.

Até mesmo o bispo confidenciava a Sandoval sobre o fato, exercendo uma espécie de argumentação da qual não se sabia se concordava ou não.

Letícia esbravejava, estabanada, dirigindo-se à mãe, pretendo uma explicação convincente. Afinal, por que a Virgem a visitaria, somente a ela e com que objetivo.

Tavinho levantou-se da poltrona e se juntou ao cunhado e ao irmão, agora, unidos de forma definitiva, achando que tudo não passava de uma insanidade de Santa.

Sandoval perturbava-se ante os argumentos do bispo e o pedido de silêncio ao filhos.

Linda não se afastou da cadeira, ao contrário, baixava a cabeça em absoluto desânimo. Se alguém a observasse naquele momento, veria uma lágrima correr-lhe pela face.

Neste momento, Santa munida de extrema energia, gritou abafando todos os ruídos de uma única vez, pedindo silêncio. energia Surpresos pelo grito da mulher, todos pararam, mas logo continuaram o burburinho que imediatamente se transformaria em gritaria, não fosse ela impedir-lhes novamente, com uma batida na mesa com força. Seu olhar os atingia com grande vivacidade, tal a complexidade de sentimentos que a tomavam. Parecia uma leoa rugindo num ato de desespero.

Todos voltaram-se para Santa. Letícia respirou fundo e começou com um “mamãe”, imediatamente interrompido.

— Por favor, Letícia, não fale nada. Não fale nada – e se dirigindo-se aos demais – não digam nada, nenhum de vocês. Só me ouçam. Eu sei que é difícil de acreditar, mas eu posso provar.

Alfredo conciliador, perguntou, quase numa mensagem de súplica: — Como pode provar, mamãe?

Ela pede que sentem-se nos seus lugares. Precisam discutir o assunto sem grande exaltação, sem delírios. Devem ter paciência.

O bispo é o primeiro a obedecer, sentando-se na posição estratégica em que se encontrava. De certa forma, podia observar a impressão dos presentes e os pequenos comentários que faziam um com o outro. Juntou as mãos ao colo, cruzando os dedos como se estivesse em posição de oração e assegurou à anfitriã que a ouviria com toda a atenção e paciência.

Santa agradeceu e quando todos estavam em seus lugares, ela prosseguiu, entusiasmada: — Vou colocar a bússola sobre a mesa. Como vocês devem se lembrar, ela era um objeto que funcionava muito bem, com a orientação da agulha sempre voltando-se para o norte, como ocorre com qualquer uma.

Letícia não se conteve e interrompeu: — E o que isso prova, mamãe?

— Bem, peço que analisem o objeto. A bússola está com a agulha trancada. Nunca mais se mexeu desde que Nossa Senhora indicou o meu norte.

Ricardo levantou-se, curioso. Examinou o objeto, enquanto os demais se empurravam para se aproximarem da mesa. Afirmou, sem nenhum pudor: — Não prova nada, dona Santa. Desculpe, mas a engrenagem pode ter falhado em qualquer momento.

Sandoval saiu em defesa da mulher, mas fez uma ressalva, incomodado por ela ter-se antecipado aos acontecimentos. Falou num tom mais baixo, mas na verdade, todos ouviram o recado.

— Eu lhe disse que deixasse a bússola para depois. Não era o momento.

Ela não respondeu. Dirigiu-se ao bispo, esperançosa: — O que o senhor me diz, Eminência? É uma prova ou não é?

— Há coisas que não se pode afirmar assim, de supetão, dona Santa. Claro que credito todos os meus votos na sua integridade, na sua verdade. Mas acho também, que a sua palavra é muito mais importante do que a bússola. Se Nossa Senhora apareceu em sua casa, não há nada, não há bússola que possa derrubar esta sua convicção. Ao meu ver, a senhora é uma mulher que está em estado de graça!

— Claro, ele tem interesse financeiro nesta verdade – resmunga Letícia, sem importar-se com o olhar severo da mãe. Esta, reinicia o assunto, tentando esclarecer melhor a situação.

— Não me interessa a desconfiança, a dúvida. Eu estou convicta e basta. A Virgem apontou para o norte, sendo assim, eu avaliei a sua proposta.

— Meu Deus, ela fala como se fosse real! Você vai permitir que este absurdo vá em frente, Letícia? Eu sou apenas o genro, mas você é a filha!

— Espere, Ricardo. Vamos ver onde ela vai chegar.

