quarta-feira, fevereiro 17, 2016

A FAINA DA BRASA

Animais dão-se as mãos nas campinas

verdes, que se espraiam olhar afora.

Vozes que flutuam em zumbidos longínquos

Homens se agrupam na prática eufórica.


Quando eles chegam de mansinho,

deixam os pastos repousar

Deitam as arestas de seu sono

e dormem em flores sem vicejar.


Humanos acendem fogueiras


Perpetuam fogos, parecem lutar

por vitórias que chegam com os arreios

e ferramentas que lá vão provar.


No dia da desova das paixões

Agitam-se, desesperados na rotina

e animais afastam-se, em vão

Da brasa que lhes cede a alma ferina.


Homens violentam seus bordões

Riem, na luta da guerra à vida

Gritam, rudes, na faina da brasa

A morte que chega, sem saída.


Animais caem ao relento

Esbaforidos, sedentos e sofridos

Olhares perdidos nas vagas madrugadas

que anseiam, mas que nada

Se sonham, nem sabem decifrar


A morte é certa, a berrar

na brasa ardente escaldando as carnes

O sangue transbordado na terra ferida


A morte é certa, a berrar


Homens dão as mãos nas campinas

Entoam canções e gritos de guerra

Vibram pelo sangue que mediram

no sereno da fatigada terra.


Animais fracos, mortos em vida

na luta do rodeio desonesto

onde o forte esquece o fraco no labirinto

e a vida se perde no sangue derramado.


Animais caem ao relento

Esbaforidos, sedentos e sofridos

Olhares perdidos nas vagas madrugadas

que anseiam, mas que nada

se sonham, nem sabem decifrar

A morte é certa, a berrar

a brasa ardente escaldando as carnes

o sangue transbordado na terra ferida


Homens dão as mãos nas campinas

Cantam canções de vitórias e gritos de guerra

Vibram pelo sangue que mediram

nos serenos da terra gripada


Animais fracos, mortos em vida

na luta do rodeio desonesto

onde o forte esquece o fraco no labirinto

e a vida se perde no sangue derramado


terça-feira, fevereiro 16, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO XI

HOJE, TERÇA-FEIRA 16/02/2016, SEGUE O NOSSO FOLHETIM RASGADO "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 11º CAPÍTULO.

Capítulo 11


Às vezes, penso em escrever um livro. Um livro que contasse a história de minha família, mas ao mesmo tempo em que me acomete esta idéia, sei que não ousarei seguir adiante. Relembrar os meses em que Luisinho ficou em coma naquele hospital é reviver a dor em toda a sua intensidade. É proclamar o dia da execução final. Não, não devo mais sofrer, já bastam as lembranças diárias que tenho dele, desses seus últimos momentos. Pudesse voltar os ponteiros do relógio e fazer a minha vida retroceder a um tempo anterior àquele acontecimento. Se pudesse impedir tudo aquele nefasto acidente. Se pudesse argumentar pra mim mesma, que tudo tem um motivo, um fim, uma conseqüência. Mas não consigo acreditar que fosse preciso ele morrer, ele que era tão cheio de vida, de amor ao próximo, de idealismo.

Isso não devia acontecer assim, com os velhos. Não devíamos prosseguir esta última etapa. Devia ser adiada. Cortada com a lâmina. Um fim digno a quem não mais tem interesse em viver. Se ao menos, eu tivesse a coragem de acabar com tudo, esquecer este céu negro que acoberta minhas noites e fechar de vez meus olhos cansados.

Veja o velho aqui da frente. Me parece que está no mesmo barco. Acho até que em situação pior, pelo menos no que se refere à saúde física. Naturalmente, nada que se compare à saúde emocional, porque não há dor maior do que perder um filho. É uma saudade doída, que esmaga o coração, que enrijece os membros, que afeta o raciocínio. Não acredito nestas mulheres que lutam pela memória dos filhos perdidos, que se vestem de estrelas para fazer campanhas, angariar fundos, transformar a dor. Devo ser uma velha ranzinza mesmo, nem sou politicamente correta, como a maioria que as elogia. Não. Elas só querem reviver o passado, mentir a si próprias que são felizes, que estão vivendo, quando estão mortas por dentro.

A noite está mais escura e as poucas luzes da esquina parecem amarelas, fracas, pintando portas envoltas em penumbras, repletas de vultos que produzem coreografias estranhas, mesclando seus corpos com sombras, deixando-os no vazio. Talvez um vazio tão grande como o de suas vidas. E a minha, não é tão vazia e inútil quanto a deles? Pelo menos, são jovens e fazem do seu corpo o que querem.

O vigilante do estacionamento dá seus primeiros sinais. Por certo, conversará com alguém que avance pelas redondezas, misturará a erva tranquilamente, mexendo com a bomba, ajustando o pó e sentará no degrau da calçada, cevando as horas, pedindo que o tempo passe. Será que ele gosta do que faz?

O velho não tem aparecido no quarto. A mesma penumbra tapando a poeira da cadeira desarrumada, com roupas atiradas, perdida num canto. Nem se aproxima da cama e puxa a cortina de filó como faz de costume. Por certo, piorou em suas dificuldades. Se ele morrer, quem ficará na janela, olhando para baixo, contando a sua vida, como se conversasse com um amigo? Talvez crianças correndo pela casa, batendo janelas, esticando-se no parapeito, pais assustados, colocando grades, enfurnando-as na sala do computador, desligando-as do mundo. Não é pra menos. O perigo ronda cada passo. No meu tempo era diferente. Mas daqui a 30, 40 anos, estas mesmas crianças talvez digam a mesma coisa. Que será do mundo, daqui pra frente?

O relógio do quarto bate 3 horas. Madrugada se adianta e sinto um estremecer no corpo, um pequeno calafrio que me percorre os braços. Sempre esfria neste período, mas especialmente hoje, há uma atmosfera sombria, que me assusta. Parece-me um frio interno, uma coisa orgânica, uma febre. Uma febre que me queima os miolos e me estremece a pele. Bobagem. Se eu morrer, não vai ser de febre. Sem dúvida, será de solidão. A velhas como eu, não é permitido desejar outra coisa, porque as perdas já esgotaram todo a adega de esperança. Falar em adega, e se eu tomasse um vinho? Sim, um vinho, ai,ai, ai, que idéia extravagante, Úrsula. Nem que fosse um vinho vagabundo, desses que a gente compra em queima de estoque. Desses aviltados pelo tempo, que não possuem rótulo de validade. E pensar que vinho bom é vinho antigo. Isso para os das safras nobres. Também pudera, a minha validade já tá vencida, já to usurpando o tempo. Nada mais justo do que tomar um vinho vagabundo.

Será que Susana gosta de vinho? Amanhã mesmo, vou comprar um bom vinho e guardar pro momento adequado. Ela merece. Também tem lá seus segredos e me parece que sua vida na é nada fácil. Mas quem não tem problemas, hoje em dia?

A mulher tinha que tomar tino de sua força. Tinha que se conscientizar que o seu poder está na sensibilidade, na possibilidade de abranger várias responsabilidades, diferentes do homem. De juntar e dividir ao mesmo tempo, sem prejuízo à causa. Mas preferem ser a mulherzinha, a mulher que se indigna pela submissão, mas pouco luta pelos seus direitos. Sabe, Rita, na verdade, não deveriam ser direitos, não deveria haver leis para proteger as mulheres, porque elas são seres iguais. São mesmo? Puta que pariu! Esta história de homem intelectual, que compreende a mulher, que julga que ela deva levantar bandeiras e lutar contra as vilezas do mundo, é tudo baboseira. Homem é tudo igual, na hora da cama, eles não pensam em igualdade. Querem submeter a mulher aos seus caprichos. E essa aí, a Susana, vem fazer a biografia do Jaime, como se fosse o defensor das mulheres. Ele era um homem bom, sem dúvida, um homem que me amava. Mas pra ele eu tava em Roma ainda, ou na Grécia antiga, sei lá. Era uma dama, fora da vida política, à margem da ordem social. O que eu era, afinal? A mulher que devia ficar em casa, cuidando dos filhos e dele, o filho maior! Pro homem, a mulher é mãe, a outra, ou mulher de malandro. Se a gente, você sabe Rita, demonstra que também sente prazer, é puta. Bom, isso era no meu tempo, com toda a intelectualidade, a inteligência e o discernimento do Jaime. Agora, as coisas mudaram. Mas mudaram demais, você não acha? Foram pro lado extremo. As mulheres estão com postura de homem e até assustam os pobrezinhos. E essa coisa de levantar bandeira, de lutar pelos direitos da mulher, esse feminismo retrógrado, é tudo sandice! Sei... sei, Rita. Sempre é preciso o exagero no início, na vanguarda de qualquer movimento, mas queimar sutiã na praça, convenhamos!

Lembro agora como se estivesse acontecendo neste momento. Ele andava envolvido com a política investigativa, na tentativa de encontrar furos no governo. Imagina, naquela época dura, da repressão. Tava pedindo. Mas as conversas, os encontros não se resumiam nisso, não. Como todo homem que se preza, estava entre os amigos, no bar mais bem frequentado da cidade, onde os boêmios e as mocinhas pintavam que nem mosca na.... você sabe. Eu estava grávida do Luisinho. Era um dia especial, porque eu havia recebido um convite. Você não vai acreditar, Rita, um convite para gravar o meu primeiro disco instrumental. Você sabe que eu tocava piano. Ele simplesmente não lembrou do fato. Quando ele chegou, eu estava furiosa, um rubor me tingia o rosto, um torpor me calava a boca. Ouvi o barulho do carro, um som de pneus riscando o piso e batidas desmanteladas pra todo o lado. Via o perfil se encaminhando na penumbra e chegando na sala, trocando as pernas. Não parecia o homem que eu amava, era um ser maltratado, amarfanhado, olhos fundos, em mangas de camisa, braços tão suados que prendia os pelos produzindo manchas escuras na pele.

¬– Meu amor, você preparou tudo isso aí, por que me esperou?

Ele sorria. O danado tinha um sorriso pra lá de bonito: franco, aberto, dentes emparelhados, à mostra. Sorria a ponto de me fazer recuar, de hesitar na minha ira, de abaixar as turbinas e aterrissar de mansinho. Meu coração romântico, meu amor contido me diziam coisas opostas à ira que avançava extrema, afirmavam que tudo que fazia era para ele, pra não me abandonar, pra ficar comigo, pra agradar minha alma.

–Desculpa, amor, não sabia. Que dia é hoje? – se equilibrava nas palavras, se desculpava na insanidade da vida alheia que vivia, longe de mim. Tentou me abraçar, cheirando a alho e bolinho de bacalhau. Me afastei do abraço desengonçado. Respondi absorta, apenas sentindo o cheiro forte que exalava, uma mistura de suor e comida.

–Não importa. Vou preparar um prato. Você comeu alguma coisa ou só bebeu?

–Só bolinho de peixe.
Me deu nojo o hálito de peixe, de bolinho chafurdando na banha. A cerveja comungando do cenário. Me afastei devagar. No móvel, ao lado do piano, a sua fotografia me fitando, naqueles olhos claros, intensos. Senti um desejo absurdo de beijá-lo, de vivenciar apenas o sonho, o ideal que aquele homem representava naquela imagem. E me envergonhei por isso. Parecia a outra, a vagabunda que não lavava suas cuecas, mas que ardia de desejo e paixão. Retirei-me devagar, afastando-me em direção à cozinha. Algumas lágrimas inevitáveis se insurgiam inoportunas em meus olhos. Sequei-as, rápido, com o dorso da mão esquerda. Voltei-me por um minuto e percebi que ele lia o convite para o contrato de meu primeiro disco. Acho até que chorou, pois fungou de um jeito estranho. Me seguiu até a cozinha, como uma sombra. Parou no umbral da porta, ainda se equilibrando nas pernas e nos pensamentos. Ouvi um resmungo, alguma coisa familiar que entendi como te amo. Nem sei se disse isso, mas me virei e abri meus braços pra ele.

Veja Rita, que feminista de meia-tigela eu era. E que canalha ele se mostrava! A Susana vai se decepcionar, não tenha dúvida. Também não sei. A mulher, por mais que se emancipe, quer um ninho, um aconchego, um abraço. Mesmo que de um canalha, feito o Jaime. Você não acha?

