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A MÃO QUE CONDUZ A VIDA

Mexia as mãos, inquieto, sobre as páginas amareladas do jornal. Ilustrações saltando na retina, inesperadas. As colunas horizontais, repletas de letras: mosquinhas pretas que se juntavam em tropa disciplinada. Sentia a mão forte, rugosa, que nem galho de árvore, machucado pela intempérie: calos doídos, veias salientes, unhas escalavradas. Mãos de operário. A mão que me instigava o olhar, empurrava suave a minha, deslizando sobre as linhas, que lembravam a fuligem dos trens, passando céleres, vagões rumando ao porto. Olhava para ele de frente, engatando um sorriso, ele de soslaio, orgulhoso. Voz pausada e firme. Então, o esplendor, o regozijo, a iluminação. Comunhão. Despertar da leitura na palavra “hotel”, com todas as letras, em seguida, “pronúncia”, palavra difícil, que significava pronúncia? Ele pigarreou, explicou, explicou, mas logo mandou seguir adiante, que pronúncia não era palavra que dava nome a coisas, por isso, não tão importante. Era jeito de falar, mas se não juntasse o assunto, não dava nada. Procurava as mais complicadas, maiores, acentuadas. Ele me indicava o contexto. Coisa importante de ser dita. De repente, sob inspiração, desando a ler dezenas delas: jornal, cambraia, papel, outono, coronel, militar, morte. Observo-o sério. Muda de assunto. Pega outra coluna. O mundo se abre a minha frente. Uma catedral de sons, músicas e anjos dançantes pairam em meus devaneios. Livro, planta, flor, poesia. Ele sorri, satisfeito. Me beija de leve no rosto e começa a ler devagar um texto tão bonito, que me induz participar tão intimamente que me sentia ali, integrado naquelas folhas de jornal velho, amassado, oriundo de algum embrulho da mercearia. De repente, sou mais uma palavra com conteúdo brilhante, forte, denso, ou uma ilustração estética, bela, nobre. Naquele momento, meu pai parecia ter 6 anos e eu a sua idade. Estava feliz. Eu sério, contrito, ouvindo os sons pausados, as sílabas alongadas que surgiam de sua pouca leitura. Tudo certo, redondinho, exato, quase infantil. Mas com uma dose extraordinária de sabedoria e emoção.

Minha mãe passeava pela cozinha, deixando o toque-toque dos saltos insurgir-se prosaico, na ansiedade temerosa da vida que brotava, mas não ousava dispersar-nos de nossos momentos de parceria. Ouvia o correspondente da rádio e de seus olhos castanhos, pude avaliar um brilho de aflição. Meu pai parara, estupefato, embora sem se afastar dali, da mesa da copa, onde ficávamos tanto tempo fazendo planos, os três. Ela estava ao pé do rádio, encostada na beirada do armário que ficava à altura de seu seio. Próxima à porta, olhava-nos, esperando o desfecho. Meu pai estático, fixando o jornal, mas ouvindo atento. Eu olhava ora para um, ora para o outro.

Brizola irrompeu a falar obstinado, sem cessar, instalando a rádio no palácio. Reivindicou homens para a luta, relatou o apoio do partido comunista. Instigava à Nação, na luta pela posse de Jango. O silencio pesava. A noite interrompia a vida, a morte suscitava denúncias, guerrilhas, terror, medo, golpe. Ou tudo isso suscitava a morte. Por momentos, meu pai encolheu-se na cadeira, pensativo, enquanto a emissora prosseguia, inflamada, reverenciando os heróis. Um mar revolto antecedia a tempestade. Prenúncio de inverno nefando, doído. Ossos enrijecidos. O aporte do frio, da dor, do inverno latente que se imergia nos corações e cérebros apalermados (turvos). Parece que estava fadado a interromper ali, naquele ponto, a naturalidade que nos envolvia. Com o tempo, meu pai foi se afastando de nossas conversas, nossas cumplicidades, nossas aulas de leitura e vida. Minha mãe cada vez mais tensa. Juntava-lhe os óculos pendentes num cordão de ouro, mastigando pequenas letras que se inseriam rápidas no seu repertório. Buscava nelas, talvez, inspiração para seguir adiante. Poesias, contos, temas suaves, prenúncio de romance e ternura. Mas nada a tirava dos pensamentos mais funestos. Seu olhar se perdia no horizonte, principalmente quando o viu afastar-se de vez. Quando nossos olhos se encontraram e os corações bateram em uníssono. Deve ter me abraçado, acalentado minhas esperanças. Mesmo assim, a via distante e solitária. Não era mais a mesma: taciturna, perdida. Reticente. Empilhava os inúmeros cadernos dos alunos e entre eles um recorte qualquer de jornal, uma folha amassada trazida por alguma colega da escola, uma carta que chegara da capital. Meu pai estava lá, distante, envolvido na luta pela liberdade, pela justiça, pelo desejo de continuar vivo e de me ver assim, livre e senhor de meu destino: destino que ele quisera impunemente conduzir. O tempo passou. Brizola exilou-se. A campanha fracassou. O golpe triunfou: forte, estridente. Fera que devorava as presas que não palmilhassem os mesmos passos, não seguissem os mesmos caminhos ou que apenas divergissem da caça.

