
HOJE, TERÇA-FEIRA, DIA 2 DE FEVEREIRO, RETOMAMOS A PUBLICAÇÃO DO NOSSO FOLHETIM. A SEGUIR, O CAPÍTULO 7.
Capítulo 7
Carmem chegou de mansinho, pisando macio no piso encerado. Usava saltos médios, num sapato preto, fechado, assim como todo o vestuário. Um conjunto preto, de saia e blusa, acompanhado do casaco que a deixava mais magra do que o habitual. O rosto pálido, lábios sem cor e olhos fundos e grandes, num castanho escuro que parecia fixar-se apenas por segundos, sem focalizar bem o que devia ver. Cumprimentou friamente Úrsula, percebendo o nervosismo da irmã, o que inevitavelmente a irritava. Não conseguia disfarçar o mau-humor, ao contrário, esforçava-se em mostrar o desconforto que ora a acometia.
Úrsula convidou-a a sentar na poltrona situada em sua frente. Percebeu que a irmã girou o olhar rapidamente em torno, procurando um objeto fora do lugar ou algum resquício de poeira sobre os móveis. Era dada à perfeição, à limpeza extrema, ao cuidado com a organização, à arrumação da casa e qualquer coisa fora do lugar, a deixava apreensiva, oprimida, nervosa. Úrsula investigou rapidamente e retirou um copo de bebida sem qualquer utilidade sobre a mesa de centro, além de alguns guardanapos de pano, há pouco usados. Pediu que a empregada os levasse e imediatamente sentou-se ao seu lado. Esperou que a irmã lhe dissesse a que veio. Não havendo reação, experimentou perguntar pela filha. Carmem mostrou-se seca, restritiva.
_Não vim aqui falar Maria Helena. Às vezes, tenho a impressão que você só pergunta para me agredir.
Úrsula passou a mão pelo cabelo doirado, estirando para o alto, alguns cachos que lhe caíam na testa. Alongou o pescoço, empurrando uns portas-copo sobre a mesa, como se estes estivessem fora de lugar. Concluiu:
_Não entendo esse seu aborrecimento. É natural que pergunte por ela. Há tanto tempo que não vejo minha sobrinha.
_Você sabe o quanto me desagrada este assunto. Eu nunca concordei com esta viagem, logo ela, uma mulher solteira. Imagine o que devem dizer as línguas ferinas de nossa família.
_Nossa família é tão pequena, Carmem.
_Mas e os amigos, e o nosso grupo social?
_E o que ela faz em Paris?
_De tudo um pouco: arte, protesto, manifestações femininas... Gastando o dinheiro que o pai deixou! Eu fico possessa só em pensar.
_Então não vamos mais falar nisso, Carmem. Vamos tomar um licor?
Carmem estica o pescoço e a encara por um minuto. Seu olhar é ao mesmo tempo de desaprovação e ansiedade.
_Esqueceu que eu não bebo? Eu vim aqui, para saber de você. Sabe que fecharam o congresso, que Brasília está virada num deus-nos-acuda! E o que você pensa que o Jaime foi fazer lá?
Úrsula suspira, resignada. No fundo, sabe que a irmã tem um pouco de razão, mas não há nada que possa fazer pra mudar o rumo dos acontecimentos.
_Eu não penso. Eu só imagino. Não se tem certeza de nada, você sabe.
Carmem altera o tom de voz, mais agressiva.
_Ele devia se abster de falar em política, em problemas sociais. Ele não tem que se meter nestes assuntos. Não é um bom jornalista? Que invente outra coisa!
_Desculpe, Carmem, mas você não veio aqui apenas para criticar o trabalho de meu marido.
Levanta-se num salto e passeia pela sala, triunfal. _Estou preocupada com você. E se ele for preso, exilado? O que você vai fazer aqui, nesta casa, sozinha?
_E o que você faz na sua?
_É diferente, você sabe. Tenho orgulho do meu marido, ele morreu, mas foi um homem que viveu dentro da lei, dentro da ordem social. Tudo que lhe aconteceu, foi uma fatalidade, que pode acontecer com qualquer um.
Úrsula também se levanta, na tentativa inconsciente de pontuar uma interrupção definitiva no assunto. Enfrenta a irmã, avessa a discussões. Sabe que jamais concordarão em alguma coisa que se refira ao tema. Talvez jamais concordem em alguma coisa.
_Carmem, se vamos continuar neste tom, acho melhor pararmos por aqui. É uma discussão estéril, que não leva a nada.
Carmem se regozija com a indignação da irmã. Tanto, que revela-se subitamente tranquila.
_Se você pensa assim... Eu só vim para ajudá-la. Mas você é cabeça dura, aliás, desde pequena. Sempre com a mania de ler aqueles livros idiotas, de saber mais do que todos, de pensar que conhecia muito do mundo. Deu no que deu.