Fonte da ilustração: artigo Meu corpo, minhas regras do site http://maishistoria.com.br/meu-corpo-minhas-regras/

sábado, fevereiro 13, 2016

Arnildo na Mostra de Talentos da Biblioteca do HU

Houve a Mostra de Talentos da Biblioteca, no HU. Eu sugeri o seu nome e ele foi convidado. E entre talentos, havia crônicas, poesias, livros, desenhos, música. Ele então chegou devagarinho como é seu jeito, investigando de soslaio o cenário meio caótico. Além das exposições, das visitas e conversas animadas, chegara o momento musical constituído por um grupo de colegas que ousara desafiar os tímpanos e cordas vocais, num emaranhado de sons, ritmos e gêneros. Era um samba do criolo doido. Muito bom, de acordo com a euforia geral que até ensaiou uns passos de dança, nos quais, diga-se de passagem, me incluí. De todo modo, percebi a sua presença, talvez um tanto apreensiva, o que corroborou com minha percepção, pois confessara mais tarde. Afinal, no meio daquela algazarra musical, onde todos cantavam em altos brados e a plateia participava em uníssono, seria de bom tom as suas baladas mais lentas, mais reflexivas e o seu conteúdo pensante? Talvez se perguntasse, vou dar uma de Caetano Veloso e arriscar aqui um Cucurrucucu Paloma para agradar a galera?

Mas, aos poucos, espontaneamente o cenário foi harmonizando e cedendo o seu lugar ao nosso artista convidado. Ele se aproximou, interagiu com as pessoas e lentamente, assumiu o seu lugar. E aquele guri tranquilo dos poemas do "Poetas de Pijamas” foi surgindo e revelando a sensibilidade e a complexidade de seus questionamentos, como na poesia “Canção sem graça que compus para passar o tempo”, em que sua alma de artista se pune por não compor versos simples e rimas fáceis, mas palavras complexas e fonemas impróprios que parecem ocultar a face sublime que os inspiram. Mal sabia ele que a complexidade vai muito além da simples sintaxe dos versos ou da semântica de seu conteúdo. Vai além, através da imaginação, do sonho e sensibilidade, amparados não só na melodia, na letra, mas na interpretação e poder de interação. Muito mais, manifesta-se na vida prenhe de sonho e portanto, a complexidade se dilui na alma dos que sonham. Foi assim que interagiu do seu jeito e foi logo assumindo o seu lugar. Não imaginava ele que o povo que cantava e dançava no resfolegar dos sambas, emudeceria para ouvi-lo, que os tons e matizes nítidos e plangentes, vindo das canções talvez fossem aprrendidas em seu ritmo e conteúdo profundo, encantando-os num mergulho de poesia, onde antes havia apenas exarcebada euforia. Era outro ponto. Outra batida. Outro roçar de corações. Outro tinir dos sentidos. E do grupo heterogêneo, ele transformou o sussuro intimista no encontro. Música é isso. É alegria e reflexão. Gesto e abandono. Desafio e sonho. E Arnildo chegou de mansinho, se acercou de nosso grupo, apresentou com cuidado e atenção o que nosso coração pedia. Certamente, ali se estabeleceu um elo, no qual a troca se deu pela energia, pela partilha da arte pela a amizade. Talvez pontes foram criadas, nas quais as trajetória se cruzem e se enriqueçam.

Arnildo, hoje é nosso formando, nosso médico e tenho certeza, para os que como eu, conviveram com ele, o guri compositor, poeta, cantor e amigo e finalmente, para a mostra cultural da biblioteca, o nosso principal artista.

Biblioteca do HU: Biblioteca do Hospital Universitário, FURG, Rio Grande, RS

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sexta-feira, fevereiro 12, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO X

HOJE, QUINTA-FEIRA 11/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 10º CAPÍTULO.

Capítulo 10


Cruzes! Então o velho não se aguenta sozinho, precisa de alguém pra fazer a higiene. Também pudera, aquela mania de falar sozinho em plena janela do apartamento, olhando para a rua, deve ser fraqueza mental. Os neurônios não se coadunam. Pobre diabo! Depois de saber disso, me dá até dó, afinal é um homem doente e tudo que diz talvez não passe de simples imaginação. Coisa da cabeça dele. Esta vida é muito triste para velhos como ele. E como eu, também. Não fosse você, Rita, eu já teria enlouquecido nesta casa, sozinha. Quando Carmem enviuvou ainda me visitou algumas vezes, embora mais preocupada com a casa do que comigo, revirando o passado, criticando o Jaime, censurando até meus pensamentos. A filha que estava no exterior, de feminista radical se transformou em mulher de milionário e esqueceu todas as ideias avançadas que tinha na época. Carmem, aos poucos, foi me abandonando. Quando o Jaime morreu, ela não esteve ao meu lado, não me procurou para dar-me algum conforto, algum carinho. Ao contrário, apareceu apenas para consolidar o que pensava, justificar a ideia de fatalmente este seria o seu fim. O tempo passou, ela foi morar com a filha e praticamente me esqueceu. Uma carta aqui, uma mensagem ali. Nem mesmo quando Luisinho morreu, ela se tornou menos fria. Ficou cada dia mais distante, mais amarga, preocupada extremamente com os negócios orquestrados pela filha, com as vantagens de ter um genro rico. Alguns meses atrás, ela me surpreendeu com um telefonema. Mas acabou, nunca mais nos falamos. Nem sei o que é feito de minha irmã. Quando o telefone toca, o que é muito raro, fico meio alarmada, achando que aconteceu alguma coisa trágica. Sei lá. Esses pensamentos me vem, assim, aos atropelos. Não tem como evitar. Apesar de tudo, ela é minha irmã. Ai, meu Deus, e pensar que o Carlos se perdeu no mundo, imagine, o mundo não é mais inacessível, para um homem com a estrutura econômica dele. Não dizem por aí que o mundo é uma aldeia, mas para o Carlos, parece que não é bem assim. Nunca se casou, viveu exclusivamente para ele, para a sua privacidade. Acho que não queria que nós nos intrometêssemos em sua vida. Tinha lá suas manias, seus caprichos. Se bem que sempre morou tão longe! Às vezes, me vem à lembrança a carinha dele, tão risonha, tão extrovertida, cheia de malícia. Sempre engendrando alguma travessura. Ah, lembro dele, quando menino. Era tão diferente. Como as pessoas podem mudar tanto? O que a vida lhes apronta, que as torna aborrecidas, enfastiadas, amargas? Afinal, hoje em dia, é quase um estranho.

Era menino tão esperto, tão querido. Não podia ter esquecido assim, da gente. Gostava muito de me assustar, mais ainda a Carmem, que era mais boba do que eu. Certa vez, ele inventou uma estratégia de colocar nós duas em pleno acesso de terror. Estávamos deitadas em nosso quarto. Naquela época, a noite começava mais cedo, talvez por volta das 9 horas. Nós estávamos animadas com um tema da aula, que se estendia à freira e suas punições, aos meninos que ficavam em frente da escola. Por um tempo, ficamos no internato e só voltamos para casa nas férias. Minha irmã detestava as colegas, as freiras, o uniforme, as aulas, tudo que se relacionava à escola. Eu, ao contrário, me divertia com o que tinha. Afinal, estava ali, porque era tempo de guerra e papai talvez quisesse proteger-nos, sei lá o que imaginava naquela cabecinha dele. Acho que tinha medo que os alemães invadissem pelo porto e fizessem alguma maldade conosco. Coisas de meu pai. Minha mãe, por outro lado, tinha outros pensamentos bem menos nobres. Veja você, Rita. Ela praticamente forçou o meu pai a matricular-nos nesta escola caríssima, usada exclusivamente pela elite. Na minha idade, Rita, a gente tem em mente coisas assim, inexpressivas, nada relevantes para os dias atuais. Mas me lembro como se fosse hoje, de minha mãe, lendo o regulamento da escola para meu pai. Sei de cor as palavras, frases e expressões. Se não, ouça:

“Aprende-se na escola uma concepção do masculino e do feminino que possibilita julgar natural que meninos e meninas desenvolvam determinadas competências, habilidades e sensibilidades. Aprende-se também que ocupamos uma posição nas hierarquias sociais, ou seja, uma escola constituída por gente que o próprio nome apresenta a pessoa.”

Você percebe a malícia da coisa, Rita? A perspicácia de minha mãe? Ela sabia muito bem que aquela escola distinguia muito bem as habilidades entre homens e mulheres, que segundo o seu pensamento, eram criaturas diferentes, que tinham objetivos distintos. Homem era homem, tinha seus privilégios, liberdade, podia namorar quem quisesse, ter seus casos, andar com as putas da vida e tudo estava arranjado. Como dizia a minha avó, depois do ato, sacudia as cuecas e estava tudo bem. Não respingava nada na sua reputação, mas a mulher, Deus me livre, ou ficava mal falada ou embuchada! Meu Deus, como estou ficando obscena. Deve ser a convivência com a Dulcina.

Mas o que eu estava falando mesmo? Ah, da minha mãe. Coitada, no fundo, ela só queria o nosso bem, mas do jeito dela, você sabe. Mãe tem dessas coisas, de escolher o futuro dos filhos. De pensar que pode pintar o quadro segundo a sua ótica. Mas, na maioria das vezes, o quadro vira um caos, uma mistura de tintas que não tem vanguarda que aceite! Eu, por exemplo, se pudesse interferir na vida do Luisinho, ele nunca tinha casado com aquela lá. Mas isso, é outra história, aliás, bem mais adiante daquele tempo!

E tem outro aspecto, Rita. Além disso, minha mãe identificava a riqueza das famílias que punham seus filhos naquela escola e queria esta vivência para nós também. Queria que fôssemos diferentes daqueles pés rapados que frequentavam a nossa casa, principalmente os amigos de Carlos, os quais deplorava. No fundo, o seu desejo era que nos uníssemos às pessoas de classe alta, para que crescêssemos, tal como eles. Um sobrenome conhecido tinha prestígio, abria portas, trazia dividendos. Some-se a isto, o fato de que as escolas católicas significavam o criadouro por excelência da formação de grupos de elite no Brasil, isto desde o período colonial. Imagine, devia pensar ela, matricular as meninas num estabelecimento renomado como esse, representava uma dupla operação de agregação e segregação social, pois mantinha a distância espacial e social dos grupos populares e nos mantinha no seio das famílias renomadas. Finalmente, para fechar o quadro, costumavam casar-se no mesmo grupo para perpetuar o bom nome da família e não arriscar misturas extravagantes.

Sabe Rita, lembro do primeiro dia em que tivemos que usar o uniforme. Pior do que usá-lo era o ritual de despirmos, na hora de dormir, pontualmente às 22 horas, as freiras apagavam as luzes do dormitório. Ah, era realmente muito engraçado. Imagine uma coisa dessas nos dias atuais. A meninada se revoltaria, na certa.

Minha mãe desceu do carro de praça e nos apresentou à Madre Superiora. Ela estava convenientemente vestida. Trazia na cabeça um chapéu de feltro, pequeno, estilo militar, que pela posição produzia uma leve sombra nos olhos. Mamãe era muito bonita. Os olhos claros, azulados. A boca bem desenhada, com um batom não muito forte, evitando parecer artificial. A pele branca de pó de arroz. Trajava um vestido do tipo que imitava uma saia com casaco, em tweed com pregas finas e envolto num cinturão de verniz. O sapato era fechado, preto, de salto grosso e um laço que fazia as vezes de cadarço, cujos pés ocultavam as meias de náilon que lhe emolduravam as pernas longas e firmes. Para completar, uma bolsa marroquin e Karoseal estampado, em preto e branco. Ela em nada destoava das demais mães que frequentavam a escola: estava muito elegante.

Conversaram um longo tempo e em seguida pareciam grandes amigas. A madre superiora apresentou a escola, após descrever toda a metodologia pedagógica tanto nos aspectos acadêmicos quanto religiosos. Interessava-nos, porém, o pátio que nos parecia imenso, num estranho formato em u, repleto de bancos sob árvores frondosas e um pequeno chafariz vindo da França dividia o hall distinguia o pátio da entrada aos prédios, à capela, aos apartamentos das freiras, aos dormitórios, enfim, a planta geral da escola. Algum tempo depois, alegando outras atividades, deixou-nos sozinhas.

