quarta-feira, outubro 02, 2013

A VARSÓVIA QUE VI: suas peculiaridades, beleza, modernidade

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Há tanto a falar sobre a Polônia, um país que me conquistou a partir da sua história e a experiência de seu povo, que soube preservar a memória e visualizar o futuro baseado em suas raizes mais vigorosas. Observei que Varsóvia, a capital, cujo centro histórico, chamado de “cidade velha”, é uma região que se reergueu, totalmente reconstruída de acordo com as suas origens medievais. A cidade destruída pela Segunda Guerra Mundial, pelos alemães e  hoje, amplamente restaurada,  evoca a memória do povo  que tange em cada pedra, em cada mármore, em cada ladrilho. Portanto, é um triunfo da vida que passa serena e precisa, produzindo uma metamorfose de beleza e integridade. A morte, a desesperança, o furor da guerra, deram lugar aos monumentos históricos que expressam o seu passado e a esperança do futuro. Ali, na região histórica, vê-se o Castelo Real, que se transformou em ruínas, sobrevivendo  apenas a porta central. O povo polonês o reconstruiu de 1971 a 1988. 
Na zona norte, a praça da cidade velha com suas peculiaridades, circundada por belíssimas casas coloridas em estilos distintos, abarcam o Museu Histórico de Varsóvia. Na mesma praça, observa-se o brasão da cidade, representado pela fonte da sereia, dizem, é uma sereia de água doce, porque a cidade é banhada pelo rio Vistula.  
Na praça das três cruzes, uma cruz imponente no centro da praça e outras três no lado oposto da igreja, de onde se tem uma vista maravilhosa ao vale do rio Vístula, Kazimierz e o Castelo Janowiec. Nesta região, além do significado arquitetônico e turístico, coexistem em harmonia algumas  lojas  conceituadas, tais como Hugo Boss, Lacoste, entre outras, além de apartamentos  muito prestigiados em virtude de sua proximidade com o comércio e as facilidades de locomoção.  
  No Bairro Mokotow, avistam-se edificios da década de 40, tipicamente residenciais,  que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial, ao lado de outros restaurados ou construidos mais recentemente. Um prédio emblemático para a cidade é o da Universidade de Varsóvia, inaugurada em 1816 e  tem desempenhado um papel cultural, politico e educativo muito importante para a Polônia. Trata-se de um espaço magnifico, onde se pode encontrar grande riqueza cultural através das diferentes formas de pensar e agir, resultado das experiências de estudantes de várias partes do mundo. O acesso à cultura é gratuito, de tal modo que o nivel cultural passa a ser um paradigma para a comunidade.  O acesso à informação e ao conhecimento é original e constante, através de uma gama imensa de concertos musicais, passeios distintos, atividades de rua, feiras, exposições. Esta estrutura produz uma cidade cosmopolita, onde culturas interagem, tornando-a cada vez mais atrativa. Na Universidade há um “bar-livraria”, denominado Tarabuk, ou seja, trata-se de  um café peculiar, porque dispõe  de  livros de autores poloneses e estrangeiros. Neste ambiente,  misturam-se os livros, o café, o bar, enfim, um ambiente acolhedor e descontraído, permeado por uma conduta particular de aprender e se relacionar. 
Ainda há muito para ver em Varsóvia, se não vejamos, na avenida Ujazdow, no centro da cidade, se delinea o famoso Parque Lazienki (Banhos reais), ocupando 80 hectares no centro da cidade, ligando o Castelo Real com Owilanow ao sul. No parque,  encontra-se o monumento a Frédéric Chopin, inaugurado em 1926.  Foi destruido pelos alemães e nos anos 50 foi novamente inaugurado no mesmo lugar.  O Parque Lazienki se limita ao sul com o Parque Belvedere, um grande e belo gramado que compôe o Palácio Belvedere, antiga residência dos presidentes. 
Por outro lado, através de conversas com pessoas da cidade e pela observação das casas sem muros ou grades, percebemos, que há segurança nas ruas de Varsóvia, podendo-se caminhar tranquilamente pelas avenidas e parques, sem preocupação com assaltos ou qualquer espécie de violência. Também, pode-se verificar  que há uma expressiva consciência social, pois há rampas para deficientes em todas as calçadas, ciclovias que cortam bairros, inclusive seguindo até outras aldeias ou cidades,  os banheiros públicos são bem sinalizados, as ruas são limpas, bem cuidadas e ornamentadas com flores, constituindo belíssimos canteiros nas rótulas, além do  transporte público que, segundo as fontes consultadas, é excelente. É uma cidade onde tudo funciona de acordo com a necessidade do cidadão, uma cidade que embora praticamente destruída pela guerra, foi completamente reconstruída e restaurada, com grande mérito, com a arquitetura semelhante à original.  Ao lado da reconstrução, há  também uma arquitetura moderna, perfeitamente integrada na urbanização,  com crescimento racional, com hotéis de qualidade e um grande incentivo ao turismo.
Um outro fato que me chamou a atenção, foi o uso de bicicletas pela população. Para tanto, entrevistei pessoas que conheciam a cidade, além de utilizar como fonte a revista The Warsaw Voice Magazine: Multimedia Plarform in Poland (29/08/2013), cujo artigo  da jornalista  Jolanta Wolska, intitulado “Bike power”, foi muito elucidativo. Ela discorre sobre um sistema de aluguel de bicicletas públicas, que foi introduzido há um ano em Varsóvia. Chama-se Veturilo, que significa veículo, em esperanto. Este nome foi criado pelo estudante Mateus Kempisty, vencedor de uma competição na internet para a escolha do nome. Já foram alugadas mais de um milhão de bicicletas, desde que o sistema foi implantado na cidade. Mais de 120.000 pessoas já se inscreveram para alugar as bicicletas e até agora há 2.600 bicicletas em uso em 168 localidades ao redor de Varsóvia. 
As bicicletas estão disponíveis para aluguel nove meses do ano e proporcionam mobilidade urbana, além de significarem um investimento barato, flexível e saudável. Normalmente são usadas em distâncias curtas, por exemplo, entre uma estação de metrô e a universidade ou do local do trabalho à casa. 
Os usuários devem registrar-se online no www.veturilo.waw.pl e pagar uma taxa inicial de 10 zl. para ativar sua conta. Os primeiros 20 minutos são gratuitos, com os próximos 40 minutos custando 1 zl. Em Varsóvia, 80 por cento dos aluguéis ocorre dentro do limite livre de 20 minutos. Em média, cada bicicleta é usada três a quatro vezes por dia. As bicicletas são equipadas com engrenagens, assentos ajustáveis, cestas e uma fechadura segura. Para o Programa Veturilo, foi desenvolvido um sistema de bloqueio automático que acelera o processo de locação.  
      Até agora, na Polônia, o aluguel de bicicletas funciona em Varsóvia, bem como em Wrocław, Poznań, Cracóvia e Opole.  Qualquer pessoa cadastrada no sistema Veturilo em Varsóvia também podem utilizar os sistemas de outros países e cidades polonesas, onde o serviço Nextbike (empresa que implementou o sistema público de aluguel de bicicletas em vários países e também na Polônia) opera.
A revista utilizada como fonte, foi-me presenteada pelo Sr. Victor, um dos componentes do nosso grupo da excursão da BRASPOL, a quem deixo o meu agradecimento.





 Parque Lazienki



 Monumento a Frédéric Chopin
Adicionar legenda

PRAÇA DAS TRÊS CRUZES

CASTELO REAL


CASTELO REAL



PORTA DO CASTELO REAL


quarta-feira, julho 31, 2013

A CINZA EM QUE ARDI

Sempre a vira expor-se de maneira ridícula. Pelo menos para os padrões da época. Tinha lá seus quase oitenta anos e se vestia como uma mulher de trinta. Um vestido godê preto, que ao vento lhe subia nos ombros, aos meus olhos espantados de 10 anos. Na boca, um batom vermelho delineando os lábios sumidos. Um sorriso largo, de dentes miúdos, com falhas inevitáveis. Gostava de sentir-se assim, livre e talvez a sensibilidade aflorada na pele revelasse apenas o desejo de felicidade. Uma brisa, um aroma, um sopro de vida. Todos ou quase todos a chamavam de louca. Ou senil. Ou velha destemperada. Não lhe permitiam explosões em seus pensamentos, nem alfinetadas nas ideias que não se constituíssem um dedal. Mentes torpes, endurecidas pelo hábito higiênico e padronizado da maioria. Eu, como criança, talvez a seguisse no que tinha de melhor. E o melhor eram os livros que me oferecia. Livros tão antigos quanto à coluna que se comprimia nas vértebras enferrujadas. Livros amarelecidos, capas andrajosas pedintes de leituras, folhas finas, às vezes rasgadas. Pedaços de livros. Frangalhos de histórias. Mas que me faziam beber da fonte inesgotável da aventura, de trajetórias distintas das que seguia, dos vôos altos em que avistava outros prados.