— Que bom, minha filha que você é compreensiva. Eu serei bastante clara nas minhas observações. O norte que a Virgem apontou fica na ilha isolacionista, onde convive um povo estranho, como vocês sabem. Uns adeptos ao monarquismo. Uma comunidade que não precisa, que não quer o meu dinheiro.

— Menos mal – dispara Letícia, ainda tentando descobrir o sentido das palavras da mãe.

Santa finge não ouvi-la e prossegue tranquila: — Pois bem, a minha intenção é usar a minha fortuna na catequese dessas pessoas, na tentativa de mudar-lhes o pensamento, na integração com as comunidades pobres que circundam a região e mostrar-lhes o real mandamento do Senhor.

— Desculpe, mamãe, mas a senhora acha que conseguiria isso com aquele tipo de gente? Se eles não ligam para nada, vão se importar com religião, com catequese? É uma medida meio infantil, sem ofendê-la... – argumenta Alfredo.

—Não se incomode com isso, Alfredo. Há muita coisa a fazer por lá e eu não estarei sozinha, estarei com ela. Mas a Virgem me deu outra proposta e me esclareceu que eu precisava mudar o comportamento dos meus, para poder fazer alguma coisa fora de minha família.

— Como assim, mamãe?

— Muito simples: Vocês precisam mudar o seu comportamento. Ou cada um muda o que desagrada aos olhos de Deus, ou eu assumo a comunidade, passo os meus bens para as comunidades pobres, tento fazer uma mudança na ilha isolacionista.

— Quer dizer que não é uma proposta, mamãe, é uma chantagem.

— Por favor, Letícia, veja como fala com sua mãe – repreende, Sandoval.

— Papai, está muito claro. Ou ela toma conta desta comunidade de malucos ou seja lá o que for, ou nós mudamos o nosso comportamento. Que idiotice é esta?

— Você está absolutamente certa, Letícia – conclui o marido, irônico.

— Cada um de vocês receberá um pequeno envelope onde estarão as medidas que devem tomar para a eventual mudança. Alfredo, Tavinho, você Letícia, Ricardo, Sandoval, Linda e o próprio bispo Martim. Vocês terão seis meses para me provar que realmente mudaram. Se neste período de tempo, eu perceber que um de vocês continua da mesma forma, tudo cairá por terra e eu sairei desta casa para sempre, para viver entre os pobres, os que não aceitam a palavra, ou até mesmo naquele povo estranho que comentamos, afinal, a Virgem apontou para lá. Algum mistério se encontra ali.

O burburinho foi aumentando rapidamente, para se transformar numa balbúrdia geral.

Todos se perguntavam o que teriam que mudar em si próprios, talvez aspectos que nem percebessem ou que evitassem confrontar em suas mentes.

As cartas estavam na mesa e a situação, embora absurda, reunia todos num único objetivo: dissuadir Santa da loucura que estava propondo. Sabiam de antemão que não seria uma empreitada fácil e que ela não parecia disposta a abrir mão de suas convicções.

De repente, um a um foi se afastando do grupo e taciturnos perguntavam a si mesmos, o que estava realmente acontecendo.

Santa pediu a Linda que entregasse os envelopes a cada um dos presentes, com o respectivo nome.

terça-feira, setembro 20, 2016

A fotografia da vida de Santa - CAP. 4

No terceiro capítulo Santa estava decidida a ajudar o povo da Ilha Libertária, um povo para o qual não há regras, nem governos. É pelo menos o que a cidade comenta. Segundo Santa, a aparição da Virgem, indicando-lhe a bússola para aquela região significa que a sua missão consiste em se alinhar com aquela gente. A seguir o quarto capítulo de nosso folhetim dramático, porque hoje é terça-feira e este é um dos dias de publicação. Espero que curtam mais este capítulo de nossa história.

CAPÍTULO 4

Os carros se alinhavam no jardim.

A promotora desceu, arfante. Olhava em torno, mexia no relógio de pulso, como se quisesse certificar-se da hora. Não queria não, era só nervosismo. O marido a acompanhava, solícito. Seria mais uma daquelas reuniões chatas de família e ele mais uma vez ouviria as baboseiras que se enfileiravam. Não suportava o cunhado metido a artista. Artista mediático, que absurdo. Afinal, o que seria isto? Pediu que a mulher esperasse um momento e voltou ao carro, buscando uma pequena maleta.

Ela perguntou, intrigada: – O que você quer com o netbook, aqui? Por acaso vai jogar paciência, na frente de minha mãe?

— Calma, Letícia, eu só o trouxe, porque posso precisar. Nunca se sabe, quando se precisa conectar ao mundo.