Sentamos as três num dos bancos da escola praticamente deserta, por tratar-se num período de fim de ano. Minha mãe mostrava-se forte, mas eu percebia que seu olhar estava pesado, suas mãos até tremiam. Carmem chorava muito, agarrada em seu pescoço. Eu ensaiei algumas lágrimas, por pura imitação. Estava triste, mas ao mesmo tempo, muito animada com aquele ambiente novo, aquelas novidades que se me apresentavam. Na verdade, só uma coisa me deixava triste: o meu piano, que ficaria abandonado, à mercê da poeira diária, no qual somente tocaria quando voltasse para casa. Quando minha mãe saiu e a vi afastar-se no carro de praça, foi o único momento que senti meu coração apertado, como se a realidade se antecipasse ao sonho, ali, dura, petrificada, sem volta. Mas, logo em seguida, ao sermos chamadas e apresentadas aos nossos uniformes, já me dei por satisfeita. Carmem os detestou, e com razão. Eram um estorvo aos movimentos. A começar pelas roupas íntimas. Devíamos usar calçolas, cujos elásticos se prendiam às pernas, formando uma espécie de balão. Sobre os seios, havia uma faixa, não recordo muito bem o nome daquele veste, cujo objetivo era transformar-nos numa tábua. Imagine, aquela espécie de atadura envolvendo todo o nosso corpo. Carmem costumava sentir falta de ar. Na verdade, sempre achei que era fita dela. Não era pra tanto. Depois desses primeiros vestuários, colocávamos uma anágua de algodão que descansava nos joelhos. Sobre tudo isso, o uniforme azul-marinho. Uma saia pregueada casaco marinho sobre a blusa branca, de gola e punhos engomados. Nas pernas, meias que iam até os joelhos e nos pés, sapatos pretos, de salto baixo, bem lustrosos.

Ai,ai, ai, Rita, que engraçado... Eu já lhe contei sobre a hora de dormir, quando tínhamos de despir tudo aquilo? Ah, pois bem. Ficava uma freira na porta, aguardando que todas se acomodassem. Nós naturalmente nos despíamos do casaco, mas as demais peças exigiam um verdadeiro protocolo para serem retiradas. Enfiávamos a camisola imensa, de cambraia, que ia até os pés e em seguida, retirávamos por debaixo as demais peças, a blusa, a saia pregueada, a cinta que cobria os seios e nos deitávamos. Quando tudo estava quieto, a freira apagava a luz e se afastava. Não admitia um sussurro.

Mas imagine você, que certa vez, eu sonhei em ser freira! Acho que em virtude daquele cerimonial todo, aquela disciplina quase sagrada, aquela religiosidade... mas foi passageiro. Logo que botei o pé na rua e conheci o Jaime, percebi que o meu mundo era outro. Mas isso é história para outro dia.

Me parece que ia lhe falar alguma coisa sobre o Carlos, mas dei de ter estas falhas de memória – deixa pra lá, a gente ainda tem muito o que conversar, Rita.

terça-feira, fevereiro 09, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IX

HOJE, TERÇA-FEIRA 09/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 9º CAPÍTULO.

Capítulo 9


Susana temia demonstrar o caos que estava sua mente e em seu coração. Quantas vezes viera à clínica, quantas vezes entrara naquele quarto de reflexos nas paredes, um quarto despido de vida, de sensibilidade, de sensações. Um quarto nu.

Entrou devagar, passos imprecisos, falseando o salto, como se obstáculos ocultos a impedissem de avançar, de se aproximar do homem que vivia distante, alienado, transbordando de dor e mágoa, ou apenas inerte, como uma poça dágua inatingível, escondida sob o alpendre, se deteriorando dia a dia.

Estava lá, na cadeira isolada na sala branca, de sombras esparsas na parede, como se o sol de vez em quando aparecesse entre as nuvens e produzisse figuras que passeavam indiscretas, incontestes sem qualquer censura. Figuras que não significavam nada, apenas a solidão, a apatia, o desapego dos vivos.

Ele a olhou como quem avista um objeto qualquer, um móvel, um livro já lido, um brinquedo velho, uma roupa usada. Logo desviou o olhar e se deteve nas mãos, examinando-as com cuidado, observando-lhes talvez as reentrâncias das veias que modelavam mapas frágeis, quase apagados. Mãos brancas, descarnadas, transparentes. Assim como a face, na qual Susana observava as veias azuladas, os olhos fundos, claros, com um brilho aquoso, disperso. A boca entreaberta, com falhas de dentes, o nariz saliente, vermelho, contrastando com a palidez do rosto. Examinava as mãos em direção à luz da janela, ora uma, ora outra. Às vezes, juntava-as em gesto de prece e punha-as no queixo, por alguns segundos. Logo desistia e prosseguia na posição anterior. Quando muito, cansava-se e abandonava-as sobre as pernas, vestidas em pijamas de algodão. Tão finas, tão frágeis, que escapavam da cadeira, os pés vez que outra, desandavam ao solo, caindo do suporte e assim, perdendo os chinelos de couro. Seus pés também tinham veias azuis e eram tão brancos e transparentes quanto as mãos.

Susana aproximou-se mais e pousou delicada, a mão nos cabelos raros, brancos sobre o couro róseo e talvez se observasse atenta, também veria veias azuis, como pequenos fios na iminência de serem rompidos.

Ele sorriu, reflexo do carinho inesperado. Mas ela não se animou: sabia tratar-se de reação instintiva. Doía ainda mais aquele sorriso desdentado, aquele olhar enfermo, quase infantil. Uma larva que se soltava do casulo, lentamente, metamorfoseando-se, despedindo-se da vida medíocre; quem sabe alcançando outra dimensão, tal como a borboleta, cujas asas pousam perpendiculares ao corpo, mostrando ao mundo o equilíbrio jamais acessado.

Em seguida, esqueceu o carinho. Voltou-se para a janela que jogava luz do pátio, fabricando sombras e deixou-se ficar, absorto, alheio a tudo, sem lembranças, sem passado, sem futuro.

Susana ficou ali, tentando lembrar a imagem do pai, no passado e carregar consigo apenas aquela, que lhe transmitia segurança, integridade, virtuosismo. Um homem que emancipara mentes, que programara padrões de comportamento, que nunca prescindira da realidade, que tratara os pacientes como indivíduos, revelando neles as capacidades que temiam enxergar. Agora estava ali, como um trapo inerte, um objeto obtuso, sem qualquer valor, a não ser deixar o tempo passar e consumir os momentos conclusivos de sua existência.

Afasta-se alguns passos e enxuga as lágrimas com o dorso da mão. Sente-se vergar como bambu ao vento, arremessado pela força invisível, cujas estratégias e comandos desconhece. Um peso que não consegue carregar com dignidade. Uma dor que corrói, avassala, destrói.

Suspira e passeia pela sala, tentando ver o que seu coração não admite: o mundo particular em que o pai se escondeu e dali não encontra saída, labirinto execrável, que também a envolve, que a esconde do passado, que a afasta do presente. Um mergulho irreal no cotidiano, vivendo do jeito disforme, estranho, de quem perde a fé, a esperança, o amor. De quem desconhece o sabor do carinho, do afeto, da chegada. De quem só avista partidas, cujas voltas nada significam a não ser o desvio da realidade para uma vida virtual que não é a sua. Nem a dele.

Aproxima-se novamente e o beija no rosto. Mais um carinho na fronte, mais um olhar nos olhos. Ritual que cumpre, apenas factível e rotineiro. Não queria permanecer ali, não queria aquela lembrança do pai, não queria assistir um fantasma, um corpo quase objeto. Repetiu os passos de volta, rapidamente e abriu a porta com cautela, sem fazer barulho. Ao torcer a maçaneta, porém, teve a impressão de uma presença, como se ele tivesse reagido de algum modo. Era apenas uma impressão, sabia. Um devaneio, um delírio. Mas havia algo estranho, um som inaudito, um sussurro, um suspiro inesperado. Largou a maçaneta, esfolando os dedos afoitos, voltou-se estarrecida. Ele virava o rosto em sua direção, fixando o olhar com ternura. Sua voz soou trêmula, sumida, mas com uma verdade tão lúcida, que a fez estremecer, segurando-se à porta. Suas pernas fraquejaram, seu coração antecipou-se, batendo desordenado. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Seus ouvidos alertaram-se.

_Por favor, minha filha. Não me deixe perder a lucidez. Quando acontecer novamente, faça alguma coisa para o meu coração parar. Eu lhe peço. É um ato de amor.

Naquele momento, não conteve a explosão de soluços, como se as lágrimas se espalhassem, comportas fossem abertas, deixando evadir toda a mágoa e sofrimento. Era muito doído o que ele expressava. Mas ao mesmo tempo, muito humano e muito digno.

Não continha as lágrimas enquanto deixava o estacionamento do jornal. Naquele dia, especialmente, sentia-se desprotegida e só. O passado que revirava em virtude das conversas com Úrsula, inclusive a imagem desfocada do homem do prédio defronte, produziam em seu íntimo uma angústia que a oprimia. De repente, todas as culpas, todos os sentimentos estranhos de quem tomou uma atitude decisiva e inevitável, surgem em polvorosa, descambando por caminhos íngremes, irregulares, povoando a sua mente. Como se pisasse em charcos, moldando a lama, insurgindo-se entre ratos fugidios de bueiros ocultos, olhos reluzentes sob faróis inesperados. Sentia um arrepio estranho. Enxugava as lágrimas, tentando se recompor na presença do manobrista. Fez do pequeno espelho seu escudo, retocando a maquiagem, de modo a produzir um semblante tranquilo, escondendo o que seu coração oprimido revelava. Despediu-se rapidamente, enquanto outros colegas se aproximavam de seus veículos. O editor que havia discutido a pauta diária e ainda sugerido pressa na conclusão da biografia, correra ao seu encontro. Um homem magro, rosto fino e longo, olhos claros, argutos, de quem possui a sagacidade como instrumento preponderante de suas atitudes. Susana fingiu não vê-lo, mas o manobrista fez sinal com o apito, obrigando-a a frear o carro próximo a uma coluna.

O que aconteceu, Vinícius?

–Susana, acabei de obter uma informação importante sobre a sua biografia. Não podia deixar de avisá-la. Nem desci pelo elevador, pra poder alcançá-la mais rápido.

–Por que não ligou?

–Queria falar pessoalmente, é que se você quiser, podemos ir juntos. O lugar onde a fonte mora não é lá estas coisas de segurança. Um lugar meio mal afamado.

–De quem se trata?

–Um amigo do seu biografado. Parece que conhecia muito bem o Jaime. Pode ser até que você consiga outro viés da imagem dele.

–Você está muito interessado no meu trabalho.

–Sou o editor de reportagem, esquece? Que há com você Susana, to prestando um favor e parece não estar interessada!

–Desculpe, Vinícius. Estou muito interessada, sim. É que hoje foi um dia daqueles, você mesmo viu na discussão da pauta. Com a barafunda econômica que está o mundo, nós é que sofremos. Sim, porque atualmente, não há um especialista por área, todo mundo faz tudo, qualquer dia, um cara especializado em literatura, vai discutir economia.

–Que rebelião é esta, menina? Não se esqueça que sou o seu chefe.

–Está bem, chefe. Podemos conversar amanhã sobre a tal fonte?

–Eu pensei que poderíamos falar nisso mais tarde.

–Mais tarde, eu vou dormir. Agora, eu vou pra minha casinha e você pra sua. Só me diga o nome da pessoa, dona Úrsula pode conhecer.

–Parece que é um professor aposentado. Um tal de Gregório, se não me engano.

Quando se afastou do prédio, sentia a alma livre. Ainda observara a figura de Vinicius, conversando com o manobrista, todo sorrisos, como é do seu feitio.

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO VIII

Capítulo 8

HOJE, QUINTA-FEIRA 04/02/2016, CONTINUAMOS O NOSSO FOLHETIM "PÁSSARO INCAUTO NA JANELA" COM O 8º CAPÍTULO.


–Cruz credo! A senhora ta com espírito ruim! Eu nem bem cheguei e a senhora ta me mandando sair. Que aconteceu dona Úrsula?

Úrsula abre os olhos, ainda estirada no sofá, sem entender muito bem o que está acontecendo. Dulcina a sua frente, falando sem cessar e uma luz forte invade a sala, ferindo a retina. Um olhar apalermado de quem não teve uma boa noite de sono.

–Tá com cara de quem tava na gandaia. Parece que passou a noite de porre!

–Me respeita, Dulcina. Não seja atrevida.