Ela não arrefecia em mostrar-me este novo mundo, talvez porque visse em mim uma sagacidade desconhecida aos demais de sua família. Um desejo de ir mais longe ou de descobrir o que estava tão perto, mas tão perto, que nem fazia sentido.

Ela era assim: alegre, divertida, faceira, estranha. Um estranho absurdo, que talvez a lançasse aos limites da loucura. Mas esta insanidade voraz e desconhecida talvez a tornasse um ser humano íntegro em sua relação peculiar com a vida.

Claro que nem todos a entendiam, nem eu. Apenas não a julgava com o olhar de adulto. Por certo, encontrava em sua imaginação fértil uma afinidade com o universo interior de um pretenso escritor. Tudo que eu escrevia num papel encardido de embrulho era devidamente analisado, anotado e compreendido. Quando muito, uma nova visão, um ponto de vista próprio, difícil de atingir, mas que anunciava uma entrega desavisada com cheiro de sonho e gosto de felicidade.

Morava com um irmão tão velho quanto ela e os três sobrinhos. Todos a consideravam amalucada, rótulo vencido.

Eu sentia um certo constrangimento em me aproximar, tal era o preconceito que expressavam sobre ela.

Certa vez, ela me chamou pelo muro. Estendeu seus braços finos, com um caderno na mão, tão amarelo quanto os livros. As unhas vermelhas apertavam a capa cerzida na restauração improvisada. Percebi que havia uma espécie de tule ou renda branca empoeirada, revelando o guardado num daqueles baús imensos que tinha ao lado da cama. Espichei o meu braço, arrastando-o no reboco rugoso e peguei o caderno. Ela fez um sinal cúmplice com a boca, produzindo mil ruguinhas entre os lábios, pedindo que não o abrisse logo, apenas quando estivesse em casa, engendrando minhas histórias. Obedeci. Guardei o caderno embaixo do travesseiro para lê-lo à noite, sem muito tempo para decifrar o que havia nele. Fui para a escola, de lá para casa, o banho, um pouquinho de tv, o sono e esqueci o presente.

Acordamos pela manhã, eu e meus pais com os gritos. Uma ambulância e um olhar de desespero cercado entre braços fortes que a empurravam para dentro do veículo, como se pudesse resistir a não ser com gritos. Um cheiro de fumaça, de papel queimado, de lixo armazenado no fundo do quintal.

Meu pai perguntou ao sobrinho mais velho o que estava acontecendo, mas não houve tempo para respostas, a sirene já se ouvia forte, abrindo caminho na rua onde se formavam pequenos grupos. Todos comentavam, produzindo explicações que convinham. Alguns meninos no caminho da escola, paravam intrigados, observando a cena. Cenário perfeito para uma investida na imaginação por mais acanhada que fosse. Tudo conspirava para o senso comum se estabelecer: dispensar a tia louca para o sanatório.

Meu pai afastou-se do lugar enquanto minha mãe já tomava as últimas da vizinhança. Entramos, a hora se adiantava. A vida continuava. O mundo girava no mesmo ritmo. Um ritmo desordenado em nossa vida caótica. Lembrei de seu irmão mais velho, que nem aparecera. Devia ter ficado lá, constrangido pela covardia em não lutar contra um destino que mais cedo ou mais tarde seria o seu.

Não me contive e desviei do cuidado de meus pais e pulei o muro, pelos fundos do quintal. Atravessei o pequeno alpendre e passei pela cozinha, dirigindo-me ao quarto dela: reduto pouco visitado, embora lá havia conhecido e ganho os meus primeiros livros. Percebi que o irmão estava encostado no parapeito da janela que dava para o nosso pátio, um cotovelo apoiado, com a mão no queixo, amaciando a barba mal feita e na outra mão, um cigarro de brasa esquecida.

Afastei-me pé ante pé e abri a porta do quarto, lentamente. Observei a cama de mogno desarrumada, a cômoda com os porta-retratos atirados, uns sobre os outros como em efeito dominó, alguns livros rasgados. Mas meus olhos se detiveram espantados na velha estante de madeira que emoldurava toda a parede do lado esquerdo, oposto à janela. Estava vazia, uma estante em que moradores notáveis fizeram historia, um Kafka, um Machado, um Guimarães Rosa, um Joice, um Goethe, um Dostoevisk. Demandaram em derradeira missão, talvez desconhecida e definitiva, jamais almejada.

Corri para os fundos do quintal, segui a cortina que se antecipava aos meus olhos e um pequeno visgo de fumaça, como uma serpente que se insinuava, mostrava o caminho.

Ali estavam os livros, com suas brochuras à mostra como esqueletos restantes do incêndio homicida, costuras desalinhadas, pedaços de folhas em desenhos disformes com olhos negros produzidos pelo fogo, marcas indeléveis, transmutando o que era saudável em feridas fatais. Sangue negro escorrido nas cinzas, fome de vingança jamais aplacada.

Ainda salvei das últimas chamas, alguns farrapos que resistiam aos pingos de sereno. Parte de um livro de Almeida Garret, que li sujando as mãos na página quente, que me doíam os dedos: restos mortais de uma vida que se dissolvia na intolerância.

Seus olhos - se eu sei pintar

O que os meus olhos cegou

Não tinham luz de brilhar.

Era chama de queimar;

Vivaz, eterno, divino,

Como facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave


Ao mesmo tempo: mas grave


E de tão fatal poder,


Que, num só momento que a vi,

Queimar toda alma senti...


Nem ficou mais de meu ser,

Senão a cinza em que ardi.

Nunca mais a vi. À noite, abri o caderno de capa cerzida e passei a viver assim, embasbacado, até descobrir o sentido das coisas que avistara. Ela teria feito um apanhado de minhas histórias, como incentivo a prosseguir no desvendar incessante da imaginação. Um dia, seria talvez um aprendiz de um daqueles escritores consagrados. Mais tarde, porém percebi que aquelas narrativas não eram minhas, a não ser a semelhança pela ingenuidade e a descoberta prenhe da vida. Eram histórias de há muito tempo atrás, talvez de seis ou sete décadas, quando ela era tão criança quanto eu e assim, iniciara também seus contos num caderno, hoje cerzido de linha azul, para preservar o sonho. E talvez, a lucidez.

sexta-feira, julho 19, 2013

PIOLHOS DE RICO


Há quem adore rico. Certamente não àquele rico de fachada, que aparece toda semana nas páginas de socialite dos jornais ou fazendo campanhas de benemerência, sob alcunhas de bons moços e gente de bem. Gente chic que veste nos grandes magazines (sic) e se atualiza em grifes de marketing.

Há os que adoram gente rica, e não são pessoas ruins ou cidadãos menores. São apenas simplórios.

E também não há nada contra os verdadeiramente abonados, que construiram suas fortunas e obtiveram seus bens com seu trabalho, aumentaram seu patrimônio ou investiram nos que lhes foi legado de direito.

Mas há os que grudam nos ricos, diria que são verdeiros piolhos de rico, cono costumava dizer um colega de trabalho, talvez um pouco incomodado pela sabujice de um ou outro companheiro.

Mas analisando a situação, percebi que piolho de rico é aquele que está sempre grudado numa pessoa abonada, em qualquer esquina que vá, em qualquer cruzeiro pra lhe dar as boas idas (e vindas), em qualquer festa de bodas em Punta de Leste, talvez inconsciente, grude de tal modo para um dia chegar à Casa-grande.

Este tipo de pessoa costuma adorar o rico que representa a verdadeira elite, não falo dos novos ricos ou filhos de imigrantes, que aqui vieram labutar e conseguir suas riquezas pelo trabalho e esforço. Muito menos da elite intelectual. Esta deveria ser a verdadeira elite, a da educação, do ensino, do conhecimento. Falo da velha elite, cujos representantes herdaram terras e enriqueceram com o sangue dos escravos e índios, como tão bem se expressava Gilberto Freyre em sua “Casa-grande & Senzala”, alimentando a luta de classes, investindo no sangue que irrigava as plantações que provinham os celeiros.