— Você vive no mundo da lua, não sei por que precisa estar conectado.

— Não jogue a sua ansiedade em cima de mim. Afinal, por que a sua mãe marcou esta reunião? Vai ler o testamento?

— Não seja ridículo. Minha mãe anda muito estranha, não sei o que está acontecendo com ela.

— Como sabe? Ela me parecia bem.

Falei com papai. Ele também não sabe o que houve. Ela anda aérea, absorta. – avista o irmão mais novo que se aproxima com uma mochila nas costas – Espere, o Tavinho está chegando. Vamos falar com ele. – e antes que o marido responda, ela corre ao encontro do irmão.

— Parece que todo mundo obedece a velha, não é mesmo? – pergunta ansiosa. Ele sorri, tranquilo.

— Vai ver ela tá precisando da família.

Letícia não disfarça a irritação. – O que mamãe pode querer mais? Há uma semana teve uma festa de aniversário maravilhosa. Vive cercada de empregados. Acho que não precisa de nós.

— Então, por que você veio?

— Por causa de papai. Ele me parecia preocupado.

O marido se aproxima pouco à vontade. Cumprimenta o cunhado e pega o braço de Letícia, conduzindo-a com pressa.

Entram no casarão e são imediatamente recebidos por Linda.

Antes que Linda chame a patroa, Letícia interpela o pai, que desce a escadaria, intrigado.

— Papai, que está acontecendo? Por que esta reunião inesperada?

— Mamãe vai nos fazer uma proposta? – pergunta Tavinho, enquanto se afasta até uma poltrona, soltando a mochila.

— Como assim, proposta? Você sabe de alguma coisa – pergunta a irmã, fortemente interessada.

— Ele está blefando, diz qualquer coisa para ver a nossa cara. É sempre assim, não sogro? – aproveita para alfinetar o cunhado.

Sandoval responde com um ar de preocupação: — Não sei Ricardo. Na verdade, Santa anda estranha, parece esconder alguma coisa muito grave. Não diz nada, não elucida nada. Fala por monossílabos, como se esperasse a hora certa para a revelação.

Letícia antecipa-se, inquieta: – E por que este mistério todo?

— Ah, se eu soubesse lhes diria. Sua mãe ultimamente mudou até o comportamento. Parece sempre introspectiva.

— Como assim?

— Sei lá. Não parece a mesma Santa que conheço há tantos anos. Até com os criados age de modo diferente. Está mais tranquila, mais complacente. Antes não admitia falhas , hoje tolera tudo. E quanto à Linda, está cada dia mais apegada.

Tavinho os interrompe perguntando porque o irmão não veio. Por acaso não foi convidado?

— Não é nada disso, Tavinho. Todos receberam o mesmo convite, quase intimação. Seu irmão tinha um compromisso na empresa, uma reunião com acionistas, se não me engano. É provável que venha mais tarde.

Ricardo serve-se de uma bebida, enquanto Tavinho se espalha na poltrona. Letícia, ao contrário mostra-se mais agitada com a descrição do pai. Afastam-se um pouco dos dois e ela aproveita para inquirir mais sobre a mãe.

— Escute, papai, o senhor tem certeza de que Linda não deixou escapar nada? Se ela sabe do que está acontecendo... O senhor não a interpelou?

Sandoval fala em tom quase confessional, próximo ao ouvido da filha. Talvez se sinta um idiota com o que pretende dizer, mas precisa desabafar.

—Linda fez uma pequena indiscrição. – respirou fundo, taciturno.

—Como assim? O que foi que ela disse?

Ele volta-se para os dois que continuam absortos em suas tarefas. O genro abre o netbook sobre o móvel, onde serviu-se de bebida. Tavinho ouve qualquer coisa nos fones de ouvido.

— Imagine, Letícia, que Linda me contou que – interrompe-se, cético de suas palavras – Santa lhe fez uma confidência.

— Mas do que se trata papai? O senhor está me deixando preocupada!

— Santa lhe disse que viu Nossa Senhora.

Letícia o encara perplexa. Em seguida, suspira, desanimada: — Então é pior do que imaginamos. Está completamente louca.

— Não fale assim de sua mãe Letícia.

— Sei lá, a velha é bem capaz de ver alguma coisa do tipo. Tá sempre na igreja, sempre se confessando, cada vez mais carola.

— Você está falando como Tavinho. Tenha respeito com a sua mãe!

— Mas me diga, papai, o que Linda lhe falou além da .. da tal visão. Como aconteceu a tal coisa?

— Na verdade, ela não foi muito explícita, pelo contrário, se arrependeu de ter me falado.