Minha mãe vestiu-se com recato, sóbria, elegante. Juntou-se ao grupo. Resistência. Esperança. Espalhou papéis. Panfletos. Documentos que denunciavam a repressão, a tortura, manifestações indiciantes da ditadura. Lutou pela volta dele. Esperou-o. Foi aos quartéis. Buscou-o nos menores e piores recônditos. Nos porões. Ficou finalmente, quase só na dor. Um comunista não ficava impune. Mesmo um homem amável, doce, que tentava me conduzir suave, no caminho do conhecimento. Ela deixou-se ficar, vazia, à espera amiúde da volta: da maneira que fosse. Vivo ou morto. Passou a exercer a dor com dignidade. Cada gesto, cada movimento era devidamente pensado, arquitetado, engendrado. Desafios que se impunham aos seus anseios.

Via-a envelhecer paulatinamente. Eu ingressara na escola, misturando-me ao meio que me acercava sem perceber que ao meu lado estavam os que me libertavam de minha velha vida: agora, integrante do meio denso e feliz da infância. Uma infância não mais marcada, não estigmatizada pela dor, nem pelo medo ou desesperança. Uma infância que me alienava de tudo aquilo: todo aquele passado que aos poucos se afastava de mim e não mais me dizia respeito. Deixava minha mãe de lado, as suas buscas desesperadas, o sumiço de meu pai, suas lutas, seu passado. Não queria mais sofrer com eles. Queria ser feliz, ser um igual no bando uniforme que me cercava. As brincadeiras, as descobertas, o outro mundo desconhecido. Não mais o aguado mexer de mãos, mergulhar na água e descobri-las tão igual quanto antes: limpas, sem máculas. Segurá-las uma na outra, uni-las para pedir perdão e suplicar ajuda. Não mais o caminhar lento e fragilizado de minha mãe, ronronando pela sala, procurando nas almofadas o cheiro de um passado que já não existe. Entrar sorrateira atravessando a cozinha, sentar no portal que dá para o pátio, acercar-se de que o seu mundo não passa dali. Olhar as nuvens e avistar nelas a fuligem dos trens de carga, rumo ao porto e seguir junto a eles, correndo por entre os dormentes, esperando encontrá-lo, levar-lhe a comida que lhe matava a fome do corpo e da alma. Por vezes, ia até o porto, olhava ao longe, sentada à beira do cais, e lá deixava-se ficar à espreita de alguma notícia, um balbuciar assustado de algum operário, dizendo-lhe coisas suspeitas, frases fragmentadas, pedidos de segredo. Eu a seguia, mão na mão. Quase arrastado pelas alamedas quentes, trilhos escaldantes, brilhando, espelhando meus olhos indiferentes. Afundando os pés na rua de carvão. Nestes momentos, a odiava, assim como odiava meu pai, com todas as forças, por ter me abandonado, por ter buscado lá fora uma vida que não se coadunava com a nossa, por ter me exilado de seus planos. Por que me fizera ingressar no mundo novo, desconhecido das palavras? Por que aguçara a minha curiosidade, por que me alertara para as buscas que faria?

Quando pela primeira vez ingressei na biblioteca, um brilho absurdo se apossou de meu ser. As palavras fluíam céleres, ilustrações majestosas. Um encontro inesperado que não supunha ocorrer daquele modo. De repente, a revelação: meu pai estava ali, inteiro, metamorfoseado naquelas páginas ávidas de conhecimento, de verdades não absolutas, de indução à curiosidade, do fazer mil perguntas e exigir um mundo de respostas. A fuga do senso comum. A mão forte, agora, me guiava segura, tranqüila, induzindo-me a partilhar consigo as mesmas verdades, as mesmas buscas, os mesmos caminhos. Luta armada, guerrilha, comunismo, golpe, tortura, ditadura passaram a fazer parte de meu vocabulário. Aos poucos fui enfrentando meus medos, assumindo suas lutas, seus anseios de transformação, desertando daquela vida medíocre e mesquinha, assumindo a esperança dos sonhadores. Porém, cedo, percebi a mão pesada da autoridade obscura, quando centenas de soldados imiscuíram-se entre os livros, espalhando-os ao chão, desatentos a sua sorte; ratos desenfreados e famintos fuçando pela ração da intolerância. Buscavam literatura subversiva e ali, brevemente, num momento de dor, mas de iluminação, tive a confirmação da legitimidade da luta de meu pai. Minha mãe procurou-o em vão. Nem seu nome estava arrolado nos autos dos insubordinados, subversivos, comunistas. Nem seu corpo, seus restos, mas o seu legado permaneceu entre nós, tão firme e forte, que nos sustentou por toda a vida.

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