_Essas são conclusões suas. Eu nunca pensei que sabia mais do que ninguém. – afasta-se até a janela e responde absorta. De repente, uma brisa suave invade o ambiente. Uma vida que corre lá fora, um ar noturno que traz luzes intensas, de quem tem expectativas e esperanças. Observa o prédio defronte ao seu, finalmente construído. Um caminhão de mudança e pessoas felizes imaginam-se na casa nova. Carmem também olha pela janela, aproximando-se, descansando os cotovelos no parapeito. Prossegue no assunto, que talvez a tenha levado visitar a irmã.
_E essa ideia agora, de morar em apartamento. Você, que tinha aquela casa maravilhosa que nosso pai nos deixou. Aliás, não sei porque que ficou com a sua família.
_Não vamos retomar este assunto, por favor, Carmem. Você mesma na época concordou, porque estava bem casada com um homem potencialmente rico. Não lhe interessava aquela casa, nem o passado que havia ali. Tinha ojeriza por tudo que lembrasse a nossa família.
_Mas a casa era minha também. Se você cuidou do velho até o fim, é problema seu. Eu não cuidava porque tinha meus afazeres, a minha vida de mulher casada com homem importante. Além disso, naquela época estava grávida. Mas, você foi namorar um cara sem eira nem beira – e falando em tom mais baixo, quase sussurro – um comunista.
Úrsula ri, não sabe se pela expressão dissimulada da irmã ou pela aflição que o assunto provoca.
_Por que está rindo? Porque estou dizendo a verdade?
_Não, porque você confunde tudo, Carmem.
_Mais uma vez, está me taxando de burra.
_Não é isso. Você acabou de afirmar que o Jaime era comunista.
_E não é? Por acaso estou mentindo? E aquelas baboseiras contra o governo, contra a revolução? – e diminui a inflexão da voz novamente – Meu marido era da Marinha, não se esqueça disso. Ele tinha todas as informações confidenciais sobre o Jaime.
Úrsula ao contrário da irmã, aumenta o tom, incisiva. _Ele é um socialista sim, mas não pertence ao partido comunista, aliás, não é filiado a partido nenhum. Todo mundo que pensa diferente do que está aí, no poder, é comunista, pra vocês!
_Olhe aqui, Úrsula. Não quero discutir política. Só vim para tentar botar um pouco de miolo bom nesta sua cabeça, mas parece que perdi o meu tempo.
_E o que você veio me aconselhar?
Carmem ficou em silencio. Não esperava aquela pergunta tão direta. Então, tangenciou na resposta.
_Você mudou de assunto. Estava falando da casa, deste apartamento. Por que é que se mudou, afinal? Lá não era boa, o bastante?
_É muito simples, minha irmã. Porque fica perto do jornal onde o Jaime trabalha. Além disso, acomodamos todos os nossos móveis, de modo a juntar conforto e praticidade. Aqui tem o gabinete dele, o escritório com toda a sua papelada, seus livros, sua máquina de escrever. Também tenho o meu piano, numa sala especial para ele, como reparou. É um bom apartamento, não acha? Aquela casa estava ficando grande demais, com muitos problemas para resolver. Uma casa antiga precisa de conservação, cuidado. E depois que papai morreu, tudo ficou mais difícil. Eu dando aulas de piano, Jaime não ganha muito bem.
_Mas você não pode vender a casa. Ela precisa ser divida entre os herdeiros. Maria Helena já tem mais de 20 anos. Tem direito a uma parte da herança, assim como eu, o Carlos, nosso irmão.
_Mas você esqueceu que papai doou para mim, antes de morrer? Você e o Carlos concordaram. Ele, inclusive nunca mais voltou do exterior, nem para o enterro de papai.
_Mas aquilo foi um devaneio do velho. Estava fraco, doente. E só inventou esta doação porque você estava ali, dia a dia, cuidando dele, paparicando. A minha vida era atribulada, eu tinha meus compromissos com a família, com meu marido.
_Mas não foi seu devaneio. Você aceitou. Seu marido estava presente. Havia testemunhas.
_Mas não houve testamento. Não há documento registrado. Não há provas.
_O que você quer dizer?
_Que precisamos fazer o inventário da casa. Precisamos dividi-la legalmente.
_Mas eu pretendia quitar o apartamento com a venda da casa.
_Mas você acha justo, você sozinha tomar conta de um bem que é de todos? Não interessa se tenho fortuna, se meu patrimônio é maior do que o seu, se sou agraciada pela pensão de meu marido. Isso é um problema meu. A herança é de todos, não de uma única pessoa. Por acaso, eu sou culpada se você casou com um pé rapado?
_Por favor, Carmem, vá embora.
_Agora não lhe interessa me ouvir, não é mesmo? Quando se falou em dinheiro, aí as coisas mudam. Queria ver a cara do seu Jaime, se ouvisse isso, ele que é socialista, que quer ver tudo dividido, que quer os pobres no poder. É bem capaz de sonhar com um operário na presidência. Aí sim, o Brasil vai à bancarrota!
_Saia daqui, Carmem. Saia daqui!
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