– Desculpa, dona Úrsula, mas me diga uma coisa, a senhora dormiu?

– Não sei, acho que dormi. Agora dei pra dormir, não sei se fico feliz ou assustada. Eu, que não saía da minha janela, que passava a noite vendo o céu escurecer e clarear, agora, fico dormindo no sofá. Será que você não me deu nada pra dormir?

–Ei, me tira dessa jogada. Não me mete em fria. A senhora quase me ferrou, ontem à noite. Agora que me acusar de envenenamento.

– Eu nem sei porque aturo você.

–Porque gosta de mim. Porque só tem eu pra conversar, pra brigar, pra botar os bicho pra fora.

–Você é muito convencida, mesmo. Mas como você entrou?

–Dona Úrsula, esqueceu que eu tenho a chave? Só não tenho a do prédio, lá de baixo, mas a do apartamento está aqui, comigo.

–Como é que eu fiz uma loucura destas, dar a chave pra você, que perigo estou correndo.

–Perigo nenhum, ao contrário, se bate as bota, de repente, tem que ter alguém pra abrir a porta.

–Ora, não diga bobagens, sua atrevida. Principalmente depois do que você me disse.

–O que eu disse?

–Eu não vou repetir.

–A senhora é quem sabe, mas tenho certeza de que não disse nada de mal. Muito pelo contrário, tudo que lhe digo é pra lhe deixá bem, pra cima!

–E sobre o meu algoz?

–Sobre o quê?

–Deixa pra lá.

–Ah, não, se começou, tem que terminá. Mas, eu to ligada. Se refere ao velho do prédio da frente, né? Eu tava brincando, não vou trabalhar com ele, não – sorri, acariciando a voz, outrora robusta e altiva, agora doce e suave –ta louca, pensa que vou limpá bunda de marmanjo? Gosto de trabalhar com gente assim, que nem a senhora, elegante, culta, artista.

–Por que você disse isso?

–Isso o quê? Que é artista? Ué, a senhora não toca piano?

–Me refiro ao velho, sua tonta. Nem me atrevo repetir o que você disse.

–Ah, sobre limpá a bunda dele? A Marielsa do 42, aquela pretinha nanica, sabe quem é ela, a que trabalha com o casal do banco – está bem, está bem. Não interessa, fale do velho – pois é, a Marielsa disse que ele faz as necessidades nas calças, parece que não dá tempo. Sabe como é, o cérebro não comanda. Um tico não bate com o outro, entende?

–Bem feito!

–Credo, como a senhora é má!

–Só eu sei o motivo. Mas parece que você não gosta dele, também.

– Ele fica cuidando a senhora. Não pense que ele não fica planejando alguma coisa, falando sozinho, de vez enquanto, dando uma olhada.

–Planejando o quê?

–E eu vou saber? A senhora também tá sempre matutando. Coisa de velho, ora. Agora, se me dá licença, vou pro meu trabalho.

–Você é muito desrespeitosa, Dulcina, sabia?

terça-feira, fevereiro 02, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO VII

HOJE, TERÇA-FEIRA, DIA 2 DE FEVEREIRO, RETOMAMOS A PUBLICAÇÃO DO NOSSO FOLHETIM. A SEGUIR, O CAPÍTULO 7.

Capítulo 7
Carmem chegou de mansinho, pisando macio no piso encerado. Usava saltos médios, num sapato preto, fechado, assim como todo o vestuário. Um conjunto preto, de saia e blusa, acompanhado do casaco que a deixava mais magra do que o habitual. O rosto pálido, lábios sem cor e olhos fundos e grandes, num castanho escuro que parecia fixar-se apenas por segundos, sem focalizar bem o que devia ver. Cumprimentou friamente Úrsula, percebendo o nervosismo da irmã, o que inevitavelmente a irritava. Não conseguia disfarçar o mau-humor, ao contrário, esforçava-se em mostrar o desconforto que ora a acometia. Úrsula convidou-a a sentar na poltrona situada em sua frente. Percebeu que a irmã girou o olhar rapidamente em torno, procurando um objeto fora do lugar ou algum resquício de poeira sobre os móveis. Era dada à perfeição, à limpeza extrema, ao cuidado com a organização, à arrumação da casa e qualquer coisa fora do lugar, a deixava apreensiva, oprimida, nervosa. Úrsula investigou rapidamente e retirou um copo de bebida sem qualquer utilidade sobre a mesa de centro, além de alguns guardanapos de pano, há pouco usados. Pediu que a empregada os levasse e imediatamente sentou-se ao seu lado. Esperou que a irmã lhe dissesse a que veio. Não havendo reação, experimentou perguntar pela filha. Carmem mostrou-se seca, restritiva. _Não vim aqui falar Maria Helena. Às vezes, tenho a impressão que você só pergunta para me agredir. Úrsula passou a mão pelo cabelo doirado, estirando para o alto, alguns cachos que lhe caíam na testa. Alongou o pescoço, empurrando uns portas-copo sobre a mesa, como se estes estivessem fora de lugar. Concluiu: _Não entendo esse seu aborrecimento. É natural que pergunte por ela. Há tanto tempo que não vejo minha sobrinha. _Você sabe o quanto me desagrada este assunto. Eu nunca concordei com esta viagem, logo ela, uma mulher solteira. Imagine o que devem dizer as línguas ferinas de nossa família. _Nossa família é tão pequena, Carmem. _Mas e os amigos, e o nosso grupo social? _E o que ela faz em Paris? _De tudo um pouco: arte, protesto, manifestações femininas... Gastando o dinheiro que o pai deixou! Eu fico possessa só em pensar. _Então não vamos mais falar nisso, Carmem. Vamos tomar um licor? Carmem estica o pescoço e a encara por um minuto. Seu olhar é ao mesmo tempo de desaprovação e ansiedade. _Esqueceu que eu não bebo? Eu vim aqui, para saber de você. Sabe que fecharam o congresso, que Brasília está virada num deus-nos-acuda! E o que você pensa que o Jaime foi fazer lá? Úrsula suspira, resignada. No fundo, sabe que a irmã tem um pouco de razão, mas não há nada que possa fazer pra mudar o rumo dos acontecimentos. _Eu não penso. Eu só imagino. Não se tem certeza de nada, você sabe. Carmem altera o tom de voz, mais agressiva. _Ele devia se abster de falar em política, em problemas sociais. Ele não tem que se meter nestes assuntos. Não é um bom jornalista? Que invente outra coisa! _Desculpe, Carmem, mas você não veio aqui apenas para criticar o trabalho de meu marido. Levanta-se num salto e passeia pela sala, triunfal. _Estou preocupada com você. E se ele for preso, exilado? O que você vai fazer aqui, nesta casa, sozinha? _E o que você faz na sua? _É diferente, você sabe. Tenho orgulho do meu marido, ele morreu, mas foi um homem que viveu dentro da lei, dentro da ordem social. Tudo que lhe aconteceu, foi uma fatalidade, que pode acontecer com qualquer um. Úrsula também se levanta, na tentativa inconsciente de pontuar uma interrupção definitiva no assunto. Enfrenta a irmã, avessa a discussões. Sabe que jamais concordarão em alguma coisa que se refira ao tema. Talvez jamais concordem em alguma coisa. _Carmem, se vamos continuar neste tom, acho melhor pararmos por aqui. É uma discussão estéril, que não leva a nada. Carmem se regozija com a indignação da irmã. Tanto, que revela-se subitamente tranquila. _Se você pensa assim... Eu só vim para ajudá-la. Mas você é cabeça dura, aliás, desde pequena. Sempre com a mania de ler aqueles livros idiotas, de saber mais do que todos, de pensar que conhecia muito do mundo. Deu no que deu. _Essas são conclusões suas. Eu nunca pensei que sabia mais do que ninguém. – afasta-se até a janela e responde absorta. De repente, uma brisa suave invade o ambiente. Uma vida que corre lá fora, um ar noturno que traz luzes intensas, de quem tem expectativas e esperanças. Observa o prédio defronte ao seu, finalmente construído. Um caminhão de mudança e pessoas felizes imaginam-se na casa nova. Carmem também olha pela janela, aproximando-se, descansando os cotovelos no parapeito. Prossegue no assunto, que talvez a tenha levado visitar a irmã. _E essa ideia agora, de morar em apartamento. Você, que tinha aquela casa maravilhosa que nosso pai nos deixou. Aliás, não sei porque que ficou com a sua família. _Não vamos retomar este assunto, por favor, Carmem. Você mesma na época concordou, porque estava bem casada com um homem potencialmente rico. Não lhe interessava aquela casa, nem o passado que havia ali. Tinha ojeriza por tudo que lembrasse a nossa família. _Mas a casa era minha também. Se você cuidou do velho até o fim, é problema seu. Eu não cuidava porque tinha meus afazeres, a minha vida de mulher casada com homem importante. Além disso, naquela época estava grávida. Mas, você foi namorar um cara sem eira nem beira – e falando em tom mais baixo, quase sussurro – um comunista. Úrsula ri, não sabe se pela expressão dissimulada da irmã ou pela aflição que o assunto provoca. _Por que está rindo? Porque estou dizendo a verdade? _Não, porque você confunde tudo, Carmem. _Mais uma vez, está me taxando de burra. _Não é isso. Você acabou de afirmar que o Jaime era comunista. _E não é? Por acaso estou mentindo? E aquelas baboseiras contra o governo, contra a revolução? – e diminui a inflexão da voz novamente – Meu marido era da Marinha, não se esqueça disso. Ele tinha todas as informações confidenciais sobre o Jaime. Úrsula ao contrário da irmã, aumenta o tom, incisiva. _Ele é um socialista sim, mas não pertence ao partido comunista, aliás, não é filiado a partido nenhum. Todo mundo que pensa diferente do que está aí, no poder, é comunista, pra vocês! _Olhe aqui, Úrsula. Não quero discutir política. Só vim para tentar botar um pouco de miolo bom nesta sua cabeça, mas parece que perdi o meu tempo. _E o que você veio me aconselhar? Carmem ficou em silencio. Não esperava aquela pergunta tão direta. Então, tangenciou na resposta. _Você mudou de assunto. Estava falando da casa, deste apartamento. Por que é que se mudou, afinal? Lá não era boa, o bastante? _É muito simples, minha irmã. Porque fica perto do jornal onde o Jaime trabalha. Além disso, acomodamos todos os nossos móveis, de modo a juntar conforto e praticidade. Aqui tem o gabinete dele, o escritório com toda a sua papelada, seus livros, sua máquina de escrever. Também tenho o meu piano, numa sala especial para ele, como reparou. É um bom apartamento, não acha? Aquela casa estava ficando grande demais, com muitos problemas para resolver. Uma casa antiga precisa de conservação, cuidado. E depois que papai morreu, tudo ficou mais difícil. Eu dando aulas de piano, Jaime não ganha muito bem. _Mas você não pode vender a casa. Ela precisa ser divida entre os herdeiros. Maria Helena já tem mais de 20 anos. Tem direito a uma parte da herança, assim como eu, o Carlos, nosso irmão. _Mas você esqueceu que papai doou para mim, antes de morrer? Você e o Carlos concordaram. Ele, inclusive nunca mais voltou do exterior, nem para o enterro de papai. _Mas aquilo foi um devaneio do velho. Estava fraco, doente. E só inventou esta doação porque você estava ali, dia a dia, cuidando dele, paparicando. A minha vida era atribulada, eu tinha meus compromissos com a família, com meu marido. _Mas não foi seu devaneio. Você aceitou. Seu marido estava presente. Havia testemunhas. _Mas não houve testamento. Não há documento registrado. Não há provas. _O que você quer dizer? _Que precisamos fazer o inventário da casa. Precisamos dividi-la legalmente. _Mas eu pretendia quitar o apartamento com a venda da casa. _Mas você acha justo, você sozinha tomar conta de um bem que é de todos? Não interessa se tenho fortuna, se meu patrimônio é maior do que o seu, se sou agraciada pela pensão de meu marido. Isso é um problema meu. A herança é de todos, não de uma única pessoa. Por acaso, eu sou culpada se você casou com um pé rapado? _Por favor, Carmem, vá embora. _Agora não lhe interessa me ouvir, não é mesmo? Quando se falou em dinheiro, aí as coisas mudam. Queria ver a cara do seu Jaime, se ouvisse isso, ele que é socialista, que quer ver tudo dividido, que quer os pobres no poder. É bem capaz de sonhar com um operário na presidência. Aí sim, o Brasil vai à bancarrota! _Saia daqui, Carmem. Saia daqui!

sexta-feira, janeiro 22, 2016

Mormaço de domingo

Sentia o cheiro acre das calçadas sujas. O encardido denso esquentava os paralelepípedos mal estruturados. Um sol de ressaca, quase mormaço, mas nada pior do que o constrangimento de vê-lo ali, estirado na esquina, encostado no átrio da porta. Parecia franzino, quando o avistei do outro lado da rua. Cabeça estirada nas tijoletas quentes, os cabelos revoltos, os braços escondidos sob o corpo. Por um momento, pensei em chamá-lo, acordá-lo do torpor, que me parecia, se encontrava. Outras pessoas passavam mais adiante, olhavam curiosas, como eu, mas se dispersavam logo: um mendigo, um drogado que se abateu na noite e se transformou naquela figura estática e indefesa.