Talvez as pessoas que possuam este fascínio pela riqueza e pelos que a usufruam, cultivem a fantasia da estirpe dos monarcas, dos grandes latifundiários, dos colonizadores que exploraram, povoaram e dominaram a terra, cheios de saudade de seu Portugal, sofrendo por decepar cabeças de insurrentes naquele seu sentimental lusitano.

Talvez elas os amem apenas porque correspondem aos mesmos preconceitos arraigados da elite que criou a monoc

ultura latifundiaria, o sistema econômico, social e politico, de produção, completada pela senzala, ou seja, a Casa-grande, que muitos ainda cultivam (e acham que ainda existe).

Talvez os amem por serem contritas em suas orações, tal como o eram as famílias que tinham o capelão subordinado ao pater familia, inseridas num patriacarlismo polígono e no compadrismo da política, no autoritarismo.

Talvez adorem este tipo novo de vida, que assistem nas novelas da Globo ou nas revistas de celebridades ou mesmo na Veja, onde a elite se vê ali acobertada, de tal forma que está acima de qualquer justiça ou bem social, que se veste de boazinha e de caráter íntegro, mas sobrevoa a política e alcança com fúria os poderes da mídia, da manipulação, dos podres poderes, como dizia o poeta.

Um poder que corrompe os simples e deforma mentes, ao criar sistemas de permanência de sua própria classe.

Quanto aos demais, os da classe média, que rastejam subordinados a mediocridades tacanhas, vindo de autoritarismos de tempos passados, a estes, apenas a conformação do reflexo na janela. Têm o carro importado, a roupa de grife e acreditam sinceramente no acolhimento. Mas que nada, como na canção do Chico que assinala o furor do colonizador lusitano, as coisas acontecem assim:

“Sabe, no fundo eu sou um sentimental

Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo... (além da sífilis, é claro)

Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar

Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora...”

sábado, julho 13, 2013

EXTENSÃO POPULAR: um trabalho de pesquisa do Prof.Pedro Cruz

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EXTENSÃO POPULAR : PEQUENA EXPLANAÇÃO DO TRABALHO DE DISSERTAÇÃO DO PROF. PEDRO JOSÉ CARNEIRO CRUZ



Observando o trabalho de dissertação do Prof. José Santos Carneiro Cruz, Extensão popular: a pedagogia da participação estudantil em seu movimento social, que apresenta a participação estudantil na Organização da Articulação Nacional de Extensão Popular (ANEPOP), pude apreender de certa forma, uma nova visão da vida estudantil e principalmente dos atores envolvidos na imensa trama de poderes (e falta de) de nossa sociedade, na maioria da vezes, marginalizada. Sou leigo e me detive a aspectos que me emocionaram e talvez, nem consiga definir claramente os significados dos conteúdos que tentam inaugurar uma nova cidadania. Extamente isso é que me chamou a atenção, o modelo de participação popular, junto à comunidade, trocando experiências e como resultado a produção de conhecimentos de parte a parte. O mundo não é estático, ele gira e em cada face, há um espelho que refletirá inevitavelmente no outro lado. Essa é a grande jogada! Isto é cidadania!

Tudo que apreendi, desta feita, é advinda de meus conhecimentos tanto de professor, quanto de bibliotecário e experiência de vida, que me levam muitas vezes a realizar a vocação de escritor (que é a que mais pratico atualmente).

Passando pela seara da línguística, podemos afirmar, segundo Saussure, que o conceito ou ideia é a representação mental de um objeto ou da realidade social em que nos situamos, representação essa condicionada pela formação sociocultural que nos cerca deste o berço. Em outras palavras, para Saussure, conceito é sinonimo de significado (plano de ideias), algo como o lado espiritual das palavras, sua contraparte inteligível, em oposição ao significante (plano de expressão), que é sua parte sensível. Para tanto, voltando à pesquisa do Prof. Pedro, percebemos o olhar curioso, origem de toda pesquisa e conhecimento e a partir daí, o caráter qualitativo para resgatar a história, a experiência e assim compreender a análise crítica. Tudo aqui, engloba o significado , ou seja , o plano das ideias, a parte abstrata, o estudo, a pesquisa exaustiva, o encontro para atingirem o significante, que trata-se, enfim, da parte concreta que forma o conjunto e constitui o conhecimento representado. Deste modo, através da gestão de ideias (o significado) e atingindo o significante (o conhecimento representado pelos signos), o resultado real é cumprido.

Através destes aspectos, verificamos de modo mais concreto, a experiência real avaliada, examinada, estudada e compartilhada, produzindo os sinais indicativos da plena cidadania. Percebe-se que se trata de uma participação ativa no movimento, a cidadania em suas melhores formas de troca entre comunidade e universidade. Seguindo o grande mentor Paulo Freire, importam aqui as trocas de saberes e a compreensão do saber popular. A partir destes trabalhos intelectuais e práticos, ocorre um legado novo, mesmo aprendido por nossa educacao bancária, tradicional. O projeto talvez seja exatamente este, dar autonomia às pessoas que não tem voz, que não tem capacidade de luta, nem de expor as suas misérias ou esperanças. Quem sabe, elevá-las no mesmo patamar que o governo atua e transformar o que ocorre em via única, em duas ou mais, onde haja troca e conhecimento. E o conhecimento em sua plenitude se dá, sem dúvida, pela interação de nossa educação tradicional e a educação popular, tão rica nos seus nuances de experiência e vida. É a troca que viabiliza a desconstrução do preconceito. Isso é admirável!

Pretendo encerrar dizendo que este movimento é o resultado de uma transmissão de conhecimentos, o que configura a verdadeira cidadania, o verdadeiro despertar para novos vôos, onde o homem aprenda a voar junto e saiba ver-se um igual. Os vôos só divergem, porque uns abatem os outros. No caso dos pássaros, eles fazem verdadeiros balés de beleza e sabedoria. Jamais se chocam. Jamais se excluem. Jamais se afastam do objetivo comum.

Parabéns Prof. Pedro José Santos Carneiro Cruz e ANEPOP.


Gilson Borges Corrêa

segunda-feira, julho 08, 2013

BALADA DO REACIONÁRIO


Eu odeio pobre! Como posso me mover entre centenas de transeuntes, uniformizados, correndo atrás de ônibus especiais, em direção ao serviço. Aquela gente estranha, mal cheirosa, vinda de nem sei de onde e se juntando com os pobres daqui, perfazendo o nº cada vez maior de assalariados na cidade, tudo por causa daquele tal de Lula, que trouxe para cá estas construções de plataformas e embarcações para a indústria do petróleo!Por que não deixou estas construções lá no exterior, bem longe, como queria FHC? Quem sabe, já não despachava esta plebe pra lá!

Eu odeio pobre. Como pode esta gentalha enchendo as ruas com os seus carros zero, impedindo que nossos carrões circulem livremente! Como era bom no tempo do Fernando Henrique, do Collor, do Itamar, que carro de pobre era só empurrado pra pegar no tranco, e na maioria das vezes, só circulava nas vilas. E o Itamar ainda trouxe o Fusca a álcool, aquele sim era carro pra pobre, claro que comprado através de consórcio! E quem teve a infortunada idéia de surgerir a Dilma que abaixasse o IPI dos carros zero? Ou foi ideia desta guerrilheira, mesmo? Não tinha mais o que fazer, como por exemplo, seguir o modelo capitalista dos tucanos e cia. bela, como privatizar os portos, sucatear as universidades até conseguir a privatização e acabar com esta corja pobre nas universidades? Não, para desgosto maior da elite, ela criou ou continuou o prouni, aumentou as cotas e concedeu bolsas! Que absurdo! Qualquer dia, eles estarão se formando lado a lado com nossos filhos!

Eu odeio pobre! Como podem circular belos e faceiros pelos supermercados, comprando ranchos e adquirindo surpérfluos, estes últimos produtos peculiares a minha classe, como iorgurtes, sorvetes, cookies e outros afins? Agora enchem os supermercados todo o dia, parece até Natal! No Natal, nós até dávamos um desconto, afinal, o coração nestas ocasiões se torna mole, sentimental. Embora nos esgueiramos por entre estantes, prateleiras e corredores repletos, fugindo da escória, suportamos com benevolência, quase amor,  a mulher gorda  que se posiciona na caixa,  vestida numa na calça legging menor para seu tamanho, barriga de fora, segurando nas duas maos, como um trofeu, o peru transgênico. Ou vasculhamos entediados, mas com ar de consternação, porque é Natal, o olhar eufórico do homem  mirrado, mas barrigudo, pesquisando no balcão do açougue, uma costela bem gorda para o churrasco. Até toleramos todo este tipo de gente, com uma certa náusea, é natural, quando é necessário comprar o presentinho da empregada. Coisas do Natal. Mas atualmente, o Natal parece eterno, estas pessoas usam cartão de crédito, enchem os bancos em filas quilométricas, se comprimem nas caixas eletrônicas, tomam avião, invadem os aeroportos com suas malas  exuberantes e chapinhas coloridas! O máximo que se podia imaiginar sobre um pobre  era a faculdade de pilotar um avião de carrossel ou de controle remoto. Infelizmente não, hoje em dia eles chafurdam nos voos baratos. Por isso, surgiram tantas companhias populares, destruindo todo o glamour dos aeroportos, das viagens internacionais, dos vôos de gente de bem!