— O que ela deixou escapar?

— Ela comentou sobre uma tal comunidade, mas ela não soube esclarecer do que se trata. Pelo que pude apreender, sua mãe pretende ajudar uma comunidade pobre.
⁃ ⁃

— Não há novidade nenhuma nisso. Ela sempre ajudou essa gente. Vocês estão superestimando as palavras de mamãe.

— Quem está superestimando as minhas palavras?

Ao som da pergunta os dois se voltam rapidamente para a escada de onde vem a voz. Santa desce lentamente, sorrindo, aparentando uma extrema tranquilidade, como se já esperasse aquela agitação. Tavinho foi o primeiro a abraça-la. Em seguida, Letícia aproximou-se, seguida do marido.

— O que está havendo mamãe?

— É assim que você recebe a sua mãe, Letícia? Por que esta ansiedade?

— Desculpe mamãe, mas esta reunião fora de hora, esta quase convocação. Ficamos preocupados.

— É verdade, dona Santa. A gente pensou que estava doente. – a frase de Ricardo é acompanhada pelo olhar de desconfiança de Letícia. Santa não responde, aproxima-se do filho e pergunta: — E você Tavinho, tá muito ansioso também?

— A senhora sabe, mãe, eu estou terminando o mestrado de design digital. Tô naquela fase de terminar a dissertação, da avaliação do orientador, das inúmeras correções. Tô no desespero, mesmo. Então, nada mais me deixa ansioso, não se preocupe.

— Que bom, até que enfim uma pessoa sensata, porque o que eu tenho para falar não é para assustar ninguém.

— Você pode adiantar alguma coisa?

— Não Letícia, vamos esperar Alfredo.

— Quando ele vai chegar?Aquele lá vive enfurnado naquela empresa, acho que respira computador o dia todo!

Santa faz um pequeno sinal ao marido, pedindo que o acompanhasse até à biblioteca. Lá se daria a reunião com os demais, mas no momento, precisava conversar às sós com ele. Letícia rebelou-se de imediato, com o convite.
_

— Mamãe, por favor, não tenho todo o tempo do mundo. Além disso, tive um dia terrível hoje. A senhora não vai nos fazer penar aqui, esperando?

— Você precisa ter paciência Letícia. É só um minuto. Vou pedir à Linda que telefone ao Alfredo, enquanto falo com seu pai. Por favor, minha filha, por mim. Espere mais um pouco.

Afastam-se os dois, enquanto Letícia aproxima-se de Ricardo, agora, completamente irritada.

Tavinho parece sair do enlevo musical em que se encontrava. Levanta-se do sofá e se encaminha para a dupla. Pergunta à irmã, com o mesmo tom displicente, mas com considerável inquietação.

— Também não tenho o dia todo. O que está acontecendo aqui, afinal?

— Meu cunhado, acho melhor você ir botando esses neurônios pra funcionar. Se a sua mãe está com algum problema de cabeça, a coisa vai ficar preta.

— Ricardo, você não sabe o que está acontecendo. Não diga bobagens.

— E você sabe?

Neste momento, Linda chega na sala e anuncia que Alfredo está chegando.

Todos silenciaram com a presença do irmão mais velho.

Alfredo estava muito pálido. Os olhos injetados, um esboço de cumprimento que mais parecia um pedido de socorro. Deu alguns passos e sentou-se na primeira poltrona que encontrou.

Ninguém se atreveu a perguntar o que lhe acontecera.

Letícia logo imaginou tratar-se das inacabáveis reuniões com os acionistas que o conduziam a um definhamento a ponto de tornar-se um homem alheio à vida cotidiana. Vivia para a empresa e parecia não ter uma vida pessoal. Era um homem solitário, sem se prender a nenhum relacionamento amoroso.

Estava sempre sozinho e quase não se sabia de sua vida particular.

Ele foi primeiro a falar, pedindo um copo de água à Linda, que já se acercava do grupo, avisando que a patroa os esperava na biblioteca.

Eles se olharam e Letícia dirigiu-se à escada, enquanto que os demais a seguiam, com exceção de Alfredo, que entregou o copo à Linda e perguntou, em seguida: — Linda, você sabe o que está acontecendo nesta casa?

— Por favor, Sr. Alfredo, o senhor já vai saber. O que eu sei não vai lhe servir de nada.

— Mas então você sabe.

— Vá, siga os outros. O senhor já vai saber, também.

Alfredo sorriu levemente e bateu com carinho no ombro da empregada. Em seguida, tomou o rumo da biblioteca.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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