Talvez não houvesse o que fazer mesmo. Para que acordá-lo? Por que trazê-lo ao mundo dos normais, se havia talvez muito mais intensidade na conduta que o levara ao abandono que ora demonstrava? Talvez uma noite de festa, bebedeiras, mulheres, alegria, e todos os prazeres da carne e da mente. Do físico, da alma?

Uma pequena inveja assolou minha alma, por um momento. Pudesse eu desfrutar daqueles momentos de derrame da vida, mesmo que o resultado fosse uma poça de baba na boca, uns olhos apertados no sol, o corpo doído na calçada suja.

Nem sei se pela inveja ou por piedade, ou mesmo medo de que fosse vilipendiado, roubado, ou mesmo assassinado, que o chamei. Afinal, não se tratava de um mendigo, haja vista as roupas que usava. Um paletó cinza, camisa preta, calça de um cinza mais claro e sapatos sociais. Não havia dúvida que foi o que me levou a tentar acordá-lo. Se fosse um mendigo miserável ou um craqueiro indesejável, eu como de resto, seguindo o senso comum das pessoas de bem, me afastaria rapidamente, provavelmente atravessando para o outro lado da rua e desaparecendo nas calçadas seguintes.

Então me aproximei devagar, dobrei o corpo para que me ouvisse e o chamei algumas vezes. Ele abriu os olhos, apertou-os com força em virtude da luz intensa, fechou-os rapidamente, virou o corpo em direção à parede e esticou as pernas, encolhendo-as novamente, deixando-se ficar na posição fetal. Dava a sensação que não queria conversa.

Insisti: companheiro, não pode ficar aí. É perigoso. Tens documentos, carteira?

Ele não respondeu. Resmungou alguma coisa sem sentido e encolheu-se ainda mais, escondendo a cabeça com as mãos.

Ia desistir do meu intento. Que se amolasse. Que roubassem o seu dinheiro, seus documentos, que o agredissem. O dia passaria rápido, e naquela rua vazia, numa tarde de domingo ensolarado, a solidão era propícia aos vândalos.

Voltei-me, abandonando a ideia de ajudá-lo, quando de repente, num salto, ele se levantou, como se imbuído de uma estranha energia. Então, insisti.

– Companheiro, é melhor ir pra outro lugar. Ficar aí, sozinho, deitado na calçada, não é bom. Alguém pode te assaltar.

Ele não me respondeu. Olhou-me atentamente, como se quisesse descobrir qual era a minha verdadeira intenção. Uma suspeita implícita.

Perguntei, intrigado.

– Escuta, cara, não tens nenhum amigo?

Ele foi taxativo. Olhos arregalados, uma certeza única: meu amigo é Jesus.

Talvez pretendesse dizer-me que não tinha amigos e que não confiava em ninguém. Achei melhor dar por encerrada a minha missão.

– Está bem, só insisto que não fiques aí deitado. Daqui a pouco, pode passar algum policial e vai implicar contigo – e conclui com um “até logo”, entredentes.

Ele voltou a deitar-se, agora sob a marquise do prédio ao lado. Pelo menos, estava na sombra do edifício. Afastei-me alguns metros e ele sussurrou, levantando a cabeça na minha direção.

– Não tenho documentos, não tenho dinheiro, não tenho nada.

Decidi não dar atenção. Estava cansado destas ladainhas. Pessoas que se mostravam incapazes de voltarem para as suas cidades porque perderam tudo, ou que pediam dinheiro porque haviam sido roubadas, ou porque precisavam de um medicamento com urgência. As histórias soçobravam em minha mente e aqueles textos amarfanhados se repetiam da mesma forma como os flanelinhas inventavam maneiras de agradar os presumíveis clientes.

Ele disse aquelas palavras, azulou os olhos aguados e deixou-se ficar na mesma postura, sem iniciativa. Era um convite ao desinteresse. Segui então o meu caminho e enquanto me afastava, lembrava de momentos em que passei sérias dificuldades. Situações absurdas em que fui envolvido sem qualquer lógica que justificasse os sacrifícios passados. Mas, eu era responsável, um homem que sempre trabalhou em toda a sua vida. Não podia ficar me comparando com um homem que fica na passividade permissiva do pedido, da esmola, da auto piedade. Mas volta e meia, surgia a tal da culpa cristã que me acompanhava.

Aos poucos, o mormaço me deixava cada vez mais cansado. O suor escorria pela testa e uma sensação estranha de frio me atingia, como se uma febre terçã se estabelecesse em meu organismo, tornando-me frágil e incapacitado para seguir adiante. Por sorte, havia o banco da pequena praça de esportes, no qual me sentei, estirando as pernas. Tinha a sensação que também as pernas esfriavam e se distanciavam do resto do corpo, como se não mais fizessem parte dele, antecipando-se à grama que ora cercava-me os pés.

Reflexos de histórias passadas, de situações vividas, vinham à tona e se misturavam com a realidade do dia de mormaço. Eram noites quentes que se revezavam com o frio que acompanhavam a rigidez de meu corpo, num desafio entre a vida e a morte. Mas podia ver, ao longe, como numa tela mesclada com vários filmes, mulheres que se aproximavam em danças orgíacas, oferecendo bebidas e sorrindo numa sensualidade mórbida, onde a boca vermelha se aguçava num sangue, que ora escorria derradeiro, como se as mordidas do amor, também fossem as da morte. Ao mesmo tempo em que homens se insinuavam e lambiam suas coxas e seus ventres enquanto prostitutas se aproximavam, misturando taças de champanhe com sugestões sexuais. Talvez meu corpo latejasse de frio e tesão. Talvez o frio que sinta agora seja o medo de aceitar a sexualidade estendida na bandeja, da incapacidade de amar e me relacionar, da infinidade de desejos preteridos e outros engajados em buscas que não eram minhas.

Talvez tenha medo de ajudar aquele rapaz e descobrir em suas vestes, os resquícios das noites dionisíacas, nas quais meu corpo se incendiava e temia descobrir verdades tão ocultas e bem colocadas no rol das intimidades bem aceitas. Talvez tema resgatar esta faculdade de amar, de viver de forma libertina e liberada, de enfrentar a verdade do desapego de meus conceitos, de encontrar nele, aquele que pretendi ser e não fui.

Talvez devesse voltar até a marquise e enfrentar o mormaço do domingo, quem sabe passaria este frio que me enrijece a língua e me impede de falar, como num pesadelo no qual, nos esforçamos em abrir e fechar a boca e o som nunca sai. Quisera ter a coragem de voltar, de encontrá-lo novamente e desafiar o medo que corrói minhas vísceras. Mas se voltar, não será tarde demais? Já passou tanto tempo. Já não existem as noites límpidas, a brisa suave abrigando a testa, o sorriso sincero e a vontade de viver. A vida foi passando assim pálida, assim deslocada da realidade, apenas compartilhando momentos roubados, obscenos, perdidos, alinhados a noites de fúria e medo. Para se tornar plácida, tranquila, morna, insossa, culminando neste mormaço de domingo.

fonte da ilustração: InfoKeywordsCommentsGeo CIMG5050 (2)ee.jpgBy endiku

quinta-feira, janeiro 21, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPITULO V E CAPÍTULO VI

HOJE QUINTA-FEIRA, 21 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS OS CAPÍTULOS QUINTO E SEXTO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.