Além de curtir futebol, que é coisa pra povo mesmo, pricipalmente o esporte de várzea, agora inventaram de participar dos grandes jogos! Que despautério! Pretendem até assistir jogos da seleção brasileira! E a copa do mundo será no Brasil, imaginem. Não, é um sonho terrível, aquelas centenas de pobres presumiveis ascensores da classe média, investindo nas arenas, como se fossem um de nós! É um verdadeiro absurdo, um desastre para o próprio patriotismo!

Ah que saudade daquele patriotismo de fachada do tempo da ditadura, aquela época que era saudável para nós, os da elite! Quando estudávamos OSPB e desconhecíamos a nossa história, quando a filosofia foi banida de nossos currículos e a história era mastigada pelos dentes selvagens dos poderosos. Pelo menos, somente  nós viajavamos, participávamos dos eventos culturais, assistíamos os grandes jogos e o povo... ah, o povo, esse assistia pela Globo, ouvindo o “pra-frente Brasil”, aquela música encomendada pelos militares para anestesiar a platéia. Afinal, o povo não devia se dar conta do malogro descarado da transamazonica, das calamitosas usinas nucleares, um negócio com a Alemanha, que lhe rendeu milhões de dólares, nem das torturas escabrosas contra os brasileiros que pensavam contrário ao regime. Isso, o povo desconhecia completamente, aliás, nem nós sabíamos e se soubéssemos, não fariamos nada, não tínhamos nada a ver com isso. Os torturados eram brasileiros iguais a nós, mas não passavam de tontos que pretendiam mudar o Brasil. Essa gente não tinha mais nada a fazer? Ah, que saudade da ditadura!

Por isso, eu odeio pobres! Até esta gente que estava na linha da miséria está saindo para uma vida mais digna! Coisas da Dilma! Quem se interessa com eles, uma corja de vagabundos que só pensam em se dar bem! Ganham bolsa família para se locuplerarem e se encherem de filhos! Um circo vicioso! Dizem que o bolsa família reduziu em 17% a mortalidade, mas quem se importa com isso? Pra que mais arruaceiros, crescendo soltos ai na rua para nos roubarem mais tarde? E que no Rio de Janeiro, reduziu a criminalidade, mas pra que esta gente viva? Que diferença faz? Ah, ainda alguns especialistas argumentam que este dinheiro faz girar o mercado, faz crescer as indústrias, pois mais gente se insere na economia, há mais compras, mais oferta e procura, e por conta disso, uma melhoria na indústria e no comércio. Não deveriam se preocupar mais com os juros e a bolsa de valores? E o pior de tudo isso, é a informação de mais de 40 países querem copiar o programa do bolsa família! O mundo está virando um!

Melhor nem falar! O mundo tá de cabeça pra baixo, por isso devemos fazer algum protesto, pela volta da cuisine nouvelle, da década de 70, pelos branquette de veau (ensopado de vitela), um cassoulete, escargot ou caviar, para falar apenas das tradicionais ou um château lafite Rothschild 1787, um Cheval Blanc 1947, um Hermitage La Chapelle 1961. Devemos lutar por isso, fazer passeatas, manifestações pacíficas, esbravejar. Agora, pasmem, os pobres enchem os free shops comprando vinhos estrangeiros, perfumes e se não houver nenhuma oposição ferrenha por conta das autoridades, vão acabar igualando a sua culinária horrorosa, à nossa! Lutemos por isso!Odeio os pobres! Eles atualmente usam carro como qualquer um de nós (só falta contratarem motorista), tomam cerveja no happy hour e passeiam com cachorros de raça nas nossas ruas! Além de usufruirem de três refeições ao dia, como vaticinou o tal Lula.

Ah, tem outra, estão se interessando pela leitura! Hoje em dia, compram mais livros, não sei, obviamente, de que gênero, provavelmente autoajuda, mas lêem! Sem dúvida, que diferem de nós, da elite, que não precisamos nos aprofundar na leitura, até mesmo o ato de ler é dispensável, a não ser a Veja e alguns jornais que nos representam, porque estes autores esquerdistas, não nos dizem nada. Afinal, o que vale é saber contar o que temos no banco.

Meu Deus e estas tais redes sociais, a que os pobres tem acesso! Feliz o tempo em que a Globo (e todo o seu monopólio) e somente ela era a única forma de informação. Ela soube muito bem esclarecer o caso do Riocentro, em 1981 (atualmente surgiu uma nova testemunha, mas deixa pra lá), além das das diretas-já, na qual custou-lhe entender o clamor das ruas, mas por fim, obrigou-se a mostrar, mais tarde, o caso do debate do Collor -Lula, e sua manipulação histórica, e entre tantos casos, o de  Brizola, que foi chamado pela emissora de senil e esta obrigou-se a se retratar através de um Cid Moreira visivelmente constrangido. Cresceu bem, cresceu com a ditadura e se fez uma grande rede! Fez história e mudou a forma de pensar e de agir do povo brasileiro. Um padrão maravilhoso. Afinal, pra que as diferenças regionais que devem ser mostradas na tv, segundo a ótica destes comunistas de plantão? Que interesse o folclore de regiões afastadas do eixo Rio-São Paulo, e o teatro, a literatura, a música locais e toda a forma de expressão artistica e cultural? Tudo deve ser padronizado, pausterizado. É o adequado, puro senso comum. Que interessa a Excelsior, a maior emissora da época, que faliu por conta da interferência do governo militar, em vista de sua conduta contrária à vigente, bem como a Empresa Aérea Panair, que foi forçada à falência pelo mesmo governo. Se deram incentivos importantes para o crescimento da nova rede de tv, que surgiu em 1965,  por que não acabar com estes párias? E hoje, se ela nao paga o fisco, é problema dela.

Por isso, eu odeio pobre, querem agora se informar em qualquer blog vagabundo da internet!

Fonte:https://pixabay.com/pt/photos/celebração-povos-feliz-amigos-3783495/

quarta-feira, maio 15, 2013

A EVOLUÇÃO DA RELAÇÃO MÉDICA

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Este texto está indexado no blog da Liga de Educação e Saúde - LES - FURG.
A autora CLARISSA RESENDE CORRÊA participa da Liga e liberou o art
igo para o meu blog. O texto refere-se à experiência que a autora possui na Liga e a sua descoberta dentro da Extensão Popular de uma maneira mais igualitária narelação médico-paciente.

TERÇA-FEIRA, 14 DE MAIO DE 2013



Relembrando...


Hoje tive o privilégio de me lembrar como eu entrei na medicina, como foi bom e estranho se sentir uma página em branco prestes a ser preenchida com tanto conhecimento novo e instigante. Lembrei-me de como é aquela sensação de estar no inicio uma nova etapa e me deu saudade. Saudade dos inícios, saudade de quando tudo é expectativa e sonho, saudades daquela sensação que se tem ao abrir uma revista nova, com aquele cheiro de plástico novo.