Capítulo 5

Não poderia ter sido um dia pior do aquele. Ver aquela mulher na minha frente, me olhando enviesada, tentando dissimular o mal-estar, foi um deus-nos-acuda. Se tivesse forças e coragem, teria corrido. desordenada, mas firme, para bem longe. Mas não tive, nem uma nem outra. Susana ficou intrigada, não sabia o que pensar, o que dizer. Quando nossos olhos se encontraram, o meu e o daquela mulher, por certo nossos sentidos se chocaram com a fúria que emoldura e endurece nossas almas. Pudera ficar longe do espectro que me persegue, pudera nunca mais ter o desprazer de encontrar aquele entulho de maldades. Se permanecesse segura e precisa, a ponto de evitar qualquer confronto e dissipar a nuvem e me afastar. Mas não, minhas pernas estremeceram como a vi no velório de meu filho, assumindo uma dor que era só minha. Quanto a odiei naquele dia. Quanto a odeio agora. Ainda estava trêmula e vazia, quando dei por mim. Susana pegou-me a mão, ajudou-me a sentar na poltrona macia da casa de chá. Olhei em torno, mas era como se evitasse o mundo. Nada via, nada sentia, nada me confortava. Tudo agastava e me deixava à deriva.
_A senhora não acha que talvez merecesse uma segunda chance? Não sei a que se referia, não sei que tipo de apoio era esse que só despertava desconfiança, que me deixava irritada e sem paciência. Aquietei o coração e a ouvi, contrariada. Nada disse, nem um gesto efetuei. _Não me refiro a ela, mas sim à senhora. Por que não se dá uma segunda chance e chocalha o que tem por dentro? Grite aos quatro ventos que a odeia, que a quer ver longe, que matou o seu filho! Chore, esbraveje, mas reaja. O que a senhora fez foi um absurdo contra a sua saúde mental. Foi vil, foi covarde. A senhora se anulou. Se humilhou perante seus sentimentos. Na verdade não sei se realmente quer ajudar-me. Parece mais advogado do diabo. Fica assim, insinuando que sou uma idiota, que me deixei levar, que fiquei na janela, ausente do mundo, da vida. O que ela sabe da vida? O que ela sabe de perder um filho? O que ela pensa de mim? _Dona Úrsula, quero apenas que reflita, que se questione. Olhe bem, ela era a mulher do seu filho, mas acabou. Ele não está mais aqui. A senhora não pode cultivar um medo, quase pânico quando a vê. Tive a impressão que teria um infarto, tal era o seu desconforto. A senhora tem que superar isso, tem que enfrentar este passado com quem não tem nada da dever. A senhora não é uma criminosa. _Por favor, Susana. Não me dê mais sermão. Só quero que passe essa aflição, esta angústia para irmos embora. _Não vai tomar o seu chá? _Não. Quero que me leve para casa, logo que me sentir melhor. Se não puder, tomarei um táxi. _Claro que a levarei. Mas acho que deve relaxar um pouco. Tomar o chá, observar as pessoas. Ver a vida de forma diferente. _E há forma diferente pra mim? É tudo cinza. Tudo igual. _Não pode ser tudo igual dona Úrsula. A senhora tem um passado, foi casada com um homem maravilhoso, um jornalista célebre, que enfrentou como pôde a repressão. Teve um filho que foi uma benção. _Você tem razão. Eu tive tudo isso. Só me restou o passado, as lembranças. E as lembranças machucam. Recordar é viver só para os idiotas, não para mim. _A senhora tem o seu piano. Ela segura as minhas mãos com força, como se quisesse me trazer à tona, à realidade, como se pretendesse revirar a minha vida ponta-cabeça. Por um momento, lembro o meu piano, aquele que meu pai lutou para ficar comigo. Aquele que ele livrou da hipoteca. Aquele que me deixou como herança. _Que está pensando, dona Úrsula? _Que você está sendo cruel, Susana. _Sei que sou um remédio amargo. Talvez a pílula que não pediu, mas que pode ser a cura. _Por que diz isso? _Não sei. Talvez baseada no que vi, na sua reação, no seu medo de enfrentar o passado. _E você não teme o passado? Se ela não responde, aí está seu ponto fraco. Há alguma coisa que a importuna, que a deixa estupefata em relação à vida, que não consegue contornar ou sobrepor qualquer uma de suas considerações. Tão fáceis, tão ajustadas ao meu sofrimento. E ao dela? Por que não as usa como proveito? _Na verdade, não. Tenho mais medo de meu presente. O passado até que foi bom. Comum, sem atropelos, sem grandes acontecimentos. _E por que você não fala sobre o que a incomoda, assim como exige de mim. Por que não enfrenta seus fantasmas? _Talvez porque não sejam fantasmas. Estão presentes na minha vida. Mas espere, vamos pedir o chá, já que estamos conversando. Acho que a senhora não vai desistir, vai? _Sabe o que eu acho? É que você não quer falar sobre a sua vida. Agora, em casa, pressinto que alguma mudança se operou em nossas almas, talvez tanto em mim quanto nela. Por certo, uma leve brisa, uma pequena brecha, uma busca. Tudo porém vem acrescido de muito sofrimento. Uma dor que se constrói e se consome em si mesma. Quando mexe, quando revolve a areia, vira deserto, vira tempestade. Não devia ser assim. Não se devia mexer com os mortos. São ossos enterrados, se deteriorando num passado que tem vida própria, que vem e vai quando quer, principalmente quando se tem a minha idade e se fica esperando não sei o quê, pela janela. No final das contas, estendemos um tapete vermelho e passamos incólumes, sem nenhum arranhão, porque não tivemos coragem de mergulhar no conteúdo escondido, que nos propomos espiar. Espiar, afastar as teias, encontrar o fundo do baú, o fundo do poço, o inicio do túnel, a luz que se esvai. Como esta, tênue que se apaga, deixando riscos vermelhos ao longe, transformando-se num negrume esquisito de prenúncio de tempestade. Procela agitada por raios luzidios, afundando navios, derrubando recifes. Como diria o poeta, viver é navegar, mas saber navegar é muito difícil. _Dona Úrsula, eu to indo. Meu Deus, pensei que estava sozinha. Como Dulcina invade assim minha privacidade que já é pouca, como ultrapassa a barreira da civilidade e interrompe minhas idéias, com a sofreguidão do tempo. Sempre pronta às frivolidades, aos anseios da busca lá fora por coisa desconhecida, que nem ela nem ninguém consegue encontrar. E pensa que é feliz. _A senhora ouviu o que eu disse? _Ouvi, criatura. Você me assustou. Por que vai tão tarde? _Tava bom o passeio? _Que passeio, Dulcina? Fui ao cemitério, visitar o túmulo de meu filho. _Todo este tempo? _Sabe o que eu devia fazer? Era mandá-la embora, demiti-la! Você já ouviu esta palavra? _Tá bom, não ta mais aqui quem falou. O pobrema é o seguinte: eu tava aqui esperando a senhora, porque hoje é dia de pagamento. Esqueceu? ¬_Você é uma crioula atrevida, sabia? _Alto lá. Eu posso processar a senhora por racismo. _Pois faça o que quiser, desde que me deixe em paz! _E o meu dinheiro? _Não sei, hoje não fui ao banco. _E passou a tarde fazendo o que? Batendo perna com aquela branquela? _Por favor, Dulcina, vá embora. Amanhã eu vou ao banco na primeira hora e acertamos tudo, está bem? _Bem não ta, né. Se não tem dinheiro, não tem passagem, se não tem passagem, não posso ir embora, se vou embora, não posso voltar porque não tem passagem de volta. _E o que você quer que eu faça? _A senhora não sei. Eu sei que vou ter que ficar aqui. _Aqui? Você enlouqueceu? _Não tem remédio. Ou a senhora me paga o que me deve, ou eu passo a noite aqui. E já lhe aviso, encerrei o expediente. Não me peça nem um chazinho. _Então, minha querida, você vai pagar a estadia. _Como assim? _Quer que lhe dê alojamento de graça? Aqui não é hotel. Vou descontar do seu salário. _A senhora não ia fazer isso comigo. _Por que não? Você não vai ficar aqui, abusando da minha paciência? _Mas eu não posso ir a pé pra casa! _Vou resolver o seu problema. Vou lhe dar um cheque e você troca no posto de gasolina. _E se não aceitarem? A senhora sabe como é difícil, hoje em dia, acreditarem na gente. _Não é pra menos. _Como a senhora é confiada, né? Olhe aqui, me dê este cheque mas se não der certo, eu volto, hem? E não pense em não atender a porta, que faço um escândalo! E pra seu governo, nem pense em mandar embora, porque vou trabalhar no seu algoz! _Que meu algoz, você enlouqueceu?

_O velho aí defronte, ele ta planejando alguma coisa. Se cuide!

Capítulo 6

Finalmente, o silêncio, a solidão, o estar comigo mesma, sem a presença infame de Dulcina. A atrevida me ameaçou com o velho aí da frente, como se tivesse algum poder sobre mim. Eu até havia me esquecido dele. Tudo parece muito quieto em seu quarto. A mesma luz de penumbra, a cortina meio cerrada, embora transparente. O vento que a empurra pra lá e pra cá, quase rotina, dá uma sensação de abandono, solidão, dor. Pior do que a minha. O quadro na parede, uma cópia mal feita de Picasso, cuja guerra só me vem aos pedaços. Um dia, eu saberei alguma coisa da vida dele, algo terrível e avassalador. Ele não me engana, como não me enganam as pessoas sozinhas, que falam como se dirigissem a alguém. Que falam com flores, que fingem ter amigos, que se assemelham cada vez mais a fotografias antigas cheirando à naftalina. Imagine, Rita, se eu vivesse aí, às escondidas, indefinida, como ele, falando pelas paredes, pelas janelas, contando detalhes de minha vida, como se fossem fatos públicos. Eu li nos seus lábios. Eu sei o que fez com a mulher. Sei que aquela parede esconde um crime. Um crime hediondo. Um assassinato da mulher e se ele descobrir que li seus lábios, pode querer fazer o mesmo comigo. Talvez Dulcina saiba alguma coisa, por isso, me ameaçou daquela maneira. Você viu o que ela me disse? Basta juntar os fatos, fazer os nós e esticar o cordão na íntegra. Ela tem todos os dados, todos os recursos para me acusar. Para me trair. Preciso fazer alguma coisa, chamar a policia. Eles têm que me ouvir, saber o que está acontecendo no prédio da frente. Não posso telefonar, porque o pior está por vir. Se a minha linha for grampeada, ele descobrirá tudo e antes que a polícia apareça, naquela agilidade contumaz, ele já terá desferido centenas de golpes em mim, me destruído a machadadas e me sepultado no cano da chaminé. Se tivesse chaminé neste apartamento. Mas em algum lugar que jamais será descoberto, a não ser que alguém leia os seus lábios, como eu. Meu Deus, agora me lembro! Ela o chamou de algoz. Então sabe mais do que declinou. Sabe tudo. Talvez esteja em conluio com ele. Não posso deixar que volte, pois pode ser uma trama terrível, planejando o meu fim. Não posso morrer assim, nas mãos de assassinos cruéis, sem que ninguém descubra.

Meu Deus, o interfone, esta campainha funesta. Só podem ser eles, ou apenas ela, me levando para o cadafalso, cortando a minha cabeça, destruindo minha vida. Não posso atender, mesmo que meu coração dispare pela boca e minhas pernas se afunilem juntando-se na poltrona, empurrando-se involuntárias, temerosas de ensaiar um único passo. Mas preciso saber quem é, pode ser Susana, pode ser a polícia que descobriu alguma coisa, pode ser a minha salvação. _Dona Úrsula, sou eu. _Eu quem? Não espero ninguém numa hora destas! _Não seja boba, sou eu, Dulcina. Olha, o cheque não deu certo. O cara do posto não quis trocar e o Seu Vilmar da farmácia disse que se a senhora quiser trocar, tem que vir comigo. _Com você? Está louca! Eu não vou com você! _Mas só na farmácia. Escute, não dá para a senhora abrir a porta? Tenho medo de ser assaltada aqui na rua! _Não vou, não vou descer nem sairei com você. Isso é um golpe. _Golpe é o que a senhora está aprontando pro meu lado. Vai me deixar na rua? _Vou sim, sua... sua assassina... _Que disse? Assina? Mas a senhora já assinou o bendito cheque. O pobrema é que o cara não aceitou. Entendeu? _Entendi, entendi muito bem. Vá, vá até o meu algoz e peça pra ele o dinheiro da passagem. Não estão os dois de conluio, amiguinhos, pois então. Peça pra ele. _Ele quem? Eu não to entendendo nada! _O meu algoz, não foi o que você falou? _Ah, tá bom, desisto. Eu vou me ferrá, mas não quero mais ouvir asneira, não. Vou tentar com o cara da portaria. A senhora tá cada dia mais virada. _Sua insolente. Você não põe mais os pés na minha casa! Se ao menos tivesse um tranqüilizante, alguma coisa que me fizesse dormir e esquecesse toda esta trama miserável. Que será de mim? Que pretendem fazer com a minha vida? Pensando bem, não espero muito da vida. Talvez até seja o descanso que estou esperando desde que o Luisinho morreu. Só não quero sofrer, ser torturada, como na época do Ai-5. Jaime já tinha tantos problemas, tantos medos e sofria tantas represálias. Naquela noite em que ele viajou, num chamado oficial dos assessores de imprensa da presidência, meu coração ficou apertado. Durante muito tempo fiquei sem saber o que fazer, o que dizer, temerosa que alguma coisa ruim acontecesse com ele. Desconfiava de tudo e de todos. Quase não saía à rua, sempre à espera que o telefone tocasse, mas as horas passavam sem nenhuma notícia. Apenas minha irmã mais velha telefonou-me. Carmem estava viúva, a filha no exterior e sentia-se tão mal, tão sozinha, embora não confiasse isso a ninguém. Fiquei um pouco surpresa, porque não era dada a visitas, nem muito amiga de conversas que não tivessem um objetivo real, preciso, objetivo. Quase burocrática. Na verdade, naquela noite, não queria atendê-la. Não estava em condições emocionais de ver ninguém, nem minha irmã. Nada me consolava, me deixava esperançosa. Temia que as crônicas, os artigos ou as notícias comentadas de Jaime fossem censuradas e mais do que isso, que o transformassem num bode expiatório em retaliação aos manifestos que estavam ocorrendo em todo o país. Além disso, qualquer um que tive alguma ligação com integrantes da esquerda, era chamado de subversivo, pois compactuava com a ideologia oposicionista. Tinha voltado do quarto de Luisinho, que dormia tão tranquilo, sem entender nada do que acontecia a sua volta, quando Carmem bateu na porta. Embora soubesse que era ela, meu coração acelerou, assustado. Carmem era alienada de assuntos políticos. Para ela, a única importância era a família, a tradição da sociedade, os bons costumes, a religiosidade. Quando adolescente, afastava-se dos jovens de sua idade, preferia o silêncio, o estar em família, o fazer das lides da casa. Apesar de viver tão isolada, não era afeita às leituras e tinha por hábito censurar os romances que eu lia, considerando-os inúteis, tempo perdido, segundo suas palavras. Meu irmão mais moço, cedo foi para o internato e de lá para o quartel. Quando o revimos, já era um homem completamente diferente do menino ingênuo que conhecíamos. Estava envolvido com as namoradas, com as festas, as viagens, até afastar-se totalmente da família, arranjando um emprego de mestre de obras na Arábia Saudita. Minha mãe sofrera muito, mas aos poucos assimilou silenciosa o vazio do filho ausente. Eu continuava entre as minhas leituras e a aprendizagem no piano. Quando Carmem casou-se com um célebre representante da Marinha brasileira, eu ainda não havia conhecido o Jaime. Talvez um dia, escreva a minha história e exorcize os fantasmas que preenchem os meus dias e noites.

terça-feira, janeiro 19, 2016

PÁSSARO INCAUTO NA JANELA - CAPÍTULO IV

HOJE TERÇA-FEIRA, 19 DE JANEIRO DE 2016, PUBLICAMOS O QUARTO CAPÍTULO DE NOSSO FOLHETIM. ESPERO QUE GOSTEM E CONTINUEM LENDO A SEQUÊNCIA DOS CAPÍTULOS.A RELAÇÃO DE ÚRSULA E SUSANA, CADA VEZ A COLOCA FRENTE A FRENTE COM SEUS PROBLEMAS E COMO CONSEQUÊNCIA UM APRENDIZADO QUE VAI SE EFETUANDO. CONFLITOS QUE SURGEM E ENFRENTAMENTO COM SEUS MEDOS E ERROS DO PASSADO. UMA HISTÓRIA DE AMIZADE E AFETO.