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Assim resolvi escrever, resolvi pegar essa página em branco e relembrar todos os momentos bons que passei na LES. Ahhhh e foram muitos, a começar pelo primeiro contato quando eu, uma monitora de anatomia e aspirante a cirurgiã, encontrei dois alunos do primeiro ano cheios de idéias malucas. Depois de um tempo, por mais que eu não quisesse ouvir e nem quisesse saber daquilo, eles foram me conquistando, acho que essa é a palavra, a LES surgiu como um romance na minha vida, eu não tive acolhida como a maioria dos alunos que hoje faz parte da LES, eu fui conquistada, eu fui dominada por um sentimento de curiosidade e de esperança.
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E o segundo ano passou e eu, finalmente, não resisti e no início do meu terceiro ano de medicina fui a minha primeira reunião da Liga de Educação e Saúde. Na época, LES pra mim era Lúpos Eritematoso Sistêmico, a doença do House. Cheguei na minha primeira reunião incomodada, queria saber mais sobre aquelas idéias tão malucas antes e que agora pareciam ter tanto a ver com o que eu sentia, e claro que eu, filha de professores, irmã de duas professoras, já havia ouvido falar em Paulo Freire, porém o enfoque que LES deu pra ele foi como se um mundo estivesse se descortinado na minha frente. Repentinamente a medicina tinha voltado a ter o tom e a cor que tanto faltavam pra mim naquele momento.
Acabei descobrindo o quanto é bom ouvir aquele sujeito atrás da mesa no ambulatório, o tal do paciente, que hoje pra mim tem nome, é o seu João, pescador que toma umas caninha às vezes, mas que hoje já sabe que não pode mais, ou é a Dona Maria que tem tanto carinho por mim e me espera sempre com um sorriso largo e firme, apesar de estar em uma maca no corredor e com muita dor, eu sei que ela confia em mim e eu confio nela, e também no seu João. Hoje eu não tenho mais uma relação estritamente objetiva e profissional com os pacientes, ao contrário do que a Semiologia me ensinou, nem sempre o Porto tem razão, às vezes a dor é doída mesmo, nem sempre ela tem um caráter, talvez o caráter da dor seja o mesmo caráter da minha dor, talvez seja frustração por estar na maca ou tristeza por saber que o meu problema parece não ter solução. De qualquer forma, ter a confiança em dizer que o problema é nosso, meu e do meu amigo paciente me fez uma acadêmica de medicina melhor, me fez um ser humano melhor e eu sei que me fará uma médica melhor, mesmo eu querendo ser cirurgiã.


Um abraço, pastedGraphic_2.pdf
                                                                                                                                   Clarissa Resende Corrêa

terça-feira, março 19, 2013

CLARISSA

 


Sair à procura de algo que não se sabe, muitas vezes do que se trata: uma viagem no pequeno diário, um caderno colorido, de páginas desenhadas, margens de arabescos ou uma caneta especial, de ponta fina, da marca tal, que tinha na loja tal, naquela livraria onde compraste o teu livro. Quase sempre assim, exigente, disciplinada, austera para a idade, com atitudes impensadas para os mais velhos. Era assim, mandona, talvez autoritária, uma espécie de Mônica, amiga do Cebolinha, ou a Mônica forçuda, como a chamavam, os mais destemperados. Tinha sempre um argumento na ponta da língua, afiada, ferina, mas amiga, afetuosa e sincera. Por vezes, deixava-se levar pela ilusão e fantasia: tinha um cão imaginário, o mar, a lagoa, as árvores da praça eram entidades com vida própria (e atitudes), às quais costumava cumprimentar, relacionar-se e compartilhar com a natureza, como se suas histórias fossem tão presentes e atuais, que fizessem parte do seu cotidiano, não apenas de seu imaginário.  Não sofria nenhum desses males da mente: ao contrário, era de uma lucidez e entendimento da vida inabalável, mas sabia cultivar o sonho, a beleza de viver, pelo menos por alguns momentos, a liberdade que só os que alimentam suas mentes com a grandeza da ilusão, apreedem. Por fim,  esta fantasia se desenvolvia nas leituras que se acumulavam em dezenas de livros que costumava dissecar, tentando encontrar um sentido em cada tema, em cada trama, em cada conflito. Talvez, eu tenha grande parcela de culpa nesta maneira de ver o mundo, que aos poucos se solidificou e a fez, tenho certeza, fugir do senso comum, do mundo padronizado, das verdades absolutas e enfrentar a vida de frente. Talvez a tenha induzido, não sei se seria a palavra certa, a encontrar outros caminhos e principalmente através da leitura, e, enquanto criança, na possibilidade deste encontro com a natureza, de cultivar o amor pelas pessoas, pelo mar, pelos animais, mesmo que imaginários e cumprimentar a todos, como se cumprimenta e se deseja um bom dia, quando amanhece e se vai ao trabalho, ou no caso, para a escola. Até mesmo o sol era saudado, no caminho para a aula. Eram coisas nossas, de pai e filha, uma certa cumplicidade que me deixava feliz. Este processo se complementava também através das histórias infantis, nas quais nem sempre o vilão era o mau, ou a princesa era a protagonista. Muitas vezes, o lobo mau era um pobre coitado, perseguido por um lenhador antiecológico, acuado por uma menina egoísta, acobertada por uma velha que se fazia de doente. É, talvez assim, ela tenha conhecido a diversidade da vida e introjetado que nem todo ser é integralmente bom ou mau, que esta dicotomia do mocinho e do vilão só leva a criar rótulos,  e por aí vão tantos conceitos e preconceitos que não levam a nada. 
Ah, teve o balé com sua disciplina intensa, além das leituras e estávamos sempre ao seu lado, mesmo nos primeiros passos, nos primeiros bailados, o que para nós significava passos de primeira bailarina do Muncipal. E tudo seguindo seu trajeto: a escola, o cursinho para o vestibular, a vitória para o curso de medicina e dai por diante. 
Pois,  esta é Clarissa. Acho que ainda tem um pouco de bailarina, de leitora incansável, de fantasia, até mesmo de Monica forçuda. Mas tem o discernimento da vida em suas atitudes e relacionamentos com os amigos ou com as pessoas que encontra no dia a dia; tem a sensatez das escolhas, tem as atitudes nas quais valoriza o afeto,  o sentimento, o carinho, a verdade, o amor às causas nobres, a certeza dos que sabem aprender com as adversidades e tomar fôlego para seguir em frente. Esta é minha filha. Hoje, uma doutoranda do 5º ano, amanhã, uma médica. 

sexta-feira, agosto 10, 2012

A HIDROGINÁSTICA E A SELEÇÃO MUSICAL. INFORTÚNIOS.

http://kbimages.blogspot.com/url-code.jpg Às vezes, fico me perguntando por que as pessoas tem a mania de achar que alguns grupos são imbecis. Já explico. Falo dos grupos de jovens, de adultos, da terceira idade (expressão que abomino, mas enfim “minima de malis”). Em geral, os responsáveis por certos grupos costumam emparedá-los, esta é a palavra certa, no mesmo padrão unificado e mumificado de suas mentes deturpadas. Por exemplo, me considero na idade adulta, ainda não cheguei à terceira por pura cronometria, e não teria a menor dificuldade em pertencer ao grupo. No entanto, as pessoas que lideram os grupos, no caso da hidroginástica que participo têm lá suas ideias preconcebidas do que é adulto mais passado no tempo, ou seja, idoso, velho. Gosto de música, adoro vários gêneros, sou eclético, nada hermético ou metido a conhecedor de vasto repertório musical. Por outro lado, curto mpb, como Djavan, Chico naturalmente, Gal Costa, Leci Brandão, Gilberto Gil, Raul Seixas, Zizi Possi, Rita Lee, Céu, Marina de La Riva, Aline Calixto, Buena Vista Social Club, Maria Rita, Gadu, Diogo Nogueira, Amy Winehouse, Johnny Mathis, Burt Bachara, Giogliola Cinquenti, Toquinho, Vinicius, Sarah Vaugan, Nando reis, Maria Bethania, Ivan Lins, Elis Regina, Tom Jobim, Maysa, Quarteto em Cy, The Beatles, Armandinho, a maioria dos temas de filmes orquestrados de várias décadas até “Charade” de Gary Hughes a “...e o vento levou”. Então, não tenho frescura pra música. Gosto das clássicas que me emocionam e das populares que também tocam fundo na alma. De todo modo, voltando aos organizadores da seleção musical da hidroginástica, volto a afirmar que desconhecem o gosto musical dos frequentadores ou pelo menos, padronizam todos no senso comum. E qual é o senso comum? É a idade de uma época musical passada, com algum movimento, algumas alegorias que permitam aos pretensos alunos absorverem calados e taciturnos, mergulhados na depressão de épocas passadas. Por exemplo, jogam suas teorias na piscina e as mergulham nos ouvidos de todos, entupindo de sons esquizofrênicos, as tais propaladas músicas da jovem guarda. Um movimento alienado, que se vendeu para a ditatura, para vender discos e camuflar as musicas de protestos, exaltando o Brasil com a condição de amá-lo ou deixa-lo, o Brasil que ia pra frente, atrás da seleção brasileira e das obras monumentais como a transamazônica (a destruidora do meio ambiente, dos índios, a desbravadora do nada que não foi a lugar nenhum). Pois é, essas são as músicas inspiradoras que embalam os pobres alunos da hidroginástica e o pior é que alguns gostam. Que fazer, há que se compreender a alienação cultural e política ou mesmo o mau gosto musical. Então, vai “deixa essa boneca, faça-me o favor, deixa isso tudo e vem brincar de amor”, ou doce, “doce amor, onde tens andado, diga por favor”; em seguida: “meu calhambeque, bi,bi”. Bi, bi, eu tenho vontade de apitar, mas com uma vuvuzela bem estrondosa! Mas fico ali, tentando me organizar nos movimentos, e procurando não ouvir, muito menos decorar qualquer papagaiada que surja! Depois dessa bordoada emocional, vem outra, com a letra mais rasa que já se ouviu: “Bruno e Marrone”, com o seu “guarda e a praça”. Aí se exacerba sertanejo universitário e o os olhinhos molhados da piscina brilham intensamente. Então, eu me pergunto, quando que estes sertanejos universitários vão se formar? Pois será quando irão embora, pra sempre! Finito! Pra completar, vêm as marchinhas: “mamãe eu quero”, “a pipa do vovô”, “jardineira”. Será que eles pensam que vai baixar o espírito da Carmem Miranda distribuindo bananas (para acalmar as câimbras) e balangandãs aos alunos? Um dia desses, respirei fundo, expirei todos os sertanejos e marchinhas de minha circulação e reclamei. Perguntei ao professor por que não colocavam um Armandinho, um Nando Reis ou até uma batida qualquer, só pra gente alongar as canelas. Ele me olhou de um modo estranho, meio aturdido. Acho que ficou refletindo duas noites sem parar. Noutro dia, ligou a rádio, e deu semente, semente, semente... Eu curti, os outros ficaram tontos. Mas eu prometo pra mim mesmo, vou levar Armandinho e sugerir “Ó minha maconha” Ó minha maconha, Minha torcida, Minha querida, Minha galera, Minha cachoeira, Minha menina, Minha flamenga, Minha capoeira, Ó minha menina, Minha querida, Minha galera, Ó minha maloca, Minha larica, Minha cachaça, Minha cadeira, Minha vagabunda, Minha vida, Minha lambengue, Minha ladeira, Ó minha menina, Minha querida, Minha valéria, Minha torcida, Minha flamenga, Minha cadeira, Pó,pó,pó,pó... Ó minha maconha, Minha torcida, Minha querida, Minha galera, Minha vagabunda, Minha lambengue, Minha beleza, Minha capoeira, Ó minha menina, Minha querida, Minha valéria, Minha torcida, Minha flamenga, Minha cadeira, Ó minha maconha... Não é excelente pra se fazer todos os movimentos na piscina? Mas se censurarem, coloquem “Morena de angola”, do Chico, que é bem balançada. Garanto que preferem “Mulheres de Atenas”... (Infortúnio! – como diz a Funéria.)

quinta-feira, maio 10, 2012

Um dos livros que me despertou para a leitura: Tiradentes de o Aleijadinho

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Pensar num livro que povoou a minha infância me faz reviver sensações intensas, talvez um pouco de saudade do período das descobertas, de considerar tudo grandioso, de aguçar a curiosidade em torno de qualquer tema. E, no caso, um tema de história, uma história romanceada, como se fazia na época. Trata-se do livro “Tiradentes e o aleijadinho: as duas sombras de Ouro Preto”, de Sérgio D. T. Macedo, um autor que costumava escrever para a juventude. Alguns de seus livros são “As mais belas histórias da mitologia”, “As cruzadas: o romance da Idade Média”, “A guerra dos cem anos”, “Caçadores de tesouros: o romance das escavações”, “Memórias do Rio”. Atualmente, pouco se sabe deste autor, embora nos sebos virtuais e em livrarias ainda existam muitas obras disponíveis. De todo modo, aquele mundo criativo, no qual passávamos a amar os heróis e entender a narrativa histórica como uma ocorrência de acontecimentos extraordinários, talvez tenha deixado esta vontade de perscrutar a sociedade e os movimentos políticos com olhos mais afoitos, mais incisivos, mais instigantes. Não aqueles olhos de criança, cheios de expectativas e curiosidade, mas os olhos de quem busca uma forma de encontrar se não heróis, pelo menos, cidadãos de caráter. Eram tempos de ilusões, de buscas, de alegria. Tempos em que mergulhávamos na leitura com uma ansiedade de quem hoje navega na internet. Mas havia antes de tudo, muito mais do que a interatividade virtual da atualidade, o relacionamento com o próximo, com os bons hábitos, com a profusão de ideias que emanavam dos livros e das discussões em sala de aula. Não éramos santos, em absoluto, mas praticávamos com desconhecida sabedoria, o ato de viver. Nossa imaginação voava em saltos e se perdia em sonhos, tal como o parágrafo que encerrava o livro, que sugeria quase num sussurro, ao nosso ouvido, a trajetória dos personagens, ali, tão próximos de nós. “Então, se a gente fechar os olhos um instante e deixar o pensamento recuar para muito longe, para bem distante no tempo perdido, verá muita coisa interessante acontecer... Verá que pela rua detrás da matriz de Antônio Dias, passa um escravo forte, carregando o Aleijadinho todo embuçado na sua capa escura; verá que se acendem as luzes na casa de Marília e ao som da “cavatina” os pares rodopiam no salão imenso, enquanto as moças riem, felizes; verá, que na ponte dos Contos, o poeta Gonzaga parou um instante, declamou um verso, deixou escapar um suspiro e continuou a caminhar, imerso em profundas reflexões; verá Bárbara Heliodora, toda vestida de preto, rindo um riso manso, suave, delicado, enquanto vai desaparecendo na curva daquela ruazinha íngreme, tão íngreme e tão alta, que parece o caminho do céu...” Era assim que a gente aprendia história. mages.blogspot.com/url-code.jpg

sábado, abril 14, 2012

DEDICATÓRIA IMPRESSA

Acabou ontem, 13/04/2012, mais um módulo do curso de capacitação que estamos fazendo na Furg, desta vez, sobre os processos de Catalogação e RDA com a Profa. Antônia Motta de Castro Memória Ribeiro. Aproveito para publicar aqui uma dedicatória impressa que ela me contemplou no seu livro Catalogação de Recursos Bibliográficos : AACR2R em MARC 21 de sua 4. ed., o que me deixou muito lisonjeado e honrado com tanta delicadeza. Este livro me foi doado em 2009, em virtude da crônica que elaborei como homenagem à autora,na época. A crônica denominada "As vírgulas de Antônia" estão neste blog e no site www.recantodasletras.com.br/autores/gilsoncorrea.

quinta-feira, abril 12, 2012

A MÃO QUE CONDUZ A VIDA

Mexia as mãos, inquieto, sobre as páginas amareladas do jornal. Ilustrações saltando na retina, inesperadas. As colunas horizontais, repletas de letras: mosquinhas pretas que se juntavam em tropa disciplinada. Sentia a mão forte, rugosa, que nem galho de árvore, machucado pela intempérie: calos doídos, veias salientes, unhas escalavradas. Mãos de operário. A mão que me instigava o olhar, empurrava suave a minha, deslizando sobre as linhas, que lembravam a fuligem dos trens, passando céleres, vagões rumando ao porto. Olhava para ele de frente, engatando um sorriso, ele de soslaio, orgulhoso. Voz pausada e firme. Então, o esplendor, o regozijo, a iluminação. Comunhão. Despertar da leitura na palavra “hotel”, com todas as letras, em seguida, “pronúncia”, palavra difícil, que significava pronúncia? Ele pigarreou, explicou, explicou, mas logo mandou seguir adiante, que pronúncia não era palavra que dava nome a coisas, por isso, não tão importante. Era jeito de falar, mas se não juntasse o assunto, não dava nada. Procurava as mais complicadas, maiores, acentuadas. Ele me indicava o contexto. Coisa importante de ser dita. De repente, sob inspiração, desando a ler dezenas delas: jornal, cambraia, papel, outono, coronel, militar, morte. Observo-o sério. Muda de assunto. Pega outra coluna. O mundo se abre a minha frente. Uma catedral de sons, músicas e anjos dançantes pairam em meus devaneios. Livro, planta, flor, poesia. Ele sorri, satisfeito. Me beija de leve no rosto e começa a ler devagar um texto tão bonito, que me induz participar tão intimamente que me sentia ali, integrado naquelas folhas de jornal velho, amassado, oriundo de algum embrulho da mercearia. De repente, sou mais uma palavra com conteúdo brilhante, forte, denso, ou uma ilustração estética, bela, nobre. Naquele momento, meu pai parecia ter 6 anos e eu a sua idade. Estava feliz. Eu sério, contrito, ouvindo os sons pausados, as sílabas alongadas que surgiam de sua pouca leitura. Tudo certo, redondinho, exato, quase infantil. Mas com uma dose extraordinária de sabedoria e emoção.