Capítulo 4

Às vezes, me surpreendo pensando em meu pai. Nem sei se em virtude da visita, mas as lembranças me vêem tão nítidas, tão poderosas, que tenho a impressão de experimentar as mesmas sensações daquela época. Esta noite, eu até sonhei, imagine, eu sonhar, eu que permaneço eternamente em minha janela, olhando o mundo, deixando que as coisas aconteçam, esperando que os últimos rumores da noite sosseguem dando lugar ao silêncio perturbador. Você vê, Rita, como são as coisas: fico ouvindo os primeiros gorjeios das aves. Sabe aquela espécie de jacarandá, quase na esquina, defronte à farmácia, ela é um recanto de pássaros. Se eu dormisse, por certo me acordavam, não tenha dúvida. Eles começam devagarinho a fazer seus primeiros contatos. É um bem-te-vi daqui, uma alma de gato dali, uma tesourinha, lembra desse? Elas vivem aqui, nas cercanias. Mas esta noite, aconteceu algo impressionante comigo. Eu adormeci, nem sei quanto tempo, claro que não foi grande coisa, não. O fato é que desandei de minha janela. Adormeci sentada na poltrona, os braços apoiados no parapeito, como uma infeliz. Mas o bom disso tudo é que sonhei com meu pai. Há tanto tempo isso não acontecia comigo, que estou quase feliz. Nem Dulcina me tira do sério, hoje.

Meu pai era um homem extraordinário, tinha lá suas teimosias, suas crenças antigas, mas nós sabíamos qual era o seu limite. Como ele trabalhava na marcenaria, um galpão enorme que ficava no nosso quintal, estava sempre por perto. Tinha consigo que os móveis que reparava eram obras de arte. Usava de cuidado, esmero, carinho e nós nem sonhávamos em mexer em nenhuma daquelas peças. Quando punha o olhar numa peça, se detinha em cada detalhe, a ponto de transformar um móvel danificado, num outro objeto, que não aquele. Era perfeccionista, não arredava pé, até dar-se por satisfeito. Mas quando estava conosco, principalmente à mesa, quase não levantava a cabeça. Era muito severo, de poucas palavras, talvez o seu universo se resumisse no seu trabalho e as coisas da casa não inspiravam tanto desvelo. Chegava a ser ríspido, distante, mas eu o sentia sempre por perto. Talvez porque o compreendesse. São estas coisas, Rita, que somente a alma pode absorver.

Numa dessas noites em que nos preparávamos para a janta, ele apareceu à porta tão estranho que minha mãe virou-se de súbito de suas panelas, como se não reconhecesse aquele homem. Seu olhar pairou no ambiente, cenário taciturno, modelado ao momento de indecisão em que passávamos. Meu irmão nem percebeu nada de diferente e ficou manuseando soldadinhos de chumbo sobre a mesa, preocupado que estava com a estratégia de guerra que engendrava em sua mente. Eu larguei o livro da Senhora Leandro Dupré, quase escondendo-o como se o olhar de censura se dirigisse a mim, em virtude da história tratar-se de uma mulher desquitada. Aproximou-se e dirigiu-se a um canto da peça, encostando-se no parapeito da janela para dar uma última tragada no cigarro de palha. Ali, voltava o rosto para a rua e deixava-se ficar, perdido, perscrutando o silêncio da rua. Minha mãe aproximou-se e disse-lhe alguma coisa quase em sussurro, mas alertei os ouvidos e suas palavras ainda ressoam em minha mente.
¬

_Você está certo que deve abandonar o barco, homem? Você não é um rato que abandona o navio. Aquela casa é sua, é a sua vida.

_Mas não tenho como lutar. A hipoteca vence daqui um mês. Se não entregar, vão tomar o maquinário, as minhas ferramentas. De que a gente vai viver?

_Úrsula sabe do piano?

_Como assim? Ela é uma criança e eu proíbo a você que fale alguma coisa.

_Mas precisa saber do piano.

Eu estremeci, minhas pernas batiam uma na outra como se uma enfermidade produzisse aquele movimento involuntário. Não conseguia afastar os olhos daquele quadro, pendurado na janela, tendo como fundo os últimos raios do dia. A noite se dissipava, mas a penumbra não esmorecia com a lâmpada fraca que guarnecia nosso teto. Meu irmão voltou para os soldados de chumbo, aproveitando que a conversa não lhe interessava. Senti o olhar de meu pai pousado por um momento em nossas figuras, então baixei a cabeça e fingi folhear o livro.

_O piano não. O piano fica!

_Mas eles sabem que tem um piano na casa. Se está tudo hipotecado!

_Mas não vão hipotecar o sonho de Ursula! Ah, isso não.

_Você sonha demais, homem. Pois se é assim, lute, lute pra não entregar a casa. Vamos pensar numa maneira, tem que haver uma maneira!

Ao dizer isso, ela voltou para as panelas, encerrando o assunto. Provou o molho, temperando o dorso da mão e esbravejou, em seguida, impondo a arrumação na mesa. Que Carlos guardasse os soldados e eu levasse aquele livro para o quarto. Que pusesse a mesa, que a comida estava pronta. Meu pai jogou a bagana fora pela janela e afastou-se por algum tempo. Quando voltou, o rosto ainda molhado, sentou-se no lugar de costume, fez as orações de rotina e não mais levantou a cabeça. Eu suspirei aliviada, meu piano estava salvo. Na verdade, o que era de minha avó.

Mas, por hoje chega dessas lembranças de antanho, Rita. Quando a gente fica velha, parece que o passado bate a nossa porta, todo o tempo. Mas não pode ser assim, você não acha? O mundo precisa está aí, para mexer a sua engrenagem e tocar pra frente. Mesmo que pessoas como eu, não tenham mais esperança nesta vida. Pensando bem, viver do passado, ainda é uma forma de viver.

Daqui a pouco, sairei com Susana. Ela tem lá os seus problemas, suas dificuldades, mas nada que não possa ser resolvido, na idade dela, no mundo em que vive, na geração de liberdade em que foi criada. Somos mulheres muito diferentes, eu nasci num mundo em que a mulher era dedicada ao marido, que viera de uma escola de mãe para filha, em que a mulher vivia de suas lides domésticas, suas habilidades com o crochê, a culinária, o cuidado com os filhos. Imagine que a Senhora Leandro Dupre, assinava o nome do marido, nunca o de solteira para entregar-se à literatura. Mulher escritora era mal vista naquele tempo. A maioria usava pseudônimos. Eu gostava tanto dos livros dela. Diziam muito o que ia em nossa alma. E o romance de Tereza Bernad, ela discutia o tema da mulher desquitada, um escândalo para época. Depois, veio “Éramos seis” e eu não parei de lê-la. Dona Lola não era a mulher submissa que outros escritores pintavam, ao contrário, era uma mulher de sua época, que se dedicava ao marido e aos filhos, que compreendia o seu mundo, o mundo feminino sem questionar, apenas isso. Seus questionamentos eram contra a injustiça, a desumanidade, o poder da guerra, do dinheiro, do preconceito. Era uma mulher autentica.

Escute, Dulcina acaba de atender a porta. Não quero confianças com ela, é extremamente mal criada.

Dulcina afasta-se da cozinha, rapidamente, enxugando as mãos no avental e pára por um minuto e mira-se no imenso espelho do corredor. Limpa o suor da testa com o dorso da mão direita, enquanto que com a outra, ajeita a gola da blusa, por debaixo do avental. Imagina ser o entregador de gás e sente um certo frenesi. Aquele homem jambo, sorriso aberto, lhe desperta uma certa atração, que a desconcerta. Abre a porta e sorri, escancarada, mas logo cerra os dentes, irritada. Espantada, estica o pescoço, numa interrogação.

Abre a porta e pára espantada. Estica o pescoço numa interrogação.

_Bom dia, Dona Úrsula está me esperando.

_Pra que?

_Bem, temos um encontro.

_Aquela lá? Minha filha, ela não sai nem que o prédio pegue fogo.

_Mas eu posso falar com ela?

Dulcina faz um muxoxo. Em seguida, com a mão esquerda espalmada, pede que espere. Afasta-se alguns passos e acrescenta: _vou anunciar.

_Não é preciso, Dulcina.

Dulcina se surpreende com a chegada inusitada da patroa. Explica-se, embaraçada.

_Ah, a moça tá aqui, lhe esperando, eu ia...

__Não se preocupe Dulcina. Parece que você tem muito a fazer na cozinha.

_Ih, tem caroço neste angu! – e afasta-se rebolando os quadris.

_Não lhe dê importância, Susana. Dulcina é muito ousada. Às vezes, desconhece o seu lugar.
_Não estou nem um pouco preocupada, Dona Úrsula. Ela é um tipo bem engraçado. Mas como está a senhora?

Úrsula percebeu os traços negros sob os olhos acinzentados de Susana, que lhe realçaram sobremaneira a pele clara. Os cabelos, hoje melhor acomodados, num penteado despojado, sem aquele esticado para trás do primeiro dia. Caíam-lhe levemente no rosto, voltados para o lado esquerdo. Pareciam mais curtos.

_Você cortou o cabelo, Susana?

Susana sorri, um tanto desconcertada, não esperando a pergunta. Mas sente-se feliz, em ser notada.
¬

_A senhora percebeu?

Imagine, se eu perguntei... Às vezes, acho que esta menina não pensa o que diz. Mas vá lá, tenho que ter paciência. Tenho que ter tantos predicados, que me assusto. Como que ser paciente, sem ser arrogante, ser delicada, sem ser falsa, ser educada, sem ser bajuladora. Os velhos tinham de se libertar disso. Na verdade, acho que a mulher nunca se libertou de suas convenções. Por mais que se diga que a mulher evoluiu, ela nunca terá a mesma liberdade dos homens. Nunca teve uma liberdade real. Sempre deve alguma coisa.

_Então dona Úrsula, está preparada para sairmos? Por um momento, pareceu-me que ficou indecisa.

_Não, de modo algum. Estava apenas pensando. Na minha idade, a gente pensa muito, sabia? – já estou me justificando. Que fazer, fui criada para ser educada. Além disso, tenho os meus próprios valores. _ Estou até bem disposta.. Ainda há pouco estava dizendo à Rita ... – ah, não devia ter mencionado Rita, ela jamais entenderia – eu disse Rita?

_Disse.

_Ah, falava com minhas flores.

_Ah, sim.

_E dizia que há muito tempo não sonhava com meu pai. Hoje tive boas lembranças. Mas se está pronta, podemos ir.

Dulcina observa da janela do apartamento a saída das duas. Dona Úrsula encaminha-se até o carro, com dificuldade. Se não fosse tão esnobe, por certo levaria uma bengala. Uma velha daquelas não devia andar por aí, falseando o pé nas calçadas irregulares. Mas elas que são brancas, que se entendam. Dulcina desiste da cena e volta para a sua cozinha. Espera que o mundo lhe sorria com mais calma, mais leveza, principalmente porque está sozinha. Corre até a sala contígua, liga o aparelho e som e tira da bolsa um cd de pagode. Começa a canta e sacudir-se no sentido aivoso da música, à medida que pega uma almofada aqui, colocando-a na posição destinada, uma revista acolá, enquanto dirige-se para as atividades em que estava.

Da rua, Úrsula levanta a cabeça, através da janela do veículo, como se suspeitasse do descomedimento da empregada. Mas logo a esquece, afogueada pelos raios do sol que parecem queimarem-lhe a retina. Franze o cenho, destemperada, reclamando da dor, suspeitando precisar de oculista. Susana oferece-lhe óculos escuros, que recusa terminante. Aos poucos, se acostumará. É questão de tempo.

Susana tenta criar uma atmosfera amigável entre as duas, tentando ser espontânea. Fala de seu apartamento, do trabalho incessante na redação do jornal, da academia que costuma frequentar bem cedo. Úrsula, por sua vez, comenta sobre Dulcina, sobre o temperamento exacerbado, no despreparo nas atividades de empregada doméstica e finaliza falando de suas poucas qualidades. Sabe, que apesar de tudo, precisa de sua presença, mesmo que a incomode um pouco.