Minha mãe passeava pela cozinha, deixando o toque-toque dos saltos insurgir-se prosaico, na ansiedade temerosa da vida que brotava, mas não ousava dispersar-nos de nossos momentos de parceria. Ouvia o correspondente da rádio e de seus olhos castanhos, pude avaliar um brilho de aflição. Meu pai parara, estupefato, embora sem se afastar dali, da mesa da copa, onde ficávamos tanto tempo fazendo planos, os três. Ela estava ao pé do rádio, encostada na beirada do armário que ficava à altura de seu seio. Próxima à porta, olhava-nos, esperando o desfecho. Meu pai estático, fixando o jornal, mas ouvindo atento. Eu olhava ora para um, ora para o outro.

Brizola irrompeu a falar obstinado, sem cessar, instalando a rádio no palácio. Reivindicou homens para a luta, relatou o apoio do partido comunista. Instigava à Nação, na luta pela posse de Jango. O silencio pesava. A noite interrompia a vida, a morte suscitava denúncias, guerrilhas, terror, medo, golpe. Ou tudo isso suscitava a morte. Por momentos, meu pai encolheu-se na cadeira, pensativo, enquanto a emissora prosseguia, inflamada, reverenciando os heróis. Um mar revolto antecedia a tempestade. Prenúncio de inverno nefando, doído. Ossos enrijecidos. O aporte do frio, da dor, do inverno latente que se imergia nos corações e cérebros apalermados (turvos). Parece que estava fadado a interromper ali, naquele ponto, a naturalidade que nos envolvia. Com o tempo, meu pai foi se afastando de nossas conversas, nossas cumplicidades, nossas aulas de leitura e vida. Minha mãe cada vez mais tensa. Juntava-lhe os óculos pendentes num cordão de ouro, mastigando pequenas letras que se inseriam rápidas no seu repertório. Buscava nelas, talvez, inspiração para seguir adiante. Poesias, contos, temas suaves, prenúncio de romance e ternura. Mas nada a tirava dos pensamentos mais funestos. Seu olhar se perdia no horizonte, principalmente quando o viu afastar-se de vez. Quando nossos olhos se encontraram e os corações bateram em uníssono. Deve ter me abraçado, acalentado minhas esperanças. Mesmo assim, a via distante e solitária. Não era mais a mesma: taciturna, perdida. Reticente. Empilhava os inúmeros cadernos dos alunos e entre eles um recorte qualquer de jornal, uma folha amassada trazida por alguma colega da escola, uma carta que chegara da capital. Meu pai estava lá, distante, envolvido na luta pela liberdade, pela justiça, pelo desejo de continuar vivo e de me ver assim, livre e senhor de meu destino: destino que ele quisera impunemente conduzir. O tempo passou. Brizola exilou-se. A campanha fracassou. O golpe triunfou: forte, estridente. Fera que devorava as presas que não palmilhassem os mesmos passos, não seguissem os mesmos caminhos ou que apenas divergissem da caça.

Minha mãe vestiu-se com recato, sóbria, elegante. Juntou-se ao grupo. Resistência. Esperança. Espalhou papéis. Panfletos. Documentos que denunciavam a repressão, a tortura, manifestações indiciantes da ditadura. Lutou pela volta dele. Esperou-o. Foi aos quartéis. Buscou-o nos menores e piores recônditos. Nos porões. Ficou finalmente, quase só na dor. Um comunista não ficava impune. Mesmo um homem amável, doce, que tentava me conduzir suave, no caminho do conhecimento. Ela deixou-se ficar, vazia, à espera amiúde da volta: da maneira que fosse. Vivo ou morto. Passou a exercer a dor com dignidade. Cada gesto, cada movimento era devidamente pensado, arquitetado, engendrado. Desafios que se impunham aos seus anseios.

Via-a envelhecer paulatinamente. Eu ingressara na escola, misturando-me ao meio que me acercava sem perceber que ao meu lado estavam os que me libertavam de minha velha vida: agora, integrante do meio denso e feliz da infância. Uma infância não mais marcada, não estigmatizada pela dor, nem pelo medo ou desesperança. Uma infância que me alienava de tudo aquilo: todo aquele passado que aos poucos se afastava de mim e não mais me dizia respeito. Deixava minha mãe de lado, as suas buscas desesperadas, o sumiço de meu pai, suas lutas, seu passado. Não queria mais sofrer com eles. Queria ser feliz, ser um igual no bando uniforme que me cercava. As brincadeiras, as descobertas, o outro mundo desconhecido. Não mais o aguado mexer de mãos, mergulhar na água e descobri-las tão igual quanto antes: limpas, sem máculas. Segurá-las uma na outra, uni-las para pedir perdão e suplicar ajuda. Não mais o caminhar lento e fragilizado de minha mãe, ronronando pela sala, procurando nas almofadas o cheiro de um passado que já não existe. Entrar sorrateira atravessando a cozinha, sentar no portal que dá para o pátio, acercar-se de que o seu mundo não passa dali. Olhar as nuvens e avistar nelas a fuligem dos trens de carga, rumo ao porto e seguir junto a eles, correndo por entre os dormentes, esperando encontrá-lo, levar-lhe a comida que lhe matava a fome do corpo e da alma. Por vezes, ia até o porto, olhava ao longe, sentada à beira do cais, e lá deixava-se ficar à espreita de alguma notícia, um balbuciar assustado de algum operário, dizendo-lhe coisas suspeitas, frases fragmentadas, pedidos de segredo. Eu a seguia, mão na mão. Quase arrastado pelas alamedas quentes, trilhos escaldantes, brilhando, espelhando meus olhos indiferentes. Afundando os pés na rua de carvão. Nestes momentos, a odiava, assim como odiava meu pai, com todas as forças, por ter me abandonado, por ter buscado lá fora uma vida que não se coadunava com a nossa, por ter me exilado de seus planos. Por que me fizera ingressar no mundo novo, desconhecido das palavras? Por que aguçara a minha curiosidade, por que me alertara para as buscas que faria?

Quando pela primeira vez ingressei na biblioteca, um brilho absurdo se apossou de meu ser. As palavras fluíam céleres, ilustrações majestosas. Um encontro inesperado que não supunha ocorrer daquele modo. De repente, a revelação: meu pai estava ali, inteiro, metamorfoseado naquelas páginas ávidas de conhecimento, de verdades não absolutas, de indução à curiosidade, do fazer mil perguntas e exigir um mundo de respostas. A fuga do senso comum. A mão forte, agora, me guiava segura, tranqüila, induzindo-me a partilhar consigo as mesmas verdades, as mesmas buscas, os mesmos caminhos. Luta armada, guerrilha, comunismo, golpe, tortura, ditadura passaram a fazer parte de meu vocabulário. Aos poucos fui enfrentando meus medos, assumindo suas lutas, seus anseios de transformação, desertando daquela vida medíocre e mesquinha, assumindo a esperança dos sonhadores. Porém, cedo, percebi a mão pesada da autoridade obscura, quando centenas de soldados imiscuíram-se entre os livros, espalhando-os ao chão, desatentos a sua sorte; ratos desenfreados e famintos fuçando pela ração da intolerância. Buscavam literatura subversiva e ali, brevemente, num momento de dor, mas de iluminação, tive a confirmação da legitimidade da luta de meu pai. Minha mãe procurou-o em vão. Nem seu nome estava arrolado nos autos dos insubordinados, subversivos, comunistas. Nem seu corpo, seus restos, mas o seu legado permaneceu entre nós, tão firme e forte, que nos sustentou por toda a vida.

sexta-feira, abril 29, 2011

O CANDIDATO A CANDIDATO

Hilário sorriu. Os dentes brancos, recém maquiados pelo ortodentista, o olhar apaziguado de quem se revela num acervo de poemas menores, eficazes para certas ocasiões. Apertou o tubo do creme dental com o cabo da escova de dentes, alisando com eficácia o material amassado no calor do plástico. Por certo, hoje, o mundo lhe abriria um novo sorriso, tão seguro quanto o seu. Mas as coisas se arranjariam do modo mais adequado. Ele consertaria os pneus traseiros do carro, empreenderia pequenas viagens, visitaria os tios velhos e os primos desalentados. Ali cravaria a sua placa. O seu pendor de vencedor; superar obstáculos era sua meta. Portanto a hora era agora.


Ajeitou o paletó, balanceando o corpo e firmou o nó da gravata, assegurando a simetria. Puxou os cabelos para trás, desalinhando apenas alguns fios, até parecer natural. Sorriu mais uma vez, lambeu os lábios, e se imaginou no meio do palanque, apertando mãos, acenando para conhecidos, correligionários, autoridades.
Afastou-se do espelho da velha cômoda e sentou-se. Doeram-lhe as carnes magras da bunda, chocando-se ao colchão duro e deformado. Abaixou-se, calçou com cuidado os sapatos e respirou fundo. Agora nada mais faltava. Apenas um detalhe, pensou. Abriu a gaveta do bidê, tirou um bloco de anotações, leu algumas linhas de um pequeno discurso e recitou o próprio nome, várias vezes. Hilário Bandeira. Hilário Bandeira. E acrescentou: candidato.
Em seguida, na rua, atravessava o pequeno parque que fazia fronteira do seu bairro com o do largo da prefeitura. O parque parecia vazio. Um ou outro transeunte, carregando sacolas, oriundos de alguma loja próxima. Aos poucos, estes também desapareciam, como se a única finalidade consistia em evadir-se daquele lugar ermo. Hilário sentiu um certo aperto no peito, uma dor miúda, que mastigava por dentro, como se o alertasse de alguma coisa mal sucedida. De repente, avistou um homem, finalmente havia mais alguém no parque e que talvez se dirigisse também ao palanque. Entretanto, o homem se distanciava a tal ponto, que quase não o avistava, a não ser uns trejeitos estranhos, uma maneira incomum de se vestir. Tentou identificar as vestimentas que mais pareciam uma fantasia de carnaval. Nada lhe vinha à mente conturbada. A figura estranha que se afastava, quase numa nuvem de poeira, ou névoa, ou fumaça, sabe-se lá o quê, produzia um sentimento de intensa perplexidade. Hilário franziu a testa, apertou os olhos e forçou a visão como pode para identificar o homem que se afastava naquele parque vazio. Aproximou-se do banco de pedra, próximo àquela árvore retorcida que costumava engendrar brincadeiras com os meninos do bairro, fingindo-se de herói nos tempos em que estes existiam, e sentou-se, inquieto. A parte posterior das coxas lhe doía pelo gelado da pedra. Na testa um suor desavisado empapava as sobrancelhas. Tocou-a levemente, roçando o anel vermelho e pensou estar com febre. Temia que alguma coisa terrível lhe acontecesse, afinal, tudo parecia ser um prenúncio de tragédia. Por fim, suspirou aliviado. Conseguiu visualizar, já na esquina, quase na curva que desembocava na prefeitura, o homem que se afastava tão rápido e assim, de maneira acautelada. Então era isso. A situação era tão simples e ao mesmo tempo tão absurda. Como ele não tinha percebido? Era um toureiro. O homem estava vestido de toureiro e se adiantava nos passos porque se dirigia à arena. Sim, à arena dos touros. As calças brancas, muito justas desde a cintura, aparteadas por um pequeno colete prateado. Se pudesse ver melhor, teria a certeza de que ele carregava alguma coisa na mão. Talvez uma espécie de lança, provavelmente para desafiar e investir contra o touro. Também observou-lhe a capa vermelha que esvoaçou ao dobrar na esquina. Nesse momento, não o viu mais.
Hilário levantou-se do banco de pedra, acabrunhado. Aquela revelação não era nada auspiciosa. Afinal de contas o que faria um toureiro no largo da prefeitura. Onde estariam todos? Onde estariam os convidados, as autoridades, inclusive, algumas celebridades? Era o dia dele, o dia do candidato, a sua chance de subir no palanque. Mas aquele homem, vestido daquele jeito... Bom, melhor não pensar nisso, agora, e seguir em frente. Certamente, a coisa mudaria de figura, logo que ele também dobrasse a esquina e ouvisse as bandas e o povo bradando o seu nome. Por fim, ele, espalhando sorrisos, enquanto pisasse firme em direção ao palanque.
Entretanto, outra circunstância extraordinária repentinamente saltou aos olhos de Hilário. Ao se aproximar do largo da prefeitura, o piso não era mais aquele emaranhado de ladrilhos bem dispostos, formando desenhos articulados, escolhidos a dedo por arquitetos que compunham a história da cidade. Não, ao contrário, era um chão tosco, no qual ele sujava os pés numa poeira vermelha, e seus sapatos de solado de couro riscavam com a lama seca. Hilário evitava olhar os pés e assim, já perdera toda a elegância. Seus olhos tingiam-se de vermelho e sua boca estava seca, como se atravessasse o deserto e apenas o líquido do suor de seu rosto era o que lhe cabia. Seu coração disparava, agitado. Temia que de repente, surgisse da primeira curva empoeirada, um touro ensandecido e que as pessoas disparassem pendurando-se em muros, em árvores, nas janelas das casas, nas grades dos portões e ele devesse enfrentar a fera sozinho.
Hilário recuou alguns passos, temendo ver mais do que sua imaginação criava. Mas era tudo real. O largo da prefeitura, antes ornamentado com flores e jardins, agora virado numa saga de animais ferozes e pessoas tresloucadas. Como se todos estivessem possuídos por uma droga potente, a ponto de transformar seus raciocínios, transportando-os a um mundo medieval. E não havia palanque. E desaparecera o imponente prédio da prefeitura. E não estavam as autoridades, nem os amigos, os conselheiros,os colaboradores. Apenas aquele terreno vazio e aquela turba delirante. Aquele povo de cara suja e olhos alucinados, torcendo que o sangue empapasse a lama, tingindo-a de vermelho e marrom, aprofundando a cor tenra em seara madura.
Num gesto reflexo, Hilário acelerou o passo. Um movimento que o assombrou a tal ponto de pensar que estava cometendo um suicídio. Mas tinha consigo que devia seguir em frente. As pernas magras balançavam dentro das calças. O olhar ponderava ao longe um ar de indagação. Que poderia haver além daquelas trincheiras, daquele povo que se acotovelava na volta da arena? Então, avistou um pequeno grupo de pessoas vestidas de palhaço, com nariz vermelho e roupas largas. Traziam consigo, pequenas lanças, tal como o toureiro, que a estas alturas devia estar encavado em algum canto obscuro, pois desaparecera completamente de seu campo de visão. Caminhavam devagar, observando as pessoas que riam de suas caras engraçadas. Um que outro dava cambalhotas, mas só um que outro. Os demais permaneciam no passo ritmado e nem pareciam felizes. A missão devia ser árdua. Hilário teve a impressão de avistar uma lágrima em uma das faces e às vezes, eles se davam as mãos, como se precisassem se apoiar uns nos outros.
Hilário parou novamente e olhou em torno, ouvindo os assobios e gritos agitados do povo. Teve a impressão de que o mundo inteiro se transformara numa sangrenta arena e que os touros eram fantoches criados apenas para satisfazer os donos do poder. O tolos que explodiam em pontapés, acotovelando-se e rindo às estribeiras nem se davam conta, que tudo não era uma simples diversão. E o que havia por detrás da batalha era muito mais intenso do que a população festejava. Hilário desta vez, não recuou. Ficou como estava, patético, petrificado. Finalmente, ele compreendeu tudo.
Naquela disputa, talvez não haja espaço para ele. Ou talvez ele precise usar a lança para espetar o touro. Ou seja ele, touro, não sabe. Em algum momento, porém, ele dará lugar a outro, mais jovem, com número maior de eleitores, com sorriso mais branco.
Pensando assim, tentou afastar-se, mas na sua frente, do nada, apareceu o toureiro. Hilário até sorriu, mas sua alegria durou pouco. O outro investia contra ele, com a mesma lança que avistara ao longe, a capa vermelha esvoaçando ao vento e um sorriso seguro, de quem tem a vitória estampada nos lábios.
Hilário viu-se ameaçado pelas costas, tal como o touro e não conseguia enfrentar o inimigo, muito menos encará-lo com o mesmo poder. Sentia a lâmina rasgar suas carnes, o ferro borrifando pequenas faíscas no sangue que vertia rápido, sujando a lama seca da arena. Naquele momento, ele percebeu que não era o candidato. Que não era um ser humano. Que não era ele.

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A boca vermelha, cabelos loiros, olhar perdido. Nem sabe se fazia pose, encenava ou apenas acessório do cenário. Assim os observava de re...

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