_Por que ela a incomoda?

Úrsula faz uma breve pausa. Certamente concluiria que a causa principal era o próprio comportamento de Dulcina, mas nem sabe porque motivo, resolve ser sincera.

_Na verdade, me sinto bem sozinha. Incomoda-me a presença de Dulcina, o seu vai-e-vem pela casa, a sua habilidade em contar histórias, em se relacionar com as pessoas. Sabe, Susana, talvez eu tenha um pouco de inveja dela.

_Inveja?

Úrsula observa as ruas atentamente, sem olhar para Susana. Fala como se confessasse a si mesma.

_Sim, esta peculiaridade em ser mais aberta, em relacionar-se com facilidade, até mesmo a ousadia... ela é uma mulher livre.

_E a senhora é livre?

_Você acha que existe alguma mulher livre neste mundo, na ampla acepção da palavra?

_Mas a senhora acabou de falar sobre Dulcina...

_Dulcina é exceção à regra. Talvez porque o seu mundo seja muito distante do meu, do seu. Dizem os sociólogos que há duas classes que se permitem a liberdade: a classe dos dominantes, a classe alta, dos muito ricos ou até mesmo artistas e os miseráveis, muito pobres. Obviamente, Dulcina se enquadra no segundo. Claro que ela não é uma miserável, mas vive no meio mais rude, mais tosco que um ser humano pode viver.

_E a senhora nunca pensou porque acontece isso?

_Acho que nunca pensei nisso. As coisas somente acontecem, não ficamos refletindo porque isso é assim, porque aquilo se dá daquela maneira.

_É verdade. Mas a mulher venceu muitas barreiras. Atualmente, nós buscamos a nossa liberdade.

_Você acha? Mas não quero fazer panfletagem. Não me interessa modismos, nem feminismos, nem levantar bandeiras de luta. Estou muito velha para isso.

_Mas voltando à Dulcina, diria que a senhora gosta muito dela, só não admite isso.

_É uma bobagem.

_Pode ser, concordo. Mas o fato de reconhecer que ela a incomoda, já é uma ponte para chegar até ela, para vir a gostar dela. Não acha?

_Dulcina é uma bárbara, inculta, grosseira.

_Talvez a incomode o fato dela ser assim, realmente. É um entrave para o relacionamento de vocês.

_E eu quero me relacionar com aquela lá? Só me interessa a faxina que faz na minha casa.

_Mas ela poderia ser uma companhia agradável. Não a deixaria tão solitária.

Úrsula irrita-se com a insistência de Susana. Intransigente, recusa-se a continuar com o assunto.

_Por favor, Susana, este é um tema encerrado pra mim. Não insista.

_Está bem dona Úrsula. Acho que me excedi.

_Se excedeu sim. Dulcina é problema meu. Aliás, nem é assunto a ser abordado.

Susana calou-se um tanto arrependida de ter insistido. Não quer causar danos à entrevista. Úrsula representa a principal fonte de sua pesquisa e precisa conquistá-la.

Ao chegar ao cemitério, descem no estacionamento. Úrsula, por um momento, torna-se de uma palidez intensa, fraquejando as pernas, encostando o corpo no carro, com dificuldade. Susana a ampara, perguntando se quer voltar atrás. Quem sabe voltam outro dia. Úrsula ressente-se da indisposição, pede uma água, mas não pretende desistir da visita. Na primeira melhora, resolve seguir caminho e desfilam pelos corredores em busca do mausoléu onde estão o marido e o filho sepultado. Susana segura-a pelo braço, apoiando-a. Por um momento, Úrsula retrai-se, considerando uma ajuda desnecessária. Mas evitou mostrar-se ingrata e deixou-se levar pela mão suave e firme da jornalista. Aos poucos, sentia-se protegida e segura.

No túmulo, separaram-se, porque Ursula se antecipou indo ao encontro da fotografia do filho. Aponta, mostrando-lhe, como se estivesse apresentando-o como se vivo estivesse.

Susana observa o comportamento metódico, a maneira cuidadosa como se aproxima, a mão clara e tremula que estende no granito escuro, acariciando levemente a fotografia do filho. Ao lado, uma foto do pai, que ela reconhece ser o grande jornalista, motivo de sua pesquisa. Fazem um silêncio cúmplice. Susana percebe que Úrsula enxuga uma lágrima, com o dorso da mão. Funga, ajeita-se no corpo frágil e faz uma pequena oração. Em seguida, volta-se para Susana e pergunta: _você já perdeu alguém, Susana?

_Sim, minha mãe. Faz muito tempo.

Abaixa os olhos e volta-se para a imagem na lápide.

_Ele é lindo, você não acha?

_Sim, era um rapaz muito bonito. Não lhe deixou netos?

Uma sombra perpassa o olhar de Úrsula, como se o sol se escondesse por minutos e a nuvem negra ocultasse as nuances da vida que brotavam aqui e ali, revelando apenas sombras. Não esconde o ódio que brota inevitável e se espalha pela face e todo o corpo, como um espírito maligno.

_Aquela lá era estéril, uma figueira maldita.

Susana não fez nenhum comentário. A ira já era de bom tamanho. Acomodou-se num degrau do mausoléu, sentando-se reticente. Procurava organizar as idéias, comportar-se de modo distanciado de suas aflições mais íntimas, mas o ambiente soturno a deixava ansiosa. De qualquer forma, respeitava a dor daquela mulher que de alguma maneira confiava seus sentimentos a ela. Procurou mergulhar no tema, como se fizesse parte de sua vida.

Úrsula prosseguiu no mesmo tom agastado, embora com alguma mágoa, um sofrimento escondido que não se limitava apenas ao filho.

_Ela nunca foi uma boa nora. Na verdade, nunca gostou de mim, apenas me aturava. Aliás, fez o que pôde para separar-me de meu filho. Por isso, ele morreu de desgosto.

_A senhora nunca mais a procurou?

_Não tenho motivos. Não vou lhe mentir, eu a procurei sim. Afinal, éramos duas abandonadas pela vida. Ela perdeu o marido, eu o filho. Achei que devíamos nos unir.

_E não o fizeram?

_Não houve clima. Até me aproximei, no inicio. Mas logo em seguida, acabamos discutindo. Não valia à pena. O único motivo que nos unia, não existe mais.

_Mas a lembrança pode uni-las. Talvez vocês tivessem coisas a resolver. Certamente, seriam mais felizes se conversassem, talvez até, se discutissem.

_Como você pode me sugerir isso? Você não sabe quem é aquela mulher.

_Realmente, não sei nada dela, mas diz a experiência que se houver diálogo, tudo pode se resolver.

_É muito fácil falar, é muito fácil. Na sua idade, tudo é possível, tudo se resolve na conversa. Mas não é bem assim, Susana. Há marcas intensas, que nada pode apagar. Há feridas que não curam.

Susana respira curto. Reflete que não é o caminho certo, que precisa de uma brecha para embrenhar-se no tema principal, que é motivo da entrevista. Então dispara à queima roupa. Quem sabe, uma sacudidela, resolve.

_Seu marido parecia um homem muito tranquilo.

_Jaime era um fascinado pela vida. Não deveria ter ido tão cedo.

_Mas foi um homem que viveu a plenitude da vida, que realizou-se como jornalista, como pai, esposo. A senhora o amava muito, não é verdade?

Úrsula adoça a voz. Fala em tom mais baixo e pausado.

_Sim, eu o amava muito – e retribui a pergunta, o que deixa Susana perplexa. Parece que há uma barreira, um obstáculo forte que ela interpõe, sempre que tenta aproximar o tema do marido – e você, ama alguém?

_Eu? Talvez não assim com esta intensidade.

_Mas o que sabe de minha vida? O que você sabe, Susana, leu nos jornais. Não é melhor ouvir mais fontes para conhecer melhor, para saber como era o meu relacionamento com Jaime?

_Sim, sem dúvida. Tem razão, tudo que sei é o que dizem por ai nas revistas, nos jornais ou até mesmo nas redações. Não se esqueça que ele sempre foi exemplo para muita gente.

_Mas você não me respondeu. Você tem namorado?

_Fui casada por dois anos. Felizmente, não tivemos filhos. Atualmente tenho um namorado, mas as coisas andam meio frias entre nós.

_Hoje em dia, as mulheres pulam de galho em galho, de cama em cama. Você acha isso liberdade? Querer ser igual aos homens?

–Não é um assunto para discutirmos neste ambiente, não acha?

_Talvez para você. Pra mim é o lugar ideal. Aqui estão os três homens que amei.

_Três?

_Sim, me refiro também a meu pai. Além disso, é aqui que quero ficar, quando morrer, ao lado de meu filho e de Jaime. Mas se aquela morrer, que fique bem longe de mim. Não a coloquem no mausoléu da família, ela não merece.

_A senhora se refere a sua nora?

_E quem haveria de ser?

_As perdas ficam maiores e mais pesadas, quando se tem amargura, rancor.

_E o que você sabe de amargura. Que experiência tem você da vida, para me dar lições? Ora vá pro diabo! – e afasta-se, resmungando, abandonando em definitivo a discussão que não admitia.

Susana percebe que o destempero de Úrsula é uma maneira de recusar-se a discussão do que considera ponto pacifico, do que não pretende afastar-se um milímetro em suas concepções. Tenta segui-la, mas um gesto de Úrsula a impede, deixando-a estagnada, sem mover um músculo. Empurra-a com o cotovelo, mexendo o corpo descompassado em direção a um banco de pedra, ali perto. Susana a acompanha com o olhar. Deixa-se ficar quieta, pensando numa provável saída. Talvez se pedisse desculpas, se voltasse a falar no filho, se perguntasse alguma coisa agradável sobre o marido. Mas o que dizer frente a uma atitude inóspita, inesperada? De repente, percebe que Úrsula a espia de soslaio, com uma expressão mais triste do que brava. Sente-se encorajada a aproximar-se. Ensaia alguns passos e pousa as mãos delicadas em seus ombros, produzindo uma leve massagem.

_Desculpe, Dona Úrsula. Não quis ofendê-la.

_Mas ofendeu. Eu não vim aqui pra isso, pra ficar escutando idiotices. O meu ouvido não é penico!

_A senhora tem razão. Meu objetivo não é esse, ao contrário, quero aproximar-me da senhora. Olhe, se deixar, posso ser sua amiga.

Úrsula levanta os olhos, amuada. Pergunta como uma criança emburrada. _E você acha que é possível? Não foi um bom começo.

Susana calou-se. Deu meia volta e perguntou: _Não trouxe flores?

_Não, apenas faço minhas orações.

Ficaram as duas, em silêncio. Úrsula se persignou e rezou por alguns minutos, no lugar onde estava. Depois, levantou-se lentamente, sugerindo irem embora. Antes que Susana respondesse, alguém exclamou o nome de Úrsula com indisfarçável surpresa.

sexta-feira, janeiro 15, 2016

O verão de nossos dias

Ilustração: pintura da artista Evanoli Resende Corrêa

Tanto se fala no verão. No sabor das águas, no saborear da brisa, quando não dos ventos do Cassino. Acima de tudo, o bate-papo com os amigos.

Verão é isso. Jogar conversa fora, sem muito compromisso.

Talvez seja mais do que um andar ao léu, ou margear a praia de bicicleta nos fins de tarde. Ou como diz Vinícius na música, “um velho calção de banho , o dia pra vadiar”. Talvez seja mais do que conversar sem compromisso. Talvez seja mais do que lagartear ao sol.

Talvez seja apenas viver. Viver plenamente, o que, às vezes, deixamos de fazer durante o ano.

Claro que não se quer um tempo exclusivo de fazer nada. Mas um tempo pra nós mesmos, onde nem nos olhemos tanto no espelho, nem nos preocupemos tanto com a sandália gasta.

Mas um tempo para ler aquele livro que prorrogamos sem a devida atenção, e que sempre nos vem à memória.

Um tempo para nos dedicarmos à natureza. Para pormos em prática a tranquilidade dos dias. Para esquecermos a rotina, a afobação dos bancos, das lotéricas, dos shoppings.

Para deixarmos o cidadão comum e sermos especiais. Especiais de um dia de verão.

Ah, as águas de verão. As chuvas de verão. Os amores de verão. O verão que temos em mente, na memória, no passado e no presente.

O verão de nossos dias.

Os dias que virão.

gcgilson4@gmail.com

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